segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O Rio Japurá (parte 6/6)

...continuação
Acordei novamente antes de clarear. O barco balançava, embora mais suavemente. Amanheceu nublado. As coisas pareciam amenizar com a claridade. Não senti tensão entre os passageiros.
Mas a calma era apenas aparente. Durante o café da manhã os passageiros comentavam o susto da madrugada, o medo sentido, o desespero pelo qual passaram. Alternavam as narrações e desabafos com risos nervosos e olhares assustados para as águas do rio. Mesmo os metidos a machões, tidos com escolados nas águas da Amazônia, mostraram que são de carne e osso e também passíveis de pânico.
Recomeçou a chover entre trovoadas esparsas. As águas do Solimões novamente se encresparam. Ondas consideráveis surgiram e banzeiros se formavam de todos os lados. O barco voltou a balançar violentamente. A água da chuva fustigava o barco junto com os ventos fortes. De vez em quando um trovão violento estourava no céu, assustando para valer. A água do rio entrava impunemente no barco. O convés do piso Superior estava ensopado, mesmo com a lona plástica arriada. Pânico generalizado, novamente.
Meia hora depois, de volta à calmaria, os dois do camarote ao lado pegaram a voadeira rumo a Coari. Antes, nos desejaram boa viagem e boa sorte. A dupla estava livre de mais temporais e mais sustos, pelo menos naquela viagem.
A tensão pareceu sumir de vez. A mesa no piso de Lazer abrigava rodas sucessivas de caixeta, agora a um real a aposta. O calor e o céu azul voltaram, aquecendo os corações apertados. As instabilidades climáticas se concentravam para os lados do médio Solimões e do vale do Japurá. Tempo manso pela frente. Notícia alentadora. Alívio geral.
Passamos sem parar por Codajás, cidade da margem esquerda do Solimões que eu visitara dois anos antes. O porto e a rampa de acesso, ambos novíssimos, chamavam a atenção. Restaria saber se o restante da cidade, tão desmazelada anteriormente, recebera os mesmos cuidados. Os moradores da capital do açaí bem que mereciam tratamento humano das administrações públicas.
Depois do futebol, a pequena plateia se concentrou nos fulgurantes e esplendorosos programas de domingo pela televisão. O proprietário e a mulher, o filho e namorada, a conferente, arrumaram as cadeiras estrategicamente para não perder nada das maravilhas da telinha. E, como de praxe, alguém se posicionou sob o cano da antena parabólica, a fim de girá-la sempre que fosse necessário recuperar a imagem.
Aquelas cenas, de vários enfileirados diante da telinha, me lembraram das provocações que eu costumava fazer às segundas-feiras quando meus colegas de trabalho deitavam falar mal da programação televisiva dos fins de semana. Eles, ou elas, escandalizados, descrevendo os detalhes, reclamavam que aqueles programas eram cretinos, idiotas, absurdos. Ao terminarem as lamúrias, eu emendava:
- Se esses programas são cretinos e idiotas, quem assiste é o quê?
Como não sou chegado à televisão, seja durante a semana ou aos fins de semana, seja em canal aberto, a cabo ou satélite, me sentia inteiramente à vontade.
 Durante a noite, enquanto eu avistava as luzes de Anori e Anamã vindas da margem esquerda do Solimões, os relâmpagos estouravam no horizonte oeste, justamente de onde o barco vinha e não aonde ia. Ufa!
 E o piso de Lazer encheu. Era a última noite a bordo. Noite quente e estrelada. A animação era geral, pela proximidade da chegada, pela certeza de estarem vivos depois dos sustos nas tempestades.
Noite e madrugada tranquilas sobre as águas quase espelhadas do Solimões.
Acordei já em águas do rio Negro. A maioria dos passageiros já arrumara as tralhas dentro das bagagens. Poucas redes permaneciam atadas. Muitos se apoiavam nas laterais do convés para avistar a cidade de Manaus ao fundo.
O barco atracou na balsa da Manaus Moderna, a Escadaria, no começo da manhã. Observei os primeiros passageiros a desembarcar. Alguns recebidos por familiares ou amigos. Outros sumiam na multidão, apenas acompanhados das bagagens. Esperei o tumulto arrefecer. Recolhi e guardei tudo nas bagagens. Lentamente desci ao piso Principal. Me despedi dos passageiros. Entreguei a chave do camarote. Me despedi da família do proprietário, da conferente, de outros tripulantes.
Caminhei pela ponte, cruzei a balsa flutuante, andei pelas areias, subi as escadas metálicas e ganhei as ruas do centro de Manaus, vazias pelo feriado de finados. Evitei os taxistas que me abordaram nas imediações do porto. Queria andar, me movimentar, me exercitar. Cruzei o antigo comércio da zona franca. Peguei à esquerda a avenida Sete de Setembro. Dobrei à direita e subi a avenida Eduardo Ribeiro. Logo eu entrava no hotel cujo quarto só seria liberado mais tarde. Larguei as bagagens na sala de guarda-volumes.
O café da manhã rolava solto. Certamente ninguém notaria se eu beliscasse algo. Discretamente avancei pelas mesas, até os bufês. Engoli quatro pães de queijo e dois copos de suco de laranja. E me satisfiz.
E me veio à mente a incrível viagem da qual acabara de voltar. Viva o rio Japurá! Com os defeitos e as qualidades. Valeu!
No almoço tracei a estupenda caldeirada de tambaqui depois de duas caipirinhas e do serviço lentíssimo dos garçons. Mesquinhez do dono do restaurante. Eram poucos funcionários para muitos clientes.
Trovejou, nublou, veio o vento refrescante. Mas nada de chuva. Só o calor sufocante da Manaus do concreto e asfalto.
Fui à parada de ônibus. Me fiei nas placas que listavam as linhas de ônibus que paravam em cada ponto específico da avenida. Aparentemente passavam por ali todas as linhas da cidade. Dezenas de ônibus se amontoavam nas paradas, às vezes em fila dupla. Passageiros aos montes corriam desesperados de um lado para outro. O caos. As placas desatualizadas me fizeram perder os dois primeiros. Demorou até eu perceber que o ponto da linha desejada se situava cem metros adiante, em cuja placa não constava o número correspondente.
Durante o ônibus da volta, um idiota fundamentalista gritava histericamente as bobagens de sempre do comércio da fé vindo das empresas evangélicas. Berrava sem parar, sem respirar, compulsivamente, inserindo aleatoriamente as palavras “aleluia” e “jesus” no meio das frases e até das palavras. Tortura. Massacre em volume ensurdecedor. Ele olhava de modo esbugalhado sem enxergar nada à frente. Parecia sob o efeito de drogas, de alucinógenos. Um patético robô programado pelas corporações evangélicas. A maioria dos passageiros ignorava o sujeito, preferindo conferir a paisagem cinzenta do lado de fora, conversar entre si, cutucar o celular. E ele não parava de esbravejar contra o diabo, contra o divórcio, contra homens e mulheres, contra o mundo. Subitamente se dirigiu à porta de saída do ônibus e conclamou:
- Quem gostou que bata palmas!
Três senhoras aplaudiram. As três da claque do indivíduo. As três bigodudas. As três cabeludas. As três com olhares de sofredoras e de quem vê o diabo em cada canto.
O ônibus inteiro suspirou aliviado ao desembarque do fundamentalista. A calma voltou entre os passageiros normais.
Bebi meio litro de guaraná natural com mel e limão. Nada de almoço. Comprei a revista Caros Amigos e retornei ao hotel. O tempo continuava nublado e abafado, com garoas esparsas.
O largo São Sebastião em noite comum, sem atrações especiais, estava charmosíssimo como sempre. Número de frequentadores na medida certa, para não tirar o encanto do conjunto.
Ao fechar os olhos ainda sentia o corpo oscilante como se estivesse navegando em águas do rio Japurá. Ressaca fluvial!
