sexta-feira, 25 de março de 2011

Vale do Jequitinhonha (parte 3/3)

...continuação
A cidade de Minas Novas foi construída sobre crista ascendente de uma colina. De baixo para cima, com o eixo principal a rua, ora larga, ora estreita, evoluía da parte mais antiga e tranquila à parte mais nova e movimentada. Ao longo desse eixo sinuoso se dispunham quatro igrejas seculares, misturadas às demais construções. Todas as igrejas se posicionavam de frente para a parte baixa, a entrada original da cidade. As ruas e becos transversais despencavam abaixo, rumo aos vales dos dois rios que cercavam a zona urbana.
Na parte mais antiga concentravam-se os casarões do século XVIII, a maioria em péssimo estado de conservação, abandonados, à espera de verbas para a restauração, verbas muitas vezes aprovadas, mas não liberadas. Revoltante assistir ao definhamento, ruínas e desabamentos parciais das construções, em especial aquela ao lado da pousada, cujos cômodos dos fundos já tinham virado escombros no quintal.
Entre as igrejas de São Gonçalo e São José, originalmente erguido para ser sede do governo mineiro, o sobrado do século XVIII de quatro andares, todo de madeira e pau-a-pique, abrigava a Casa da Cultura, escola de música, museu, secretaria de cultura, lojas de artesanato do vale do Jequitinhonha. O Sobradão, como era popularmente chamado, estava comprometido em inúmeros pontos, nos pisos de madeira apodrecendo, tetos despencando, paredes ruindo. Em todos os pavimentos se notava a inclinação do edifício. Verbas foram liberadas para restauração emergencial do edifício, mas nada do cheiro do dinheiro até então.

O museu da Casa da Cultura concentrava obras de artesanato típico do vale do Jequitinhonha, sobretudo esculturas, miniaturas, arte figurativa em barro e cerâmica, crua ou pintada, retratando cenas religiosas, do cotidiano rural das localidades de Caraí e Itinga. Além da arte figurativa, objetos antigos ocupavam outras bancadas e registravam os quase trezentos anos de Minas Novas.
Caminhei à parte alta da cidade, completamente sem atrativos, cujas características principais eram as oficinas mecânicas, lojas de autopeças, postos de gasolina. Entrei em restaurante com comida servida em bufê, mas, como passava do horário mineiro, a comida praticamente acabara. Raspei as panelas sem matar a fome.
Entrei no casarão ainda em pé do outro lado da pousada, herdado pelo solitário senhor aposentado. Subi as escadas, empurrei a pesada porta meio aberta. Dei boa-tarde três vezes e ninguém respondeu. Mesmo assim segui em frente e circulei pelos aposentos, tentando provocar o mínimo de ruído possível. Cruzei a sala de jantar, a cozinha, um dos três quartos, a sacada alta, tudo em madeira sobre piso irregular, frágil, rangendo sempre, com falhas, depressões. A mobília, as paredes, portas, janelas, no entanto, davam aulas de história. Poucos e pesados móveis se dispunham em grandes espaços. No quarto, apenas a cama de casal com armação de ferro, o armário, o baú de couro grosso. Na cozinha, o fogão à lenha, a bancada de pedra e o armário velho. A sacada dos fundos, estreita e florida, alta, muito alta, sustentada por hastes finas de madeira, piso também de madeira, remendado por folhas de alumínio, podia despencar lá embaixo, tamanha a fragilidade. Dei meia volta e desci as escadas, receoso de acordar o nobre morador. No térreo do casarão, onde se instalava agência de ecoturismo, o dono me contou histórias do vale do Jequitinhonha.
Os boruns, moradores originais da região, rebeldes e guerreiros, usavam botoque nos lábios inferiores. E, por não se submeteram aos invasores portugueses, foram sumariamente exterminados.
Explicou que a cidade de Araçuaí fora fundada no povoado de Itira, a partir do núcleo de casas de prostituição, que saciavam os canoeiros dos vales do Araçuaí e Jequitinhonha, então os únicos caminhos para o mar. Luciana Teixeira, uma famosa puta, reinava absoluta na zona de Itira. Mas o padre resolveu acabar com a festa e expulsar as meninas, obrigando-as a subir o Araçuaí e a se fixarem em outro ponto, ao redor do qual se ergueram novos puteiros, casas, construções, o futuro núcleo urbano de Araçuaí.

