segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Uzbequistão e Turquia (parte 7/8)

...continuação
Eu e o motorista curdo margeamos a borda sul do lago Van, nos aproximando cada vez mais das montanhas nevadas. Em cais na beira do lago, peguei barco para a ilha Akdamar. Desembarquei no terreno pedregoso e acidentado da ilha, em cuja encosta da colina se elevava a igreja cristã da Cruz Sagrada, erguida pelos armênios havia mais de mil anos.
Nas paredes externas da igreja, entalhadas diretamente na rocha, relevos de animais, personagens bíblicos, cruzes, figuras abstratas. Ao explorar as paredes e as abóbodas internas, afrescos gastos pelo tempo e a ausência de conservação chamaram a atenção logo de cara.
E a vista desde a ilha era de cair o queixo. As cadeias de montanhas para além da margem do lago, todas cobertas de neve, prendiam o olhar. Pequenas enseadas de pedras e areia grossa cortavam o entorno insular tocando as águas frias do lago.
Os barcos percorriam as águas naquele fim de semana de sol, trazendo e levando turistas regionais. Num deles, turcas ou curdas, muçulmanas praticantes e vestidas com mantos e roupas compridas em tom pastel, parecendo uniformizadas, lotavam o convés superior.
De volta à margem sul do lago, lá estava o curdo conversando com amigos e parentes no restaurante ao lado da estrada, especializado em peixe endêmico do lago Van, e também o único representante animal daquelas águas.
Os peixes pequenos e saborosos vieram acompanhados de arroz colorido, picles, salada e, como de praxe, muito pão. Auxiliei a digestão com dois copos de chá preto, sempre ele, sempre bem-vindo.
Ao voltarmos para Van, paramos no vilarejo de Gevas onde ele se encontrou com a esposa para ajeitar as coisas para a viagem. Visões deslumbrantes e mais próximas das montanhas nevadas, ao pé das quais se erguiam as casas ao longo das ruazinhas da vila.
Segundo o motorista, a situação dos curdos nos últimos anos ficou menos tensa. Somavam cerca de vinte e cinco milhões de pessoas na Turquia, a maioria absoluta se comparada aos residentes no Irã, Iraque, Síria, Palestina. Podiam se manifestar culturalmente, dentro de certos limites. Ouviam estações de rádio transmitidas em curdo. Liam livros e jornais editados em curdo, e assim por diante. A atividade guerrilheira dos separatistas curdos caiu de intensidade e praticamente não havia ações agressivas de ambos os lados, do Estado turco e das organizações curdas.
A rodovia no sentido sudeste levava às fronteiras oficiais da Turquia, uma com o Irã e outra com o Iraque. Contando com relevo acidentado, cercado de montanhas nevadas, especialmente ao sul, a terra se tornava cada vez mais seca e acastanhada quanto mais o veículo avançava.
As ruínas de Çavustepe abrangiam o antigo palácio de Sarduri, o rei dos urartus e originados da antiga Armênia, construído dois mil e oitocentos anos antes sobre os altos da colina. O povo urartu habitava áreas que abrangiam o planalto armênio, territórios que passaram a pertencer à Armênia, Geórgia e Turquia. O sítio revelava resquícios da base do palácio, contando com blocos de basalto contendo inscrições cuneiformes, porões para armazenar água e comida, partes de muralhas e paredes internas. A vista panorâmica dos vales, vilarejos, plantações, rebanhos de ovelhas, bem abaixo, e das cadeias de montanhas nevadas ao sul, de escarpas de rochas acastanhadas ao norte, compensou a subida.
Retomamos a rodovia até Guzelsu, vilarejo quase desértico contando com construções pardas em adobe, a mesma coloração das colinas ao redor. No topo do mais alto e íngreme dos morros, se elevava as ruínas do castelo Hosap, erguido pelos curdos no século XVII.