Na região da Escadaria repeti guaraná com mel e limão. Comprei cem gramas de guaraná em pó. Detonei outro copão de açaí fresco. Me sentei no banco do mercado, derretendo de calor, enquanto grupos de gringos idosos perambulavam acompanhados de guia local. Invariavelmente vestidos de maneira inapropriada para o clima regional, cambaleavam ensopados de suor.
Arrumei as bagagens. Antes mesmo de alcançar o ponto de ônibus para o aeroporto, a três quarteirões do hotel, eu já estava suado e ardendo de calor. Embarquei e desembarquei sem problemas. E só desembolsei três reais, ao contrário dos setenta e cinco reais que os taxistas ousavam cobrar.
O aeroporto de Manaus, geladíssimo desnecessariamente, contava com a tal praça de alimentação. Apenas as redes pertencentes àquele regime terrorista ao norte do México. Pizzas de papelão, sanduíches de carne de minhoca, batatas transgênicas, sorvete de açúcar, gordura e corante. Dava nojo só de olhar de longe. E tudo muito caro, absurdamente caro. O lance era levar algo ou comer antes de ir ao aeroporto.
Li artigos da revista Caros Amigos enquanto aguardava os ponteiros do relógio avençarem.
Bateu sede e quis tomar refrigerante, pois suco natural não havia em nenhuma parte do aeroporto. Ia pagando quando ouvi o preço da caixa: SETE REAIS. Sete reais pelo refrigerante??? Nem pensar! Peguei o dinheiro de volta. Iria de água de bebedouro mesmo. Além de oferecer somente lixo para comer e beber, as redes estadunidenses cobravam o olho da cara. Era o aeroporto internacional de Manaus, reformado para a Copa de 2014, novinho em folha. Mas indo de mal a pior. Não era à toa que o comércio estava às moscas. Quase ninguém se sujeitava aos venenos a preço de ouro.
Li bastante durante o voo vespertino. E Fogo Morto, de José Lins do Rego, frustrava a cada página. Envelheceu, talvez, não sei. Só sei que não via a hora de virar a última página. Aprecio bastante a literatura regional daquela geração, inclusive outros romances desse autor. Mas aquele livro especificamente, ao contrário dos prazeres durante a primeira leitura na adolescência, se tornou um sacrifício. Antes tivesse trazido o ótimo Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, livro que começara a reler em casa.
O céu noturno paulistano deu tréguas das recentes chuvas e abriu estrelado para o pouso seguro no aeroporto de Cumbica.
Ônibus comum e metrô para casa. Tomei banho e caí na cama tarde da noite.
E mais vivas à Amazônia fluvial! À Amazônia fluvial, bem entendido.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O Rio Japurá (parte 5/6)

...continuação
Atingi a casinha que funcionava como saguão do aeroporto, ao lado de pista asfaltada de mil e quinhentos metros de comprimento. Além da pista de pouso, outros caminhos seguiam a comunidades afastadas, mas estreitos e de terra, no caso lama pelas chuvas torrenciais da noite passada.
Retornei à zona urbana. Me enchi de líquidos variados, sentado sob a sombra ventilada das mangueiras que dão acesso ao porto. Me hidratava enquanto contemplava o fraco movimento entre a cidade e o barco. O rio Japurá corria lá embaixo, lento, da esquerda para a direita. O sol mandava ver, sem dó nem piedade.
Mais tarde reencontrei o pernambucano em busca do símbolo do município, com quem segui em peregrinação pelas ruas da cidade. Depois fomos almoçar perto do mercado, o único estabelecimento aberto que servia refeições diurnas. Encarei o razoável pacu assado com arroz e feijão. As minúsculas espinhas, em quantidade excessiva, dificultaram a ingestão do assim denominado Hipoglós em Cuiabá, ou pacu assado.
Um sujeito aloirado, de pele clara, quarentão, de sotaque gaúcho, desfilava pela cidade a macheza e a arrogância. Eu já reparara no indivíduo na noite anterior quando do frango grelhado. E o tal reaparecera no restaurante do almoço, acompanhado dos parceiros. Não olhavam para os lados. Não dirigiam a palavra a ninguém. Comentavam sobre tantas gramas de ouro ali, um desvio no peso lá, uma tentativa de roubo dos grãos acolá. E sempre no tom de machos imbatíveis:
- comigo não!
- comigo o cabra não sobrevive!
- eu furo ele todinho!
Entre outras tantas bravatas. Exceto os colegas do tal, nenhum do entorno dava a mínima.
O calor ia às alturas. Nem pensar em permanecer nas ruas andando feito doido. Desci a rampa e me alojei no piso de Lazer do barco, pegando a fresca e escrevendo as impressões e sensações do dia.
O sol inclinava no horizonte. Subi novamente a rampa. Me hidratei entre águas e refrigerantes regionais de guaraná. Me sentei nos degraus da escadaria da rampa. Ensebei. Matei o tempo o quanto pude. Desci a rampa e me instalei definitivamente no barco.
No momento em que me sentava para escrever no piso de Lazer e dava olhadelas na já familiar rampa sombreada pelas mangueiras, notei dois rapazes batendo no piso das escadas com pedaço de pau, justamente onde me sentara tantas vezes, exatamente onde ficara vendo o tempo passar minutos antes. Uma cobra de mais dois metros de comprimento se debatia no chão e tentava se livrar das pancadas. Pela distância não identifiquei se venenosa ou não. Só sei que era marrom e longa. E, mesmo ali no barco, distante, sentado, seguro, aquilo me assustou.
O piso Superior se ocupava de apenas treze redes. A maioria chegada à última hora. E também na última hora, parentes, amigos e anônimos, se aglomeraram na beira do rio, no final inferior da rampa, muitos vestidos com roupas de domingo, especialmente montados para despedidas e curiosidades.
 Escurecia. O prefeito apareceu com a comitiva a fim de se despedir do proprietário. Subiram a bordo e permaneceram no piso de Lazer consumindo latas de cerveja. Os cilindros de alumínio seriam largados no piso do barco, rolando de lá para cá.
Sabedor de meus comentários sobre o antes e o depois da situação das ruas da cidade, o proprietário me apresentou ao prefeito em pessoa. Trocamos impressões sobre Japurá e o que acontecera em mais de sete anos de administração. Me vendo conversar tão à vontade com o prefeito, assessores dele vieram depois me procurar, curiosos. Queriam saber quem eu era de especial. Me apertavam as mãos. Balbuciavam algo nem sempre inteligível pelo avançado estado de embriagues.
O coquetel corria solto. O barco ligou os motores e soou o apito. A comitiva e sua excelência desembarcaram, acenando de terra. O barco manobrou e deu a partida, rio Japurá abaixo, sob o céu negro, limpo, escandalosamente estrelado.
Nem bem o barco se pôs em movimento, o vento bem-vindo bateu, espantando os mosquitos e refrescando a noite quente e abafada. O vento durante as baixadas de rio batiam mais forte em razão da maior velocidade do barco em comparação com as subidas.
A equipe administrativa do barco desapareceu sob os efeitos do álcool ingerido no coquetel de despedida. Os tripulantes, ou se ocupavam das funções específicas, ou curtiam a ressaca da noitada anterior. Os passageiros, poucos, se mantiveram nas redes. O ambiente mergulhou em silêncio profundo.
O barco atracou ainda no escuro no flutuante em Maraã. Amanhecia deslumbrantemente a jusante da cidade, em tons dourados e sanguíneos, atrás de barquinhos e flutuantes sobre as águas do Japurá.
Não quis desembarcar em cidade já explorada, feia e desinteressante. Iria somente suar, suar muito, apenas suar. O céu azul, sem nuvens, liberava o sol para torrar sem piedade o que estivesse pela frente. As sombras eram muito procuradas. Nelas, a brisa suave garantia parte do frescor do começo da manhã.
Depois de o proprietário do barco comprar pirarucus e tambaquis enormes, vendidos nas canoas que encostavam ao piso Principal, mais remessas de bananas e cana, o barco zarpou rio Japurá abaixo no meio do dia. Entre os passageiros embarcados em Maraã, reencontrei da viagem da subida o técnico de telecomunicações, a serviço na cidade, e uma senhora, empregada doméstica em Manaus e mãe de sete filhos.
