...continuação
Esperei o barco para Santarém por mais de duas horas e
tive que aguentar lorotas do paraense com dois dentes de ouro e óculos escuros
de bicheiro. O barco de casco de madeira atracou no meio do dia. Chovia forte
no momento do embarque. Comi o almoço razoável e me recolhi enquanto a chuva
tornava as águas do rio Amazonas bastante agitadas. Os passageiros praticamente
não saíam das redes.
O barco atracou no porto de Santarém no meio da madrugada.
A maioria permaneceu a bordo até o amanhecer, quando então começou a
movimentação de desarmar as redes, as filas nos banheiros, arrumação geral e o
desembarque.
No trecho tranquilo de Santarém encontrava-se restaurante
especializado em peixes. Tomei caipirinhas antes de mergulhar de cabeça na
divina caldeirada de tambaqui. Com o calor do dia e do caldo me ensopei na
hora. A mesa na calçada amenizou ligeiramente a fervura do corpo. Com a pele e
a roupa pingando suor, mas satisfeitíssimo, tomei sucos de graviola para rebater.
A tarde estava colorida pelo céu azul e me entreguei à
preguiça no banco da praça de São Sebastião. Ao fundo o encontro das águas
esverdeadas do rio Tapajós com as barrentas do rio Amazonas. Local calmo, pouca
gente, crianças, casais, muito espaço e boas sombras para relaxar e contemplar
o momento. Belíssimos tapetes de flores de cor lilás formavam-se sob os
jambeiros. O colorido estendia-se metros e metros pelas calçadas e ruas.
A família paraense de Santarém planejara dar o nome de
Wenesys Lorrana à menina prestes a nascer. Mais tarde entendeu que Wenesys
Cindely seria mais apropriado. Finalmente, depois de muito pensar e ouvir
diversas opiniões, optou pelo doce nome de Wenesys Kimberly.
O monopólio agressivo da coca-cola era espantoso. Praticamente
em todos os barcos e na maioria dos bares e restaurantes não havia possibilidades
de escolha. Em alguns casos nem ao menos sucos de frutas regionais ou água
mineral. Apenas refrigerantes e cerveja daquela empresa transnacional. Livre
concorrência?
O nível das águas do rio Tapajós em Alter do Chão, ao
contrário da última viagem, estava no nível máximo. As praias do local se
reduziam às faixas estreitas no istmo principal. As barracas de comes e bebes
da parte mais baixa ficaram submersas e tornaram-se pontos de armação de redes
e longos cochilos.
Subi em ônibus urbano até as Docas de Santarém. A agência
que me vendera o camarote ainda não estava aberta. Com o bilhete na mão, entrei
no porto e fui diretamente ao navio ancorado. Lá o responsável me surpreendeu
com a bomba que não havia camarotes ou suítes disponíveis. Outros tripulantes
sugeriram que eu esperasse a chegada do proprietário do navio. Saí em direção à
agência, agora já aberta. O vendedor estava lá, sorridente e cheio de
adulações. Depois, transpirando e fingindo preocupação, me acompanhou até o
navio. Nada aconteceu. Apenas o proprietário tomaria decisões. O problema se
repetiu com duas paraenses que tinham adquirido uma suíte em outra agência de
viagens. Nada de vagas disponíveis e apenas o proprietário resolveria. Elas desistiram
e pediram o dinheiro de volta.
O proprietário do navio chegou de caminhonete amarela e
reluzente. Pertencente à classe dominante local, cujo patriarca costumava se candidatar
a cargos públicos, com cara de ressaca e noite mal dormida, em voz baixa, quase
aos cochichos, o tal comunicou qualquer coisa aos tripulantes e me indicou a
suíte particular. Usada apenas com o sujeito a bordo, a suíte era ampla, com
beliche espaçoso, banheiro e equipamento completo de som e televisão, com
tocador de cd, vídeo-cassete e tocador de DVD, além de farta coleção CD, VHS e DVD.
Então tá!
Pouco antes da partida, três macacos amestrados recitaram
em coro, no convés principal e diante dos passageiros das redes, trechos lidos
da bíblia na intenção de caçar novos trouxas, e o dinheiro deles, para os
templos das empresas evangélicas. Mais cenas deprimentes da indústria do
fundamentalismo.
As águas do rio Amazonas estavam agitadas. Cerca de doze
estrangeiros jovens viajavam no navio, em redes e camarotes. A maioria não
falava ou entendia português. Eram os que mais consumiam bebidas alcoólicas.
Uma cerveja atrás da outra. A partir daí, largavam aquele ar de superioridade,
se soltavam, deixavam CD para serem tocados no bar, riam à toa. E carregavam
para todos os lados a bíblia dos guias debaixo do braço.
O mulato carioca e aposentado da Petrobrás estava
instalado em outra suíte, cuja historia da compra e da ausência de vagas nos
camarotes se assemelhava à minha. Passeava na região norte e finalizaria a
viagem no Maranhão, onde possuía amigos e parentes. Na suíte ao lado da minha,
uma paraense de Oriximiná. Estudava em Belém e se mudaria para Goiânia a fim de
ficar ao lado do futuro marido. Eles se conheceram em viagem de barco um ano e
meio antes. Retraída e fumante inveterada, quase não saía da suíte.
O comandante mostrou a tábua das marés dos dias seguintes
para explicar a necessidade do cumprimento do horário da entrada do navio na
baía de Guajará. Após o horário limite, a maré tornaria as águas revoltas, com
possibilidade de tempestades e de instabilidades de alto risco.
