segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Uzbequistão e Turquia (parte 3/8)

...continuação
Dali, ao cartão postal de Samarqand (Samarkand) e um dos principais do Uzbequistão, o complexo de madraças, ou escolas corânicas, e mesquitas ao redor da praça Registan.
Infelizmente, quase tudo estava em obras, com tratores e guindastes removendo o piso central da praça e ações agressivas em trechos internos das construções históricas. Fato injustificável, uma vez que fotos recentes mostravam todo o conjunto em perfeito estado de conservação. Não só ali, mas em todo o país, me parecia que no Uzbequistão se construía ou se reconstruía pelo simples capricho do chefe de plantão, pela obsessão em apagar e refazer imagens.
Mas, aos trancos e barrancos, contornando telas de proteção, dando voltas, tomando cuidado para não tropeçar ou escorregar nos trechos esburacados ou enlameados, evitando as manobras das máquinas leves e pesadas, abstraindo os ruídos inerentes, deu para explorar o local.
As dependências internas das madraças desativadas foram ocupadas pelo comércio de produtos típicos do país e de outros itens nem tão típicos. A cúpula interna de uma delas, ornamentada em ouro e em outros materiais resplandecentes, valeu pelo efeito extraordinário das cores sob a luz natural. Ao longo dos corredores laterais, lojas expunham a antiga arte regional, entre vestimentas, joias, barretes, burcas, mantos, dos mais variados tipos e preços, pinturas e velhas fotografias.
O almoço foi em restaurante regional que mais se parecia com bar noturno tal a decoração extravagante, usando e abusando de móveis chamativos e cores espalhafatosas. A mesa ficava no andar superior. No térreo, uma festa de casamento animava uma roda de mulheres, somente de mulheres, dançando ao som do pop uzbeque.
Depois foi a vez de visitar o observatório astronômico de Ulugbek, filho de, adivinhem quem, sim ele mesmo, o próprio, quem mais poderia ser se não Amir Timur. Dizia a lenda que o filho, porém, não se identificava com guerras, mortes e religião, passatempos favoritos do pai, preferindo se aprofundar nas artes e nas ciências.
Mas o melhor da tarde ainda estava por vir, a Necrópole da cidade. O interessante cemitério abrigava nas partes mais baixas tumbas que eram verdadeiras obras de arte, datadas dos séculos XIV a XVI. Me deleitei diante da arquitetura e das ornamentações em tijolos, ladrilhos, ouro, pedras, pinturas, esculturas, em conjunto harmoniosamente colorido.
Samarqand (Samarkand), a segunda cidade do Uzbequistão, contava com centro inteiramente renovado arquitetonicamente. Foram demolidas as construções antigas e erguidos novos edifícios, largos, baixos, padronizados, demonstrando mais uma vez a paranoia por uma nova cara nacional. Assim como no resto do país, a cidade estava em obras, apagando o antigo, perdendo a memória urbanística, e construindo o novo.
Por outro lado, a preservação de um passado glorioso brotado após a “independência” nacional em 1991 e maquiado segundo as conveniências dos mandas-chuvas de plantão, visto nos monumentos novos e antigos, contrastava com a demolição do casario histórico dando lugar ao que viria a ser a imagem que a nova classe dominante desejava impor ao país.
As calçadas das cidades do Uzbequistão ficavam às escuras durante toda a noite e madrugada. Somente o leito das ruas e avenidas recebia iluminação artificial, mesmo assim de maneira fraca e irregular.
Pela manhã, eu e mais dois caminhamos rumo à praça Registan, desta vez sem chuva e com muito sol. Contemplamos o complexo de madraças e mesquitas somente de fora, sem pagar novamente o ingresso caro. Novos ângulos, novas luzes e cores pelo dia ensolarado, mais observações e reflexões a respeito dos detalhes arquitetônicos e históricos. E, mais uma vez, lamentamos as obras desnecessárias em praticamente todo o conjunto.
Arriscamos a galeria de arte pertencente à associação dos artistas de Samarqand. Continha belíssimas obras, entre pinturas, aquarelas, gravuras, trabalhos em lenços de seda, roupas, véus. Os itens estavam expostos em sala atendida pela solitária russa que mal arranhava o inglês. Os lenços de seda, estampados por trabalhos únicos dos artistas regionais, levíssimos, mal sofriam das forças da lei da gravidade.
Caminhávamos vagarosamente, apreciando a rotina da cidade num dia útil, o vaivém dos pedestres e veículos, as calçadas e calçadões arborizados, os parques abrigando famílias e discretos casais de namorados, a elegância modernizada daquela cidade milenar.
Almoçamos comida típica em residência familiar decorada especialmente para os visitantes. Além das saladas iniciais, dos iogurtes caseiros e temperados, dos diversos tipos de pães, da sopa de legumes e carne, o prato principal seria o Plov, o mais famoso do país. Tratava-se de arroz cozido com cenoura amarela, alho, cominho, cebola, pedaços de carne, passas. Saborosíssimo e servido em grande travessa sobre a mesa, da qual todos se serviam.
Tiramos os sapatos antes de entrar no salão ricamente ornamentado, nas paredes, com objetos regionais e familiares, no teto composto de ripas arredondadas, avermelhadas e desenhadas de madeira, na mesa, colorida e apetitosa. Reguei o banquete com água e chá verde.
No quintal da casa, a cerejeira em flor, o móvel que era mistura de mesa, cama e sofá estampado, muito comum no país para os futuros dias e noites quentes do verão, o andar de cima construído em madeira entalhada.
Emendamos ao Mercado Municipal. Em instalações limpas e organizadas havia de tudo um pouco do que os verdadeiros mercados devem oferecer à população. Ziguezagueei por entre as barracas, observando itens e flagrantes culturais. De vez em quando um balconista me oferecia produtos e perguntava o meu país de origem num inglês diminuto, mas o suficiente para a comunicação básica.
Retornamos ao hotel no final da tarde ensolarada e sem sensação de frio.