Em processo de restauração, a edificação guardava portal de entrada ricamente decorado em rocha entalhada. Ultrapassando a pesada porta de madeira, em meio à escuridão total, acessei a escadaria ascendente e em curva rumo ao pátio principal. Lá, torres, muros altos de pedra, outros de adobe, ameias a partir das quais se tinha vista privilegiada do vilarejo.
O vilarejo de Guzelsu, onde tomamos vários chás ao lado de senhores narigudos e bigodudos, vestindo roupas pretas, conversando ou jogando uma espécie de damas, empolgou mais que o castelo em si. Talvez pelo jeitão empoeirado e desleixado, marca de parada fronteiriça, pelo entorno desértico e inóspito, pela autenticidade, pela despretensão em agradar.
À noite, tomei saborosa sopa de lentilhas, bem temperada e levemente picante, em local pequeno, básico, exclusivo de sopas. Sobre a mesa, enorme cesta de pães, vasilha com salsinha, cebola, pimenta em pedaços ou em pó. Ao final me foi servido água e chá. Tentei dialogar com o dono do estabelecimento, com o garçom, com outros clientes. Usei a cola de palavras turcas que carregava sempre comigo. Não evoluiu. Pena. Me despedi sorrindo. Eles agradeceram sorrindo. E que delícia de refeição ligeira em ambiente curdo, ou turco.
As calçadas e ruas enchiam de moradores passeando para lá e para cá, entrando e saindo de inúmeros e variados pontos para comer, beliscar, degustar, beber chá, ou simplesmente rezar ou jogar conversa fora naquele meio de noite fria.
De manhã visitei a primeira igreja armênia da região, datada de mais de mil anos, situada no alto de encosta montanhosa e nos arredores da vila curda de Sete Igrejas. O terremoto de 2011 castigou severamente o vilarejo pobre com casebres de adobe acastanhado e o governo turco forneceu caixas emergenciais do tipo contêiner aos desabrigados.
Vestindo calça de veludo estufada, o vizinho curdo abriu o cadeado da pesada porta da igreja para que eu pudesse perambular pelos interiores sob a penumbra dos tempos, parcamente iluminado por lâmpadas fracas, penduradas de maneira tosca e improvisada.
A impressionante igreja, com o mesmo nome da vila, também sofreu com o abalo sísmico, mas ainda impunha respeito, exibindo um portão imponente e entalhado na madeira e pedra, interiores com afrescos de santos, paredes de pedras entalhadas, inscrições armênias, cúpulas intactas ou parcialmente desmoronadas, labirintos escuros e em ruínas.
Descemos o morro e seguimos margeando o lado sul do lago Van, cortando relevo montanhoso sobre rodovias em bom estado, entre vales estreitos e profundos, neves nos cumes e cristas das montanhas, vilarejos esparsos e pequenos, pastores conduzindo ovelhas.
Na feia e cinzenta cidade de Tatvan, comemos o famoso buryan, pedaços de carneiro acompanhados de fatias de pão, tomate, cebola, pimentão. Cada um comia como desejasse, misturando tudo dentro do pão, ou beliscando cada item separadamente. Hidratei a comilança com ayran, iogurte acrescido de água e sem açúcar.
O preparo do buryan chamava mais a atenção do que o sabor em si. Introduzia-se praticamente o carneiro inteiro, pendurado em ganchos, no forno cilíndrico abaixo do piso da cozinha. O funcionário fechava a pesada tampa e deixava a carne por horas assando no forno. A refeição matou a fome em restaurante simples, básico, apertado, frequentado por moradores e trabalhadores em horário comercial.
O céu escurecia mais. Ventos e chuviscos começavam a fustigar.
A Tumba de rei Selçuk, isolada em terreno abandonado, era rodeada de casinhas precárias, das quais saíram crianças para nos seguir e nos observar passo a passo. Assustadas, mal falavam ou reagiam aos meus movimentos, apenas fixavam os olhos em cada detalhe do que fazíamos ou ameaçavam sorrisos contidos.