O setor de redes do piso Superior encheu bem e, é claro, quase todos chegaram à última hora para o embarque. Não havia mais vagas em nenhum camarote ou suíte.
O massacre sonoro do piso de Lazer prosseguia a todo vapor. Ou eram mil vezes sem parar o vídeo da apresentação de lixos descartáveis da indústria cultural ou mil vezes sem parar o lixo do fundamentalismo evangélico que lucra em cima da fé dos otários. Preferia permanecer no piso Superior, para ler, escrever reflexões e sensações no diário, ou conversar com passageiros. E reli até o fim, com imenso prazer, Arraia de Fogo, de José Mauro de Vasconcelos, me causando melhor impressão que da primeira vez, décadas antes.
A tarde corria solta, modorrenta, tórrida, abafada. A sombra na baixada, porém, ficara do meu lado. Podia me sentar encostado na murada de proteção sem o perigo de entrar em fusão.
O cearense tagarela que iria desembarcar em Japurá não desembarcou. Mudou de ideia para Maraã. Também não desembarcou. Finalmente decidiu ficar em comunidade horas a jusante de Maraã. Figura impagável!
As paradas ou reduções de velocidade ocorriam à mercê dos interesses do proprietário, que saía em voadeira com dois tripulantes à procura de pirarucus e tambaquis baratos a serem revendidos caros em Manaus. Praticamente sem carga nos porões, os trajetos de baixada eram usados pelos barcos para comprar matéria prima, abundantes nas comunidades e flutuantes, a preços irrisórios. A voadeira nos encontrava mais abaixo cheia de sacos carregados ou o barco encostava a algum flutuante para carregar.
O sol do meio da tarde valorizava as cores das águas e margens, da floresta, poucas praias, flutuantes, comunidades, casinhas isoladas. A poluição sonora do piso de Lazer deu trégua, me permitindo ficar lá na boa. Um grupo ocupava a mesa para jogar caixeta a vinte e cinco centavos a rodada. Parei para assistir. Outros apenas relaxavam e olhavam a paisagem dourada pelo sol.
Parada em flutuante na margem esquerda do Japurá para carregar quilos e mais quilos de pirarucu e tucunaré. Em seguida, o por do sol, mais uma vez naquela viagem, foi de babar de emoções. Amarelo, dourado, laranja, vermelho, e muito brilho, bastante brilho. Demais! E bastou o sol baixar, antes mesmo de se por completamente, para passageiros subirem ao piso de Lazer a fim de pegar o ventinho fresco antes do anoitecer.
Iniciei o livro Fogo Morto, de José Lins do Rego, outra releitura depois de quase quarenta anos. Os primeiros vinte por cento do livro não animaram.
Alguém havia comentado que os trajetos de baixada de rio costumam ser mais vibrantes e animados que as subidas. Fato. Os passageiros se integram mais, usufruem mais do piso de Lazer, se movimentam mais.
Por outro lado, a passeio, eu preferia as viagens de subida de rio. Sempre fugindo do canal para incrementar o desempenho do motor, os barcos se aproximam das margens, facilitando observações mais apuradas da floresta, fauna, barrancos, casas, comunidades, flutuantes, barquinhos de pesca, vida cabocla, eventuais reservas indígenas. E a velocidade mais lenta, por navegar contra a corrente, por navegar mais pesado, por dispender mais tempo nas paradas para descarregar, também permitia apreciar tudo com mais calma. Nas baixadas, por motivos opostos ao da subida, o barco corria mais, procurando o canal principal do rio, comumente no centro, longe das margens.
Acordei assustado no início da madrugada. Ouvi um som de pancada, estrondo forte e seco. Um só, mas intenso e apavorante. Nenhum movimento diferente do lado de fora. Relaxei e adormeci.
Menos de uma hora depois nova barulheira. Meio acordado, meio dormindo, inicialmente supus espécie de mutirão de limpeza, no qual os tripulantes varriam os três pisos ao mesmo tempo. Era com se estivem raspando tudo. O barco todo balançava. As madeiras rangiam ao se retorcerem. Parecia que a estrutura da embarcação iria se desconjuntar, se separar, se repuxando de um lado para outro. As águas, já de volta ao Solimões, estavam agitadas formando ondas irregulares. Por mais que tentasse, não conseguiria adormecer novamente.
Saí do camarote.
Muitos passageiros estavam acordados, de pé, atentos, mudos, tensos, amedrontados. Chovia. Raios e relâmpagos estouravam a oeste. O proprietário se encontrava ao lado da cabine de comando. A coisa era séria e preocupava. Afinal, ninguém esfregava nada em convés nenhum. O barco cruzava chuva, vento, o banzeiro e o nervosismo do Solimões. O gordão mulato que dividia o camarote ao lado, também de pé e longe do cubículo, agourava:
- Não gosto de camarote. Vi muita gente morrer assim, afogado, sem poder abrir a porta.
Outros ao lado emendavam:
- Muitos morrem ali dentro sem saber o que acontece do lado de fora.
- Morrem dormindo.
- Mas será que não despertam quando estão se afogando?
- Sei não...
Me sentei junto à mesa de refeições da popa do piso Superior. Muitos ali mantinham os olhos esbugalhados, de sono e de medo. Pouco ou nada falavam. As redes oscilavam bastante, batendo uma nas outras.
Duas horas depois o tempo se acalmou. A chuva praticamente parou. As ondas do Solimões se acalmaram. O barco se aprumou e parou de balançar.
Entrei no meu camarote e tentei adormecer.
continua...

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O Rio Japurá (parte 4/6)

...continuação
Acordei durante a madrugada. O barco estava atracado a barranco ocupado por casinhas iluminadas, muito próximas umas às outras. Era a ilha e distrito de Acanauí, antiga sede do município de Japurá, porém transferida na década de 1980 para a atual localização, e abandonada em virtude da baixa altitude e de constantes alagamentos durante as cheias do rio.
Amanheceu com o Japurá bem largo e enchendo em razão de chuvas nas cabeceiras situadas em território colombiano, lá chamado de rio Caquetá. Era cheia temporária, permitindo o chamado repiquete dos peixes. As praias, existentes havia semanas, e agora sob as águas ou muito reduzidas, voltariam a aflorar em meados de novembro, para sumirem de vez nas cheias definitivas a partir de dezembro, durante a estação das chuvas, ou inverno amazônico.
A amplidão das águas do Japurá abrigava centenas de ilhas de vários formatos e tamanhos, compondo labirinto de pedaços de terra com cobertura florestal sobre o mar de água doce.
Praticamente não se viam comunidades, casas isoladas, roças familiares, nas margens de terra firme ou das ilhas. A floresta reinava absoluta reservando árvores de pequeno, médio e grande porte, entre castanheiras, samaumeiras e outras majestades. Serviam de moradias ou escalas para uma infinidade de pássaros como, além dos já citados, arirambas, socós, periquitos, papagaios, maritacas, todos cantando, piando, oferendo som inebriante, e com eco das funduras da mata. Ao passar do barco as aves voavam de galho em galho, davam rasantes na água, bailavam no céu.
Durante o café da manhã, cearense falador nos presenteou com mais balelas, causos, exageros, provocações, brincadeiras, lorotas, bravatas. Entre tantas tagarelices, mencionou a abordagem ousada que praticara na noite anterior na cozinheira. Ele se vangloriava das supostas proezas, enquanto ela ali ao lado balançava negativamente a cabeça e refutava toda a estória.
O idoso também discursou contra a obsessão de pessoas pelos celulares. Contou o causo da garota na praia de um rio amazônico. Ela não largava o celular, só no papo solto, concentrada e excitada, sem prestar atenção a nada ao redor. Eis que surgiu um jacaré pelas costas, lançando uma rabada para desarmá-la enquanto a puxava com a bocarra. Foi celular espatifado para um lado, e ela, toda ferida e sangrando, para outro. E arrematou:
- É pra deixar de ser besta, fiadaputa! Celular é o cão!
