Coloquei a mochila nas costas. Subi a rampa até a rua
asfaltada, seguindo à praça, onde me hospedei em hotel mais que suficiente para
aquela noite.
Esvaziei a mochila para me livrar de possíveis lembranças,
vivas ou mortas, provenientes de ambos os barcos. Fiz a barba agachado em razão
do espelho do banheiro se alinhar com meu umbigo. Tomei banho caprichado, agora
sem pressa, em local amplo, podendo permanecer com a coluna ereta, finalmente.
A praça e as ruas que desembocavam nela lotavam naquela
noite, sobretudo de adolescentes. Elas se vestiam para matar, usando saltos
quilométricos, vestidos ou saias curtíssimas, colantes e de cores berrantes, produção
exagerada no rosto, cabelos previsivelmente alisados. Todas parecidas,
desfilando com os celulares numa mão, alisando e repuxando os cabelos com a
outra, conferindo se os cabelos artificialmente alisados ainda estavam alisados,
bem alisados. Muitas eram lindas de rosto e de corpo, a despeito da produção de
rodar a bolsinha.
Ainda me sentia zonzo de tantos dias de barco. Me
desequilibrava com facilidade ao andar pelas ruas e, se fechasse os olhos,
certamente desabaria no chão. Os efeitos da longa viagem sobre as águas do
Purus não me largariam tão cedo. Ainda bem!
Dormi sono tranquilo, profundo, sem suor em cascatas e o
abafamento do camarote do primeiro barco, sem o desconforto da rede durante
horas e o vento da madrugada do segundo.
Me acabei de tanto comer no café da manhã do hotel, entre frutas,
sucos, pão fresco, queijo artesanal, ovos fritos, cuscuz, tapioca, banana
frita. Reconfortante comer bem e variado pela manhã.
Que maravilha! Agora eu podia parar ou andar de cabeça
erguida, coluna ereta, por todos os lugares. Era um alívio permanecer numa
postura decente.
Antes de partir passeei rapidamente por Boca do Acre,
aproveitando a luz do dia. Fui olhar o rio Acre, na boca com o Purus, acidente
geográfico que deu o nome à cidade. Contemplei as construções de madeira,
algumas em sobrado, que davam toque especial ao conjunto arquitetônico urbano. Matava
saudades da cidadezinha que explorara com tempo dez anos antes.
Peguei o ônibus para a capital acreana, que lotou depois
de parar em inúmeros pontos pelas ruas de Boca do Acre.
A viagem de seis horas até Rio Branco correu a maior parte
do tempo em asfalto, exceto três trechos curtos de estrada de chão. Ali, ainda
no estado do Amazonas, o ônibus cruzou áreas indígenas que não aceitavam uma
estrada dentro dos territórios ancestrais, muito menos asfaltada.
Rostos sulinos começavam a aparecer entre os passageiros,
indicando o avanço das fronteiras agrícolas e, a considerar a ação destruidora desses
migrantes em regiões próximas, deixando um alerta vermelho para os que amam a
floresta em pé.
Desembarquei à tarde no novíssimo, moderno e internacional
terminal rodoviário de Rio Branco. Dali, ônibus chegavam e partiam para
diversas localidades do Peru, inclusive Cuzco e Lima, via a rodovia do
pacífico.
Peguei carona com um passageiro do ônibus até o hotel.
Entrei no quarto contando com enorme janelão que permitia a entrada de luz
natural e de imagens da cidade, inclusive da catedral e da imensa bandeira do
estado do Acre, distante dali, erguida na margem do rio Acre.
Lavei as roupas mais sujas. Tomei banho caprichado e
demorado. Esvaziei e escondi a mochila em cima do armário. Não queria olhar
para ela, muito menos manuseá-la, por uns bons dias.
O centro de Rio Branco agradava pela limpeza, humanização,
praças amplas e prestigiadas pela população, de dia e de noite. Quiosques
padronizados vendiam tacacá tradicional, rabada ao tucupi, lanches, sucos,
comes e bebes em geral. Restaurantes de tipos variados se escondiam nessa ou
naquela rua.
Dormi bem e bastante em cama alta e macia. Mas meu corpo,
especialmente ao fechar os olhos, ainda sentia o oscilar dos barcos sobre as
águas do Purus. Por mais que me afastasse do rio, minha mente insistia em
recordar aquele relacionamento fluvial de doze dias.
Os povos indígenas que tiveram as terras milenares
cortadas por estrada no sul do Amazonas, a mesma que eu cruzara na tarde
anterior, se recusavam a aceitar o asfaltamento da mesma e iniciariam processo
de cobrança de pedágio, como em certos trechos do nordeste de Mato Grosso.
Alguns moradores das cidades se indignavam com a reação indígena, alegando que
não haveria alternativa de traçado da estrada, e os territórios indígenas
seriam cortados de qualquer maneira. Mas se este é o caso, por que construíram
a estrada? Por que não utilizar o rio Acre ou rio Purus, como vias de
transporte do Amazonas ao Acre, deixando os povos indígenas em paz na terra
deles?
Já de passagem marcada de volta para casa, o negócio era
relaxar e aproveitar o aconchegante estado do Acre.
Aproveitei o céu nublado e o vento fresco para circular
pela beira do rio Acre e pelo calçadão em frente ao Mercado Velho. Me sentei no
banco da praça para observar as pessoas pelo centro de Rio Branco. Andei até as
bandas do Mercado atual. O centro da cidade continuava bem arrumado, limpo,
humanizado, com muito verde, sombra, locais para sentar e descansar. E as recentes
administrações públicas acreanas não cometeram o crime, tão comum nos
interiores brasileiros, de mutilar geometricamente as árvores das ruas e das
praças com podas criminosas, estragando as árvores e eliminando as sombras. As
árvores cresciam livremente e as sombras refrescavam do calor acreano. Mesmo
nas áreas de comércio popular, normalmente suja e confusa nas principais
cidades brasileiras, havia organização e limpeza.
