segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O Rio Japurá (parte 6/6)

...continuação
Acordei novamente antes de clarear. O barco balançava, embora mais suavemente. Amanheceu nublado. As coisas pareciam amenizar com a claridade. Não senti tensão entre os passageiros.
Mas a calma era apenas aparente. Durante o café da manhã os passageiros comentavam o susto da madrugada, o medo sentido, o desespero pelo qual passaram. Alternavam as narrações e desabafos com risos nervosos e olhares assustados para as águas do rio. Mesmo os metidos a machões, tidos com escolados nas águas da Amazônia, mostraram que são de carne e osso e também passíveis de pânico.
Recomeçou a chover entre trovoadas esparsas. As águas do Solimões novamente se encresparam. Ondas consideráveis surgiram e banzeiros se formavam de todos os lados. O barco voltou a balançar violentamente. A água da chuva fustigava o barco junto com os ventos fortes. De vez em quando um trovão violento estourava no céu, assustando para valer. A água do rio entrava impunemente no barco. O convés do piso Superior estava ensopado, mesmo com a lona plástica arriada. Pânico generalizado, novamente.
Meia hora depois, de volta à calmaria, os dois do camarote ao lado pegaram a voadeira rumo a Coari. Antes, nos desejaram boa viagem e boa sorte. A dupla estava livre de mais temporais e mais sustos, pelo menos naquela viagem.
A tensão pareceu sumir de vez. A mesa no piso de Lazer abrigava rodas sucessivas de caixeta, agora a um real a aposta. O calor e o céu azul voltaram, aquecendo os corações apertados. As instabilidades climáticas se concentravam para os lados do médio Solimões e do vale do Japurá. Tempo manso pela frente. Notícia alentadora. Alívio geral.
Passamos sem parar por Codajás, cidade da margem esquerda do Solimões que eu visitara dois anos antes. O porto e a rampa de acesso, ambos novíssimos, chamavam a atenção. Restaria saber se o restante da cidade, tão desmazelada anteriormente, recebera os mesmos cuidados. Os moradores da capital do açaí bem que mereciam tratamento humano das administrações públicas.
Depois do futebol, a pequena plateia se concentrou nos fulgurantes e esplendorosos programas de domingo pela televisão. O proprietário e a mulher, o filho e namorada, a conferente, arrumaram as cadeiras estrategicamente para não perder nada das maravilhas da telinha. E, como de praxe, alguém se posicionou sob o cano da antena parabólica, a fim de girá-la sempre que fosse necessário recuperar a imagem.
Aquelas cenas, de vários enfileirados diante da telinha, me lembraram das provocações que eu costumava fazer às segundas-feiras quando meus colegas de trabalho deitavam falar mal da programação televisiva dos fins de semana. Eles, ou elas, escandalizados, descrevendo os detalhes, reclamavam que aqueles programas eram cretinos, idiotas, absurdos. Ao terminarem as lamúrias, eu emendava:
- Se esses programas são cretinos e idiotas, quem assiste é o quê?
Como não sou chegado à televisão, seja durante a semana ou aos fins de semana, seja em canal aberto, a cabo ou satélite, me sentia inteiramente à vontade.
 Durante a noite, enquanto eu avistava as luzes de Anori e Anamã vindas da margem esquerda do Solimões, os relâmpagos estouravam no horizonte oeste, justamente de onde o barco vinha e não aonde ia. Ufa!