Quando não rolava o lixo da música descartável em vídeos no televisor do piso de Lazer, outro lixo pior nos invadia sem pedir licença. O lixo das empresas evangélicas, aquelas que lucram milhões em cima dos trouxas que berram louvores a isso ou aquilo. Sofríamos com o massacre fundamentalista. Mas uns poucos, exibindo olhares embrutecidos pela ignorância, se bestificavam diante das imagens e dos sons alienantes. Imediatamente me lembrei do delicioso samba interpretado pelo Bezerra da Silva, Pastor Trambiqueiro. Seria pedagógico àquela altura do campeonato.
E os passageiros, ansiosos pela chegada, iam desatando as redes, recolhendo as tralhas, empacotando tudo.
Na manhã do sexto dia de trajeto desde Manaus, rios Solimões e Japurá acima, o barco atracou na balsa flutuante da cidadezinha de Japurá, na margem direita do rio de mesmo nome. Em frente, a rampa concretada e sombreada de mangueiras que levava, a pé pela escadaria, ou motorizado pelas ladeiras laterais, ao centro urbano, erguido acima do barranco.
O município de Japurá contava com cerca de sete mil habitantes em extensa área que alcançava a fronteira com a Colômbia, dois dias de barco rio acima, mais precisamente no posto militar de Vila Bittencourt. Em cidade tão despovoada de brancos, quatro mil pessoas ali no distrito sede, o professor maranhense contou nos dedos até concluir que havia exatos dez carros na cidade. Somente dez. Motos, sim, havia muitas.
Eu ouvira horrores da cidade de Japurá nove anos antes, quando da minha visita a Maraã. Na época, um técnico em eletricidade a serviço denunciara a situação de abandono e descalabro social. A completa ausência de serviços públicos municipais, o matagal nas ruas obrigando os moradores a se esgueirarem nas frentes das residências para se locomoverem, a quantidade de cobras perambulando impunemente e causando acidentes fatais. O caos.
Pois dois anos e tanto depois, tomou posse uma administração municipal de esquerda, eleita pelo povo indignado e esgotado do descaso social a que as elites locais condenaram os moradores por vinte e oito anos, por sete mandatos consecutivos, roubando os cofres públicos e tratando a população pior que animais, como de praxe em governos corruptos dos partidos das classes dominantes.
 Essa administração progressista que assumiu em 2009, nem bem iniciou o mandato, começou a colocar ordem na casa e atender a maioria da população. Cortou o mato alto das ruas, matando centenas de cobras. Concretou os leitos trafegáveis após a instalação de água canalizada. Construiu rampa de concreto no porto para os barcos e balsas. Ergueu hospital público municipal, antes casebre podre de madeira, agora construção ampla e equipada com o mínimo necessário. Construiu escolas públicas municipais aliadas a encomenda de frota de ônibus escolares junto ao governo federal. E não somente para a sede do município, mas também para as comunidades rurais, inclusive a distante Vila Bittencourt.
Tive a oportunidade de analisar as fotos de Japurá antes e depois de 2009. Os resultados das duas administrações, com a reeleição em 2012, eram evidentes. As diferenças entre o antes e o depois eram escandalosas demais. E colocaram em dia as receitas e as despesas, incrementando os necessários gastos públicos para o bem-estar da maioria da população.
Calma aí! Japurá estava longe de ser um paraíso. Havia ainda pendências, muitas delas. Por exemplo, a urgente política pública para tornar Japurá autossuficiente nos principais alimentos que consome. Era problema crônico em praticamente todo o Amazonas, onde tudo é importado, nada se produz. Somente o peixe e a farinha, então já em produção no município, estavam longe da desejada autossuficiência alimentar. Alimentos compatíveis com o solo e o clima podem e dever ser produzidos localmente. A agricultura familiar, agroecológica, abasteceria a população de produtos frescos e baratos.
Voltei ao barco e permaneci no piso de Lazer para escrever e refletir sobre tantas experiências vividas em poucas horas. Antes, aceitei o convite para a caldeirada de tambaqui no piso Principal com a tripulação. Eu nem estava com fome, mas caiu bem demais, a comida e o ambiente. Os tripulantes não se cansavam de se debocharem, entre risadas e descontrações variadas.
Lá fora o sol queimava e me desencorajava a maiores explorações. Escrevi e relaxei ali em cima.
Esperei o sol baixar. Subi a rampa do porto e encarei pequena volta pelas ruas ao redor do centro. O calor massacrava. Me sentei no topo das escadas sob as mangueiras e ali estanquei por mais de uma hora.
O barco não parava de desovar carga que era transportada para o comércio local via reboques atrás das motos, carrocerias de caminhonetes, nas mãos. Estudantes uniformizados tentavam a todo custo catar mangas verdes ou jambos maduros dos pés ali da rampa sombreada. Caíam alguns frutos que logo eram devorados. Quiosques de madeira ao redor do mercado do topo da rampa começavam a vender cervejas para os primeiros bebuns.
Cruzei com o professor maranhense e o acompanhei à secretaria municipal de educação. Observei a biblioteca farta de livros de literatura, ciências, história, variedades, todos bem organizados nas prateleiras. Não descobri se alunos ou professores os utilizavam. Utilizado mesmo era o bebedouro de água gelada bem ao meu lado, inclusive, e principalmente, por mim.
O Mais Médicos, elogiado programa do governo federal, se fazia presente no município de Japurá. Antes nenhum médico fixo atendia a cidade. Agora cinco médicos estrangeiros, quatro deles cubanos, atendiam a população da zona urbana e das comunidades afastadas. A ação sanitária se mostrava corretíssima face à recusa dos médicos da burguesia e da pequena burguesia de saírem dos grandes centros para atenderem quem mais precisava, em localidades remotas e carentes. Ponto para o governo federal e vaias para os filhinhos-de-papai que condenam o programa humanitário e só querem ganhar dinheiro em cima das doenças nas maiores cidades.
O toró despencou à tardinha e parecia que não pararia nunca mais. Muita água, relâmpagos, raios, trovões. Ainda bem que eu estava em terra e não a bordo. Enxurradas lavavam o concreto das ruas e calçadas. A população, no entanto, circulava normalmente. Muitos nem guarda-chuva usavam. O calor pegajoso deu um tempo e o ar refrescou.
Eu e o maranhense permanecemos ali na varanda de madeira da casa dele, sentados por horas, jogando conversa fora, cumprimentando os passantes. Alguns paravam e puxavam assuntos variados. Até o vizinho de madeira do professor soltou frases soltas, deixando a porta aberta para ouvirmos as músicas de letras sofridas.
Estiou temporariamente já de noite. Atravessamos a rua rumo à casa da esquina, também de madeira, que servia sob o alpendre improvisado generosas porções de frango grelhado com arroz, salada e farinha d’água. Pelo jeito era o único lugar a servir refeições decentes naquela noite de tempestades. O padre, dois garimpeiros suspeitos, figuras da elite local, vieram comprar comida para viagem. O pernambucano apareceu e comeu também.
Atravessamos de volta a rua e nos sentamos novamente em frente da casa. Absolutamente nada para fazer. Pelo menos as temperaturas e o frescor do ar causavam boa sensação. Jogamos conversas fora por mais algum tempo. O assunto se concentrou na sinuca de bico em que se encontrava o professor. Separado recentemente, distante dos filhos, sem condições de trazê-los, morrendo de saudades, ganhando o insuficiente, deprimido, amargo. Não via nem sinal de luz no fim do túnel. O sono bateu nos três. O maranhense só fez abrir a porta e entrar em casa. O pernambucano desceu a rua rumo ao hotel. Eu me dirigi ao lado oposto, ao porto e ao barco.
Tomei banho e me recolhi ao camarote. A água e a energia elétrica funcionavam normalmente no barco. Dormindo aquela noite a bordo, atracado, eu economizaria a diária de hotel e manteria a atmosfera fluvial.
Dormi bem. Não ouvi nada de inconveniente durante a noite. Se houve bêbados cambaleantes e ruidosos nada percebi.