A população se mantinha educada e prestativa, dando
passagem para os pedestres nos cruzamentos, cumprimentando gentilmente, sorrindo
discretamente.
Tanto durante o café da manhã no hotel, com nas ruas da
cidade, se via significativa presença de rostos e sotaques sulinos, referências
verbais ao Paraná e estados vizinhos. Se essas criaturas agirem como têm agido
no Mato Grosso, Rondônia, sudeste do Pará, sul do Amazonas, coitado do Acre e
dos acreanos. Por onde passam, ligados direta ou indiretamente aos crimes do
agronegócio exportador e envenenado de agrotóxicos, esses infelizes têm deixado
como marca somente a destruição da natureza e a miséria social e cultural.
Não tinha preço não ser forçado a me movimentar abaixado,
curvo, olhando para chão ou para os lados, por conta dos tetos, chuveiros,
espelhos, batentes, entre outros tantos limitadores de altura aos quais me
submeti e padeci por dias e dias. Agora o céu era o limite. Os tetos, duchas,
espelhos, superavam minha altura. A coluna e todo o meu corpo agradeciam
aliviados essa liberdade postural.
Após o almoço, fui ao Mercado Municipal e detonei meio
litro de creme de açaí fresco. Não fora centrifugado naquele momento, como os
de Codajás, mas delícia seria pouco para qualificar aquela iguaria amazônica.
Mais uma noite na capital acreana, mais uma oportunidade
de contemplar e admirar o centro revitalizado da cidade. Praças, restaurantes,
quiosques de tacacá, rabada ao tucupi, lanches, doces, bares na beira do rio
Acre, escolas, apresentavam movimento discreto em plena segunda-feira. O povo
da cidade e os visitantes prestigiavam diversos pontos da região central, sem
alarde, sem tensões, sem perigos, sem pânicos, despreocupadamente, flanando.
As demais capitais e cidades grandes brasileiras teriam
muito que aprender com Rio Branco em matéria de valorização e humanização dos
respectivos centros da cidade.
“Terceiro andar”. “Descendo”. “Terceiro andar”.
“Descendo”. Era o que mais eu ouvia, sem parar, vindo do elevador bem em frente
à porta do quarto do hotel. Ouvia até mesmo quando o elevador se encontrava no
andar de baixo. “Segundo andar”. “Subindo”. “Segundo andar”. “Descendo”.
Perambulei por ruas, becos e calçadões, nas proximidades
da margem esquerda do rio Acre. Em cada oportunidade que eu retornava a Rio
Branco, e aquela não seria a primeira e nem a última, as administrações
públicas, municipal e estadual, encabeçadas nas últimas gestões pelo Partido
dos Trabalhadores, organizavam, revitalizavam, humanizavam, mais e mais, o
centro da cidade e os arredores. A população e visitantes agradeciam e
aproveitavam.
Depois do almoço com a variada comida regional, novamente
estiquei até o Mercado Municipal para tomar o açaí nosso de cada dia. E, para
manter a regra, fui carinhosamente atendido.
À noite, a brisa fresca deixou a temperatura bem amena.
Nem transpirei durante caminhada de ida e volta ao Parque da Maternidade,
impecavelmente cuidado. Mais um local prestigiado pela população que de dia, e
principalmente à noite, exercia diversas atividades esportivas, culturais e de
lazer. Era um parque linear na acepção da palavra, uma vez que se dispunha ao
longo de extenso igarapé, não canalizado, felizmente. Parque linear, que em São
Paulo, a maior cidade do Brasil, era somente uma promessa demagógica de
empresários e políticos, já era realidade em Rio Branco havia no mínimo dez
anos.
Escolhi mesa tranquila do bar e restaurante de frente para
a pista de caminhada. Entre caipirinhas e comidinhas, refleti sobre a viagem,
sobre o Purus, sobre a primeira vez que estivera ali, naquele mesmo bar, dez
anos antes. Naquela oportunidade, me sentei em local próximo e fui presenteado
pela enorme e brilhante lua cheia nascendo do outro lado do igarapé, enquanto a
população desfilava na minha frente, na pista de caminhada.
Mais uma manhã de enrolação e perambulações a esmo, muito
bem-vindas por sinal. Não tinha a mínima ambição de passeios específicos,
apenas flanar e observar. Já explorara pacientemente a cidade nas visitas
anteriores, sobretudo na última, três anos antes. O sol despontava à esquerda.
O centro de Rio Branco se clareava para mais um dia. Abri todo o vidro do
janelão a fim de receber o ar fresco da manhã e os primeiros sons da cidade.
Tomei ônibus urbano vazio até o distante aeroporto. Li
bastante. Enganei o estômago.
Durante o voo, terminei de reler o ótimo livro Maíra, de Darcy Ribeiro. Sem disfarçar,
o larguei no bolsão à minha frente. O livro grosso se despedaçara em três
partes e eu não pretendia carregar aqueles destroços. Que quem o encontrasse
fizesse bom uso.
O avião pousou na segunda semana de maio em
Congonhas, São Paulo, na velha e curta pista que sempre provoca calafrios.
Imediatamente lembrei que o barco no qual subira o rio
Purus, naquele instante, deveria estar nas imediações de Lábrea, rio abaixo,
rumo a Manaus. Desconfortos à parte, a viagem de subida do Purus me deu muito
prazer, prazer que não acabaria jamais.
Tanto que durante o voo da volta para casa eu rascunhei possíveis
novos roteiros fluviais pela Amazônia. Ficariam para as próximas viagens.
Viagens que certamente não demorariam a acontecer.