Ele ainda descreveu a invejável aventura de canoa em expedição fluvial desde o rio Araçuaí, a foz em Itira, o rio Jequitinhonha abaixo, até o mar em Belmonte, em companhia de fotógrafo, ajudantes, canoeiros locais. A travessia buscava resgatar a história e denunciar a crescente degradação socioambiental do vale. Perda de volume das águas dos rios, desmatamento das margens e cabeceiras, assoreamento, poluição, contaminação, monoculturas de eucalipto, o chamado deserto verde, catástrofes que agravaram a miséria e pobreza das populações ribeirinhas. Apresentou resultados e imagens da expedição em palestras, mas jamais publicou em livros ou na internet. Mereceria repercussão e divulgação maiores, à altura da importância da pesquisa realizada.
Caminhões e demais veículos pesados não deveriam cruzar Minas Novas, mesmo que apenas de passagem. A trepidação afetava as já frágeis edificações. Ainda mais no caso de patrimônio histórico e arquitetônico pedindo socorro pela falta de conservação. Pois bem. O anel viário já existia, inclusive com a ponte de concreto sobre o rio Fanado. As estradas, em cada lado dessa estrutura, também. Mas não construíram a ligação das estradas com ambas as pontas da ponte. A ponte ligava, até então, o hiato de um lado com o hiato do outro lado. Bastariam poucos metros de conexão nas duas extremidades da ponte e o anel viário se tornaria disponível. Havia mais de dois anos que a situação permanecia assim, humilhando os moradores de Minas Novas e região. E nenhuma providência à vista. Os mineiros suportavam o segundo mandato da aliança entre tucanos do PSDB e demos do DEM, tendo a frente o governador com cara de mocinho. O mesmo que perseguia os pobres e trabalhadores na base da violência física, enquanto fazia vista grossa aos desmandos dos ricaços e respectivos capangas que oprimiam e assassinavam trabalhadores rurais.
Tornava-se um prazeroso ritual minha subida do centro antigo à parte nova da cidade e vice-versa, passando pelas mesmas quatro igrejas, até chegar na Gruta, ao redor da qual havia a praça de encontros, o maior número de barracas de lanches, sorveterias, bares simples.
A chuva ameaçou pela manhã, mas não caiu nem uma gota. Enrolei no salão do café, junto a outros hóspedes, a fim de assistir à final do torneio de futebol interclubes. O jogo não empolgava, dava sono. Desisti definitivamente quando um jogador brasileiro, garoto propaganda do fundamentalismo evangélico, o tal que alega que casou virgem, comemorou o gol exibindo a camiseta de baixo com frases da indústria da religião. E ainda dedicou o feito ao casal preso no exterior e chefe da empresa comercial que se enriquecia à custa da ignorância dos fiéis.

