quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 12/12)

...continuação
Embarque atrasado e confuso em ônibus noturno, sem espaço suficiente para as pernas. O atendimento beirava à delicadeza de cavalo. Bancoc e boa parte das estradas percorridas formavam imenso e irritante congestionamento. Nem os inúmeros e horrorosos minhocões espalhados pela cidade davam conta do caos. A operadora estendeu propositalmente o café da manhã em Sarathani provocando a perda do barco em Krabi para a ilha. A organização tailandesa obrigou à espera de cinco horas até a próxima embarcação. O sol ardia em meio a nuvens negras e tornava o calor desesperador em Krabi. O responsável por levar os passageiros ao barco não apareceu. Idosos, crianças, tailandeses, muita bagagem, e nós, seguimos a pé ao porto. Ninguém reclamava, nem em voz baixa.
Praticamente não havia vagas na ilha de Ko Pi Pi. Camelamos muito, inclusive por trilhas no meio da mata, até encontrar chalé afastado com paredes e teto de palha, sem banheiro privativo. O caminho era por trilhas estreitas na mata ou através das pedras na beira do mar. À noite, lanternas e muita atenção dependendo do nível da maré.
A ilha possuía beleza, mas bem longe do paraíso “soberbo” tão comentado pelos guias turísticos. Os dias brilharam e valorizaram a paisagem. As praias não lotavam. Dava para relaxar e entrar na água sem pressa. Mas nos restaurantes, atendimento típico tailandês. Serviço excessivamente demorado, desrespeito, erros grosseiros na conta, expressões de contrariedade.
De volta ao continente, os planos eram ônibus a Surathani, barco à ilha de Ko Pangan. Depois de cinco horas na espera pelo ônibus os golpistas tailandeses queriam oferecer apenas bancos improvisados no corredor. Nada disso. Então lotação a Surathani e caminhonete ao ancoradouro. O motorista entregou os bilhetes com direito a lugares numerados. O barco, na verdade enorme balsa de dois pisos, contava com duas longas fileiras de colchonetes ao longo do piso superior, mais travesseiros e a etiqueta com o número correspondente.
Na ilha de Ko Pangan, sobre a carroceria da caminhonete até o acostamento da estrada, próximo à praia escolhida. Ainda não amanhecera. O tempo chuvoso desanimava. A praia não seduzia naquele princípio de luz. Mas o responsável pelos chalés cobrou preço baixo.
A pé pelas praias até a distante e badalada praia de Ko Pangan. Com areia e cascalho grosso de cor parda, as praias percorridas decepcionavam, com riscos de ferimentos nas pedras pontiagudas, nos diversos cacos de vidro, restos de garrafa, metais enferrujados, agulhas e seringas usadas. A tal praia famosa, descaracterizada e ocidentalizada, era reduto de gringos deslumbrados, com aquelas músicas altas, aqueles bares e restaurantes, aquelas comidas, aquelas lojas, aquele comportamento padrão. E ainda aguardavam histericamente a famigerada festa da lua cheia na beira da praia. Desrespeitariam e ignorariam ao máximo a cultura local. E, entupidos de ressaca, retornariam aos países de origem, a milhares de quilômetros, para contar que fizeram exatamente o mesmo que nos próprios países.
A praia escolhida reservava tranquilidade e, nos momentos em que não soava o lixo estadunidense dos chalés vizinhos, dava para relaxar. Durante o jantar no restaurante o dono puxou conversa. Mas, atrás dos sorrisos e cordialidade, escondia a avidez em vender produtos e serviços. Nada compramos. Os sorrisos e a cordialidade desaparecerem por encanto.
Caminhadas ao interior da ilha por trilhas na floresta, morro acima. Nada de interessante. Na costumeira barraca de frutas a tailandesa cobrou quatro vezes mais que no dia anterior. Largamos o saco repleto de frutas na cara dela e fomos embora.