Jantamos em restaurante e clube dançante, um dos mais badalados da cidade. E, para manter o regime de engorda daquela viagem ao Uzbequistão, dá-lhe comida, muita comida, comida típica e saborosa. Bebemos vinho de Samarqand, comemos horrores, conversamos e rimos muito. No subsolo decorado em cores vivas e brilhantes, entre intervenções artísticas extravagantes, havia outra mesa ocupada por três mulheres, produzidíssimas, dos pés à cabeça, no melhor estilo uzbeque.
Acordei sem pressa e comi no final do horário do café da manhã a fim de forrar bem o estômago em dia sem perspectivas de almoço de verdade.
O trem com destino à Toshkent (Tashkent) partiu da gigantesca e moderníssima estação ferroviária de Samarqand (Samarkand), mas sem direito a fotos, proibidíssimas nos interiores e exteriores. A construção e as instalações pareciam de aeroporto, porém mais eficientes e mais confortáveis. E tudo em dimensões exageradas. Se Amir Timur, o novo herói nacional, não estivesse morto e enterrado havia séculos no mausoléu da cidade, juraria que tivesse sido obra dele.
A composição partiu no meio do dia. Comemos empanadas arredondadas adquiridas em estação intermediária. O salgado suculento e bem temperado matou a fome discreta do meio do dia.
Durante todo o trajeto a cadeia de montanhas nevadas acompanhou a ferrovia, emoldurando campos agrícolas em fase de semeadura e bem aproveitados entre algumas cidades pequenas e vilarejos. Com as reformas agrárias anteriores e a politica agrícola encorajadora todos possuíam o necessário para viver razoavelmente. Alguns trechos revelavam colinas rochosas, campos menos férteis, zonas cobertas de solo esbranquiçado pelo sal.
No meio da tarde o trem parou na estação ferroviária também ampla, moderna, funcional em Toshkent (Tashkent).
A maior mesquita da capital do país guardava a sete chaves o mais antigo alcorão em papel do mundo. Impresso no século VII em pele de gazela, o imenso e pesado livro impressionava pelo visual e pelo valor histórico. Do lado direito da imensa construção religiosa, notei ao fundo a cadeia das montanhas nevadas que se destacava irrompendo no horizonte.
O metrô da capital foi construído durante a República Soviética do Uzbequistão. Contando com três linhas e estações distintas e ricamente decoradas, aquele meio de transporte testemunhava o passado socialista do país, funcionando e atendendo bem a população por quase quarenta anos.
A moderna Toshkent (Tashkent), cujo centro foi reconstruído completamente após o intenso terremoto de 1966, era amplamente arborizada, nas calçadas, parques, praças, canteiros centrais das principais vias. A cidade esnobava quarenta hectares de área verde por habitante. Uma interminável avenida contava com canteiro central de mais de cinquenta metros de largura, inteiramente arborizado, com faixa interna para caminhadas e passeios. Maravilhoso, invejável, admirável do ponto de vista socioambiental.
O Uzbequistão não se mostrou tão estranho quanto as expectativas apontavam, mas agradou bastante. Gostei.
Rahmat O’zbequiston!
Se para entrar no país o processo se mostrou burocrático, para sair dele a lentidão e a burocracia se multiplicaram por mil.
Logo na entrada do saguão do aeroporto, após o primeiro controle de passaportes, os raios-x acusaram objeto perigoso na minha bagagem. Tive que abrir e mostrar ao zeloso funcionário que se tratava do pequeno tripé fotográfico. Pegou-o na mão e, por gestos, me pediu para que eu lhe mostrasse como funcionava. Assim que concluiu que as três pernas eram flexíveis e que se regulavam ao gosto do freguês, sorriu me liberando.
Após esse primeiro bloqueio duplo, houve mais quatro bloqueios, fiscalizando e controlando praticamente as mesmas coisas. Sem falar na inadmissível lentidão dos atendentes.
Em cada um dos restantes quatro controles de saída do país, também fizeram a incrível pergunta sobre o motivo da minha viagem ao Uzbequistão. Questionaram a quantidade de moeda nacional e estrangeira em mãos. Exigiram o preenchimento de formulários alfandegários em duas vias, nas quais eu tinha que escrever todos os detalhes por duas vezes mesmo. E sem erros ou rasuras. Cobraram a primeira via do formulário quando da entrada no país. Conferiram os comprovantes de entrada e saída em cada um dos hotéis utilizados. Abriram e reabriram bagagens na busca daquilo que nem eles sabiam o que era. Num dos pontos de controle, me chamaram numa salinha anexa e, pela enésima vez, queriam saber quanto de dinheiro eu levava.
Ao ultrapassar cada um desses obstáculos, nem dava tempo para comemorar. Poucos metros adiante começava tudo novamente. Novo bloqueio, novo controle, nova fiscalização, as mesmas perguntas, as mesmas expressões de autoridade, os mesmos carimbos.
Na última barreira, além dos procedimentos de praxe, repetidos à exaustão, confiscaram minha garrafa de água. Nem questionei. Quase entreguei a mochila de ataque inteira para eles, desde que me deixassem embarcar.
E isso acontecia com todos da mesma maneira, ou ainda pior. De uma passageira exigiram que ela bebesse da água que carregava na bolsa para provar que não era uma arma líquida letal. De outro, retiveram frascos de desodorante, creme dental, perfumes, entre outros itens altamente perigosos à humanidade.
Após “apenas” duas horas de saltos em obstáculos que testaram o limite dos nervos de todos, controle por controle, fiscalização por fiscalização, raios-x por raios-x, formulário por formulário, pergunta por pergunta, carimbo por carimbo, finalmente atingimos a porta de embarque para a aeronave.
Mas, mesmo após todo aquele perrengue, não conseguia parar de rir ao me lembrar de uma das perguntas mais presentes na boca dos funcionários do aeroporto, justamente no momento que eu desejava apenas sair do país: “Qual o seu motivo de viagem ao Uzbequistão?”. Era a pérola das pérolas!
O avião apertadíssimo para as pernas decolou no meio da madrugada e pousou em Istambul ao amanhecer.
Comi horrores no café da manhã tardio e permaneci no quarto para tentar descansar. Nada feito. A obra ao lado do hotel andava a todo vapor. Guindastes, escavadeiras, caminhões basculantes, o operário que guiava gritando os veículos pesados durante as manobras. Uma barulheira danada.
continua...