Parti rumo à antiga cachoeira das Almas, agora barragem e ponto de encontro dos minasnovenses. Circulei antes de me instalar no bar tocado por casal de meia idade. Raros fregueses passavam por ali, conversavam, bebiam, petiscavam, logo iam embora. Pedi cachaça purinha. Ao comentar a sensação de tijolo no estômago, ele me prescreveu cachaça curtida nas folhas de boldo.
Enquanto me deliciava com doses generosas da cachaça artesanal, não envelhecida, a purinha, a branquinha, curtida nas folhas de boldo, amargo para mais da conta, rolaram conversas com os fregueses, entre eles uma senhora cujo pai mereceria história à parte. Ele fora artista nato, criativo, improvisador, batuqueiro nos reisados. Muitas pessoas não o compreendiam e o consideravam anormal. Mesmo nas cenas corriqueiras da vida cotidiana, ele soltava versos de própria autoria, simples e rimados. Certa vez, matou um boi e convidou a família e amigos para o banquete. Entregava cada parte do boi a alguém cujo nome rimava com o nome da referida carne. Ela puxou da memória e recitou parte desses versos do pai. Todos ali ouviram atentamente e se encantaram. E a senhora herdara os dotes artísticos do pai, criando artes em cerâmica e barro. Ainda informalmente, ainda timidamente, receando se manifestar publicamente, para não a associarem com a suposta insanidade do pai.
A roda proporcionou conversas sobre a diminuição do volume das águas dos rios, o assoreamento, os desmatamentos das cabeceiras e das matas ciliares, construções questionáveis de mais hidrelétricas, deslocamento forçado das populações tradicionais, descaminhos e rumos do vale do Jequitinhonha. Questionaram fundações e ONG’s estrangeiras atuando na região, as quais se recusavam a esclarecer os reais propósitos de atuação. Talvez as respostas estivessem na proliferação pela região das monoculturas de eucalipto, o famigerado deserto verde.
Depois de horas no papo solto e das pingas curtidas no boldo, a fome, finalmente, deu sinal de vida. E veio voraz. Imediatamente pedi meia galinha caipira com arroz. Demorou uma eternidade, mas valeu a pena esperar. E assim que as tigelas foram dispostas, não vi mais nada ao redor, mergulhando de cabeça naquela maravilha da culinária brasileira. Não parei até esvaziar as travessas. Nem a asa da galinha eu perdoei. A porção saciaria a fome de um batalhão. Me senti nas nuvens. Nem notei que o bêbado da mesa ao lado começou a roubar os ossos com fiapos que eu deixara no prato.
Mais tarde, vez ou outra, aparecia um energúmeno ali perto, abria o porta-malas do carro e vomitava, em volume desumano, o som do lixo descartável. As vinhetas repetitivas avisavam o que e de quem era aquilo que evacuava das caixas de som. Dezenas de vezes, a gravação do homem com voz grave, ou da criança com voz estridente, martelava bem alto no meio das “músicas”:
“DJ Vudu e DJ Kilessi! Aqui quem manda é nóis! Copiou Zé Ruela?”.
Entrei no quarto do hotel à noite, sedento, com a barriga inchada, mas em estado de graça pelos momentos ao lado de gente tão acolhedora. Depois do banho, e ainda estufado de tanto comer, com a sede insolúvel, subi a crista da cidade e fui à praça da Gruta, aonde todo mundo. Casais, amigos, famílias, mil paqueras, mas, claro, proibido para maiores de 18 anos. A maioria se concentrava atrás da Gruta, em bar e sorveteria sob o palanque de concreto. O DVD da banda Calipso retinha os olhares de alguns frequentadores das mesas, enquanto consumiam garrafas de dois litros de refrigerante. Ao redor, circulavam pessoas, outras se sentavam nos degraus da arquibancada da praça ou nas barracas de lanches. Minas Novas se encontrava na noite quente, sem preocupações com horário, segurança ou o consumismo alienante das grandes cidades.
Arrumei a mochila, me despedi de todos, fui aguardar o ônibus na pequena estação rodoviária de Minas Novas. O veículo partiu à tarde com meia lotação, mas completou nas cidades seguintes.
Nem bem saímos de Minas Novas e os cartazes de uma empresa privada cantavam louros à monocultura de eucalipto, cujas plantações se perdiam de vista no horizonte, em ambos os lados da rodovia. A cidade de Turmalina, a capital daquele criminoso agronegócio, moderna e sem graça, exibia dezenas de lojas de autopeças, oficinas mecânicas, material de construção, fornos de queimar eucalipto, imensos pátios armazenando tocos de árvore.
A estrada seguiu e mais monocultura de eucalipto em ambas as margens do asfalto. Deserto verde deprimente. Não era à toa que muitos olhos d’água e córregos secaram, rios assorearam, a fauna e a flora desapareceram. Tudo graças a empresas privadas, fundações, ONG’s, às demais empresas estranhas à região. E daí a enorme pressão pela construção de mais hidrelétricas nos arredores.
Após a feia, suja e apertada cidade de Capelinha, por onde o ônibus mal conseguia trafegar e fazer as conversões, a monocultura de eucalipto dividia espaço com cafezais nas encostas das colinas. À medida que a sinuosa estrada descia para sul, as áreas cultivadas diminuíam, o vale acidentado e profundo se acentuava, erguiam-se morros altos, o cerrado perdia espaço para a mata atlântica. A rodovia virava caminho de rato, o ônibus balançava para ambos os lados. Era praticamente impossível adormecer. Não havia mais de cem metros planos de reta, mas somente aclives e declives intensos, curvas fechadas, tudo compensado pelo visual cortado por riachos encachoeirados e ocupado por casinhas esparsas. De Capelinha a Itabira, cidadezinhas e vilas, como Água Boa, Santa Maria do Suaçuí, José Raydan, Guanhães.
Novamente a irritante, demorada e desnecessária parada em Belo Horizonte, como de praxe na monopolizadora empresa Gontijo.
O ônibus entrou na rodoviária do Tietê, em São Paulo, no fim de dezembro. Eu já sentia saudades do vale do Jequitinhonha, certo que voltaria à região para maiores explorações.

terça-feira, 22 de março de 2011

Vale do Jequitinhonha (parte 2/3)