Na praia diante do chalé, cascalho pardo em vez de areia branca. Água parada em vez de mar. Lixo por todos os lados. No cascalho fofo, pontas e cacos de vidro. Mas os turistas vinham e a indústria do turismo ganhava fortunas.
Apareceu um estadunidense ou australiano para conversar no chalé. Nada perguntou. Desatou a falar sem parar, sem intervalos, sem direito a comentários. Quando parou para tomar fôlego, avisei que não falava inglês fluentemente. E que eu não captara praticamente nada do que ele dissera. O tal nem quis saber o meu país de origem. Resmungou e partiu à procura de outras vítimas.
De barco à ilha de Ko Tao, a quarta e última ilha a ser visitada naquele esplendoroso país. Tudo para matar o tempo e adiar o retorno à infernal Bancoc.
Ko Tao não era feia, mas lotava de turistas. As estradas de concreto se apinhavam de caminhonetes, motos, lojas, escolas de mergulho, pertencentes a estrangeiros, assim como a maioria dos bares. Invariavelmente muito caros, os restaurantes se concentravam dentro dos bangalôs. A cor azul esverdeada do mar agradava, mas as areias grossas incomodavam. Praias privadas impediam o acesso ao público. A única padaria do centro comercial da ilha vendia bolos caros e ressecados. Saímos com pães, latas de atum, garrafas de água, para degustar na sacada do chalé.
Os caminhos e estradas pela parte leste da ilha abundavam de cajueiros. Os guias estrangeiros os descreviam como árvore de castanha de caju em vez de árvore de caju. E perdiam a oportunidade de saborear os frutos suculentos. Na parte norte e nordeste da ilha não havia praias, apenas pequenas baías de pedras e o mar límpido, de onde conseguíamos ver peixes coloridos. Por outros trechos, nada de praias, apenas rochas, corais, águas transparentes. Enormes lesmas se acomodavam no fundo das pedras. E mais uma vez na beira das estradas, cajus, mangas, mangabas, até enjoar. Ao sul da ilha, baía curta com praia, sombra, muitos peixinhos. Longe de ser maravilhosa, e com mais cascalho que areia, valeu para refrescar no mar e descansar sobre as sombras dos coqueiros.
Volta a Bancoc via barco e ônibus noturno. O motor do barco pifou em pleno alto mar. Depois de horas, apelaram a outro barco para rebocar até a costa. Desembarque em Chumpon. Ônibus local à agência de onde sairia o ônibus noturno rumo à capital. Após comer e circular pela cidadezinha de Chumpon, o ônibus com serviço tipicamente tailandês. O ambiente gelava até a alma, com direito a jatos polares sobre as cabeças. Tailandeses e turistas desviavam os jatos uns para os outros, enquanto se enrolavam em grossos cobertores fornecidos pela empresa. Ninguém gostava. Mas ninguém reclamava.
Chegada ao terminal rodoviário de Bancoc antes do amanhecer. Mais um dia para a libertação do inferno tailandês. Reencontro com os chilenos do Camboja. Ambos se decepcionaram com o Vietnã muito turístico. Outra futura Tailândia! Coitados dos vietnamitas, de história recheada de heroísmos nas vitoriosas lutas contra os invasores franceses e estadunidenses. Bem que eu sentira os maus ventos dois anos antes.
Último dia na Tailândia, disparado o pior país visitado até então.
Lotação cheia ao aeroporto. O tailandês se dizendo policial interceptou o veículo. Apontou irregularidades e cochichou em tailandês com o motorista. O motorista alegou aos passageiros que o tal policial liberaria o carro apenas mediante propina. A maioria, turistas ocidentais, se curvou ao golpe e deu o dinheiro. Eu e ela, nem pensar. Os turistas dos países imperialistas contribuíam com os golpistas tailandeses.
Embarque em voo rumo à conexão na Malásia. Livres do inferno chamado Tailândia. Para nunca mais!