Mais à frente, o cemitério do povo Selçuk. Espalhadas por vasto espaço, as lápides e tumbas do cemitério, construídas a partir da rocha ocre escura, eram datadas dos séculos XIII e XIV. Verticais e inclinadas devido aos sucessivos terremotos ao longo do tempo, as lápides continham inscrições e escritas entalhadas diretamente na rocha, parcialmente encobertas pelo líquen amarelado.
Ventava bastante e fazia frio. O caminhar por entre túmulos de mais de seiscentos anos de idade surtiu um efeito macabro e fascinante, pela disposição das lápides verticais, deslocadas e inclinadas, sob o céu cinzento e ameaçador, tendo ao fundo as encostas nevadas.
Me hospedei em hotel escuro e vazio na cidade de Ahlat. O janelão do quarto abria para as águas da margem norte do lago Van e para as montanhas nevadas do lado oposto. O céu se mantinha baixo e nublado. A paisagem se iluminava de vez em quando, conferindo efeitos maravilhosos.
Escolhi a cama mais distante do aquecedor instalado sob a janela ligeiramente aberta. Entrou o som relaxante das águas do lago revoltas pelo mau tempo e batendo na murada logo abaixo. Do breu absoluto do lado de fora vinham roncos de trovões e faíscas de relâmpagos.
Amanheceu claro e ensolarado, diante das águas azuladas do lago Van, tendo ao fundo a linha de montanhas nevadas.
Saindo de Ahlat a estrada tomou o rumo nordeste. Desci para fotografar a montanha Suphan, cujo cume e encostas se cobriam de neve. Em seguida, o motorista entrou em área de lazer em reformas para conversar com colega. Ao voltar, adiantou que decidira rever o amigo antigo que recentemente fora solto depois de anos em prisão condenado por assassinato.
A rodovia cruzou as cidadezinhas de Adilcevaz, Patnos, Tutak. Depois de Agri, a cachoeira nas imediações de Diyadin, cujo entorno se entupia de lixo jogado pelos frequentadores e jamais recolhido pelas autoridades.
A paisagem começou a melhorar conforme a estrada subia drasticamente o relevo. Extensa área de lava vulcânica resfriada e solidificada, de coloração negra a castanho escura, servia de primeiro plano sob as encostas de vulcão inativo, cujo cume e encostas se cobriam de neve. E a rodovia subia mais e mais. A linha da neve se aproximou e pude ver camadas dela bem próximas do asfalto. A estrada atingiu o máximo de altitude. Blocos de neve, duros, brancos, cinzentos pela poeira, apareciam no acostamento e em depressões abaixo do leito da estrada. Em curva ascendente mais acentuada, desembarquei, de camiseta mesmo, sob o vento gelado. Nem senti o frio. Apreciei, contemplei, registrei aquela paisagem árida, gelada, estonteantemente bela do extremo leste da Turquia.
Após cruzar o passo, a estrada ziguezagueou violentamente montanha abaixo, perdendo altitude enquanto a neve ficava para trás e o vento amainava. Irromperam pastos esverdeados, rebanhos de ovelhas, minúsculos vilarejos curdos com casas retangulares erguidas a partir de pedra e barro, e de cujas chaminés centrais a fumaça exalava, garantindo que ali dentro todos se aqueciam devidamente e tomavam copos de chá bem quente.
As emoções, entretanto, estavam longe de terminar. Do outro lado do vale, ao lado de um vulcão cônico cortado por linhas de neve nas encostas íngremes, apareceu imponente nada mais, nada menos, que o monte Ararat, ele mesmo, o personagem de textos bíblicos, a montanha mais alta da Turquia, contando com mais de cinco mil metros de altitude.
No final do vale alongado e alargado, estava Dogubayazit, cidade a apenas trinta quilômetros da fronteira com o Irã.
Depois de instalados, almoçamos bem e bastante a saborosa comida curda. O meze precedeu divinamente os kebaps, entre saladas, iogurtes, pastas avermelhadas e picantes, pães enormes e sem fermento. A decoração interna do restaurante imitava castelos e lendas antigas sob a iluminação tênue de clube noturno. A comida, no entanto, farta, variada, deliciosa, me recobrou a alegria de viver.