...continuação
Retornei à cidade por outro caminho, mais longo e pitoresco, até a avenida de entrada da cidade. Periquitos faziam a festa próxima ao paredão rochoso. Aranhas caranguejeiras do tamanho de um pires surgiam de todos os lados. Cruzavam o caminho não dando bola para minha presença. Não cumprimentaram, não sorriram, nem sequer me olharam. Nas ruas da cidade eu vi muitas delas secas ou esmagadas.
Evitei o restaurante da outra noite que lotava com os integrantes da banda Mulheres Perdidas. Arrisquei lugar parecido, mas entupido por integrantes da banda Anjo Azul. Os presunçosos sujeitos grunhiam frases de nível mais baixo que cu de cobra. As mulheres carregavam bundas exageradamente enormes, com peles perfuradas por crateras. Curiosos e fãs invadiram o restaurante para vê-los de perto. Sem essas bandas ocasionais, a cidade não contava com nenhuma atividade cultural para a população.
Definitivamente Pedra Azul beirava à catástrofe em matéria de restaurantes e afins. Pecavam pela aparência desanimadora, em frangalhos, lembrando galpões velhos e provisórios, e também pela comida por quilo monotonamente igual.
Avistei a rampa de pedra ao norte da cidade. A inclinação gradual facilitou o esforço da tarde com aberturas de sol ardido. A vista da cidade, com a pedra da Conceição ao fundo, encantou. Segui pelo tabuleiro de pedra, extensos lajedos quase em nível, até o início do mato ralo e do fim de estradinha de terra que vinha da cidade, me deparando com cacos de vidro, restos de garrafas, lixo esparso, camisinhas usadas, pedaços de roupas íntimas. Enorme área livre, pública, gratuita, passível de diversas atividades diurnas e noturnas, bem ao lado da cidade. Bastava sair da calçada e desbravar a imensidão rochosa. A imaginação dos moradores ganhava asas com tanto espaço disponível. Mas bem que poderiam trazer o lixo de volta.

Acordei cedo para pegar três ônibus para me deslocar somente 130 quilômetros, de Pedra Azul a Araçuaí. Pelo trajeto do primeiro ônibus apreciei formações rochosas de diversos tamanhos e formatos. Desembarquei na BR-116 de tráfego pesado de caminhões e me alojei sob o ponto de ônibus coberto, no aguardo da segunda etapa, junto a outros passageiros. Dois rapazes a trabalho e a casada tagarela rumo ao ortodontista iriam a Teófilo Otoni. A outra senhora ficaria em Medina.
Embarquei em veículo gelado devido ao supérfluo ar condicionado. As janelas, criminosamente parafusadas. Duas mulheres sentadas na frente com crianças pequenas reclamaram em vão do clima polar. Mais montanhas de pedra na beira da rodovia, sobretudo no trecho entre a miserável e horrorosa Medina e Itaobim, não menos miserável e horrorosa. Não havia terminal rodoviário em Itaobim. Tive que desembarcar no ponto de apoio da empresa, na margem da BR-116, um buraco sujo e triste, com bar sujo e caro, banheiro sujo e pago. Ao precisar me aliviar, me refugiei no fundo do terreno e mandei ver sobre o monte de sujeira. Comprei meia dúzia de bananas do ambulante e detonei junto a pacote de bolachas guardado na mochila. Tanto no segundo ônibus, como naquele fim de mundo, e em diversos pontos do vale do Jequitinhonha, abundavam os pedintes, implorando por dinheiro para comprar comida, inteirar passagens de ônibus, adquirir remédios.
E o terceiro ônibus partiu, atravessando a extensa ponte sobre o Jequitinhonha. Subiram outros passageiros no caminho, desembarcando a maioria em Itinga. No meio da tarde estacionou na rodoviária de Araçuaí.
Arrisquei hotel simples nas imediações do terminal.
A maioria dos restaurantes e afins não abriu à noite. Enquanto caminhava fui chamado pelo garçom que manejava carnes na grelha sobre a calçada. Parei, senti cheiro e resolvi aceitar.
Entre as conversas soltas durante o fraco café da manhã do hotel, as notícias do tremor de terra em Itacarambi, onde eu estivera anteriormente, renderam comentários espantados entre os hóspedes.
Da estação rodoviária, na margem da rodovia, Araçuaí descia à margem direita do rio de mesmo nome. Ladeiras surgiam de todos os lados, calçadas de paralelepípedos ou de pé-de-moleque. Na beira do rio Araçuaí, apenas o barranco e barracos esparsos.