Havia gotas e manchas de sangue nas torneiras da popa. A noitada da véspera, em festas pela cidade, fizera vítimas, certamente. Mais tarde, soube que um dos tripulantes do porão de cargas, carregador baixinho e entroncado, se metera em confusão. Embriagadíssimo, querendo ser melhor que o oponente, ferira a mão com gravidade. Até o encontrei mais tarde nas ruas da cidade, bêbado feito um gambá, com a mão direita enfaixada. Ele teria que sarar e recobrar a lucidez rapidamente a fim de recarregar o barco e se preparar para a partida.
          Perambulei pelas ruas da cidade sem saber ao certo aonde ir. Peguei uma rua aleatoriamente até o final. Virou estradinha estreita e asfaltada. A caminhada agradável cortou parte da floresta, modestos cursos d’água, casinhas, fazendas de gado, bares e puteiros quase escondidos. Pouco movimento de motos e pedestres. Das altas árvores, os cantos de pássaros marrons de cauda amarela lembravam toque de mensagem de celular. Não aquele ruído mais comum e imitação de canto de pássaro. Mas som inusitado, como se substanciosa gota d’água caísse em profundo recipiente cheio de líquido. Era som digitalizado, arredondado, grave e agudo ao mesmo tempo. Interessantíssimo. Aproveitei a sombra da árvore frondosa e me deixe ficar ali por longos minutos, apreciando a paisagem e a acústica daquela incrível sonoridade. O bando de pássaros, então, resolveu dar espetáculo e cantou com todo o gogó. Demais!
continua...

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O Rio Japurá (parte 3/6)

...continuação
Pares de araras cruzavam de uma margem à outra, às vezes em silêncio, às vezes gritando contra a nossa invasão à natureza. Embora eu não pudesse ver, o barco passava próximo da entrada do lago e da cidade de Tefé, protegida e distante da margem direita do Solimões.
Permaneci sentado na proa do piso de Lazer, com tranquilidade para apreciar a paisagem do vale do Solimões, entre praias, barrancos invariavelmente desmoronados, ilhas, barquinhos de pesca, raras casas e comunidades, pássaros. O sol iluminava o conjunto, realçando cores e contrastes. Nem sentia o tempo passar. Definitivamente adorava estar ali, fazendo exatamente aquilo. Minha mente viajava no vazio calmo e tranquilo. A mente e o coração agradeciam o privilégio do local e do momento, únicos.
A rádio pirata do barco informava que a noite fora picante para as mães solteiras e alguns tripulantes. Elas abandonaram os filhos ainda pequenos nas redes e passaram horas nos camarotes funcionais, deitando e rolando. A rádio contava que crianças, deitadas nas redes, chamavam pelas mães. Em vão. Passageiros ao lado tentavam distraí-las dizendo que as mães estavam ocupadas e logo voltariam. Pela manhã elas acordaram amassadas, desconjuntadas, mancando, sedentas, entornando copos e copos de água gelada da torneira do piso Superior. Todos notaram. Ninguém pronunciou um comentário sequer.
O ambiente entre os passageiros, tripulantes, prezava pela cordialidade. Todos se davam bem. Todos eram prestativos. Nada de mal ameaçava acontecer.
A boca do Japurá já podia ser avistada no horizonte. E logo após o almoço passamos propriamente por ela, iniciando a subida daquele rio. A boca, ou foz, muito larga, se compunha de barranco alto na margem direita, a oeste, e extensa praia de areias amareladas a leste, abrigando palafitas esparsas.
Mangoaris, mergulhões, patos selvagens, garças, pássaros pretos, pássaros cinzentos de bico longo e grande envergadura, pássaros menores, encantavam o entardecer, nas árvores das margens do rio, nos galhos retorcidos e ressecados caídos dos barrancos desmoronados, nas vegetações flutuantes.
Na mesma hora do dia anterior começou a ventar intensamente, da direita para a esquerda. Levantou areia das praias da margem esquerda do Japurá. Parecia poeira fina em suspensão vista de longe. Cenas bem interessantes. Caiu agua dos céus gerando alvoroço entre os passageiros. Mas ficou somente nos preâmbulos, sem os sustos da tarde anterior.
Mais um por do sol inesquecível, dourando as águas do rio, seguido do nascer da lua cheia, no formato de imensa bola avermelhada, incandescente, subindo atrás das árvores. Parecia até o sol se não fosse pela escuridão e o céu cheio de estrelas.
Reservas indígenas apareciam na margem esquerda do Japurá, cujos habitantes observavam a passagem do barco, sem acenar, sorrir ou qualquer outra ação. Apenas observavam.
Emocionante amanhecer sobre as águas do Japurá, mesmo sob o céu parcialmente nublado. Floresta mais preservada em ambas as margens. Praias selvagens. Natureza bruta. Sinfonia de pássaros dos mais variados tipos, tamanhos, cores, cantos. Trechos estreitos alternando com partes largas e recheadas de ilhas alongadas. Respirei profundamente, ali na proa do piso de Lazer, vazio de almas naquele momento.
Desde a partida de Manaus, os passageiros ansiosos pela chegada tentavam calcular o dia e o horário certo que o barco atracaria no destino. Diziam que chegaríamos em Maraã no meio do dia anterior. Depois garantiram que seria durante a noite. Corrigiam então para aquela manhã, para finalmente concluírem que aportaríamos ao meio-dia. Eu ouvia as apostas e nada comentava. Não me importava com o motor fraco do barco. Nem com a impossibilidade de utilizar os furos em razão da baixa das águas durante a estação seca, obrigando o barco a imensas voltas pelo canal principal. Para mim era tudo prazer e diversão.
Como de praxe nos barcos da região, os passageiros jogavam quase tudo nas águas dos rios. Copos plásticos, latinhas de alumínio, lixo orgânico, sacolinhas plásticas, entre outras barbaridades. Copos plásticos eram disponibilizados próximos às torneiras de água potável do piso Superior. Os passageiros bebiam um copo e o jogavam em seguida no lixo ou no rio. Minutos depois, pegavam outro copo, bebiam água e jogavam no lixo ou no rio. E assim a cada tomada de água. Todos os passageiros faziam o mesmo. Tais procedimentos se repetiam durante as refeições com o café e os sucos servidos. O latão de lixo e as águas do rio enchiam de copos plásticos. Algo precisava ser feito. Os passageiros não traziam as próprias redes para dormir? Uns poucos não carregavam até os próprios pratos e talheres para as refeições? Então! Por que não trazer também recipientes plásticos, garrafas vazias ou afins, para beberem água, café, sucos, líquidos em geral? Os barcos não deveriam mais oferecer copos descartáveis. Simples assim. O que estaria faltando para isso acontecer?
E Maraã apontou no horizonte. Rebuliço geral entre os passageiros a desembarcar. Desatar de redes. Embelezamento das mulheres, entre retocar pinturas, arrumar os cabelos, vestir roupas limpas e novas, colocar adornos. Mas o barco ainda percorreria as águas do rio por algumas horas.
Um jacaré boiava tranquilamente nas águas do rio. Nem piscou. Mais em frente, uma preguiça nadava lentamente através de movimentos repetidos dos braços curtos, sem se importar com a passagem do barco. Atingiria a margem oposta sei lá quando, certamente esgotada pelo esforço de atravessar o rio em trecho tão largo.
E chegou o momento vibrante da chegada do barco, o desembarque e embarque de passageiros e principalmente de cargas. Era Maraã, a primeira e única parada oficial antes do destino final. O barco se aproximou do porto flutuante na margem esquerda do Japurá. Tripulantes ataram as cordas na balsa. Colocaram as ripas de madeira entre o barco e a balsa. Pronto. Os de terra entraram para ajudar e receber parentes e amigos. Ou então para oferecer serviços de carregadores e transportadores.
Antes mesmo de iniciar a descarga de mercadorias, pulei na balsa flutuante e subi a rampa para explorar a cidade de Maraã, onde eu estivera nove anos antes.