No trecho entre Kuala Lumpur e Buenos Aires houve escalas interessantes nas cidades sul-africanas de Johanesburgo e Cidade do Cabo. Circulamos pelo aeroporto em meio a pretos gordos e sorridentes. Maravilha! Estávamos perto de casa.
Desembarque em Buenos Aires. Ônibus para o Brasil.
Desembarque em São Paulo em maio do ano seguinte. Orgulho, felicidade e prazer nos meses da longa e desbundante viagem, entre altos e baixos, bem mais altos que baixos.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 11/12)

...continuação
De madrugada, lotação ao lago. E o barco expresso, grande, rápido, desconfortável, inseguro. No meio do trajeto, o piloto do barco não atendeu aos chamados e os policiais dispararam rajadas de metralhadora. Nem reparei se alguma bala atingiu o barco.
A pé o longo trajeto do rio ao hotel em Phnom Penh. E, desaconselhável pela insegurança das ruas à noite, no restaurante do térreo, camarão ao alho e óleo, diversos copos de chá gelado com limão, café com leite gelado. Servido em copo cheio de gelo, o café misturado com leite condensado realmente deliciava. Não dava para parar de tomar. Ganhava disparado daqueles ótimos servidos no Vietnã dois anos antes. Comer e beber bem levanta a moral de qualquer cidadão.
De dia na parte norte de Phnom Penh, por avenidas e ruas planejadas, parecidas entre si. Não havia edifícios altos, mas extensos conjuntos de cinco andares, e casas, a maioria mal conservada. Muitas ruas não contavam com pavimentação e levantavam muita poeira misturada com lixo. Deficientes físicos e mulheres com crianças no colo pediam esmolas pelas calçadas. As imediações do mercado e feiras livres se destacavam pelas cores, povo sorridente, cenário fotogênico.
À tarde, o museu Tual Sleng, nada além de peça de propaganda do governo. Exibia fotos e gráficos ininteligíveis dos crimes do regime dirigido por Pol Pot e o Khmer Vermelho entre os anos de 1975 e 1978. Mas estranhamente suprimia os também hediondos crimes cometidos por quase cem anos de ocupação pela França, e pela invasão dos Estados Unidos por mais de dez anos.

O governo de plantão no Camboja, alinhado aos países imperialistas, desejava que o povo cambojano esquecesse as atrocidades impostas pelos regimes francês e estadunidense. Falsificava a história e não explicava que o governo extremista de Pol Pot tomou o poder graças ao vazio deixado pelas sucessivas guerras de agressão imperialistas. Também não explicava que em 1978 o país foi libertado da tirania de Pol Pot pelo exército do Vietnã. Pol Pot e o Khmer Vermelho se refugiaram nas montanhas, aterrorizaram a população e receberam apoio financeiro e militar dos Estados Unidos. A luta heroica pela independência do país, com tantos mortos, feridos, traumas, envenenamento do solo, águas, plantas, devido ao uso indiscriminado de armas químicas pelo exército estadunidense, jamais poderia ser ignorada, desprezada ou distorcida. Depois do sofrimento do povo por mais de um século, a antiga classe dominante, servil ao imperialismo e colaboradora nos massacres da população, voltara ao poder assim que o exército vietnamita deixou o Camboja. E ainda era chefiada pelo mesmo rei submisso da época das invasões.
Em outro ponto da cidade, nos campos de extermínio do regime de Pol Pot, vidros cheios de crânios e pedaços de roupa, buracos vazios pelo chão, acima dos quais escreveram legendas do tipo “vala comum dos adultos”, “vala comum das mulheres e crianças”, “vala comum dos sem cabeça”. E pensar que nenhum centavo do dinheiro arrecadado nas visitas daquilo fluía para o pobre povo cambojano. Não era de se estranhar os pedintes mutilados que se arrastavam pelas ruas, ignorados pelo rei.