Na parte baixa que antecede a margem do rio, ficava o que restou do centro antigo e marco fundador da cidade, construções caindo literalmente aos pedaços, ruínas, escombros, áreas vazias, parecendo ter sido bombardeada recentemente. O antigo mercado, sobrados, outrora imponentes, quase destruídos, largados, para desabarem a qualquer momento. Boa parte dos escombros e entulhos compôs anos antes zonas de prostituição, bares, boates. Agora, viciados roubavam e matavam os desavisados que passavam por ali. O dono do vizinho posto de combustíveis e o proprietário de igreja comercial fundamentalista, mais conhecida como evangélica, adquiriram os terrenos e iniciaram a demolição. Visavam interesses imobiliários e especulativos na destruição da história da cidade, com a eventual construção de novos empreendimentos. Mas em pequeno largo no meio da confusão de ruínas, uma sala de cinema se preparava para inauguração, uma oficina cultural de estudantes exibia produtos artesanais.
Os principais centros de produção de artesanato e arte popular da região se situavam distantes, em pontos de difícil acesso. Ninguém na cidade parecia saber ou querer orientar coisa alguma.
Jantei em restaurante frequentado pela fina flor da sociedade de Araçuaí, localizado ao lado do bairro da elite local com direito a casas suntuosas. Uma barata voadora alvoroçou os frequentadores das mesas ao lado. Sustos, gritos, tentativas de exterminá-la, entre risadas dos corajosos e espanto dos medrosos. Mas ninguém sentiu nojo suficiente para interromper a comilança.
Peguei táxi-lotação ao entroncamento do povoado de Itira. Desembarquei no acesso e deixei o asfalto. Caminhei pela estradinha sinuosa de terra, até a entrada da vila, minúscula, calma, silenciosa, praticamente deserta.
Casinhas velhas e pobres se dispunham lado a lado ao redor de grande área livre, no centro da qual se erguia igreja construída pelos escravos no século XVIII. De aspecto pesado e traços retos, sem trabalhos rebuscados em madeira ou pedra, a construção impunha respeito pela idade e aspecto rústico. Pintada de branco, janelas e portas azuis, a igreja seria o centro da festa popular daí a três dias, durante a qual se apresentariam os batuqueiros de Itira e grupo teatral de fora. Passando a igreja, a rua de terra descia à margem do Jequitinhonha, que naquele local, ao pé do morro, recebia as águas do Araçuaí.
Ainda que velhas e pequenas, as casinhas de Itira reservavam charme especial, pelo menos do lado de fora. Conversei com uma senhora cuja filha exibia rosto e braços marcados por bexigas. Ambas sorriam um sorriso preguiçoso, como se de dentro delas brotasse apenas tristeza e desânimo. Em ruela próxima à entrada da vila, o dono me convidou a sentar na cadeira do cômodo da frente. Queria muito conversar e descrever fatos da vida vivida. Aposentado como vaqueiro, comprou a casa onde morava em paz merecida com a família. Participaria com o pandeiro do grupo de batuqueiros na festa do povoado. Mostrou-se pessoa leve e de bem com a vida, a despeito dos interiores precários da moradia.

Pela estradinha de terra retornei ao asfalto por onde passavam poucos carros. Os particulares não davam carona, os táxis, raros também, vinham lotados. Com os caminhões, por segurança minha e deles, eu nem tentava nada. Permaneci horas ali sob os restos de concreto do ponto de ônibus. E eis que surge de repente, não mais que de repente, o ônibus escolar levando crianças às escolas de Araçuaí. Praticamente estanquei na frente do ônibus. O motorista me resgatou daquele impasse. As crianças me olhavam com se vissem um bicho estranho, o que não era de todo mentira. O veículo buscou mais alunos no trajeto, deu baitas voltas em Araçuaí, desembarcando as crianças em escolas diferentes, até me deixar em frente à estação rodoviária.
Almocei comida mineira variada e autêntica, me esbaldando com arroz, tutu, leitão a pururuca, couve, mandioca, salada, coroada pelas sobremesas no ponto certo do açúcar. Pedi a descomunal jarra de suco de limão em função da sede infinita.
Desembarquei do ônibus em Itinga no meio da tarde. Cruzei a pé a ponte sobre o Jequitinhonha, rumo ao centrinho aconchegante, tomado de ruas e becos estreitos, calçamento pé-de-moleque, casas antigas, ainda que isoladas, a praça da matriz arborizada e providencial refúgio contra o sol. A sede não cessava e bebi líquidos e mais líquidos.
Retornei a Araçuaí ao anoitecer. Repeti o restaurante da noite anterior e voltei a comer bem em ambiente naturalmente arejado. A lua nova despontava à esquerda. Os filhos da elite de Araçuaí vinham de férias escolares à cidade, depois de meses em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo. Em Araçuaí os abismos sociais talvez justificassem o comportamento presunçoso de alguns, contrariando a hospitalidade da maioria dos mineiros.
Amanheceu céu azul, com sol de rachar mamona. A brisa do vale do Araçuaí me impelia a seguir em frente, aproveitar a ausência de chuvas e vencer os quilômetros de estrada de chão.
Deixaria saudades a saborosa comida mineira do almoço. Salada, abobrinha refogada, arroz, tutu, leitão a pururuca, mandioca frita, seguidas de sobremesas e do café, milagrosamente em Minas Gerais, sem açúcar. Servidos em jarras grandes, os sucos matavam a sede de qualquer cidadão. Sensação de estômago cheio, bem alimentado, feliz da vida.
O ônibus partiu no meio da tarde depois de boa prosa com um trabalhador rural de Chapada do Norte. Durante o percurso, o diretor de escola rural descreveu os perigos à noite pelas ruas de Araçuaí, principalmente na parte baixa e próxima ao rio. Em processo inexplicável de demolição, aquele pedaço abrigava por entre os escombros viciados dos mais variados tipos, elevando os índices de criminalidade. Claro, ao lado da miséria alarmante, mansões muradas e com cerca elétrica abrigavam a classe dominante local viciada em ostentar.