Maraã, logo à primeira vista, continuava o mesmo descaso. Pobre, ausência de qualquer tipo de urbanismo, suja, habitada por povo cabisbaixo. Muitas casas de madeira, aos pedaços, embora as de alvenaria não ficassem muito melhor na fita. Cães vagavam pelas ruas somente em pele e osso, sarnas e feridas, exibindo olhares moribundos que refletiam a situação em que se encontrava a cidade. Meia dúzia de bêbados zanzava pela região do mercado municipal.
As ruas e avenidas novas deprimiam de feiura. A famigerada poda geométrica das raras árvores mutilava a natureza. E reduzia as sombras, artigo de primeira necessidade em local tórrido como Maraã, a minúsculas áreas, privando a população de alívios do sol escaldante. Para piorar, essas mesmas ruas e avenidas eram asfaltadas, esquentando e abafando ainda mais o caldeirão.
Por outro lado, as operadoras de telefonia celular, serviço público privatizado a preço de banana durante o regime neoliberal da aliança PSDB/DEM, sobre o comando de Fernando Henrique Cardoso, iam muito bem, obrigado. A maioria dos moradores cutucava de modo esquizofrênico os aparelhinhos, indiferentes ao abandono da cidade e de si próprios. Entrei num comércio desmazelado, peguei o produto e passei no caixa para pagar. Nem bem recolheu o dinheiro, e sem me olhar na cara, a adolescente abaixou a cabeça e voltou a cutucar o fetiche eletrônico.
Não encontrei o buraco onde eu me hospedara nove anos antes. Nem o outro buraco onde comera e arranjara de brinde um desarranjo intestinal. Não estavam mais lá. A seleção natural os extinguira. A humanidade agradecia aliviada.
Zanzando pela cidade eu reconhecia e cumprimentava passageiros do barco ali desembarcados. Até trocava frases com um e outro. Já estavam instalados e em atividade.
Em circulei pela esplendorosa Maraã, inclusive pela abandonada, quase acabada ou quase destruída, orla fluvial, onde administradores municipais torraram em absolutamente nada o dinheiro do bolso da população, a mesma e apática população.
Retornei ao barco enquanto a descarga de mercadorias prosseguia em ritmo acelerado. Carregadores transitavam ininterruptamente pelas rampas de madeira, arqueados pelo peso excessivo nas costas.
No piso de Lazer do barco soprava brisa leve, amenizando parcialmente a quentura. Não me cansava de olhar para o canal de água ocupado por residências e comércios, todos flutuantes, formando conjunto charmoso, ao contrário do resto da cidade. Pequeno barco ali parado guardava singela horta suspensa de temperos e hortaliças sobre o piso superior, ainda sobrando espaço para o varal de roupas coloridas.
E partimos de Maraã, rio Japurá acima, sob a deslumbrante luz de fim de tarde, dourando as águas, as árvores, os barrancos argilosos. O por do sol veio em seguida encantando até não poder mais. A cada segundo, novas emoções de luzes e cores nas águas e no céu de poucas nuvens.
Embarcara novo passageiro em Maraã. Cearense, idoso, viúvo, magro demais, constantemente fungando o nariz. Falante, cheio de ideias mirabolantes de negócios, comércios, plantações. Comprava faqueiros no Peru e Colômbia para revender no Brasil seis vezes mais caro. Afirmou que se curara de câncer em Cuba, depois de desenganado pelos médicos de Manaus. Residente em Itapiranga, no médio Amazonas, propunha o fim da educação formal em escolas. Segundo ele, as crianças e jovens deveriam trabalhar na roça, plantar alimentos, e não perder tempo com letras e estudos. Estudar, segundo o próprio, não dava futuro a ninguém. Disparava:
- Educação para essa cambada de fiadaputa deveria ser uma bala na cabeça.
- Os prisioneiros deveriam trabalhar na agricultura, e sob a supervisão do exército. E não ficarem vadiando nos presídios.
- Jumento é melhor que mulher. Essa dá carga ao homem, enquanto que o animal carrega a carga do homem.
Ele adorava caldo de cana, afirmando ser afrodisíaco. Planejava plantar roça de cana-de-açúcar em Japurá.
Até os tripulantes riam duvidando das façanhas e projetos do “Ceará”.
Como desembarcou mais passageiros que embarcou, o setor de redes do piso Superior oferecia vazios entre elas, permitindo mais espaço, mas também mais vento e mais frio durante as noites.
continua...

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O Rio Japurá (parte 2/6)

...continuação
O nível baixo das águas do Solimões exibia barrancos desfeitos nas margens. O constante processo de desmoronamento e redesenho do curso do rio obrigava os moradores ribeirinhos a abandonarem as casas em risco e se mudarem para outro local mais dentro da floresta.
O almoço foi servido na mesa retangular do piso Superior, a mesma para todas as refeições, e as três incluídas no preço da passagem. Salada de legumes, batata com maionese, arroz, feijão, macarrão, farinha grossa de mandioca, carne com osso, frango assado, mexido de pirarucu, suco de goiaba exageradamente doce. Fartura para abastecer a fome dos mais desesperados.
O pernambucano radicado em Manaus conduzia projeto que consistia em escolher as sete maravilhas do estado do Amazonas e o símbolo de cada um dos 62 municípios amazonenses. A secretaria estadual da cultura apoiava o projeto, mas só liberaria verbas para a publicação do livro que prometia juntar textos e fotos. Ele jurava que agia sozinho, bancando os gastos do próprio bolso ou originados de eventuais patrocínios dos comércios locais. Planejava visitar cada município elegendo, com alunos das escolas, o símbolo local. Em seguida confeccionaria cartaz com a foto escolhida e a lista dos patrocinadores abaixo, afixando-o na entrada da cidade, normalmente no porto fluvial.
Impressionante os efeitos danosos do uso compulsório dos celulares. Várias pessoas num mesmo ambiente, o barco. Quase ninguém se comunicando entre si. Mas nos celulares, sozinhos, cutucando, ouvindo músicas, vendo imagens, vídeos, jogos, raras ligações, ou apenas olhando os aparelhos, bestificados, de olhos esbugalhados. Pareciam em transe. Ignoravam tudo e todos ao redor. E assim rasteja a humanidade sob os fetiches tecnológicos.
A parte da tarde seguiu nublada. O vento devido ao barco em movimento era de fresco a frio. Quanta diferença da chapa quente em Manaus!
O jantar repetiu as opções do almoço.
Nem bem tinha escurecido e a maioria dos passageiros já se recolhia às redes, encolhidos sob os cobertores. Evitando o vento frio, permaneci dentro do camarote e li mais um pouco.
Lá pelo meio da madrugada os motores pararam. Sob a névoa espessa, quase não se via nada à frente. Uma balsa parecia que seguia pelo rumo errado, desorientada, muito próxima, quase em choque com o barco. Tentavam desviar um do outro, ao mesmo tempo em que evitavam encalhar nos bancos de areia ou nas extensas praias. O impasse perdurou por quatro horas em meio à forte neblina.
Nos casos de saúde mais complexos os pacientes dos interiores precisavam se deslocar a Manaus, por conta da prefeitura ou do próprio bolso. Na capital ele poderia se hospedar nas casas de apoio que cada município amazonense disponibilizava para emergências. No caso de Japurá havia imóvel com capacidade para até quarenta pessoas, incluindo as três refeições e o transporte até os centros médicos. Tudo por conta da administração municipal. Mas havia críticas ao serviço. Em certos casos não detalhados pelos reclamantes e inviáveis de generalizações, direitos dos cidadãos municipais se transformavam em moeda eleitoral, pavimentando o acesso aos correligionários, bloqueando-o aos desafetos.
O passageiro idoso, paciente com insuficiência renal crônica, agora de volta para casa, se encaixava nessa situação. Vira e mexe necessitava ir a Manaus, para acompanhamento, tratamento, exames. A gravidade da situação o obrigou a entrar na fila para transplante de rins. Viajava com o filho e ocupava o camarote oposto ao meu, justamente de onde vinham os roncos noturnos. Outros passageiros, colegas e conterrâneos dele, o desenganavam, prevendo o fim para breve, muito em breve.
