terça-feira, 30 de novembro de 2010

Peru - Trilha Inca e Cordilheira Blanca (parte 3/3)

...continuação
Poucos turistas pelas trilhas, a maioria em sentido contrário, o mais popular e citado nos guias turísticos. Chegada no meio da tarde em Huaripampa, a 3.600 metros de altitude. Desejava lavar as partes crônicas do corpo no riacho ao lado, enquanto ainda havia luz. Consegui passar água sob os braços e nas partes baixas. A sensação não poderia ser mais refrescante.
O jantar compôs-se de creme de cogumelos, lombo, salada de tomate, melão fatiado, vinho tinto. Antes do anoitecer foi servido junto com o tradicional chá, creme de queijo, com aji, batata e ovo cozido.
Por mais que tentasse e me concentrasse, não evitava a tradicional saída do saco de dormir, e da barraca, para urinar. Até que enrolava, meia hora, o máximo que podia, na vã esperança da vontade passar e o sono voltar. Não adiantava. A sensação de ardor aumentava e eu tinha que sair imediatamente.
Amanheceu nublado e pouco se via de céu azul. A umidade pairava no ar. Foi um dos melhores cafés da manhã da travessia. Além dos itens normais, foi servido iogurte, salada de frutas, cereais, tudo em quantidade livre e abundante.
A trilha cruzou trechos com pequenos vilarejos cobertos de sujeira, mas ocupados por moradores simpáticos. As crianças, vestidas a caráter, chamavam a atenção pelo colorido e charme no vilarejo de Vaqueria. Horas depois, a estrada e o furgão rumo à segunda parte da travessia. O caminho seguiu por estrada estreita e absurdamente sinuosa. Subimos bastante até novo passo, a 4.800 metros de altitude. O visual que se abria à frente impressionava pelo desnível, abismos, escarpas, picos nevados, lagoas ao fundo. Nem as nuvens, que cortavam os topos das montanhas mais altas, tirou o brilho daquele cenário bruto. Exageradamente estreita, a estrada provocava calafrios nas inúmeras curvas fechadas. Os olhos não despregavam e sentiam o impacto da paisagem. Mais abaixo, as águas de degelo escorriam das geleiras nas encostas das montanhas, se juntavam aos outros fios e engrossavam os riachos gelados, os mesmos onde sofríamos na higiene pessoal.

Caminhada em pequeno trecho até o ponto de acampamento, Cebollapampa, a 3.900 metros de altitude, na beira do riacho. As barracas foram montadas sobre piso irregular e coberto de bostas de vaca. Mais ao fundo elevava-se enorme pico nevado parcialmente coberto pelas nuvens. Desinfetei a tesoura embutida no canivete, furei a bolha do pé, pressionei o líquido para fora com pedaço de gaze, reforcei a desinfecção do dedo, fechei com gaze e esparadrapo.
Bastante chá com bolachas antes de apreciar as montanhas se livrarem das nuvens e se exporem abertamente, inclusive o topo da mais alta, Huascaran, bem atrás do morro amarelado e alaranjado pelo pôr-do-sol. O jantar veio de sopa de queijo, frango ensopado com arroz, batatas e legumes, pêssego em calda e, como não poderia faltar, vinho tinto.
O burburinho do riacho ajudou e fez da noite a melhor da travessia. Dormi bastante, acordei pouco, sonhei muito. Amanheceu dia claro e brilhante. O topo do Huascaran surgia nítido atrás de outras montanhas.
Subida íngreme e constante até o campo base do pico Pisco, a 4.650 metros de altitude, local do acampamento. Foram 700 metros de desnível, montanha acima. O visual da cordilheira ao redor era impressionante. Na segunda metade do percurso o Pisco se revelou à frente, completamente nevado. Cenário de prender a respiração. O cortante vento, com rajadas constantes, não permitia que a temperatura se elevasse, ao meio-dia, acima dos 5 graus.
Acampamento no final de extenso gramado, já próximo às subidas para as geleiras e vias de escaladas. As ininterruptas rajadas de vento romperam a cobertura da barraca-refeitório. Usamos e abusamos de esparadrapos para remendar e garantir aquele espaço tão valioso. O almoço quente caiu como luva, na base de macarrão e chá.
À tarde, subimos a colina e entramos no refúgio do parque nacional. Poucos turistas europeus e estadunidenses mergulhavam os rostos sisudos nos livros. E não liam grandes livros, apenas lixos descartáveis. Ninguém olhava para ninguém, ninguém se dirigia a ninguém. O silêncio cobria tudo. O coitado do funcionário caía de tristeza por não ter com quem conversar. Mas logo se juntou a nós e se divertiu por boas horas. Folheamos revistas, jogamos baralho, nos protegemos do frio, conversamos, rimos bastante. Só retornamos às barracas geladas ao anoitecer.

Jantamos sopa de queijo, frango, arroz, batatas, legumes, creme de uva, vinho tinto. O céu se abrira cheio de estrelas e, ao redor, as montanhas se exibiam sem obstáculos.
A altitude, o frio inferior a 10 graus negativos, o silêncio cortado de vez em quando pelos gritos estridentes das mulas e burros, prejudicaram o sono. Os animais pastavam nas proximidades e repentinamente saíam em disparada a poucos metros das barracas. Antes do amanhecer e sob a temperatura negativa, saí para ir ao banheiro e me deparei com visual estupendo. Finas camadas de neve e gelo cobriam o chão e as barracas. Os picos nevados da cordilheira se exibiam ao redor, nítidos, sem nuvens. Não queria voltar para a barraca. O frio terrível não impedia o imenso prazer daquele momento.
Fazia sol tímido e decidimos comer o café da manhã ao ar livre. Comemos bastante, tudo o que tinha direito, até nos sentirmos lotados. Subimos o morro em frente. A visão do topo, a 4.850 metros de altitude, era simplesmente espetacular, de quase 360 graus de montanhas nevadas, das geleiras abaixo, do gramado do acampamento, das barracas minúsculas. Permaneci ali sozinho, livre para pensar, apreciar. Ruídos de avalanches e rompimentos de gelo vinham lá de baixo das geleiras. Escaladores desciam do cume do Pisco, provavelmente depois de tentativa bem sucedida. Permaneci no topo da morena por bom tempo e alternava o olhar entre os lados opostos.
De volta à barraca, estendi o saco de dormir, as botas, meias ao sol para retirar, ainda que parcialmente, o mau cheiro. As unhas das mãos e arredores revelavam aspecto desagradável, com manchas sujas, enegrecidas, fedidas. A flatulência também acompanhava na altitude. As explosões e liberações de gás se tornavam frequentes. Os odores não eram perfumados. Mas o decorrer do tempo deixava à vontade e logo ninguém se importava mais.

Descansei, li, conversei com o cozinheiro da equipe, curioso e observador. Queria saber a altitude do Brasil. Tinha plano de aposentadoria apenas havia três anos. Garantiu que o campo base do Pisco era muito diferente antes do terremoto de 1970, contando com lagoas e outra disposição física. Condenou a hipocrisia estadunidense no suposto combate às drogas e tinha certeza que os imperialistas pretendiam, na verdade, ocupar e dominar a América do Sul.
Saboreamos o último jantar da trilha sob a temperatura de 2 graus negativos.
Amanheceu céu azul, sol, com paisagem nítida e desimpedida de nuvens. As montanhas, todas elas, se revelavam brilhantes e imponentes. Desse jeito, ninguém queria voltar e encerrar a travessia. Tomamos o último café da manhã sob o sol, arrumamos as coisas e iniciamos a descida.
Chegamos à estradinha e pegamos a perua a Huaraz. Ainda paramos em lagoa para apreciar as águas verde-azuladas. As montanhas nevadas se sucediam na paisagem. Próximas a vilarejos, plantações na entressafra, situadas nos altos da cordilheira negra ou no fundo dos vales úmidos. Crianças saíam das escolas vestindo sóbrios uniformes azuis. As estradas e cidadezinhas ferviam de gente. As montanhas nevadas a leste, sempre presente, não queriam nos abandonar. O rádio da perua tocava músicas caribenhas e andinas.
Já no quarto do hotel de Huaraz, cansados, imundos e felizes, esparramamos as coisas pelo chão. Tentamos localizar roupas ainda limpas, antes de tirar a barba e tomar banho merecido e demorado, o primeiro após sete dias de sujeira. O ralo entupiu e transbordou. Logo a água preta subiu acima do meu tornozelo. O porteiro veio com arame fino e pontudo. Cutucou o ralo de várias posições durante bastante tempo. Mas a água mantinha-se no mesmo lugar.
Demos boas voltas pela acolhedora Huaraz. Reunimos a turma toda para o jantar. Conversamos, rimos, contamos e ouvimos boas histórias, apesar do forte cansaço que nos abatia. Deveríamos acordar cedo no dia seguinte.
O café da manhã foi bem servido pela moça da recepção. Na despedida, ela agradeceu a oportunidade de ter conhecido grupo tão alegre, comunicativo e amigável. A maioria dos povos adora os brasileiros, pois não colocamos barreiras na comunicação. Deixamos todos à vontade, conversamos espontaneamente. E o futebol nunca foi o mote para as abordagens e descontrações.
O Peru se preparava para as festividades da independência. Bandeiras hasteadas em diversos pontos das cidades, broches afixados nas roupas, estudantes em ensaios para os desfiles, coreografias, enfeitavam o país.
Partida com destino a Lima, Andes abaixo, entre montanhas nevadas, lhamas, campos floridos. Almoço novamente em Barrancas, na margem da rodovia panamericana. A areia do deserto se encontrava com a da praia de mar bravio. Milhos coloridos e temperos estendidos para secar contrastavam com o ocre pedregoso e monocromático das encostas.
Dos primeiros subúrbios de Lima até Miraflores tráfego intenso e caótico. A periferia da capital assustava pela feiúra, casas e barracos semiconstruídos ou semidestruídos, favelas, lixo, sujeira, abandono. O bairro das elites de Miraflores parecia oásis em meio ao caos e miséria do restante da cidade. Arborizado, urbanizado, dezenas de lojas caras, restaurantes, bares, edifícios suntuosos, desfile de gente bem nutrida, o bairro nobre localizava-se ao lado do mar. Inúmeros restaurantes se espalhavam pelas ruas, sobretudo em calçadão tomado em ambos os lados por estabelecimentos oferecendo cardápios de diferentes culinárias. Os garçons saíam dos restaurantes e praticamente atacavam, insistindo para entrar. Jantar em restaurante no meio da praça, vazio e tranquilo. O cardápio oferecia delícias tais como ceviches, tamales, aji de galinha, mariscos, acompanhadas de doses generosas de pisco peruano.