 E o piso de Lazer encheu. Era a última noite a bordo. Noite quente e estrelada. A animação era geral, pela proximidade da chegada, pela certeza de estarem vivos depois dos sustos nas tempestades.
Noite e madrugada tranquilas sobre as águas quase espelhadas do Solimões.
Acordei já em águas do rio Negro. A maioria dos passageiros já arrumara as tralhas dentro das bagagens. Poucas redes permaneciam atadas. Muitos se apoiavam nas laterais do convés para avistar a cidade de Manaus ao fundo.
O barco atracou na balsa da Manaus Moderna, a Escadaria, no começo da manhã. Observei os primeiros passageiros a desembarcar. Alguns recebidos por familiares ou amigos. Outros sumiam na multidão, apenas acompanhados das bagagens. Esperei o tumulto arrefecer. Recolhi e guardei tudo nas bagagens. Lentamente desci ao piso Principal. Me despedi dos passageiros. Entreguei a chave do camarote. Me despedi da família do proprietário, da conferente, de outros tripulantes.
Caminhei pela ponte, cruzei a balsa flutuante, andei pelas areias, subi as escadas metálicas e ganhei as ruas do centro de Manaus, vazias pelo feriado de finados. Evitei os taxistas que me abordaram nas imediações do porto. Queria andar, me movimentar, me exercitar. Cruzei o antigo comércio da zona franca. Peguei à esquerda a avenida Sete de Setembro. Dobrei à direita e subi a avenida Eduardo Ribeiro. Logo eu entrava no hotel cujo quarto só seria liberado mais tarde. Larguei as bagagens na sala de guarda-volumes.
O café da manhã rolava solto. Certamente ninguém notaria se eu beliscasse algo. Discretamente avancei pelas mesas, até os bufês. Engoli quatro pães de queijo e dois copos de suco de laranja. E me satisfiz.
E me veio à mente a incrível viagem da qual acabara de voltar. Viva o rio Japurá! Com os defeitos e as qualidades. Valeu!
No almoço tracei a estupenda caldeirada de tambaqui depois de duas caipirinhas e do serviço lentíssimo dos garçons. Mesquinhez do dono do restaurante. Eram poucos funcionários para muitos clientes.
Trovejou, nublou, veio o vento refrescante. Mas nada de chuva. Só o calor sufocante da Manaus do concreto e asfalto.
Fui à parada de ônibus. Me fiei nas placas que listavam as linhas de ônibus que paravam em cada ponto específico da avenida. Aparentemente passavam por ali todas as linhas da cidade. Dezenas de ônibus se amontoavam nas paradas, às vezes em fila dupla. Passageiros aos montes corriam desesperados de um lado para outro. O caos. As placas desatualizadas me fizeram perder os dois primeiros. Demorou até eu perceber que o ponto da linha desejada se situava cem metros adiante, em cuja placa não constava o número correspondente.
Durante o ônibus da volta, um idiota fundamentalista gritava histericamente as bobagens de sempre do comércio da fé vindo das empresas evangélicas. Berrava sem parar, sem respirar, compulsivamente, inserindo aleatoriamente as palavras “aleluia” e “jesus” no meio das frases e até das palavras. Tortura. Massacre em volume ensurdecedor. Ele olhava de modo esbugalhado sem enxergar nada à frente. Parecia sob o efeito de drogas, de alucinógenos. Um patético robô programado pelas corporações evangélicas. A maioria dos passageiros ignorava o sujeito, preferindo conferir a paisagem cinzenta do lado de fora, conversar entre si, cutucar o celular. E ele não parava de esbravejar contra o diabo, contra o divórcio, contra homens e mulheres, contra o mundo. Subitamente se dirigiu à porta de saída do ônibus e conclamou:
- Quem gostou que bata palmas!
Três senhoras aplaudiram. As três da claque do indivíduo. As três bigodudas. As três cabeludas. As três com olhares de sofredoras e de quem vê o diabo em cada canto.
O ônibus inteiro suspirou aliviado ao desembarque do fundamentalista. A calma voltou entre os passageiros normais.
Bebi meio litro de guaraná natural com mel e limão. Nada de almoço. Comprei a revista Caros Amigos e retornei ao hotel. O tempo continuava nublado e abafado, com garoas esparsas.
O largo São Sebastião em noite comum, sem atrações especiais, estava charmosíssimo como sempre. Número de frequentadores na medida certa, para não tirar o encanto do conjunto.
Ao fechar os olhos ainda sentia o corpo oscilante como se estivesse navegando em águas do rio Japurá. Ressaca fluvial!
Na região da Escadaria repeti guaraná com mel e limão. Comprei cem gramas de guaraná em pó. Detonei outro copão de açaí fresco. Me sentei no banco do mercado, derretendo de calor, enquanto grupos de gringos idosos perambulavam acompanhados de guia local. Invariavelmente vestidos de maneira inapropriada para o clima regional, cambaleavam ensopados de suor.
Arrumei as bagagens. Antes mesmo de alcançar o ponto de ônibus para o aeroporto, a três quarteirões do hotel, eu já estava suado e ardendo de calor. Embarquei e desembarquei sem problemas. E só desembolsei três reais, ao contrário dos setenta e cinco reais que os taxistas ousavam cobrar.
O aeroporto de Manaus, geladíssimo desnecessariamente, contava com a tal praça de alimentação. Apenas as redes pertencentes àquele regime terrorista ao norte do México. Pizzas de papelão, sanduíches de carne de minhoca, batatas transgênicas, sorvete de açúcar, gordura e corante. Dava nojo só de olhar de longe. E tudo muito caro, absurdamente caro. O lance era levar algo ou comer antes de ir ao aeroporto.
Li artigos da revista Caros Amigos enquanto aguardava os ponteiros do relógio avençarem.
Bateu sede e quis tomar refrigerante, pois suco natural não havia em nenhuma parte do aeroporto. Ia pagando quando ouvi o preço da caixa: SETE REAIS. Sete reais pelo refrigerante??? Nem pensar! Peguei o dinheiro de volta. Iria de água de bebedouro mesmo. Além de oferecer somente lixo para comer e beber, as redes estadunidenses cobravam o olho da cara. Era o aeroporto internacional de Manaus, reformado para a Copa de 2014, novinho em folha. Mas indo de mal a pior. Não era à toa que o comércio estava às moscas. Quase ninguém se sujeitava aos venenos a preço de ouro.
Li bastante durante o voo vespertino. E Fogo Morto, de José Lins do Rego, frustrava a cada página. Envelheceu, talvez, não sei. Só sei que não via a hora de virar a última página. Aprecio bastante a literatura regional daquela geração, inclusive outros romances desse autor. Mas aquele livro especificamente, ao contrário dos prazeres durante a primeira leitura na adolescência, se tornou um sacrifício. Antes tivesse trazido o ótimo Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, livro que começara a reler em casa.
O céu noturno paulistano deu tréguas das recentes chuvas e abriu estrelado para o pouso seguro no aeroporto de Cumbica.
Ônibus comum e metrô para casa. Tomei banho e caí na cama tarde da noite.
E mais vivas à Amazônia fluvial! À Amazônia fluvial, bem entendido.