Peguei cadeira e me sentei na proa do piso de Lazer, contemplando a paisagem, as praias extensas, os barrancos desmoronados, as comunidades, as casas isoladas dos ribeirinhos, lanchas e balsas que subiam ou baixavam o rio, aves dos mais diversos tipos. Dialoguei muito com o professor maranhense, com o adolescente recém-formado do ensino médio, com o marítimo e agora espécie de faz-tudo em Manaus.
Antes do almoço o barco passou por trecho pedregoso e raso. O motor de luz foi desligado. A velocidade diminuiu ao mínimo. Passageiros e tripulantes se amontoaram ao redor da cabine de comando a fim de auxiliar e palpitar ao prático. O proprietário, a frente de todos, na proa. Uma das voadeiras atracadas na popa saiu na frente com o tripulante munido da zinga para checar a profundidade, independente do que a sonda da cabine de comando informava. A tensão durou longa meia hora. Uma balsa dupla com o rebocador se postava à nossa frente. Passava pelo mesmo problema, apesar de menor calado. Percorríamos o trecho mais raso do Solimões, em período seco do ano.
Almoço nos mesmos moldes das refeições anteriores. Frango assado e desfiado com legumes, carne com tomate e cenoura, peixe frito, arroz, feijão, macarrão, farinha grossa de mandioca, a famosa farinha d’água, suco artificial e muito doce. Os passageiros avançavam com vontade e preparavam pratos montanhosos, com direito a repetições também volumosas.
Botos, sobretudos os tucuxis, cinzentos, apareciam acima da linha da água e voltavam a mergulhar. Vez ou outra, próximos às margens, cardumes de peixes saltavam centímetros acima da água, brincando em família, entre amigos, sem medo de nada.
As nuvens aumentavam e adensavam no céu. As temperaturas fora das zonas naturalmente ventiladas esquentavam e me faziam transpirar continuamente. A tarde ardeu de tanto calor.
No começo da tarde a cidade de Coari se aproximou na margem direita do Solimões. Os passageiros aproveitaram o sinal das operadoras de celular para usarem e abusarem do brinquedinho. Com ou sem necessidade. O importante era usar. O barco nem parou. Apenas reduziu parcialmente a força dos motores. A voadeira levou alguns passageiros e bagagens para a cidade.
Passamos ao lado da refinaria da Petrobrás, nos espantando pela enormidade do complexo em plena floresta.
E foi de uma hora para outra. Após série de relâmpagos e trovões, um deles lembrando explosão tal a violência e a intensidade. A pancada de chuva com muito vento veio transversalmente do lado direito, fustigando o barco por quase quinze minutos. O vento e os jatos d’água foram tão intensos no piso de Lazer que arrastaram cadeiras, mesas e pias empilhadas, tubos plásticos. Ajudei a segurar alguma coisa e me ensopei, refrescando deliciosamente o corpo. Tão de repente veio a chuva, tão de repente ela se foi, clareando o céu, cessando o vento, acalmando o banzeiro no rio. Passado o susto, os tripulantes recolocaram de volta o que se deslocara, entre botes salva-vidas e a antena da televisão, enquanto nos secávamos ao sol e à brisa do movimento, sentados na popa sobre as tampas das caixas d’água.
Nem pelas chuvas e pela apreensão dos riscos, os vídeos de música descartável deixaram de vomitar o lixo costumeiro pela imensa televisão de tela plana do piso de Lazer. As letras faziam apologia ao consumo de bebidas alcoólicas, energéticos, ao sexo mecânico, ao machismo escancarado. Os astros do gênero desciam a nível mais baixo que cu de cobra. No embalo, mães solteiras e sem rumo, a fim de qualquer coisa para errarem novamente, entornavam latinhas de cerveja e chacoalhavam o esqueleto, lançando olhares com terceiras intenções. Os membros da tripulação, familiarizados com os tipos em viagens anteriores, se animaram e deram o bote. Redes e camarotes iriam tremer mais do que o costume aquela noite.
Áreas indígenas, com as devidas placas da FUNAI afixadas no barranco, apareciam esporadicamente. Abrigavam cabanas mais simpáticas que as dos brancos, envoltas por mais vegetação que as dos brancos, mais ecológicas e sustentáveis que as dos brancos. Quem os invasores europeus chamavam, e chamam, de selvagens mesmo?
Depois de acompanhar, minuto a minuto, o estupendo por do sol à esquerda, refletido em toda a largura do Solimões, fiquei em estado de graça. Espetáculo inesquecível numa gradação de cores, tons, brilhos, luzes, sombras.
E logo em seguida surgiu a lua cheia do lado oposto, barranco acima, entre as árvores, enorme, amarelada, brilhante, imponente. Belíssima. Permaneceria ali, diante daquela maravilha, até não sei quando. Mas tive que debandar. Um enxame de carapanãs, proveniente da margem tão próxima, atacou todos impiedosamente. Nem as áreas naturalmente ventiladas pelos ventos vindos da proa escaparam. Vieram ferozes e famintos. Para agravar a situação, o televisor do piso de Lazer vomitava o lixo travestido de telejornal. Parte do rebanho se achegou ao aparelho despejando o olhar bovino, olhar típico de quem aceita a manipulação imposta pelas classes dominantes. Eu até driblaria os carapanãs, mas aquela lavagem cerebral sob a máscara de informação não daria para aguentar. Aproveitei para descer e tomar banho reconfortante.
Acordei cedo, ainda no escuro. Pude apreciar o por da lua bem à frente e os primeiros clarões da alvorada atrás do barco. Ambos os efeitos se refletiam nas águas do Solimões. Tirando a tripulação da cabine de comando, o barco inteiro ainda dormia. O silêncio era total ali na proa do piso de Lazer. Momento mágico, único, imperdível. Valia a pena, sempre valia a pena, navegar pela Amazônia e assistir a espetáculos daquela qualidade. Longe de aquela ser a primeira ou a última incursão à minha região favorita do Brasil.
O sol surgiu numa bola avermelhada por trás das árvores. Nem bem despontou, o sol esquentou imediatamente o ar, prometendo mais um dia ensolarado e quente, muito quente.
continua...

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O Rio Japurá (parte 1/6)

O voo lotado e cheio de chineses saiu atrasado de São Paulo devido ao excesso de aeronaves nas pistas e às mudanças de local de decolagem.
Comi o sanduíche seco servido a bordo. Reli páginas de Arraia de Fogo, de José Mauro de Vasconcelos, depois de mais de trinta anos da primeira leitura. O ar condicionado exageradamente frio e sem possibilidades de ajustes incomodou.
O avião pousou em Manaus no meio da noite.
Apelei para táxi caro em razão do adiantado da hora, inconveniente para ônibus urbano. O motorista salientou a névoa permanente sobre a cidade devido a sucessivos incêndios urbanos e a queimadas constantes nos arredores. A falta de ventos e as altas temperaturas, anunciando a próxima estação das chuvas, só aumentavam a concentração da fumaceira.
Larguei as bagagens no quarto do hotel e saí para dar uma volta. Apenas o antológico bar do Armando, com música ao vivo e mesas cheias, dava sinal de vida na região do entorno do Teatro Amazonas e do Largo São Sebastião.
Escrevi poucas linhas antes de apagar tudo e adormecer.
Raros turistas no café da manhã. Muitos hóspedes a trabalho, mandando ver em notebooks, celulares, tablets, nas mesinhas da entrada. Até reuniões profissionais rolavam por ali.
Desci a rua Joaquim Nabuco rumo à margem do rio Negro, nas imediações da Manaus Moderna, a famosa Escadaria. Avistei o barco desejado. Desci à margem seca, ultrapassei as areias emporcalhadas de lixo, subi na balsa flutuante e entrei na embarcação.
Acertei a ida e a volta de Japurá no camarote do piso Superior, sem banheiro privativo, mas com ar condicionado. Deixei meu nome como única necessidade de reserva.