Além dos mochileiros de sempre, o restaurante do hotel contava com suspeitos frequentadores, invariavelmente estadunidenses, apresentando idade superior aos 50 anos e aspecto militar ou paramilitar. Debatiam assuntos geopolíticos. Os doces agentes se deleitavam com a nova conjuntura local e auxiliavam a monarquia de plantão a explorar e oprimir o povo cambojano, a falsificar a história, a ocultar as atrocidades cometidas pela França e pelos Estados Unidos.
No dia anterior à partida do Camboja, dezenove pessoas morreram e cento e cinquenta ficaram feridas depois que uma bomba explodiu durante manifestação em frente ao palácio real. Apenas os manifestantes foram atingidos. Os policiais e agentes de repressão da monarquia nada sofreram.
Depois do voo a Bancoc, ônibus caro à região de Khao San, onde compramos vale-passagens de ônibus até a cidade de Nong Kay, nordeste da Tailândia, fronteira com o Laos.

Lotação pelo insuportavelmente lento trânsito de Bancoc à distante estação rodoviária. O motorista da lotação nos deixou com uma criança que nos conduziu pelas calçadas apinhadas de barracas de ambulantes e entupidas de gente até a rodoviária, ainda mais lotada e confusa. O garoto entregou os bilhetes definitivos, indicou a plataforma e desapareceu. Mas era a plataforma errada. No meio da confusão de milhares de pessoas, ônibus para todos os lados, barulho, fumaça, ninguém queria ajudar. Depois de muita luta, descobrimos o local correto, do outro lado do terminal.
Qualquer estação rodoviária do interior do Brasil, do mais miserável recôndito brasileiro, era mais organizada e civilizada que aquele buraco tailandês. Mas a Tailândia se submetia a todas as imposições da indústria predatória do turismo, se tornando um paraíso sem restrições para as transnacionais do ramo via degradação cultural, turismo sexual, tráfico de drogas, contrabando, lucros fáceis. Daí tantos elogios em guias e folhetos, alardeando a mentira de país “exótico” e “misterioso”.
Entre vários ônibus amontoados e fora das plataformas, multidões de pessoas com malas e sacolas se esmagavam e brigavam para embarcar. Os bilhetes escritos apenas em tailandês levariam somente até Udon Thani, e não a mais distante Nong Kay conforme o valor pago. Os assentos marcados nas passagens de nada valiam. O jeito era empurrar, abrir caminho, entrar em qualquer daquelas dezenas de ônibus e sentar imediatamente. E isso depois de inúmeras tentativas em vários ônibus. Era mais de meia noite, depois de cinco horas pastando no inferno da rodoviária de Bancoc.
Em Udon Thani, desembarque no meio da rua. De tuc-tuc até a estação rodoviária e, de lá, outro ônibus até Nong Kay, na margem direita do rio Mekong. Do outro lado, Vientiane, capital do Laos. Os condutores de tuc-tuc de Nong kay cobravam fortunas até o posto de fronteira tailandês. Nem pensar! O caminho seria feito a pé mesmo. Um francês que viera no mesmo ônibus alegava que da Europa cruzara por terra o Oriente Médio, Ásia Central, Índia. Mas caía em contradição ou não sabia responder às perguntas. Mesmo cansados, suados, famintos, e irritados, não deixamos de rir diante do farsante. E ele seguia com as estórias mirabolantes. Teimava que cruzaria a fronteira da China, iria até a Sibéria e embarcaria no trem transiberiano de volta à Europa e à França.
Pela distância sob o sol apelamos para lotação até a fronteira. Depois de cruzar o rio, entrada no território do Laos. Mais um tuc-tuc até o centro de Vientiane, vinte quilômetros adiante.

Optamos pelo primeiro hotel disponível em cidade sem vagas. E para a primeira refeição em 24 horas havia ambulantes oferecendo sanduíches feitos de baguete recheado com patê e verdura. Detonei dois imensos, mais copos de sucos de frutas frescas. Depois banho demorado e cama.
Após quatorze horas contínuas de sono profundo e merecido, nenhuma vontade de explorações. Então mais comida e mais cama. Despertar e mais desânimo. Entre voltas sob o calor tórrido de Vientiane, nada de fome, somente sucos deliciosos de frutas frescas. E novamente hotel.