10 comentários:

  1. Caro, recomendo a leitura do livro O Complexo da Amazônia, de Djalma Batista. Escrito na década de 70, o autor faz uma análise interdisciplinar da região: sua cultura, biodiversidade, geografia, mazelas que atinge seu povo, critica os modelos econômicos adotados na região e, já nos anos setenta de 70, destaca sustentabilidade como caminho para o desenvolvimento da Amazônia. Boa Leitura.
    Att, Jafé Praia

    ResponderExcluir
  2. Olá, Jafé!
    Obrigado pela visita e pela sugestão.
    O que achou de meus relatos, impressões e algumas reflexões sobre a viagem ao vale do Japurá?
    Além desses, publiquei diversos relatos de minhas viagens pelos interiores do Brasil e de outros países da América, África, Europa, Ásia. Fique à vontade para ler, pesquisar, compartilhar. E comente sempre...
    Abraços!

    ResponderExcluir
  3. Relatos e imagens muito inspiradoras,
    a literatura no Brasil é certeza de grande prazer, tb, é uma viagem, com autores como Sergio Pereira Couto, Eduardo Spohr, Paulo Coelho, Patricky Field...
    acessem e vejam:
    http://tatudooco.blogspot.com.br/2016/04/compre-o-seu-aqui-agora-mansao-millard.html
    d++++
    ;o)
    abraços

    ResponderExcluir
  4. Olá Patricky, tudo bem?
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Também amo literatura. Leio um livro após o outro. E sempre que posso, menciono aqueles que li durante as viagens. Notou?
    Abraços e comente sempre!

    ResponderExcluir
  5. Essa viagem foi recente, né? Acho interessante sua expressão para caracterizar Manaus: "anti-amazônia", anti-indígena", na qual, manauara que sou, infelizmente tenho que concordar. Para exemplificar, houve nos últimos 15 anos o projeto Prosamim que consiste em retirar populações que moram em condições precárias nos igarapés (até tudo bem). O pior como o projeto foi executado: aterraram criminosamente diversos igarapés, transformando-os em córregos poluídos. No lugar puseram "moradias populares" em aéreas sem árvores, sem grama, só asfalto! O sentimento que passa é que temos aversão à Amazônia, à natureza, ao bem-estar. E, boa parte da população, tem raiva quando referem-se a nós como índios, que vivemos no mato. Antes fosse!
    Att, Jafé Praia

    ResponderExcluir
  6. Oi Jafé Praia,
    Obrigado pelos comentários.
    Realmente uma calamidade a situação socioambiental de Manaus.
    Uma cidade situada em local tão privilegiado e a qual tantas vezes vou para explorar os interiores fluviais do estado do Amazonas.
    Por isso denuncio sempre nos relatos aqui do blog.
    A nossa indignação pode ser o começo de mudanças. Vamos lá!
    Comente sempre.
    Abraços!

    ResponderExcluir
  7. Muito interessante os seus relatores de viagem, nos fazem viajar junto com você, conhecer os lugares onde esteve através da sua leitura, enriquecida com as suas impressões, descrições, opiniões. Riqueza à parte são os comentários sobre os livros, outro tipo de viagem, outra maneira de estar nos lugares e conviver com personagens através da narrativa de seus autores. Voltarei mais vezes para ler e comentar. Não sei como identificar-me, vai como anônimo, mas sigo-o no Face.

    ResponderExcluir
  8. Olá anônimo,
    Obrigado pela presença e comentários.
    Você ressaltou exatamente aquilo que procuro destacar nos relatos.
    Creio que coincidimos em nossos olhares sobre o que vale a pena no mundo.
    Há relatos para todos os gostos publicados no blog, de viagens que realizei pelos interiores do Brasil e de outros países.
    Leia, compartilhe e comente sempre.
    Abraços!

    ResponderExcluir
  9. Olá viajante, seus relatos me levaram para um tempo aonde fiz uma viagem para Natal aonde percebi as cortinas que esconder os tipos de "Brasils" um da beleza, limpeza, educação e outro da feiura, sujeira e o desrespeito ao ser humano e senti vergonha e tristeza por ter exposto minha família a tudo iso, de certo foi bom para eu perceber que sou brasileiro e faço parte disso aonde puxo a minha cortina com as mãos atadas fazendo o máximo que posso para mostrar isso.Obrigado.

    ResponderExcluir
  10. Oi Daniel,
    Obrigado pela atenção e pelos comentários.
    De fato, não podemos fingir que não vemos e nos indignamos com as coisas ruins de nossas viagens. Mais que isso, precisamos denunciá-las.
    Um blog, antes de tudo, tem que ser sincero, caso contrário não é um blog.
    Destaco as coisas belas e os deslumbramentos que senti diante delas. Mas as negativas podem e devem ser descritas e analisadas.
    Tem muitos relatos publicados neste blog de viagens pelos interiores do Brasil e de outros países. Pesquise, leia, divulgue e comente sempre.
    Abraços!

    ResponderExcluir