Noite muito bem dormida em cama larga do hotel acima dos padrões costumeiros.
No percurso ao aeroporto, praias sem atrativos. O voo brindou com a vista privilegiada da cordilheira dos Andes.
Em La Paz imediatamente nos dirigimos para o pico Chacaltaya, a 5.500 metros de altitude. A perua nos levou até os 5.300 metros, de onde partimos a pé rumo ao cume. Apesar de aclimatados depois da cordilheira Blanca, faltava ar, o coração bombeava com mais intensidade. Interrompíamos a caminhada a todo instante para recuperar o fôlego. A sensação era de andarmos em material gelatinoso. Chacaltaya se resumia a pista de esqui abandonada. Em campo de visão de 360 graus, avistávamos a cordilheira Real, com o pico Huayna Potosi muito perto e o Illimani mais à frente, as cidades de La Paz e El Alto mais ao fundo.
De volta à capital, jantar em local simples que servia a picante e saborosa comida boliviana. Detonei diversas salteñas antes do prato principal.
De madrugada ao aeroporto na cidade de El Alto, cruzando as ruas escuras e ainda vazias de La Paz.
Aterrissagem em São Paulo com sol, céu azul e calor. Entre as conversas na chegada, se comentou que o grupo de escaladores que cruzou trilha do campo base do Alpamayo, bem ao nosso lado, sofreu acidente durante a ascensão. Morreram oito pessoas.
Carona ao metrô. Logo chegava em casa no final de julho, feliz por mais uma viagem por paisagens e povos encantadores.

domingo, 28 de novembro de 2010

Peru - Trilha Inca e Cordilheira Blanca (parte 2/3)

...continuação
A caldeira do hotel de Águas Calientes estava desligada e a água quente terminou em minutos. Só mais tarde consegui tomar banho e remover os cascões, sebos, sujeira grossa e fina. E parte das lembranças dos quatro dias na Trilha Inca. Fomos aos banhos termais, ao ar livre, em piscinas rústicas, a maior contando com gostosa água quente. Não era permitido nadar ou mergulhar nas águas quentes e sulfurosas, apenas boiar e relaxar. A temperatura beirava os 35 graus, amortecendo os músculos, causando sonolência, preguiça. Valia a pena, apesar de apinhada de turistas.
Jantar em restaurante agradável e bonito, mas caro e onde a comida era apenas pequena decoração. Minúsculos pedaços de bife, legumes e salada verde mal cobriam o fundo do prato. O sabor agradava o que fazia a fome ir às alturas. Bastante pisco, muitas risadas de tudo e de todos. Voltei ao hotel e desabei na cama. Sono mais que merecido.
Novamente o ônibus subindo a Machu Pichu para visitação completa, como o lugar exigia. Nuvens espessas e úmidas forneciam clima misterioso às ruínas. Machu Pichu continuava bela e fascinante. Acordamos bem cedo para evitar, pelo menos no início da manhã, as hordas de turistas. Circulavam rumores de fechamento de Machu Pichu para o turismo. Construções danificadas, paredes e muros deslocados apareciam como causas principais. Nesses momentos, as tais organizações internacionais, as ONG´s, sumiam do mapa ou se submetiam às pressões do turismo predatório.

Arguto e crítico professor de história, o guia local explanou com toda a calma e paciência sobre o mau uso que os invasores europeus faziam da história do “descobrimento” de Machu Pichu. Esclareceu os equívocos preconceituosos e arrogantes dos espanhóis e da maioria do ocidente frente à cidade e sabedoria dos Incas. Sempre afirmava com orgulho que pisava a terra dos avós. E que os demais guias fizessem o mesmo para os turistas provenientes de países invasores.
De volta a Águas Calientes, almoço em restaurante ao lado da ferrovia, sobre antiga plataforma de carga e passageiros. Comida farta e saborosa em local inusitado.
Embarque no trem rumo a Cuzco, onde haveria jantar de despedida com os receptivos da cidade. O grupo caía de sono e cansaço. Forramos o bucho, nos despedimos da maneira mais educada possível e voltamos ao quarto do hotel. Ainda teríamos que arrumar as bagagens, acordar cedo no dia seguinte, tomar rapidamente o café da manhã e pegar o voo para Lima. Não via a hora de poder parar, relaxar, dormir, coçar o saco, descansar, não fazer nada.
O companheiro de quarto passou mal durante noite curta. Vomitou, cagou tudo e mais um pouco. A expressão do rosto dele não poderia ser mais desanimadora. Acordei zonzo e sonolento. Comi pouco no café da manhã antes de correr para o aeroporto.
Em voo rápido para Lima, visão de mais picos nevados dos Andes. O colega enfermo nada viu e permaneceu apagado durante o percurso. O furgão do receptivo esperava. O adoentado cambaleava de fraqueza e mal carregava as mochilas. Ao atravessar o estacionamento do aeroporto, parou de repente e fez sinal de quem esquecera algo para trás. Largou a bagagem no chão e saiu correndo. O intestino dele dera o sinal de emergência. Por duas vezes foi ao banheiro dali antes de seguirmos. E o restante do grupo debochava e ria muito. Compramos remédios em Lima e lá fomos nós Andes acima.
A rodovia começava no litoral peruano, extremidade norte do deserto do Atacama, entre morros de areia e deserto puro. Poucos e pobres vilarejos se alinhavam nas margens da estrada. Parada para almoçar na feia e cinzenta cidade de Barrancas, perto do mar.
A estrada se afastou do litoral e iniciou a lenta e constante subida da cordilheira. O visual permanecia de areia, rocha, pequenos vilarejos miseráveis da cor do deserto, cortados por impressionantes vales férteis com milho dourado e temperos coloridos estendidos sob o sol. Ouvíamos música popular peruana no toca-fitas do furgão. O colega doente permanecia apagado e deitado no banco traseiro, com expressão desoladora. Nada comia e tudo expelia nos banheiros. Sonolento, raramente acordava, se deitava de barriga para cima, abraçado à garrafa plástica com o líquido vermelho comprado na farmácia em Lima. Parecia desmaiado, mas não largava a garrafa plástica. A cena dele deitado e agarrado ao líquido vermelho não deixava de ser engraçada. Não dava para evitar os risos e as gargalhadas, ainda mais pelo motorista chamado Leiba. Somente a coincidência poderia explicar a tragicomédia de termos um colega com diarreia junto ao motorista com nome de laxante.

A estrada não parava de subir. Perfilava escarpas rochosas, cruzava pontes sobre abismos sem fim. A temperatura despencava e precisamos fechar as janelas do furgão. Cruzamos o passo a 4.100 metros de altitude, ao lado de uma lagoa. Surgiram os primeiros picos nevados do Calejon de Huyalas, da cordilheira Blanca. As rochas de coloração avermelhada, as nuvens, a lua quase cheia, desenhavam cenário impressionante no fundo do horizonte. Descemos para apreciar a paisagem da lagoa, mas o vento cortante nos levou de volta ao furgão.
Parada para tomar chá de coca em bar no vilarejo de Catac. O ambiente era para lá de simples. As mulheres que nos atendiam se assanharam. A mais jovem delas, com fortes traços indígenas, perguntou o estado civil ao guia. Entristeceu-se quando ouviu “casado”, repetindo que o achara muito bonito. O enfermo nada percebia e se mantinha fora do ar. Apenas entrava nos banheiros ou se deitava no banco do furgão agarrado à garrafa de plástico com líquido vermelho.
À tarde em Huaraz, a 3.100 metros de altitude, hospedagem em pousada familiar, simples e simpática. A visão parcial das montanhas nevadas, com a luz refletida pelo luar, aumentava as expectativas. Cansados, sonolentos e sem vontade de fazer nada, jantamos rapidamente, voltamos à pousada a fim de dormir cedo e acordar tarde. Precisávamos e merecíamos.
Maravilhoso dormir bem e bastante! Quatro cobertores e o silêncio necessário garantiram sono profundo e reconfortante. Acordei bem tarde, tomei banho demorado e desci para o café da manhã servido em mesa redonda no quintal da casa. Apreciei o céu azul, o sol, os picos nevados da parte norte da cidade, aumentando ainda mais o apetite e a disposição. Entre pães frescos, sucos de laranja da própria fruta e demais quitutes, enchemos o bucho, conversamos, nos descontraímos. Sentíamos que a energia voltava junto à alegria e à disposição.
Circulada de leve e sem pretensões pela cidade. De tamanho médio, Huaraz passara por vários terremotos. Estava meio destruída, meio em reforma, meio em reconstrução. Lajes, cabos de aço, tijolos, cimento à vista, pedreiros para lá e para cá. Por outro lado, envolvia pela simpatia do povo, naturalmente acolhedor, sem o assédio comercial de Cuzco. Havia turistas na cidade, mas em número reduzido, e de outro tipo, mais voltados às escaladas e longas caminhadas. Paravam pouco na cidade, indo diretamente às montanhas. As agências de turismo e as lojas de equipamentos especializados, para compras ou aluguel, eram simples, pequenas, informais, assim como o atendimento.
De praticamente todos os pontos da cidade era possível contemplar as montanhas nevadas que se erguiam ao norte, sobretudo os dois cumes do Huascaran, os mais altos do Peru e que dão nome ao parque nacional.