Depois de Virgem da Lapa o percurso em via estreita emocionou, com direito a tudo que uma estrada de terra legítima podia oferecer. Buracos, bicos de pedra, poeira na seca, lama nas chuvas, abismos de ambos os lados, aclives e declives acentuados, curvas fechadas, altas pontes de madeira que estalavam e trepidavam durante a passagem do ônibus, enquanto o rio corria mais de cem metros abaixo, travessias de riachos sem ponte ou destruídas pelas correntezas. O rio Araçuaí e os afluentes exibiam incríveis imagens, sobretudo nos trechos mais acidentados, de vales estreitos e profundos. O ônibus chacoalhou bastante, principalmente entre Berilo e Chapada do Norte, o trecho mais alto do trajeto. Cruzou estreita e frágil ponte de madeira sobre o rio Araçuaí, ali espremido pelas encostas. Berilo estava literalmente encravada no topo da montanha, entre becos e ruas, ladeiras íngremes calçadas de pedra, a praça da matriz, composta de patamares em desnível, em frente à igreja. A cidade de Francisco Badaró, próxima dali, era ainda mais acidentada. A estrada seguiu com muitas curvas e subidas até chegar em Chapada do Norte, dotada de construções vistosas. Ao anoitecer entramos em Minas Novas, cidade repleta de casarões antigos, ruas estreitas e, claro, ladeiras bem mineiras.
Fiquei em pousada ao lado de casario barroco disposto ao redor de pequeno largo, no centro do qual reinava absoluta a igrejinha de São José. A lâmpada do ventilador acima do quarto estava instalada entre as lâminas e o teto, de modo que, com ela acesa e ele ligado, o quarto iluminava-se na base do pisca-pisca.
Muitas construções históricas da cidade estavam abandonadas, condenadas a ruir, como o casarão ao lado da pousada. Como se não bastasse o descaso com a restauração dos prédios históricos, imagens e objetos valiosos das igrejas e museus haviam sido roubados e negociados com os estrangeiros do assim chamado primeiro mundo. Provavelmente muitas dessas peças fariam sucesso, inclusive entre brasileiros, em exposições caríssimas naqueles países. Minas Novas, a passos largos, era subtraída em tenebrosas transações.
A população do vale do Jequitinhonha se entristecia e lamentava profundamente o prolongamento da seca. Durante as manhãs, tardes e noites, olhavam o céu e reclamavam da falta de chuvas. E eu, no meio deles, passando os dias ao lado deles, não deixava de me comover também.
continua...

sexta-feira, 18 de março de 2011

Vale do Jequitinhonha (parte 1/3)

O vale do Jequitinhonha me atiçava havia tempos. E a oportunidade de explorá-lo apareceu no início de dezembro.
O ônibus da monopolista Gontijo partiu do terminal rodoviário do Tietê com menos de dez passageiros. Anoiteceu em meio às curvas perigosas da BR-262.
Após Itaobim, o ônibus saiu da BR-116, pegou estrada local margeada por campos, povoados paupérrimos aqui e ali, montanhas de pedra, pelo rio Jequitinhonha, ora largo e preguiçoso, ora estreito e com corredeiras. Acampamentos de trabalhadores rurais na beira da rodovia denunciavam a indecente concentração de terras do Brasil. Anos antes, ali perto, em Felisburgo, lavradores foram assassinados pelos senhores do latifúndio e do agronegócio. Ninguém havia sido preso.
Coloquei a mochila nas costas ao desembarcar na estação rodoviária de Almenara e caminhei à pousada.
Almenara não oferecia nada de especial em arquitetura ou urbanismo. A paisagem natural, composta pelo Jequitinhonha e pelas montanhas de pedra em ambos os lados do vale, é que se destacava. O rio conquistava pelo traçado sinuoso, as praias, os bancos de areia, de onde canoeiros retiravam material para construções. Avistei trilhas serpenteando as encostas, me convidando a explorá-las nos dias seguintes. O sol abrasador e o horário do almoço fecharam o comércio afastando os moradores das ruas.
Comi bastante o farto café da manhã, sozinho, à vontade. Os demais hóspedes, a trabalho, já haviam saído à luta. Além das delícias, tinha um montão de coisas que nem experimentei, como a improvável panela de salsicha mergulhada em molho avermelhado, uma verdadeira tara regional, conforme já constatara em outras viagens.