O veículo cruzou o empoeirado e bagunçado centro de Dogubayazit, típica e instigante cidade fronteiriça. Percorrendo as últimas ruas da cidade, subiu as colinas das cercanias rumo ao topo árido e acastanhado de uma delas, sobre o qual se erguia o palácio Ishak Pasa. Ao redor, ruínas de outras construções seculares, mesquita, vilarejo minúsculo, plantações de legumes e verduras da comunidade curda.
Os entornos e arredores do palácio encantaram mais que o próprio, em questionável processo de restauração, descaracterizando o original. Tudo ficou muito certinho, ajeitadinho, limpinho. A primeira cobertura, danificada ou perdida, fora substituída por estruturas de metal e vidro. Portais, relevos e entalhes nas paredes rochosas, no entanto, salvaram a beleza original do complexo construído nos séculos XVII e XVIII, e que serviu de hospedagem e repouso para integrantes da antiga Rota da Seda.
Mantive no jantar o mesmo e excelente restaurante de comida curda no qual me deliciara no almoço. Dei volta a pé pelo centro desmazelado de Dogubayazit. O comércio aberto garantia intenso movimento de veículos e pedestres.
Amanheceu com céu azul e sol brilhante. Nada impedia a visão estupenda dos cinco mil e tantos metros de altitude do monte Ararat.
Caminhei pela estrada em frente ao hotel, a que segue à fronteira com o Irã, para contemplar e fotografar o Ararat. Nenhuma nuvem no céu azul e límpido. O cume nevado, as encostas nevadas, a base esverdeada da montanha mais alta da Turquia, se mostravam explicitamente, sem obstáculos ou retoques.
Partimos rumo à cidade de Kars. Logo no início da rodovia, mais paradas para apreciar e registrar dezenas de vezes o deslumbrante monte Ararat, resplandecente sob os raios de sol que atingiam diretamente o cume e as encostas da montanha. Compulsivamente eu pressionava o obturador da câmera na busca do enquadramento perfeito, do ângulo perfeito, da luz perfeita, das cores perfeitas.
A montanha ia ficando para trás à medida que a estrada avançava, cruzando os vilarejos de Igdir e Tuzluca. Campos arados para a semeadura de primavera e verão, rebanhos de ovelhas e gado, serrotes bizarros com estratificações coloridas, mais montanhas nevadas no horizonte, planícies e vales cultivados de um verde intenso.
Paramos para tomar chá em pequeno restaurante localizado exatamente na fronteira com a Armênia. Pude ver casinhas e postos militares de fiscalização da fronteira do outro lado do riacho correndo sob o vale profundo.
Depois do vilarejo turco de Digor, o veículo dobrou à direita em direção ao sítio arqueológico situado também na fronteira com a Armênia.
continua...

2 comentários:

  1. Por acaso o seu guia lhe deu alguma pista sobre o que os locais pensam sobre o Monte Ararat e a arca de Noé? Eles acreditam que ela "aterrou" mesmo ali, depois do dilúvio? Ou é-lhes indiferente esse pormenor da tradição cristã? O chá, que aprendi a apreciar no fim das refeições, deve ter sido bem reconfortante nessas paisagens geladas...
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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  2. Oi Ruthia, valeu pelos comentários.
    O motorista curdo, embora soubesse por alto da passagem da Bíblia citando o Monte Ararat, não pareceu interessado em desenvolver o tema. Creio que a maioria por lá sinta o mesmo. Não faz parte do cerne da cultura deles.
    O chá preto, em baixa no Brasil depois da mudança de preferencia para hortelã, verde, camomila e, claro, mate, lá reina absoluto, desde que acorda no café da manhã até dormir novamente, passando por todos os momentos do dia.
    Eu tomava muito chá preto quando criança e adolescente. Depois parei.
    Foi bom rememorar e apreciar aquele sabor marcante, ainda mais tendo diante do frio e das montanhas nevadas.
    Abraços e comente sempre.

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