Novamente noite bem dormida. Levantamos tarde para tomar o saboroso e abundante café da manhã. Visando a aclimatação, caminhada à lagoa Shurup, situada a 4.500 metros de altitude. Em toda a trilha eu parava e contemplava as montanhas nevadas que se elevavam de todos os lados, inclusive o dramático paredão do pico Shurup, mil metros acima das águas esverdeadas da lagoa. Lanche e relaxamento em meio à bela paisagem. O sol se inclinara, aumentava a sombra e o frio.
Um europeu lavava roupas no quintal durante o café da manhã. Pegou uma faca da mesa de refeições para abrir o saco do sabão em pó. Usou, limpou com o guardanapo, a largou sobre a mesa novamente. Não pediu, não se desculpou, não agradeceu, nem sequer olhou na cara.
Acompanhamos de perto os últimos preparativos do grupo de apoio com os itens de alimentação e equipamentos coletivos para a travessia. Quatro galinhas vivas e gordas foram acondicionadas em caixas de madeira. Seriam mortas e cozidas na trilha. Botijões extras de gás também constavam da carga.
A estrada cruzou vários vilarejos, sempre com o vale e a cordilheira Negra, sem neve, à esquerda, e a cordilheira Blanca, nevada, à direita. Os dois cumes, norte e sul, do Huascaran, de tão próximos, pareciam tocar nossas mãos. Plantações de milho, frutas, trigo se estendiam pelo vale. Passamos pela vila de Yungai, reconstruída mais abaixo depois da original ter sido completamente soterrada por parte do pico Huascaran durante o terremoto de 1970. Morreram cerca de 20 mil pessoas e a maioria dos corpos ainda estava lá, debaixo da enorme quantidade de material deslizado. Na montanha faltava uma fatia no formato de pedaço de bolo. Paramos na aconchegante cidade de Caraz e sentamos na praça para acompanhar o movimento dos moradores. Depois seguimos por estrada de terra, estreita e sinuosa, serra acima, com abismos muito próximos, até o ponto inicial da travessia de sete dias pela cordilheira Blanca. As casas contavam com banheiros externos, todos azuis, todos iguais, todos com fossa.
Iniciamos a caminhada no meio do dia. Passamos pelo posto de controle do parque nacional. Avançamos por garganta estreita e profunda. Subimos pela margem do rio encachoeirado, cujo envolvente ruído nos acompanhava todo o tempo. Riachos e pequenas quedas d’água surgiam dos paredões à esquerda e à direita. No final da tarde, o gramado extenso de Llama Coral, a 3.800 metros de altitude, o primeiro ponto de acampamento. Acima do vale, as primeiras montanhas nevadas.
Dividíamos barracas mais amplas e confortáveis que na Trilha Inca. Um brasileiro recém-incorporado ao grupo e a gaúcha se enganchavam desde Huaraz e se ajeitaram na mesma barraca. Jantamos sopa de verdura e legumes, truta com batata e arroz, salada de frutas, vinho tinto e muito chá, sempre servido antes e depois das refeições.
Acordei mais cedo que o grupo, ainda antes do sol bater na barraca. Uma aura brilhante formava-se atrás das montanhas, vale acima, configurando efeito luminoso impressionante.
A trilha seguia entre escarpas rochosas elevadas de ambos os lados, impedindo a visão das principais montanhas. Raras pontas brancas surgiam acima dos paredões acinzentados. As quedas d’água do degelo se sucediam. Banheiros de alvenaria em formato circular apareciam próximo às trilhas. Dezenas de aves e pássaros acompanhavam, com destaque para os patos brancos e marrons. Surgiu lagoa grande, calma, de águas esverdeadas, em cuja margem paramos para comer, descansar, contemplar. Mais acima o vale ameaçava se abrir e descortinar a cadeia de montanhas.

Após a lagoa, mais um longo trecho plano, alagadiço. Depois, pequeno bosque em declive e as montanhas se revelavam de ambos os lados. Leve almoço no gramado, na base de salada de frango com legumes, abacate e pão. Encerrou com laranja e bastante chocolate.
A trilha vicinal rumo ao campo base do pico Alpamayo seguia por subida muito íngreme, mas para lá de compensadora. Do outro lado do vale, às minhas costas, se elevava imponente montanha toda branca pelo gelo e neve. Era o tipo de imagem que valia por toda a viagem. Parada pouco antes do campo base a fim de apreciar a face sul da montanha. Sentamos, relaxamos, observamos grupo de escaladores a caminho do cume. O guia, que escalara a maioria das montanhas, diversas vezes, afirmava que o Alpamayo era a montanha mais procurada pelos escaladores pelas dificuldades técnicas. O Huascaran ganhava disparado em acidentes devido a constantes avalanches.
Outra trilha atingiu o local de acampar. Taulipampa, a 4.150 metros de altitude, era deslumbrante. Enorme montanha nevada se erguia bem na cara. Ainda não anoitecera. Tomei coragem e lavei os pés, braços, rosto, nuca, orelhas, nas águas geladas do rio. Entramos na barraca-refeitório para fugir do frio intenso do lado de fora. Para esquentar, chá e queijo. Jantei sopa de cebola, carne com brócolis, couve flor e batata. Mamão com limão e açúcar estrelou na sobremesa.
Gelou durante a noite e madrugada. A temperatura atingiu 7 graus negativos. Embora resistisse o máximo possível, levantei e saí da barraca para urinar. O corpo e os membros pareciam congelar de tanto frio. Mas o visual das montanhas ao redor, prateadas e refletindo o luar, fazia esquecer qualquer desconforto.
Iniciamos cedo para encarar a trilha longa e bem íngreme até o passo. O vento raramente dava tréguas e o frio castigava sem dó. Mesmo sob o sol, a temperatura jamais superava os 8 graus, sem falar na sensação térmica pelas rajadas geladas. A subida firme não deixava por menos e exigia bastante dos pulmões e pernas. As providenciais paradas para apreciar a paisagem restauravam as energias. Assim que ganhávamos altitude, mais montanhas apareciam, cada vez mais próximas. Outra lagoa de águas esverdeadas se exibia no pé da geleira.
Atingimos o passo da crista montanhosa, Punta Union, a 4.750 metros de altitude. A visão de ambos os lados hipnotizava pela beleza. Optamos pelo lanche naquele ponto privilegiado. De todos os lados os olhos se encantavam com o que viam. Montanhas nevadas, escarpas rochosas de cor negra, geleiras, picos cônicos, lagoas, vales profundos, blocos de rocha cinzenta. Mesmo depois de encher a pança e recuperar as forças, não queria deixar aquele paraíso. Nem me importava com os ventos gelados provenientes de ambos os lados. Os casacos protegiam. Qualquer cansaço, frio, desconforto ou falta de banhos ia para o espaço diante daquela pintura.
A passagem exata pela crista da montanha se constituía de corredor estreito entre paredes verticais de rocha pura. Era como se deixasse um mundo e entrasse em outro, completamente diferente. Não dava para não se emocionar. A longa descida do outro lado deu direito a paradas para relaxar e apreciar tudo ao redor. Só queria me voltar e contemplar o paredão de rocha negra, coberto parcialmente de neve. Era qualquer coisa de especial. Mais abaixo, o verde voltava com toda a força, flores amarelas, brancas e amarelas, sobretudo as de miolo amarelo e pétalas azuis, diâmetro de menos de um centímetro, brilhantes nos gramados inclinados. A vegetação crescia no porte, surgiam pequenos bosques de árvores com troncos dourados, rios com corredeiras. À frente e à direita erguia-se nova cadeia de montanhas.
continua...

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Peru - Trilha Inca e Cordilheira Blanca (parte 1/3)

Fiquei livre no início de julho para viajar pelos Andes peruanos. 
O voo contava com conexões na Bolívia. Inúmeros mineiros e rondonienses desembarcaram na primeira conexão, em Santa Cruz De La Sierra, a fim de seguirem em outro voo ao México. Não pareciam turistas, embora jurassem o contrário. Deixei as dúvidas de lado quando um deles afirmou ser de Governador Valadares. Seriam transportados para o México e depois largados à própria sorte para seguir o resto da empreitada por terra. Cruzariam ilegalmente a fronteira dos Estados Unidos onde seriam escravizados como mão de obra barata. O desespero não os deixava enxergar em que pântano iriam se atolar.
Aterrissagem à noite no frio seco de La Paz. Sopa e cama.
O cansaço pelos dois voos, a altitude da cidade, a expectativa, impediram que a curta noite fosse bem aproveitada. Antes de clarear, o café da manhã reforçado. E direto ao aeroporto de La Paz a fim de cumprir a última etapa aérea. O voo valorizou-se pelas imagens das águas azuladas do lago Titicaca e pela cordilheira dos Andes.
Em Cuzco, voltas de reconhecimento pelas ruas cheias de gente. À tarde visita à catedral, às ruínas incas no centro e nas colinas próximas. Cuzco impressionava pela arquitetura barroca, especialmente na parte antiga da cidade, com becos e ladeiras em curva, exalando charme e história. Fazia dia claro e brilhante, proporcionando entardecer de diversas cores. A temperatura diurna, sob o efeito do sol, agradava e não exigia roupas grossas.
Durante o divertido jantar, muito pisco peruano, risadas, boa e farta comida.