Atravessei a ponte sobre o Jequitinhonha, cruzei o bairro pobre da margem direita, peguei a forte subida de terra e logo me vi fora da zona urbana de Almenara. A rampa íngreme não arrefecia, o sol esquentava. Retomava o fôlego enquanto me virava para apreciar a visão do vale, da cidade, de mais montanhas ao norte. Ao me aproximar dos ninhos alongados e pendurados nos galhos das árvores, a ave mãe se agitava, se afastava um pouco, mantendo sempre a vigilância dos filhotes. No final da estrada, camisinhas usadas, copos e garrafas, apontavam lugar preferido dos casais. À medida que caminhava pela crista, eu pude ver a paisagem do outro lado da serra. Casebres isolados, estradinhas e caminhos de terra, mais colinas e morros. A vegetação oscilava entre o cerrado e, principalmente, a caatinga.
Atingi o topo duas horas depois. Antenas e torres se espalhavam em área cercada, protegida pelo vigia solitário e calado com quem tentei em vão conversar. Apreciei a vista ampla do vale, pequenas lagoas, mais serras ao norte, Almenara, pequenina, no fundo do vale. Dava para acompanhar o traçado das estradas a outras paragens, como Itaobim, Jacinto, Pedra Azul. No fundo do horizonte, o domo da Pedra Grande, vizinha ao povoado de mesmo nome.
Aproximava-se do meio-dia e o sol rachava o coco. Respirei fundo e comecei a descer.
Em Almenara entrei no primeiro restaurante decente que apareceu. Entornei diversas garrafas de água antes de me decidir pelo prato feito bem servido.
No final da tarde, com o sol já bem inclinado, me desembestei a subir o morro ao norte da cidade. Passei por ruas de terra cheias de erosão e buracos, ao longo das quais se erguiam barracos de aspecto desolador, abrigando gente pobre e miserável. Bem na ponta da rua mais alta, a favela terminava e permanecia apenas a estreita estrada de terra.
Fotos incríveis do rio Jequitinhonha, bem estreito, afunilado por paredões de rocha, corredeiras, minúsculas enseadas, águas azuladas, enfeitavam as paredes da recepção da pousada. Mas aquelas imagens faziam parte do passado. Não existiam mais. Anos antes, aquele paraíso tinha sido alagado pela construção da barragem do Salto da Divisa.
O centro comercial de Almenara se agitava com o movimento dos fregueses nas calçadas e lojas. Um artista popular, misto de vendedor de remédios milagrosos, acrobata e mágico, se instalou na calçada, atraindo curiosos com palavras e movimentos sedutores. Logo se formou grande roda para assisti-lo e, eventualmente, comprar os produtos oferecidos. O carro de som circulava pelas ruas convocando a população para a apresentação musical do grupo Anjo Azul. E o grande chamariz seria o vocalista do grupo, ex-integrante do inebriante Calcinha Preta.

Com sotaque estadunidense, dois jovens acompanhados de três brasileiros se hospedaram na pousada. Certamente não eram turistas. E notei durante o almoço duas jovens, uma delas aloirada e exageradamente produzida, vestindo roupas novíssimas e provocantes. Não paravam de falar entre si, aos telefones celulares, abusando dos trejeitos, se mostrando superiores a tudo e a todos. Certamente não faziam sexo por prazer.
O ônibus à tarde a Pedra Azul abarrotou de passageiros e carga ainda nas ruas centrais de Almenara. Os novos passageiros levavam tanta tralha, sobretudo comida comprada no mercado, que o corredor interno e os exíguos bagageiros inferiores entupiram rapidamente. Os derradeiros passageiros embarcaram sem a carga, largada na calçada, pedindo para alguém guardar, que mais tarde buscariam. Mas aquele era o ultimo ônibus do dia!
O percurso de terra correu entre trechos com poças d’água, outros enlameados, com muitos buracos em chão arenoso. Ao trafegar sobre valetas e irregularidades, os passageiros em pé se seguravam como podiam para não cair uns sobre os outros. A vegetação esverdeada da caatinga denunciava chuvas recentes. Enormes latifúndios improdutivos, mas muito bem cercados, não produziam nada além de minguadas cabeças de gado. As poucas casas, ou casebres, fora das grandes propriedades, exibiam miséria e abandono, mas tinham roças de subsistência. Montanhas de pedra escarpada se erguiam nas imediações de Pedra Grande, nos formatos mais variados. Enorme domo brotava do fundo do vale, íngreme, com paredes rochosas verticais, formando beleza esquisita e intrusa no cenário. O rio guardava traçado acidentado em meio a pedras, corredeiras, pequenas quedas d’água. Apareciam estreitas e alongadas quedas d’água, refletidas pela claridade, do topo dos paredões.
Povoado pequeno, espremido entre o vale e as imensidões de pedra, Pedra Grande guardava casario simples, pobre e antigo, típico vilarejo dos confins brasileiros. Mais da metade da lotação do ônibus desembarcou ali. A retirada das cargas dos reduzidos bagageiros demorou e exigiu muita paciência para descobrir o que era de quem. Um senhor ficou sem parte da bagagem, extraviada nas paradas anteriores ou sequer carregada em Almenara. De nada adiantou espernear. O motorista e o cobrador repetiram o que a empresa lhes ordenou a responder:
“o senhor faça uma reclamação à empresa e ela tentará resolver o problema”.
A partir de Pedra Grande, a estrada se afastou do vale, subindo serra gradual. Começou a chover até as imediações de Pedra Azul, cidade pequena, cheia de ladeiras de paralelepípedos, casas antigas e bem conservadas, em ruas e praças arborizadas, rodeada de impressionantes paredes rochosas.
Instalada em sobrado antigo, com piso de madeira e quartos amplos, a pousada fazia jus ao conjunto arquitetônico da cidade. Escolhi quarto com duas janelas grandes, de frente para rua e o casario.