Vientiane guardava atmosfera calma e tranquila. Nada de correrias, congestionamentos, gente apressada, poluição sonora. O tal progresso ainda não afetara o bucolismo da capital do Laos. Com exceção de avenidas periféricas, Vientiane mais se assemelhava a cidadezinha do interior. Em poucos minutos de caminhada a partir do centro, apareciam ruas de terra de vilarejo afastado. Casas simples, gente simpática e sorridente. Havia pobreza, mas sem miséria ou indigência. A margem do rio Mekong reservava bares e restaurantes de madeira, simples e despretensiosos. Mais adiante, cafés e restaurantes refinados e voltados para outros bolsos.
Caminhamos horrores sob o sol de rachar mamona e nada de ônibus a Luang Prabang, ponto ou terminal rodoviário, apenas passagens a Vang Vieng, cidade bem antes de Luang Prabang.
De ônibus à pequena Vang Vieng para agarrar o último quarto livre da pousada, simples, com banheiro coletivo, sem chuveiro, sem água corrente. Banho, somente de cuia. Na margem oposta do rio ao lado da cidade erguiam-se montanhas altas e escarpadas formando instigante paisagem no horizonte. Os moradores comentavam sobre cavernas no meio daqueles paredões.
O café da manhã típico da região, sopa com macarrão, verduras, ovos e demais temperos veio servido em enorme tigela. Deliciosa e bem preparada, a sopa levantava até defunto. O estômago agradeceu aquela maravilha.
As tais cavernas comentadas se encontravam em processo acelerado de destruição, com aterros, canalização do córrego de águas azuladas. A fauna e flora, aparentemente, ainda abundavam. Chalés turísticos se espalhavam pelo local ao lado de restaurantes com música ao vivo. Cobravam ingressos para entrar. Nada feito.
O ponto alto da pequena e barulhenta Vang Vieng, em obras por todos os cantos, ficava por conta da feira diária ao ar livre. Ao lado de produtos agrícolas tradicionais, barracas e ambulantes ofereciam iguarias finas do país, como besouros vivos, cobras, ratos secos, unhas, patas. Eram muito procurados pelos moradores e vendidos em poucos minutos.
Pela manhã em caminhonete lotada à cidadezinha de Kasi. A paisagem pela janela encantava com enormes montanhas escarpadas, bocas de cavernas entre vegetação espessa, vilarejos pitorescos de madeira, arrozais da região de Phatang.

Desembarque no acostamento, ao lado de Kasi, onde pararia transporte a Luang Prabang. Passaram somente dois ônibus abarrotados e sem garantias aonde iriam. Foram seis longas horas em vilarejo perdido no meio do nada. Os moradores permaneciam paralisados e com os olhos esbugalhados. Em nada ajudaram. Não moviam um nervo sequer do rosto. Mas não tiravam os olhos.
Do outro lado da estradinha apareceu ônibus em sentido contrário. Retornamos a Vang Vieng. Hospedagem em outra pousada, mais limpa, espaçosa, silenciosa e barata. As chuvas fortes trouxeram goteiras sobre a cama à noite. Mas não atrapalharam o sono.
De volta a Vientiane, concluímos pela enésima vez que o decepcionante sudeste asiático dera o que tinha que dar. Na capital do Laos havia uma imitação do arco do triunfo, construído durante a invasão e ocupação pela França por cem anos. Mesmo sem traços de forte personalidade, Vientiane seduzia pela calma, tranquilidade, apontando para cidade agradável de morar. Até quando?
Após cruzar a fronteira da Tailândia, passagem de trem para a Bancoc, a fim de evitar o pesadelo dos ônibus tailandeses. A boa e farta comida do restaurante em Nong Kay se contrapunha com o lixo estadunidense no último volume que vinha da televisão. E os interiores do trem noturno eram tristes, a frequência triste, o serviço de bordo triste, como regra naquele país triste. Na chegada a Bancoc, passagens conjugadas de ônibus e barco à ilha de Ko Pi Pi, com a intenção de passar o tempo até a data do voo salvador que nos libertaria do sudeste asiático.
continua...