Dia longo avistando picos nevados durante o acesso pelas estradas sinuosas. Em todas as paradas aglomeravam-se vendedores de bugigangas, crianças, mas nada ostensivo ou chocante. O melhor do dia, disparado, foi o vilarejo de Chincheros, antigo e construído sobre base inca. A vida pulsava no mercado onde se vendiam e se trocavam alimentos entre os agricultores. Interessante o processo de desidratação de batatas, que permaneciam enterradas por anos antes de serem consumidas. Ollantaytambo e Pisac incluíam ruínas incas posicionadas em encostas íngremes, dispostas em terraços nivelados. Os contatos perfeitos entre os blocos rochosos forneciam ideia do que foi a avançada engenharia inca. Mesmo nas dobras, quinas e curvas, admirávamos as técnicas refinadas. O guia local comparava, muito apropriadamente, as construções perfeitas dos Incas com as correspondentes mal construídas pelos invasores espanhóis. Ironizava que as primeiras foram construídas pelos Incas e as segundas pelos Incapazes.
Cruzamos o rio Urubamba, um dos braços formadores dos rios Solimões e Amazonas.
À noite reunião para traçar os planos logísticos da trilha e desfazer as últimas dúvidas. Durante a madrugada, senti o quarto tremer. Não durou mais que cinco segundos. A cama balançou, os móveis rangeram, mas nada caiu ou quebrou. Demorei a relaxar e a dormir novamente. Era fato tão normal que ninguém havia notado. Apenas uma funcionária do hotel lembrou-se do ocorrido pela manhã, mas indiferente e somente depois de eu insistir muito.
Partida ao primeiro dos quatros dias da famosa Trilha Inca, após lanche reforçado sobre o rio Urubamba.
O começo do caminho compunha-se de poucas subidas e descidas entre longos trechos planos. Predominavam vales estreitos e profundos, rios encachoeirados, raros picos nevados ao longe. O mais atraente era o Verônica, cônico, coberto de neve. No fundo do vale, uma grande vila Inca em ruínas. Turistas distribuídos em grupos pequenos e médios se espalhavam pela trilha. Escurecia ao atingir o primeiro ponto de acampamento, a 2.850 metros de altitude, na beira do rio com corredeiras, em meio à calma e ao silêncio, isolados dos demais grupos. Alguns jogavam baralho, outros se deitavam sobre o isolante para apreciar o céu estrelado e a lua quarto crescente. A temperatura oscilava ao redor de 13 graus. Com a malha, tornava o ambiente bastante confortável.
Não havia esquema de barracas-banheiro e nem a utilização de pás para as necessidades fisiológicas. Sugeri o método adotado por muitos trilheiros no Brasil, segundo o qual tudo era enterrado, mantendo a natureza mais intacta possível. Enquanto isso, as pequenas trilhas laterais entupiam-se de merda e transformavam a região em campos minados. A Trilha Inca não merecia ser tão maltratada.
Na barraca-refeitório, ampla e alta, dotada de mesa e demais utensílios necessários, a equipe nos serviu pipoca e chá como aperitivos. Durante o jantar saboroso e servido em várias etapas, a colega de meia idade apelou, ameaçou chorar, alegando estar a perigo e a fim do guia, do cozinheiro, de qualquer homem. Falava com voz embargada e deixava o ambiente pesado, amargo, triste. Todos se levantaram e se dirigiram às barracas.

Dormi bem e bastante dentro do saco de dormir para me proteger da noite fria. Levantei apenas uma vez para esvaziar a bexiga.
Foi o dia de maior altitude, o mais longo e cansativo de todo o percurso, mas muito excitante. A trilha consistiu, na maior parte, em longa subida, através de degraus de pedra, com picos nevados às costas, bosques sombreados, suaves quedas d’água, altas escarpas rochosas. Bandeirolas avermelhadas nas poucas casas na beira da trilha indicavam venda do fermentado alcoólico popular na região. No início da subida cruzamos com casal europeu e mais oito carregadores que caminhavam em sentido contrário. O casal não suportara o esforço físico ou sofrera mal estar da altitude. O semblante pesado e as expressões de mau humor denunciavam o clima de fim de festa.
Parada para almoçar ainda na subida, perto dos 3.800 metros de altitude. O apetite não poderia ser maior diante do visual deslumbrante do vale ascendente. Os picos nevados se elevavam na encosta do outro lado. O almoço incluía sopa, prato quente com arroz, legumes, feijão branco, frango desfiado. Abacate com limão e açúcar coroou na sobremesa. Chá de hortelã ajudou a hidratar e digerir.
A subida até o passo a 4.200 metros de altitude massacrou pela trilha íngreme, degraus altos e princípios de falta de ar. Todos chiaram, diminuíram o ritmo e sentiram os efeitos, ainda que embrionários, da altitude. Atingi o topo com a sensação mista de cansaço e satisfação pela conquista. A visão do outro lado do passo, contra a luz do sol, chamava atenção pelas montanhas escarpadas com cristas dentadas. Descansamos, contemplamos, sorrimos à toa.
Descemos a encosta por trilhas em ziguezague. Às costas, montanhas negras, o capim esverdeado, o céu muito azul e a lua pela metade no meio do céu. Mais à tarde a temperatura caiu em decorrência do surgimento de nuvens cinzentas. Atingimos o acampamento, a 3.600 metros de altitude, instalado em fundo de vale atulhado de barracas. Os banheiros públicos com água encanada logo se tornavam imundos pelo mau uso dos turistas. Os chuveiros forneciam banhos de água gelada. Acionei os lenços umedecidos para as partes mais graves do corpo. Lavei o rosto e braços nas torneiras e me considerei limpo.
Antes do jantar, a tradicional pipoca com chá. Depois, sopa de macarrão, carne ensopada com arroz e batatas, regados a vinho tinto encorpado. Sagu amarelado encerrou o banquete delicioso. O sono bateu em cheio e a maioria se enfiou cedo nas barracas.
Não esfriou tanto durante a noite, mas a umidade do fundo do vale acentuava a sensação térmica das baixas temperaturas. O piso do chão sob a barraca era inclinado e o tecido do saco de dormir não impediu os escorregões. Inventava posições e maneiras de frear e dormir ao mesmo tempo. Mas deu para descansar e adormecer. A colega gaúcha passou mal durante a noite e vomitou muito.

O café da manhã foi servido mais tarde do que costume, plenamente compensado por pães, manteiga e omeletes.
Deixamos o acampamento congestionado de turistas. A subida nos esperava logo de cara e degraus em pedra nos levaram à primeira ruína Inca quase no final da encosta, construção usada como ponto de observação e controle dos fiscais do parque nacional. Avistamos a trilha percorrida no dia anterior, desde o passo até o vale com neve no topo. Encontramos casal de alemães que mal parava em pé. Sem pedir, imediatamente passaram as mochilas para o coitado do carregador. Inexpressivos, descorados e de olhos esbugalhados, nem falavam de tanto esgotamento. Mais à frente, um meigo casal de chineses homossexuais masculinos fazia doces poses para as fotos. Os rostos colados, os olhares lascivos, os lábios em bico, douravam aqueles momentos de amor.
Do segundo passo da travessia, a 3.900 metros de altitude, se descortinavam os vales, montanhas, picos nevados, trilhas percorridas anteriormente. À frente, outras cadeias montanhosas com cumes cobertos de neve. Após o passo, longa descida por escadarias em pedras, muitas recém-construídas. À direita surgiu lagoa alongada com musgos e vegetação mais desenvolvida ao redor. Era a Amazônia peruana. Não fazia calor exagerado, mas mutucas sobrevoavam ávidas por sangue novo e indicavam que mudáramos de ecossistema.
Deparamos com imponente ruína, usada anteriormente como albergue para os caminhantes, situada em posição privilegiada, incluindo diversos cômodos, dispostos em quase labirinto. Dali se via outra ruína, menor, mais abaixo, ocupada por poucas barracas. O cardápio do almoço ao ar livre consistiu de sopa de sêmola com legumes e bastante tempero, coxas de frango com arroz e batata, sobremesa na base de frutas, iogurte e granola. Sem citar o onipresente chá de coca.
Mais casos de caminhantes passando mal apareciam durante a trilha, pela altitude, desgaste físico, sedentarismo, problemas emocionais, entre outras causas.
Trilhas calçadas predominaram na parte da tarde. O relevo aplainado oferecia de um lado, vegetação abundante, de outro, precipícios, escarpas, vales estreitos, as águas do sinuoso rio Urubamba. Atingimos o acampamento, a 3.600 metros de altitude, bem cedo. As barracas se dispuseram ao longo da crista estreita. O visual de diversos ângulos maravilhava os olhos. Picos nevados parcialmente cobertos pelas nuvens, vales profundos, outras cristas com mais barracas. Pequeno pássaro cinza caminhava despreocupadamente na frente da barraca. Não me notou, nem tampouco o terrível odor das botas e meias das quais eu acabara de me livrar.

