sexta-feira, 10 de setembro de 2010

do Acre ao Maranhão (parte 6/7)

...continuação
Esperei o barco para Santarém por mais de duas horas e tive que aguentar lorotas do paraense com dois dentes de ouro e óculos escuros de bicheiro. O barco de casco de madeira atracou no meio do dia. Chovia forte no momento do embarque. Comi o almoço razoável e me recolhi enquanto a chuva tornava as águas do rio Amazonas bastante agitadas. Os passageiros praticamente não saíam das redes.
O barco atracou no porto de Santarém no meio da madrugada. A maioria permaneceu a bordo até o amanhecer, quando então começou a movimentação de desarmar as redes, as filas nos banheiros, arrumação geral e o desembarque.
No trecho tranquilo de Santarém encontrava-se restaurante especializado em peixes. Tomei caipirinhas antes de mergulhar de cabeça na divina caldeirada de tambaqui. Com o calor do dia e do caldo me ensopei na hora. A mesa na calçada amenizou ligeiramente a fervura do corpo. Com a pele e a roupa pingando suor, mas satisfeitíssimo, tomei sucos de graviola para rebater.
A tarde estava colorida pelo céu azul e me entreguei à preguiça no banco da praça de São Sebastião. Ao fundo o encontro das águas esverdeadas do rio Tapajós com as barrentas do rio Amazonas. Local calmo, pouca gente, crianças, casais, muito espaço e boas sombras para relaxar e contemplar o momento. Belíssimos tapetes de flores de cor lilás formavam-se sob os jambeiros. O colorido estendia-se metros e metros pelas calçadas e ruas.
A família paraense de Santarém planejara dar o nome de Wenesys Lorrana à menina prestes a nascer. Mais tarde entendeu que Wenesys Cindely seria mais apropriado. Finalmente, depois de muito pensar e ouvir diversas opiniões, optou pelo doce nome de Wenesys Kimberly.

O monopólio agressivo da coca-cola era espantoso. Praticamente em todos os barcos e na maioria dos bares e restaurantes não havia possibilidades de escolha. Em alguns casos nem ao menos sucos de frutas regionais ou água mineral. Apenas refrigerantes e cerveja daquela empresa transnacional. Livre concorrência?
O nível das águas do rio Tapajós em Alter do Chão, ao contrário da última viagem, estava no nível máximo. As praias do local se reduziam às faixas estreitas no istmo principal. As barracas de comes e bebes da parte mais baixa ficaram submersas e tornaram-se pontos de armação de redes e longos cochilos.
Subi em ônibus urbano até as Docas de Santarém. A agência que me vendera o camarote ainda não estava aberta. Com o bilhete na mão, entrei no porto e fui diretamente ao navio ancorado. Lá o responsável me surpreendeu com a bomba que não havia camarotes ou suítes disponíveis. Outros tripulantes sugeriram que eu esperasse a chegada do proprietário do navio. Saí em direção à agência, agora já aberta. O vendedor estava lá, sorridente e cheio de adulações. Depois, transpirando e fingindo preocupação, me acompanhou até o navio. Nada aconteceu. Apenas o proprietário tomaria decisões. O problema se repetiu com duas paraenses que tinham adquirido uma suíte em outra agência de viagens. Nada de vagas disponíveis e apenas o proprietário resolveria. Elas desistiram e pediram o dinheiro de volta.
O proprietário do navio chegou de caminhonete amarela e reluzente. Pertencente à classe dominante local, cujo patriarca costumava se candidatar a cargos públicos, com cara de ressaca e noite mal dormida, em voz baixa, quase aos cochichos, o tal comunicou qualquer coisa aos tripulantes e me indicou a suíte particular. Usada apenas com o sujeito a bordo, a suíte era ampla, com beliche espaçoso, banheiro e equipamento completo de som e televisão, com tocador de cd, vídeo-cassete e tocador de DVD, além de farta coleção CD, VHS e DVD. Então tá!
Pouco antes da partida, três macacos amestrados recitaram em coro, no convés principal e diante dos passageiros das redes, trechos lidos da bíblia na intenção de caçar novos trouxas, e o dinheiro deles, para os templos das empresas evangélicas. Mais cenas deprimentes da indústria do fundamentalismo.
As águas do rio Amazonas estavam agitadas. Cerca de doze estrangeiros jovens viajavam no navio, em redes e camarotes. A maioria não falava ou entendia português. Eram os que mais consumiam bebidas alcoólicas. Uma cerveja atrás da outra. A partir daí, largavam aquele ar de superioridade, se soltavam, deixavam CD para serem tocados no bar, riam à toa. E carregavam para todos os lados a bíblia dos guias debaixo do braço.