2 comentários:

  1. Viajante Sustentável deve ter sido deslumbrante conhecer a Necrópole, com suas riquíssimas ornamentações. Gostei de tua colocação: - "Por outro lado, a preservação de um passado glorioso brotado após a “independência” nacional em 1991 e maquiado segundo as conveniências dos mandas-chuvas de plantão, visto nos monumentos novos e antigos, contrastava com a demolição do casario histórico dando lugar ao que viria a ser a imagem que a nova classe dominante desejava impor ao país". O clássico e o moderno mesclam a cidade tornando-a interessante e aguçando meu lado aventureiro. Nem tinha idéia que o mais antigo alcorão em papel do mundo foi impresso no século VII em pele de gazela, imagino valor histórico. Além das belezas naturais, fico imaginado a habilidade dos profissionais da arquitetura milenar...que viagem cultural. Sigo na carona. Abraços.

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  2. Oi Ivete, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Adorei realmente a Necrópole de Samarqand. Mausoléus que se tornaram obras de arte estupendas. Que detalhes!
    Pena que não demonstram o mesmo carinho e respeito pelo valor histórico do casario comum, mas muito antigo.
    Também me impressionei com o mais antigo corão impresso. Era enorme e pesado. Creio que precisariam umas três pessoas pelo menos para segurar e folhear aquele texto sagrado.
    Comente sempre e abraços!

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