A noite trouxe a lua quase cheia. O reflexo nas montanhas nevadas fornecia efeito luminoso de cair o queixo. O último jantar na trilha reservou muita comida. Vinho tinto não poderia faltar e ajudou a esquentar ainda mais os ânimos. Risadas e mais risadas diante do bom humor do guia.
Acordei antes do amanhecer. Aproveitei para subir o morro atrás do acampamento, assistir ao nascer do sol, contemplar a paisagem de 360 graus. O tempo claro valorizava as montanhas nevadas, como a Salkantay, o vale na direção de Machu Pichu, as escarpas rochosas e esverdeadas.
Após o último café da manhã da travessia, confraternização com os peruanos da equipe. A caminhada desceu acentuada por degraus de pedra, presenteando com imagens ao redor dos vales do rio Urubamba e cercanias de Machu Pichu. Ruínas pequenas e grandes se alternavam pelo caminho. Nada de pressa. Havia tempo suficiente para saborear com os olhares. Parada no último vilarejo, Wynawayna, evidenciando proximidades da chamada civilização. Vendinhas cobravam fortunas por água e comida. Sem fome ou sede desesperadora, não alimentei a exploração. Muita gente, muitos turistas, muita sujeira pelos becos. Era a civilização mesmo. O calor nas baixas altitudes dava o ar da graça, ao lado de vegetação exuberante, verde e densa. Até borrachudos apareceram avisando da aproximação de zonas tropicais.
Atingimos a Porta do Sol no meio da tarde. Ao cruzá-la, toda a cidade inca de Machu Pichu se exibiu abaixo. O Wayna Pichu se erguia ao lado de montanhas esverdeadas. Sentamos, relaxamos, rimos, beliscamos comidinhas, nos deixamos envolver pela pintura à nossa frente. Os quatro dias da Trilha Inca se encerravam com perfeição. Jamais contemplara Machu Pichu daquele ângulo ou a conquistara daquela maneira. Em 1983 eu viera de trem de Cuzco e passara apenas parte do dia em explorações pelos interiores das ruínas.
Crianças em excursão escolar se aglomeraram na Porta do Sol. Comeram, pularam, gritaram e seguiram ao miolo de Machu Pichu. Ao entardecer, embarque no último ônibus descendo a Águas Calientes. Circulamos pelas ruínas e becos, absorvendo a energia local. Encontramos outros brasileiros ao entardecer.
Perdêramos a conta de quantas vezes disséramos no gracias para os vendedores de bugigangas, pedintes, agentes de turismo. Desde o primeiro dia em Cuzco, era no gracias de manhã, no gracias de tarde, no gracias de noite. A expressão se tornou motivo de brincadeiras e gozações durante a trilha. Eu e dois colegas, a três vozes, entoamos o no gracias ainda nas escadas do ônibus, de braços estendidos, tão logo a multidão nos abordou. Até os vendedores riram do desempenho. Por encanto, mais ninguém nos assediou. Apenas nos olhavam e sorriam.
continua...

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

do Amazonas a Sergipe (parte 7/7)

...continuação
Após a cidade de Alagoa Grande, terra de Jackson do Pandeiro e Margarida Maria Alves, o ônibus começou a subida da serra, percorrendo estrada estreita, cheia de curvas perigosas, sem acostamento. Nos altos do relevo apareceram as primeiras casas e ruas de Areia, berço do pintor Pedro Américo. A cidadezinha guardava casario do final do século XIX e início do século XX. Moradias, sobrados, escolas, prédios públicos se distribuíam por ruas estreitas, ladeiras, rampas bem acentuadas, calçadas de paralelepípedos. Havia também um teatro de meados do século XIX, infelizmente fechado e sem programação. Instalado em casarão de pé direito alto, o Bar do Chifre, entupido de chifres nas paredes e teto, exibia diversas mensagens alusivas aos cornos. “Se você não for chifrudo seja bem-vindo e toque o sino”, “chifre ficou para homem, boi usa de enxerido”, “O cavalo não tem chifre porque a mulher é uma besta”. O estabelecimento vendia garrafas e doses de cachaças produzidas nos engenhos da região. Tomei duas doses generosas de cachaça branca, não envelhecida, não perfumada, não aromatizada, pura, muito saborosa.
Retornei à capital paraibana somente à noite. O calçadão de Tambaú se alegrava com público variado, famílias, casais, grupos de amigos, aproveitando a noite ao ar livre, em espaço público e democrático. Nada de desfile em frente a vitrines luminosas e entupidas de supérfluos. Embora houvesse gente nos bares e restaurantes, a maioria circulava pelos calçadões e praças, se sentava em roda ou nos extensos bancos de cimento da praia. Gente de todas as idades, sexos, níveis sociais. Cada um da maneira que mais lhe aprouvesse, em enorme reunião de cidadãos na plenitude do lazer saudável e comunitário.
Entre cochilos breves, observei pela janela do ônibus a paisagem paraibana e pernambucana de relevo acidentado, ocupada quase que completamente por canaviais e engenhos antigos. Raros trechos de mata atlântica, em frangalhos. No trecho alagoano, os casebres de taipa, a miséria e o abandono me lembraram do interior maranhense.

O segundo ônibus partiu cedo com metade da lotação, mas logo, ainda em Maceió, transbordou de passageiros, enchendo o corredor de pobres diabos, de pé, tratados como gado. As paradas continuavam e o percurso evoluía lentamente. A partir da parada em Palmeira dos Índios a estrada penetrou de vez no sertão alagoano, com buracos, miséria, seca, abandono. O ônibus cruzou a cidadezinha de Olho D’Água do Casado na qual, após conselhos do motorista, desembarquei. Ali peguei carona colina abaixo, até o pé do morro em Piranhas.
Na beira do rio São Francisco comi peixe frito diante das águas esverdeadas e convidativas, dos barcos atracados, das encostas desabitadas do lado sergipano. Retornei à pousada, escadaria acima, a fim de cochilar e tentar me recuperar do cansaço dos últimos dias.
Piranhas estava mais limpa, organizada e preservada que seis anos antes. Casas pintadas com cores vivas, pracinhas revitalizadas, orla urbanizada com quiosques, bares, restaurantes de alvenaria, pequeno porto flutuante.
Me sentei no terraço da pousada. Já anoitecera e as luzes da cidade se acenderam. Sob os ventos refrescantes, a lua cheia apontou bem em frente, atrás da colina do cruzeiro, amarelada, brilhante, compondo espetáculo único sobre a cidade. As ruas embaixo logo mergulharam no silêncio. Só se ouvia o barulho suave do vento. A arquitetura fracamente iluminada fazia bem aos olhos.
Subi as escadarias rumo ao cruzeiro, erguido no alto do morro oposto à pousada. A irregularidade na altura e extensão dos degraus dificultava o ritmo dos passos, mais que a subida propriamente dita. Com bar e restaurante no topo, o local oferecia vista privilegiada da cidade, do vale do São Francisco, das encostas secas da caatinga. As águas transparentes do rio faziam os barcos parecerem flutuar.
Tomei a trilha da beira do rio, leito da antiga ferrovia. Caminhei para valer debaixo de sol abrasador, calor sufocante, mormaço tórrido. Sentia dificuldades até para respirar o ar quente. Mas valeu a pena avançar próximo à margem esquerda do Velho Chico. Ninguém por ali, somente os cactos, vegetação ressecada, pássaros, lagartos, as águas verde azuladas, transparentes mais abaixo. Mergulhei em seguida. A temperatura da água refrescava a alma. Me alojei em restaurante na beira da praia a fim de degustar caipirinhas e almoçar. O calor insuportável da tarde expulsava os moradores das ruas, lançando-os nas sombras dos interiores das casas. Piranhas dormia em silêncio profundo. Imitei os moradores e me recolhi também.

Caminhei rio abaixo pela estradinha calçada. No caminho, igreja pequena e bem conservada no meio de praça singela, casas e casebres muito simples, mas pintadas recentemente de cores vivas, algumas de taipa expondo a miséria local. Os moradores daquele trecho se ligavam direta ou indiretamente à pesca, sobretudo de surubins e pitus.
Mais mergulhos nas águas refrescantes do Velho Chico, enquanto o relógio avançava lentamente. Preguiça à tarde. O sol e o calor pareciam fundir tudo e todos. Andava apenas de sunga, e de chinelos para não fritar os pés. E sempre retornava à sacada da pousada para apreciar a vista da cidade e do rio, lá embaixo.
Tomei novamente o rumo sobre o leito da antiga ferrovia e avancei o mais que pude. Em dado momento a trilha se afastou da margem do rio e adentrou em outro vale estreito. Logo ouvia sons relaxantes de quedas d’água. E não era alucinação. No meio da caatinga ressecada havia olho d’água formando riacho estreito com algumas quedas nos trechos mais acidentados. O gado se deliciava com a preciosidade e não abandonava o vale. A pequena propriedade cultivava milho, coco, banana, outras frutas. No meio da plantação se destacava antigo pontilhão da ferrovia, as rochas de sustentação, os trilhos de aço corroídos pelo tempo e abandono. Torrado pelo sol, ensopado de suor, com pés e pernas cobertas de poeira seca, garganta sedenta, as águas refrescantes do São Francisco me esperavam para os mergulhos reanimadores.
Não havia linhas de barcos pelo São Francisco, ferrovia ou rodovia pelas margens, entre Piranhas e Pão de Açúcar. O transporte coletivo no interior de Alagoas forçava o longo e demorado trajeto por Xingó, Olho D’Água do Casado, Olho D’Água das Flores e finalmente Pão de Açúcar. Cada trecho teria que ser feito separadamente, em transportes diferentes, ônibus, moto-táxi, lotação, caminhonete.
Consegui carona até Olho D’Água das Flores, no trevo para Pão de Açúcar. Larguei a mochila sob a árvore da beira da estrada e aguardei o transporte. Duas peruas passaram caindo aos pedaços, lotadas de cargas e passageiros. Apareceu uma sergipana acompanhada do filho, ambos a espera do catastrófico transporte coletivo alagoano. Contou que acabara de pagar quatro reais à senhora passageira do ônibus anterior em troca de rezas pela felicidade dela e da família. Mas, ao descer do ônibus, a reza ainda não havia terminado e, por isso, ela temia que os votos da benzedeira se alterassem para serviços do mal. Um caminhão basculante da prefeitura de Pão de Açúcar parou e subimos os três na cabine. Não era uma carona e o motorista cobrou quatro reais.