Jantei em churrascaria velha, muita velha, mal cuidada, sem qualquer preocupação com a aparência, mais parecendo mercearia de antigamente caindo aos pedaços. Ambiente sombrio, com pé direito alto, telhas sem forro. As imagens transmitidas pelo televisor de tela plana fizeram a maioria cravar o olhar bovino nas besteiras que o proprietário escolhia. A simpatia discreta do atendimento, a qualidade da carne, o preço baixo, contudo, compensaram os senões.
Circulei pela cidade tranquila, por entre casarões dispostos em ruas arborizadas com canteiro central. Tudo bem conservado e extremamente charmoso. O vigia da pousada lamentou que as tais bandas de forró, para lá de comerciais e descartáveis, faziam sucesso na terra natal de artistas populares do naipe de Paulinho Pedra Azul e Saulo Laranjeira. Afirmou que a maioria dos moradores não reconhecia artisticamente os dois compositores, preferindo se render às garras do lixo vomitado pela indústria cultural.
Amanheceu com chuva fina no feriado da padroeira da cidade. Tomei sem pressa o café da manhã enquanto olhava a chuva caindo nas ruas de pedra. Depois do almoço o céu clareou, estiando de vez.
Dezenas de casarões do início do século XX, em bom estado de conservação, se dispunham principalmente ao longo da avenida principal e das transversais. As datas de construção apareciam estampadas acima da entrada principal. Pintadas de cores leves, repletas de janelas lado a lado, guardavam detalhes rebuscados na linha superior, próxima à calha, e nas arestas externas. O canteiro central da avenida calçada de pedras se alargava à medida que se afastava do centro da cidade, sempre arborizado e enfeitado para as festas com as inventivas figuras de garrafas pet, arredondadas e azuladas, ou no formato de estrela de cinco pontas e avermelhadas, internamente iluminadas. No trecho mais largo do canteiro se posicionava pequena igreja de Nossa Senhora da Conceição.
Conversei com a senhora mulata, magra e idosa, falante, lúcida, divertida. Não parou de meter o pau no prefeito. Rogou-lhe pragas e pediu a todos os santos para que não se reelegesse. Acusou o sujeito de olhar apenas a fachada do casario do centro e esquecer a população pobre que morava nos morros.

Andei bastante por vias calçadas de paralelepípedo ou pé-de-moleque, solução mais que genial, charmosa, ecológica. Tangenciei os imensos rochedos que circundam a cidade. Mesmo os trechos sem o casario antigo, mostravam classe e aconchego.
Ao anoitecer, buzinas e rojões anunciavam a passagem do ônibus preto da banda Mulheres Perdidas a caminho do local da apresentação noturna. Depois da procissão organizada em duas filas silenciosas, cruzando as principais ruas da cidade, a missa ocorreu na pequena igreja da avenida. A igreja matriz de Pedra Azul, grande e moderna, sofria reformas sem fim. No mais, noite quieta, com pouco movimento, naquele feriado.
Pela manhã me mandei à pedra da Conceição. Atingi a estradinha que margeia o pé do paredão até a escadaria de concreto. Os moradores garantiram setecentos degraus de subida. Lá em cima peguei trilhas fechadas, me obrigando a proteger o rosto com as mãos e avançar forçando o corpo pelos galhos e capim. A visão do lado oposto à cidade compensou o esforço. Mais formações rochosas gigantescas, de diferentes formatos, se estendiam ao horizonte. Não havia mais ninguém no topo. Pedra Azul dormia profundamente naquela manhã.
continua...