O trecho mais marcante do percurso foi na passagem pelo
estreito de Breves, ao sul da ilha do Marajó. As margens aproximaram-se
bastante, possibilitando a observação da vegetação, aves e outras belezas. O
local também era tristemente conhecido pela miséria e abandono das comunidades
ribeirinhas. Dezenas de canoas a remo, pilotadas por crianças, se aproximaram
do navio. Aos gritos de “joga, joga, joga...” e com desesperados acenos das
mãos, imploravam para os passageiros jogarem comida, roupas e outros itens de
maior necessidade. Algumas delas conseguiam atracar nos pneus de proteção do
navio, permitindo o acesso das crianças para vender, pedir esmolas ou até para
algumas meninas se prostituírem.
O bonito pôr-do-sol indicava noite estrelada e tranquila.
Mas à noite o tempo fechou e desabou intensa e demorada tempestade tropical. As
águas do rio se agitaram e o barco balançou insistentemente. Quem se embriagava
no bar do piso superior, cantando e dançando, assim ficou, ensopado, alheio aos
tombos e escorregões no piso escorregadio revestido de resina.
E a tempestade foi o assunto principal durante a manhã
seguinte. O medo foi grande no setor das redes e alguns chegaram a vestir o
colete salva-vidas. Bem diferente no bar entre muita cantoria e gargalhadas.
Nem os tombos afetaram o alto astral. Duas irmãs maranhenses não se aguentavam
de rir das cenas hilariantes do piso de lazer. Repetiam as historias várias
vezes, sempre rindo delas mesmas.
O café da manhã, com as sobras do estoque, resumiu-se à
bolacha seca e café com leite. Todos se vestiram, desarmaram as redes,
guardaram tudo e escolheram as melhores posições para assistir às primeiras
visões de Belém, com a extensa linha de altos edifícios no horizonte. O navio
ancorou no meio da manhã.
Peguei a mochila e caminhei até o hotel no centro da
cidade. Além de abrigar diaristas como eu, o estabelecimento também funcionava
como motel de alta rotatividade. Bastava ficar na recepção para observar a
diversidade sexual e de tipos dos frequentadores. Mas era limpo e tranquilo.
Faminto, caminhei até a zona das Docas, onde, após
reforma, funcionam restaurantes, sorveterias, local de venda de produtos
regionais, área de exposições e sala de espetáculos. O local estava bonito e
bem cuidado, apesar do clima e segurança ostensiva de xópin. A estrutura
metálica com pé direito bastante alto foi mantida, agora fechada por vidros,
para separar os ambientes e se isolar do mundo exterior. As mesas na parte externa
permitiam contato com a brisa da baía de Guajará e também se livrar do
desagradável ar condicionado da parte interna. Por preço paulistano,
deliciei-me com peixe no tucupi, caranguejada, maniçoba, muito açaí e suco de
cupuaçu, entre outras delícias da culinária paraense.
O centro histórico de Belém estava em processo de
restauração e reurbanização. As obras caminhavam vagarosamente. Além de três
armazéns das docas, o mercado Ver-o-peso e o entorno foram reorganizados com
quiosques padronizados, água encanada e tratada, rede de esgotos e demais
necessidades para garantir a higiene e o conforto de todos, trabalhadores e
clientes. As enormes tigelas, cheias do vinho de açaí, ficavam expostas nos
balcões dos quiosques, a ser consumida com peixe, camarão, farinha ou açúcar. A
região do forte do Castelo apresentava construções restauradas e transformadas
em museus, centros culturais e de lazer, restaurantes, em meio a outras ainda
em péssimo estado e aguardando a vez para a recuperação.
O alívio em Belém é que as ruas situadas no centro
expandido são bastante sombreadas pelas imensas, famosas e centenárias
mangueiras. Fora o embelezamento das vias e calçadas, elas refrescam e tornam o
caminhar menos cansativo. O que não acontecia com a tórrida Manaus, devido ao
urbanismo estúpido, sem verde.
O barco para a travessia da baía oferecia várias
cadeiras em dois andares e partiu cedinho à Camará, na ilha do Marajó. Fiquei
em pousada disposta em chalés na beira da praia de Salvaterra. Outros sete
passageiros se juntaram, aí incluídos três nisseis paraenses. Relaxamos nas
sombras da praia, extensa e bonita, com água salobra. Na estação chuvosa, com
os rios avançando no oceano, ela torna-se mais doce e límpida. Na época da
seca, o mar se impõe e as águas ficam mais salgadas e turvas.
Visita à pequena e calma vila de Joanes, onde restavam
ainda ruínas sobre o barranco que desce para o mar aberto. Crianças de escola
municipal representavam cenas do folclore regional, como o bumba-meu-boi. À
noite, o vento batia nas folhas dos coqueiros e dava a impressão de chuva.
Com a pequena igreja e poucas casas, o distrito de
Salvaterra tinha à frente o canal que levava à vila de Soure, repleta de fábricas
e lojas de artesanato simples em couro e cerâmica marajoara. Fomos à
interessante fazenda de búfalos, com alagados e muita amplidão. A proprietária
dos sete mil hectares recebeu-nos com bolinhos e suco. Atuava, em parceria com
o IBAMA, na recuperação de animais feridos e também como educadora ambiental
com crianças da região. Além da casa principal e dos galpões de trabalho, a
fazenda possuía capela com objetos antigos e imagens religiosas. Encerramos o
dia ensolarado na praia marítima do Pesqueiro, extensa, plana e desolada pela
maré muito baixa.
continua...
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