Também na margem esquerda do São Francisco, Pão de Açúcar, cidade plana e alongada paralelamente ao rio, não atraía, na arquitetura e na praia. Barracas de comida, improvisadas e de mau aspecto, se estendiam entre a rua e a areia da praia, em meio ao mato rasteiro. O pedaço do canteiro central da avenida encontrava-se sem jardim, com calçadas arrebentadas, bancos quebrados e sujos. Tirando as casas dos ricos, as moradias assustavam pelos interiores miseráveis. Em sujos depósitos de gente, pobres, muito pobres, panos encardidos ou tijolos improvisados separavam os cômodos. Esgoto a céu aberto, nenhum saneamento básico, lixo e mau cheiro.
No topo do morro se erguia estátua do cristo redentor. O calor ia às alturas, não havia sombra pelo caminho, o chapéu pouco amenizava os raios solares. No alto da colina, com vista para as águas do rio, encostei o corpo sob a sombra da estátua do homem de braços abertos, que de tão quente nem me permitia sentar.
Durante as noites, em típica cidadezinha do interior, os moradores de Pão de Açúcar sentavam-se em cadeiras nas calçadas e praças, as crianças brincavam ao ar livre, os jovens andavam de bicicleta, os casais recatados escolhiam os pontos menos iluminados nos jardins ou dos pedaços mais aceitáveis no canteiro da avenida principal.
Pela estrada de terra que acompanhava a descida do rio, pastos, caatingas, casas antigas de fazenda com alpendre e tudo, vaqueiros de gibão e chapéu de couro. No final, no pé da serra, a estrada se afastava do vale e iniciava subidas sinuosas pelos morros. Leito acidentado, pedregoso, vegetação ressecada e espinhosa. E circulei pela praia naquele domingo ensolarado. Muita gente se empanturrava de bebidas alcoólicas de quinta categoria, litros e litros de refrigerante, carros com som no último volume, bêbados, famílias, casais. Mas era lazer real em um Brasil sertanejo real.
Presenteei a funcionária do hotel com o único livro lido que eu ainda guardava na mochila. Trabalhando seis dias por semana, das 5h às 18h, ela recebia apenas R$ 120 por mês. Menos de um terço do salário mínimo nacional, por uma semana de 72 horas. Sem registro em carteira profissional, não contava com direitos trabalhistas, como férias, décimo terceiro salário, fundo de garantia, saúde pública. Porém, a dona do hotel, tocada pela generosidade inerente aos patrões, deixava-a sair de vez em quando para resolver problemas urgentes. Por pouco tempo, obviamente. No terceiro ano do ensino médio, a funcionária pretendia seguir enfermagem, mas as mensalidades de R$ 180 da escola privada estavam além das possibilidades. A tia idosa, com quem morava, não podia ajudar. O pai abandonara a família. A mãe alcoólatra vivia no interior de Sergipe, no limite da miséria. E, noiva de aliança, ainda reclamava da gastrite e de dores de cabeça devido à vista fraca.

Acordei com os ruídos da feira semanal, típica de sertão onde se vendia de tudo. Bodes, cabras, bois eram comprados, vendidos, trocados na rua da orla do rio.
O barco na margem do rio São Francisco partiu lotado rumo ao lado sergipano. Os passageiros reclamaram com razão do excesso de passageiros e temiam acidentes.
O ônibus antigo partiu da vila de Niterói em direção a Aracaju. A primeira hora da viagem, até a cidade de Monte Alegre, percorreu quarenta quilômetros de estrada de terra do semiárido sergipano. A partir do início do asfalto a paisagem mudou radicalmente. Tornou-se mais verde e úmida, entre diversas propriedades, grandes e pequenas. O nível social evoluiu da miséria da caatinga para a pobreza dos trechos mais úmidos. A rodovia cruzou cidades pequenas, a maioria chamada Nossa Senhora de alguma coisa, até atingir a infernal BR-101, com tráfego pesado de carretas, caminhões, ônibus, veículos em geral. A tarde avançava quando o ônibus estacionou no moderno terminal rodoviário de Aracaju.
Aracaju parecia bem organizada, urbanizada, limpa, com muito verde e espaços públicos. Contava com urbanismo planejado, praças públicas, avenidas arborizadas, faixas exclusivas de ciclistas e pedestres. A população retribuía aproveitando a cidade. A região da praia de Atalaia, irreconhecível desde minha visita anterior, oferecia calçadões, quadras, lagos, chafariz, parques, pistas de skate e kart, bares, restaurantes, distribuídos na ampla área entre a areia e a avenida de pista dupla. A larga e extensa faixa de areia dava de cara com mar bravo, com as plataformas da Petrobrás no horizonte. Nada de edifícios altos, para a felicidade geral da nação. Poucas moradias, espaços vazios, sobretudo nas ruas paralelas e transversais à avenida da praia. Mas a intervenção urbanística exagerada ofuscou a natureza, independente das qualidades e defeitos de cada uma delas.
De ônibus para São Cristóvão, a antiga capital de Sergipe e a quarta cidade mais antiga do Brasil. Localizado no alto da colina, o local reservava rico patrimônio histórico e arquitetônico, entre igrejas, conventos, mosteiros, residências, museus, prédios públicos. Mas quase tudo passava por lento processo de reformas e restaurações. Exceto o museu de Arte Sacra e do complexo da igreja franciscana, apreciei as demais atrações apenas do lado de fora.
Os sergipanos aproveitaram o feriado e foram à praia. Larga e sem fim, jamais lotou, nem nos trechos mais procurados. O mar batido atraía poucos banhistas. Os surfistas quase não arriscavam.
O ônibus para São Paulo não lotou.
Amanheceu em Jequié. O sertão baiano exibia verde intenso pelas últimas chuvas. A miséria, no entanto, com ou sem água, permanecia assustadora.
Em Vitória da Conquista, a empresa Gontijo trocou de ônibus sempre com atendimento grosseiro, desumano, se recusando a maiores satisfações. Em Governador Valadares, nova troca, para ônibus de qualidade inferior. Eu e mais dois passageiros exigimos explicações e ônibus de qualidade similar ou superior. A maioria dos passageiros, porém, feito gado no curral, se calou e abaixou a cabeça. Muitos eram evangélicos, fundamentalistas, conformados, idiotizados pela indústria lucrativa do fanatismo. A empresa não cedeu e as ovelhas de rebanho entraram no terceiro e pior ônibus da viagem. Afinal, “foi o que Je$u$ quis”. Anotei tudo a fim de formalizar as reclamações junto à Agência Nacional de Transportes Terrestres.
As paradas impostas pela Gontijo continuavam caras e sujas. Cobravam até pelo uso dos banheiros imundos.
Em novembro, o ônibus estacionou no terminal rodoviário do Tietê, em São Paulo. 

domingo, 21 de novembro de 2010

do Amazonas a Sergipe (parte 6/7)

...continuação
A trilha das Torres começou plana e monótona, por entre plantações e cercas, depois empolgou pelos altos dos paredões. Coberturas rochosas no formato e textura de casca de tartaruga permitiam vistas de outros vales secos e pedregosos, com vegetação que nada tinha de morta, ao contrário, vida animal e vegetal fervia naquela aridez. Antes de iniciarmos a descida, apreciamos os “lapiais”, zonas em camadas do arenito, ricamente coloridas, em alto relevo. O conjunto se destacava pelas cores fortes e alternadas horizontalmente.
A senhora que cozinhava nosso almoço adoeceu durante a noite. Mal medicada por médico incompetente, foi obrigada a se deslocar a Arcoverde a fim de ser corretamente analisada e tentar reverter os efeitos colaterais da primeira medicação. Dormiu bastante na volta e ainda tentava se recuperar. Estava em estado de choque quando a encontramos na volta da trilha. Os olhos da pobre coitada denunciavam o susto que passou durante a madrugada graças à indústria da doença e ao picareta vestido de branco.
Na estrada de volta, uma ONG produzia sucos, doces e castanhas de caju, além da própria fruta fresca. Caminhões e mais caminhões entravam e saíam da propriedade, completamente cercada e fortemente guardada por seguranças uniformizados. Trabalhadores jovens da região passavam disciplinados pelos portões. As mercadorias produzidas no sertão pernambucano eram todas enviadas ao sudeste do Brasil. Para quem iriam os lucros gerados pela organização, teoricamente, sem fins lucrativos? Não percebi nenhuma melhoria nas sofríveis condições de vida do povo ao redor.
  