O mulato carioca e aposentado da Petrobrás estava instalado em outra suíte, cuja historia da compra e da ausência de vagas nos camarotes se assemelhava à minha. Passeava na região norte e finalizaria a viagem no Maranhão, onde possuía amigos e parentes. Na suíte ao lado da minha, uma paraense de Oriximiná. Estudava em Belém e se mudaria para Goiânia a fim de ficar ao lado do futuro marido. Eles se conheceram em viagem de barco um ano e meio antes. Retraída e fumante inveterada, quase não saía da suíte.
O comandante mostrou a tábua das marés dos dias seguintes para explicar a necessidade do cumprimento do horário da entrada do navio na baía de Guajará. Após o horário limite, a maré tornaria as águas revoltas, com possibilidade de tempestades e de instabilidades de alto risco.
O trecho mais marcante do percurso foi na passagem pelo estreito de Breves, ao sul da ilha do Marajó. As margens aproximaram-se bastante, possibilitando a observação da vegetação, aves e outras belezas. O local também era tristemente conhecido pela miséria e abandono das comunidades ribeirinhas. Dezenas de canoas a remo, pilotadas por crianças, se aproximaram do navio. Aos gritos de “joga, joga, joga...” e com desesperados acenos das mãos, imploravam para os passageiros jogarem comida, roupas e outros itens de maior necessidade. Algumas delas conseguiam atracar nos pneus de proteção do navio, permitindo o acesso das crianças para vender, pedir esmolas ou até para algumas meninas se prostituírem.
O bonito pôr-do-sol indicava noite estrelada e tranquila. Mas à noite o tempo fechou e desabou intensa e demorada tempestade tropical. As águas do rio se agitaram e o barco balançou insistentemente. Quem se embriagava no bar do piso superior, cantando e dançando, assim ficou, ensopado, alheio aos tombos e escorregões no piso escorregadio revestido de resina.
E a tempestade foi o assunto principal durante a manhã seguinte. O medo foi grande no setor das redes e alguns chegaram a vestir o colete salva-vidas. Bem diferente no bar entre muita cantoria e gargalhadas. Nem os tombos afetaram o alto astral. Duas irmãs maranhenses não se aguentavam de rir das cenas hilariantes do piso de lazer. Repetiam as historias várias vezes, sempre rindo delas mesmas.

O café da manhã, com as sobras do estoque, resumiu-se à bolacha seca e café com leite. Todos se vestiram, desarmaram as redes, guardaram tudo e escolheram as melhores posições para assistir às primeiras visões de Belém, com a extensa linha de altos edifícios no horizonte. O navio ancorou no meio da manhã.
Peguei a mochila e caminhei até o hotel no centro da cidade. Além de abrigar diaristas como eu, o estabelecimento também funcionava como motel de alta rotatividade. Bastava ficar na recepção para observar a diversidade sexual e de tipos dos frequentadores. Mas era limpo e tranquilo.
Faminto, caminhei até a zona das Docas, onde, após reforma, funcionam restaurantes, sorveterias, local de venda de produtos regionais, área de exposições e sala de espetáculos. O local estava bonito e bem cuidado, apesar do clima e segurança ostensiva de xópin. A estrutura metálica com pé direito bastante alto foi mantida, agora fechada por vidros, para separar os ambientes e se isolar do mundo exterior. As mesas na parte externa permitiam contato com a brisa da baía de Guajará e também se livrar do desagradável ar condicionado da parte interna. Por preço paulistano, deliciei-me com peixe no tucupi, caranguejada, maniçoba, muito açaí e suco de cupuaçu, entre outras delícias da culinária paraense.
O centro histórico de Belém estava em processo de restauração e reurbanização. As obras caminhavam vagarosamente. Além de três armazéns das docas, o mercado Ver-o-peso e o entorno foram reorganizados com quiosques padronizados, água encanada e tratada, rede de esgotos e demais necessidades para garantir a higiene e o conforto de todos, trabalhadores e clientes. As enormes tigelas, cheias do vinho de açaí, ficavam expostas nos balcões dos quiosques, a ser consumida com peixe, camarão, farinha ou açúcar. A região do forte do Castelo apresentava construções restauradas e transformadas em museus, centros culturais e de lazer, restaurantes, em meio a outras ainda em péssimo estado e aguardando a vez para a recuperação.
O alívio em Belém é que as ruas situadas no centro expandido são bastante sombreadas pelas imensas, famosas e centenárias mangueiras. Fora o embelezamento das vias e calçadas, elas refrescam e tornam o caminhar menos cansativo. O que não acontecia com a tórrida Manaus, devido ao urbanismo estúpido, sem verde.
O barco para a travessia da baía oferecia várias cadeiras em dois andares e partiu cedinho à Camará, na ilha do Marajó. Fiquei em pousada disposta em chalés na beira da praia de Salvaterra. Outros sete passageiros se juntaram, aí incluídos três nisseis paraenses. Relaxamos nas sombras da praia, extensa e bonita, com água salobra. Na estação chuvosa, com os rios avançando no oceano, ela torna-se mais doce e límpida. Na época da seca, o mar se impõe e as águas ficam mais salgadas e turvas.
Visita à pequena e calma vila de Joanes, onde restavam ainda ruínas sobre o barranco que desce para o mar aberto. Crianças de escola municipal representavam cenas do folclore regional, como o bumba-meu-boi. À noite, o vento batia nas folhas dos coqueiros e dava a impressão de chuva.
Com a pequena igreja e poucas casas, o distrito de Salvaterra tinha à frente o canal que levava à vila de Soure, repleta de fábricas e lojas de artesanato simples em couro e cerâmica marajoara. Fomos à interessante fazenda de búfalos, com alagados e muita amplidão. A proprietária dos sete mil hectares recebeu-nos com bolinhos e suco. Atuava, em parceria com o IBAMA, na recuperação de animais feridos e também como educadora ambiental com crianças da região. Além da casa principal e dos galpões de trabalho, a fazenda possuía capela com objetos antigos e imagens religiosas. Encerramos o dia ensolarado na praia marítima do Pesqueiro, extensa, plana e desolada pela maré muito baixa.
continua...

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