O calor, mesmo sob o sol pálido pela névoa seca e amarelada, massacrava. Eu sentia o suor escorrer pela nuca, peito, costas, pernas. Me ensopava instantaneamente. Andar se tornava um sacrifício.
Encostei o esqueleto dentro do mercado Adolpho Lisboa, reformado e turístico, para descansar e matar a sede. Fiquei horas olhando o vaivém, derretido no banco, sem forças para sair dali. Local simpático, porém menor e menos fascinante que os congêneres em Belém.
O centro de Manaus, para variar, continuava em reformas infindáveis. Duravam anos e administrações públicas das mais diversas. Não acabavam nunca. Tapumes, obras, areia, pedras, terra solta, ruídos de máquinas, desvios, trechos interditados, inacabados, meio destruídos. Tudo pelo meio, nada pronto. Nenhum local aprazível para relaxar ao ar livre, nenhuma sombra natural, nenhum banco ou qualquer coisa para se sentar em área pública. Em outros bairros, a mesma tristeza. A anti-amazônica e anti-indígena cidade de Manaus, conforme já lamentara nas visitas anteriores, permanecia desumana, feia, suja, tórrida, entupida de concreto e asfalto. Andar pela cidade durante o dia era uma temeridade. Alto risco de insolação, desmaios, grudar no asfalto em fusão. Nada de agradável pela zona urbana. Em muitos anos de visita à cidade, nenhuma novidade, infelizmente.
A avenida Eduardo Ribeiro, nos dois últimos quarteirões, entre o teatro Amazonas e a praça do Congresso, se encontrava fechada com tapumes metálicos de uma calçada à outra. Obras, mais obras, obras sem fim, na Manaus do concreto e asfalto.
À noite, a lua quarto-crescente apareceu desimpedida e prateada. Circulei pelo Largo São Sebastião, então com roda de samba amazonense, tradicional das quartas-feiras. E apresentações gratuitas de óperas no Teatro Amazonas, com direito a longas filas pelo público que prestigiava os eventos públicos. Fui de caldeirada de tambaqui, suculenta, bem temperada com coentro, alho e cebola, acompanhada de arroz e pirão. Escolhi mesa ao ar livre. A caldeirada empolgou sob todos os aspectos, a despeito da transpiração abundante e generalizada, compensando as duas caipirinhas medíocres.
 O samba corria solto com público vibrante e participativo, bem ao lado da banca de tacacá. Tentei relaxar em banco do largo. Não deu. A temperatura noturna superava os 30 graus. O suor da caldeirada secara. Mas começaram a escorrer outros filetes causados pelo calor absurdo da noite manauara. Passei pelo bar do Armando. Música ao vivo na base de banquinho e violão, frequência interessante, como sempre.
Não consegui sair à rua depois do café da manhã.
É certo que eu só contava os dias até a partida do barco rumo ao rio Japurá. Nada me atraía na zona urbana. Mas o que decididamente me reteve no quarto do hotel foi o calor tenebroso daquela manhã. Não o calor normal de Manaus, já exageradamente intenso. Mas um muito pior, mais tórrido, mais abafado. O sol brilhava e queimava violentamente quem se movia na superfície. Tudo parecia que iria se derreter sob o sol, a começar por mim e especificamente meu cérebro. A cinzenta Manaus, a cidade do concreto e asfalto, a Manaus sem árvores ou sombras em pleno coração da floresta amazônica, conseguia se superar a si mesma no calor indecente. A cada ano que eu a visitava a situação se tornava mais insuportavelmente quente. O vento era bafo pegando fogo na pele e nas vias respiratórias. Doía e ardia para inalar aquele ar em chamas.
O extremo desconforto pelas temperaturas indecentes atingiam os manauaras também, talvez até com mais intensidade do que para mim. Mesmo acostumados ao caldeirão, os moradores viviam se lamentando, sofriam os efeitos na saúde, exibiam expressões fatigadas, fugiam desesperados para locais refrigerados.
Me arrastei lentamente pela curta caminhada ao almoço. Aterrissei com as roupas grudadas ao suor do corpo. Mas o restaurante compensou. Caipirinha, picanha grelhada, arroz com brócolis, farofa, vinagrete, suco de cupuaçu.
À noite as temperaturas se mantiveram elevadas. Mesmo parado, eu suava e sentia a roupa lixando meu corpo. Jantei sorvetão de cupuaçu, açaí e tucumã. Sentei no banco do largo. Nada de brisa. Me sentia pegando fogo.
Pela manhã desci a rua Joaquim Nabuco rumo à Manaus Moderna, a única região interessante da cidade, a beira do rio Negro, da Escadaria, do comércio, do mercado e adjacências.
Cruzei a areia seca e suja da beira do rio. Subi na balsa e no barco. Eu nem precisava confirmar a reserva. Cumprimentei tripulantes, troquei frases com o proprietário. Observei o carregamento de itens dos mais variados tipos, provenientes de fora de Manaus, rumo a cidades e comunidades do vale do rio Japurá, as quais, como regra nos interiores amazonenses, nada produzem, nem comida, nem nada.
Saí para jantar a fim de encarar novamente a caldeirada de tambaqui. Não me importei de esperar bastante por mesa do lado de fora, sob a lua quarto-crescente e o céu coalhado de estrelas, nem de me ensopar de suor por aquela maravilha da culinária amazonense. Delícia das delícias. O calor do meio-dia prosseguia à noite.
Mas eu estava feliz da vida. Pela caldeirada precedida de duas caipirinhas, pela expectativa da partida do barco.
Após o café da manhã fechei tudo e saí do hotel.
Ao subir no barco, peguei a chave do camarote com a cozinheira. Larguei as bagagens no cubículo limpíssimo, com lençóis nas duas camas do beliche.
Subi ao piso de Lazer, vazio e silencioso, para escrever diante do vento quente e constante. A estação das chuvas se aproximava. Não era comum aquele vento incessante com o barco parado e atracado na balsa flutuante.
Conversei bastante com o professor de história em escola municipal de Japurá. Maranhense de nascimento e recém-separado em Manaus, o cinquentão tentava recomeçar a vida em cidade pequena. Parecia deprimido. Levantei as questões dos municípios do interior do Amazonas não produzirem nada para o próprio sustento e dependerem de tudo de fora, inclusive verduras, legumes, frutas, ovos, carnes, etc. As respostas não diferiam muito dos demais a quem costumo indagar. Falta de interesse dos governos, entre tantas desculpas. Mas e daí? Ninguém tenta nada?
O barco partiu mergulhando imediatamente na escuridão da noite, rumo à foz do rio Negro, ao rio Solimões, ao rio Japurá. Observei o negrume interrompido pelas raras luzes dos vilarejos e comunidades ribeirinhas.
Entrei no camarote levemente refrigerado pelo ar condicionado que eu regulara a um terço da potência. Apenas fresco. Nada de frio ou congelamento. No camarote oposto ao meu, um senhor roncava impunemente. Os vãos das madeiras liberavam o som diretamente nos meus ouvidos. Sublimei e adormeci com relativa facilidade.
Me levantei ao começar a clarear. Navegávamos em águas do Solimões. Tomei banho completo no cubículo que fazia vezes de latrina e chuveiro frio. A água vinha do próprio rio e puxada para as caixas d’água no piso de Lazer.
A névoa seca e a fumaça das queimadas ofuscavam o horizonte. Dava para sentir o cheiro, embora não se notasse focos de fogo ou chamas. O céu, de um amarelado bizarro. A margem direita do Solimões, a mais próxima, exibia barrancos estratificados de lama ressecada. Acima deles, eventuais casas isoladas ou comunidades, abastecidas por energia elétrica instalada pelo programa Luz Para Todos do governo federal. Abaixo, canoas transportavam madrugadores para pescar o alimento diário.
           O café da manhã a bordo ofereceu pão, margarina, ovos mexidos, tapioca com margarina, bolo, leite com achocolatado, café, leite, tudo à vontade. Dava para repetir até matar a fome.
continua...