Partimos no rumo leste até chegar à cidade de Bezerros, famosa pelo carnaval, pelas xilogravuras, pelo Centro de Arte Pernambucana, onde se exibiam diversas formas de manifestações artísticas do estado. Seguimos à oficina de J. Miguel, filho de J. Borges, mestres em xilogravura com temas tipicamente nordestinos. Sempre falante e sorridente, enquanto imprimia as matrizes em ladrilho, tecido, papel, J. Miguel descreveu as aventuras durante o carnaval, quando, ele e os colegas de farra, se fantasiavam de papangu pelas ruas de Bezerros.
Poucos quilômetros depois entrávamos em Gravatá, cidade com casario do início do século XX, lojas de artesanato demasiadamente afetadas. A cidade transformava-se em destino de recifenses desejosos de passeios de um dia e mesmo temporadas, como mostrava a profusão de condomínios fechados ao lado da rodovia, onde se erguiam casas de alto padrão nas encostas das colinas.
Descemos a serra das Russas com destino a Recife.
Praticamente todos os hotéis estavam lotados em razão do congresso brasileiro de cardiologia. Deixei a bagagem no primeiro que encontrei vaga, barato, a três quarteirões da praia da Boa Viagem. Fomos ao cinema na fundação Joaquim Nabuco, reduto de programação de filmes de qualidade. No café aconchegante mergulhei de cabeça no divino bolo de rolo.
Na praia urbanizada de Boa Viagem, com coqueiros e trechos mais sombreados, pouca gente circulava na manhã de segunda-feira. O que mais chamava a atenção eram as constantes e assustadoras placas, espalhadas por toda a extensão da praia, alertando para o alto risco de ataques de tubarão. Observei o fraco movimento da praia, investiguei o mar, antes e depois da linha dos arrecifes, mas nenhum sinal de barbatanas. O calçadão e os prédios se entupiam de cartazes e faixas dos candidatos ao segundo turno da eleição presidencial e estadual.
Peguei ônibus urbano ao centro da cidade e retornei somente à tardinha. O bairro do Recife Antigo guardava aberrações modernas e escondia as poucas e pessimamente conservadas construções dos séculos XVII e XVIII. Os armazéns do cais do porto e o ancoradouro de barcos para passeios turísticos ainda estavam lá. Espalhavam-se espaços culturais, teatro, cinema, bares e restaurantes, mas tudo semiabandonado e de mau aspecto. Os bairros de Santo Antonio e São José, no entanto, exibiam igrejas, conventos, museus, palácios, preciosidades do passado de opulência da cidade. O destaque ficou por conta do complexo da ordem terceira de São Francisco, sobretudo a estupenda Capela Dourada do século XVII, e da igreja de Nossa Senhora do Carmo, repleta de belos interiores.

Perambulei pelas ruas até bater de frente em famoso restaurante aberto em 1882. O ambiente primava pela sobriedade das mesas, bancadas, balcões, das janelas parcialmente escondidas por grossas cortinas de cores escuras. O salão contava com bar clássico ao lado do piano que despejava melodias conhecidas. Engravatados, idosos, aliás, bem idosos em mesas reservadas, grupos de senhores sussurrando conchavos políticos ou comerciais, casais de meia idade, predominavam pelo recinto.
Pela manhã ao litoral sul de Pernambuco via estradas cortando canaviais sem fim em colinas outrora ocupadas pela exuberante mata atlântica. O distrito de Porto de Galinhas contava com dezenas de hotéis e pousadas, bares e restaurantes, lojas de roupas, artesanatos autênticos ou não, comércio bem desenvolvido. O movimento de turistas e moradores não lotava a vila naquela sexta-feira ensolarada. Aos finais de semana, sobretudo em feriados prolongados e férias escolares, o local transbordaria de visitantes. Mas as extensas praias não decepcionavam, especialmente a de Maracaípe, mais vazia e preservada, com ondas bravas e atraentes.
Na volta a Recife, ainda houve tempo para passada rápida pela sofisticada, cara, triste e deprimente região da praia de Muro Alto. Condomínios fechadíssimos, mansões, hotéis luxuosos de inúmeras estrelas, heliportos e tudo o mais para segregar ainda mais a auto-segregada classe dominante brasileira e estrangeira. Mais um gueto das elites. E impediam, ilegalmente, o acesso à praia pública em frente.

Dia para explorar Olinda após mais de trinta anos. E sempre a pé pelas ruas, ladeiras, becos, praças, monumentos, igrejas, lojas de artesanato de bom gosto. Embora a cidade se espalhasse em grande área, a visitação a Olinda se restringia ao centro histórico, facilmente percorrido a pé. O número de turistas não perturbava nas primeiras horas da manhã, ainda silenciosas e frescas. A maior parte da cidade, não turística e nunca visitada, marcava-se pelos problemas sociais típicos das cidades grandes. A igreja e convento de São Bento, com o estupendo altar dourado, e a de São Francisco com azulejos pintados, pátios e impressionantes trabalhos em jacarandá, se destacaram. Mas o melhor do centro histórico de Olinda ficava nas ruas, construções, portas, janelas, detalhes arquitetônicos e decorativos, ateliês artísticos. A catedral da Sé abrigava o túmulo do eterno arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara. Os olhos do guia local se molharam quando se lembrou do carinho desapegado de Dom Helder pelos pobres e necessitados.
À noite no teatro Santa Isabel, centro de Recife, apresentação do grupo musical liderado pelo Antonio Madureira, membro do antigo e lendário Quinteto Armorial. Valorosa apresentação musical em espaço tão histórico.
Cedinho rumo da Enseada dos Corais, litoral sul pernambucano, residência de casal conhecido. De lá, o cabo de Santo Agostinho, a pequena e deslumbrante praia de Calhetas, encravada em morros desmatados, a praia de Suape, junto ao porto cuja construção causou desequilíbrio ecológico e expulsou os tubarões para Recife, o costão do Paraíso, local bucólico e tranquilo.
Em ônibus a João Pessoa, de violão na mão, o paraibano logo se apresentou aos poucos passageiros dizendo que se preparava para gravar o primeiro CD com o querido parceiro, nome que repetia a todo instante. De olhar vidrado, roupa suja, cabelo despenteado, o artista anunciava que iria cantar a nova composição dele, a ser incluída no novo CD. Mas antes precisava afinar o violão, ato que se estendia no tempo e jamais terminava. Culpava pela demora os problemas nos ouvidos, as janelas fechadas, o ronco do motor do ônibus. O tempo passava e nada de afinar ou cantar. Quase às portas de João Pessoa, duas horas após comunicar que começaria a cantar, e citar novamente o parceiro, finalmente o nobre cantor avisou que o violão estava afinado. Cantou não uma, mas duas canções de própria autoria. E eram boas canções. Trocou números de telefone, enfatizou as próprias qualidades, discorreu mais citações e elogios ao parceiro.

João Pessoa continuava a mesma, bonita, verde, silenciosa e tranquila. Os novos bares e restaurantes não afetaram a calma. O ritmo da cidade se mantinha o mesmo de quatro anos antes.
O dia amanheceu ensolarado e brilhante. A cor do mar em Tambaú convidava a mergulhos. Caminhei pela praia de Cabo Branco, por areias praticamente vazias, até o farol e a Ponta Seixas, o ponto mais oriental da América. O verde das águas, as casas térreas, o silêncio urbano, a brisa, valorizavam a paisagem. No caminho de volta, me sentei sob a sombra dos coqueiros do calçadão. Logo apareceu uma mulata muito magra, moradora do centro da cidade com o filho de dez anos. Com apenas 27 anos, dizia que passara a noite em claro, pelas areias da praia, depois de noite fraca, sem clientes. Falava pelos cotovelos, enquanto observava atentamente os motoristas que passavam na avenida.
contnua...

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

do Amazonas a Sergipe (parte 5/7)

...continuação
Amanheceu em Pernambuco, logo após a divisa da Paraíba, por entre relevo ondulado, com poucas serras, baixas e curtas, vegetação de médio porte, castanho-acinzentada, com raros tons de verde. O miolo do semiárido, a caatinga em perfeito estado, com muita personalidade, impunha respeito. Cidades pequenas, casas e casebres isolados, bodes e cabras, rios e açudes quase secos, cisternas novas instaladas ao lado das moradias, se alternavam. À medida que o ônibus se aproximava de Serra Talhada, a vegetação arbustiva parecia ainda mais seca.
Desembarquei, peguei lotação subindo a serra dos Cariris Velhos. A estrada estreita e sinuosa percorreu paredões rochosos, vales profundos, no fundo dos quais predominava o verde das lavouras de alimentos dos pequenos agricultores. Erguida na encosta da serra, a mil metros de altitude, a pequena e simpática cidade de Triunfo chamou a atenção pelo extenso lago.
Visitei os museus do Cangaço e da Cidade, singelos e simpáticos. A poucos quilômetros da fronteira da Paraíba, Triunfo guardava arquitetura bem preservada do final do século XIX e início do século XX, distribuída em ladeiras de paralelepípedos, principalmente nos arredores da igreja matriz e do teatro Guarany. Ao redor do grande lago, lanchonetes, bares, bancos sob as árvores concentravam a juventude local.
O restaurante que eu frequentava contava com ambiente descontraído, maior faixa etária e boa oferta de cachaças. Acabei por me juntar ao grupo de amigos voltando de partida de futebol, ainda com os uniformes, conversando animadamente sobre política regional, política nacional, futebol. Os demais moradores da cidade também demonstravam simpatia, sempre se dispondo a bater papo. Assistiam ao horário eleitoral com fervor, discutindo bastante política, antes, durante e depois da programação. Xingavam a demagogia barata e messiânica da candidatura Geraldo Alckmin do PSDB/PFL(DEM). Vibravam de paixão nos programas da candidatura Lula, apoiada pela esmagadora maioria dos nortistas e nordestinos.

À noite, o vento derrubava a temperatura, as ruas se esvaziaram rapidamente e eu retornei ao hotel para dormir o sono merecido.
Triunfo ganhou fama pelos engenhos de cana dos arredores, onde se produzia cachaça, melado, licores e, principalmente, rapadura, pura ou com ervas.
Subi as ladeiras da cidade, ultrapassei a igreja, o museu do Cangaço, atingi a parte mais alta, junto ao cruzeiro e ao cristo redentor. Segui em frente por estradinha calçada de pedras angulosas e irregulares, percorrendo a zona rural de Triunfo, com casinhas simples, chácaras, canaviais, diversos engenhos de cana. Lavadeiras estendiam as roupas coloridas para secar sobre as pedras. Duas horas de caminhada depois eu chegava nos altos da cachoeira dos Pingas. Desci a encosta da montanha até a primeira queda da cachoeira, de frente ao vale e à escarpa da serra, onde relaxei sob a sombra. O calor ia às alturas. Botei o chapéu e o pé na estrada de volta. Enquanto me hidratava em boteco para lá de simples, sentado em banco de madeira, os frequentadores jogavam baralho entre goles de pinga com limão.
Segui direto ao restaurante de sempre, agora mais cheio e com mesas sob as sombras da calçada do outro lado da rua. O repertório musical incluía extensa seleção do Altemar Dutra.
Peguei lotação montanha abaixo, rumo a Serra Talhada, a capital do xaxado, a terra natal de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, cidade bem mais quente e seca que Triunfo.
Serra Talhada contava com bom aspecto, limpeza, urbanismo discreto, comércio movimentado, vaivém nas calçadas. A igreja ficava na parte mais alta da praça retangular, estreita e alongada, ao longo da qual perfilavam lojas, bares e restaurantes simples, bancos. Formação serrana e com rochas expostas se erguia ao norte da cidade, fornecendo aspecto dramático ao cenário no meio da caatinga. A imponência dos paredões se destacava na aridez da planície.
Jantei em restaurante familiar, simples e agradável, no qual as mesas se dispunham ao ar livre, sobre o calçamento da rua. Pena que o televisor posto na calçada, de frente para as mesas, retinha os olhares bovinos dos clientes. Preferi apreciar a noite com céu estrelado e o pequeno movimento de pessoas na noite de sexta-feira.
As estradas pernambucanas deixavam a desejar com buracos e irregularidades. E a empresa Progresso impunha o monopólio das linhas intermunicipais no estado, com ônibus em mau estado, desrespeito ao cumprimento de horários e ao limite máximo de passageiros. Jamais marcava os assentos nas passagens, gerando tumulto nos momentos de embarque.

Embarquei à tarde rumo a Arcoverde. Peguei moto-táxi até o hotel instalado em construção grande, velha, mal conservada, com corredores longos e sombrios como dos hospitais. Vira à direita, vira à esquerda e entrei no quarto imenso, com cama de casal, cama de solteiro, uma mesa com tampo de vidro e duas cadeiras, um frigobar, um armário de duas portas, uma bancada, um móvel de sala com cinco portas. Para pendurar roupas apenas um cabide torto dentro do armário. O enorme banheiro de dois ambientes e as imediações da porta de entrada se cobriam de poeira moída pelos cupins. O sifão da pia vazava, ensopando o piso. Os azulejos das paredes foram brancos em algum dia no passado. Pó e resíduos sólidos não identificados se concentravam nos cantos.
Arcoverde contava com calçadas mal cuidadas, pouco ou nenhum verde, nada de praças, urbanismo desleixado, sem personalidade. Mas os pernambucanos não decepcionavam, sempre simpáticos, prestativos, alegres. Enfatizaram as manifestações culturais da região, como o Samba de Coco do Cruzeiro e o grupo Cordel do Fogo Encantado.
Após o saboroso jantar, na base de carne de sol, feijão verde, arroz, farofa e salada, eu circulei pela área da antiga estação ferroviária, abandonada. O Brasil, antes ferroviário, se submetera à imposição do transporte rodoviário pelas transnacionais. Nada mais de ferroviário funcionava em Arcoverde, assim como em todo o nordeste, outrora interligado por dezenas de linhas férreas.
Encarei o cruzeiro no alto do serrote ao norte da cidade. A trilha curta e íngreme passava pelas imagens da via sacra e logo alcançava a grande cruz branca de concreto com a pequena capela ao lado. Segui adiante por estradinha de chão cortando a caatinga. Vegetação seca e rala em tons que iam do castanho-acinzentado ao cinza-acastanhado. De arbustiva a médio porte, mandacarus, facheiros, macambiras, palmas, umbuzeiros, umburanas, favelas, calumbis, algarobas. Pequenas lavouras de milho e palma em meio a grandes extensões de terras improdutivas, bodes, cabras, gado. Cercas de pedra ou de paus secos, raramente de arame. Em lajedos de pedra nas partes mais altas apenas os facheiros e macambiras sobreviviam. Casas isoladas ou em pequenas comunidades, a maioria de alvenaria, com cisternas ao lado construídas pelo governo federal. A energia elétrica também alcançava todas as moradias. Não avistei nenhum rio ou riacho com água em todo o trajeto. Dezenas de lagartos pequenos, uma jararaca morta, um preá grande, pássaros variados compunham a fauna. Os moradores saíam às portas e janelas e respondiam alegremente aos meus cumprimentos. O sol não arrefeceu um segundo sequer, massacrando a cabeça, mesmo com chapéu e protetor solar. A brisa, no entanto, impedia a sensação exagerada de calor.

Ouvi o diálogo entre a camareira do hotel, senhora de cerca de cinquenta anos, e o recepcionista, bem mais jovem. Ele tentava a duras penas explicar-lhe em quais cargos ela teria que votar no segundo turno das eleições. Em Pernambuco haveria segundo turno para governador e para presidente da república. Ela não conseguia entender porque havia dois candidatos em disputa para cada cargo, nem porque deveria escolher dois candidatos ao todo. Nem sequer sabia que Lula era candidato a presidente. E aquela distinta senhora cantava alto, a todo instante, pelos corredores do hotel, versos evangélicos em transe hipnótico. Fundamentalismo, ignorância, alienação, sempre de mãos dadas. A maioria, felizmente, se envolvia nas acaloradas discussões políticas e se interessava em votar conscientemente.
No ônibus a Caruaru, em assento à minha frente, uma garota de vinte e poucos anos, morena jambo, baixinha, corpo arredondado, vestindo roupas insinuantes. Um senhor de mais de sessenta anos, depois de olhadas para lá de interessadas, sentou-se ao lado dela. Puxou conversa em voz baixa, quase aos sussurros, se roçando. Vira e mexe ela soltava risinhos envergonhados. Trocaram telefones e, enquanto ela anotava o número, ele a enlaçava na perna.
 Após deixar o sertão de Arcoverde para trás, a rodovia cruzou zona serrana, acidentada e sinuosa, a partir da qual a vegetação evoluiu da caatinga ao agreste. Em Pesqueira as montanhas cercavam a cidade encravada ao pé da serra e cheia de ladeiras e casario antigo.
Em Caruaru, depois de suculenta e saborosa bisteca de porco, eu visitei o museu do Forró, com destaque para a vida e obra de Luis Gonzaga. O museu do Barro, ao lado, exibia histórias e obras em barro cozido produzidas no Alto do Moura, em especial os delicados trabalhos de arte figurativa de Mestre Vitalino. O conjunto de figuras de barro representando cenas da vida real nordestina funcionava como preciosas crônicas materializadas pelo mestre.
Caruaru exalava ares de cidade grande. O centro era horroroso, poluído, confuso, tenso, lotado, sem qualquer atração arquitetônica ou urbanística. Na antiga e famosa feira de Caruaru se vendia de tudo em imenso conjunto de labirintos estreitos e extensos, barraca colada com barraca, mar de vendedores, produtos e clientes. Nada de especial ou diferente dos camelódromos tão comuns pelo Brasil afora.
Na manhã seguinte eu e a amiga pernambucana pegamos a estrada rumo à cidade de Buíque e depois à vila do Catimbau. O sol e o calor do meio do dia iriam nos agredir sem perdão. Mas lá fomos com o guia através de estrada de terra que cruzava o parque nacional.

Iniciamos a trilha da Pedra da Concha em caminho fofo e arenoso, descendente, cortando vegetação típica de caatinga. Ao fundo se erguiam os paredões do vale propriamente dito. A trilha compunha-se de grutas em arenito com pinturas rupestres nas paredes. Outras formações rochosas esculpidas pelo vento mostravam figuras de animais e afins. Marimbondos formavam enxames nas paredes do arenito. Seguimos adiante rumo à trilha da Igrejinha, onde dois imensos blocos rochosos de coloração avermelhada, como portais, realçavam-se sob a luz do sol. Na volta paramos na casa do artista plástico, popular e autodidata, José Bezerra. Ele exercitava a vocação artística em troncos de madeira seca, montando figuras, esculpidas ou não, de humanos e animais regionais, expostas informalmente pelo terreno descoberto da casa. Também fabricava e tocava instrumentos rústicos, inventados na hora, feitos de corda com panelas e outros objetos inusitados.
A tarde avançava, a fome e a sede nos pegaram de jeito. Imediatamente voltamos à vila a fim de almoçar comida caseira sob a sombra das árvores do quintal da casa.
O parque nacional do Vale do Catimbau abrangia áreas de quatro etnias indígenas e as influências se faziam sentir nos costumes locais. Assistimos no final da tarde à apresentação improvisada de adolescentes, que tocaram, cantaram e dançaram samba de coco e o toré, ritual de origem indígena. Contemplamos o pôr-do-sol onde havia nascentes de águas, cemitério indígena, grutas, chalés cônicos de cimento, que mais pareciam olarias de tão quentes.
Saltamos da cama antes do amanhecer e partimos para iniciar mais um dia de exploração no vale do Catimbau.
Trilhas, montanhas, planícies, flora, fauna, vales, grutas, simplesmente deslumbrantes, nos encantaram, apesar do desgaste físico com as distâncias percorridas sob o sol de rachar mamona. Cruzamos lajedos, formações rochosas impressionantes, vales, cânions. Exemplares característicos da flora da caatinga se sucediam como facheiro, macambira, mandacaru, palma com pequenas flores vermelhas, coroas de frade brotando na areia ou na pedra, babaçu, ouricuri, flores violetas, angico, umbuzeiro, cajueiro. Os sobes e desces nas formações rochosas valorizavam os ângulos de observação da paisagem e facilitavam a caminhada, em contraposição aos trechos arenosos e fofos, mais puxados. E nos deparamos com a gruta dos Homens sem Cabeça, composta de pinturas rupestres em pequena área da parede rochosa. As imagens exibiam cenas de batalha, homens com lanças em punho e os pênis eretos, algo como feiticeiros cabeludos ou mascarados em pleno ritual.
continua...