domingo, 20 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 10/12)

...continuação
Surgiu a ideia de voar Bancoc, Yangon, circulando por Mianmar, Vientiane e retornar por terra pelo Laos e nordeste da Tailândia. Sair de Bancoc e percorrer outras paisagens empolgou os sonhos.
Nada feito. Não havia mais voos entre Yangon e Vientiane. Teríamos que retornar para Bancoc para seguir ao Laos. Outra agência ofereceu melhores preços de voos para Yangon, Mianmar. Novamente ótimas possibilidades.
Eu não entendia uma cidade sem atrativos como Bancoc atrair tantos estrangeiros. Mas se abarrotava de turistas. Era enorme, feia, poluída, com trânsito infernal, descaracterizada culturalmente. O povo antipático destratava a maioria dos estrangeiros, queria tirar vantagens financeiras em tudo. Jamais sorria, mudava os preços conforme a cara do turista. Só mesmo os guias escritos por empresas transnacionais para rotularem a Tailândia de “exótica” e “misteriosa”, e chamarem o tailandês de “povo sorriso”. Pela segunda vez no país, eu constatava exatamente o contrário.
E a viagem a Mianmar também deu errado. A agência tailandesa comunicou que o voo semanal estava lotado. Devolveu o dinheiro das passagens, mas embolsou o valor dos vistos. E isso depois de garantir os lugares no voo dias antes. Jogou o dinheiro das passagens na mesa e se virou para outro lado. Nem sequer ouviu as reclamações. Confiava na impunidade do golpe. Conhecia o país onde morava.

Nada havia a esperar daquele buraco. Compramos passagens no voo mais barato para a América do Sul, somente de ida, para Buenos Aires. Mas somente para um baita tempão depois. Dois meses inteiros se apresentavam à frente antes da libertação definitiva do inferno.
A Tailândia se ocidentalizava em ritmo acelerado. A influência estadunidense se apresentava a todo instante. Músicas, roupas, propagandas, camisetas, carros com bandeiras daquele país. Os Estados Unidos fizeram da Tailândia o quintal durante as invasões das tropas estadunidenses ao Vietnã, Laos e Camboja. Usaram-na como base para atacar os povos dos países vizinhos. Desrespeitaram a cultura local e impuseram costumes ocidentais. Trataram o povo como escravo. Transformaram a Tailândia em mera colônia para atender à máquina de guerra estadunidense. A indústria da prostituição, o tráfico de drogas, o turismo sexual, marcas registradas da Tailândia, nasceram naquela época e ainda sobrevivem graças ao turismo predatório.
De lotação até a cidadezinha de Laen Ngop, ainda no continente, através de estradas monótonas, ao lado de paisagens feias, ocidentalizadas. Depois barco à ilha de Ko Chang ao entardecer. Chalés mal construídos predominavam ao longo da praia, a maioria em palha e madeira fina, a preços altíssimos. A praia medíocre também não empolgava. No chalé simples, com banheiro, cama suspensa do chão, mosquiteiro, as formigas circulavam impunemente.
Pelas praias de Ko Chang não se ia muito longe, pois logo surgiam pedras e corais pontiagudos. Os insuportáveis mosquitos tailandeses combinavam com o país. A estrada atrás dos chalés oferecia trânsito pesado de caminhões, jipes, motos. Compensou pelos cajus arrancados das árvores na beira do asfalto. Na maioria dos lugares da praia onde havia música tratava-se do lixo estadunidense. Os turistas, sobretudo australianos, se deslumbravam. E tudo continuava assim. O restaurante com mesas sobre a areia da praia oferecia boa comida, baseada em ensopados de frutos do mar.
Em todos os dias, na minúscula sacada da frente do chalé, horas sem fim de leituras. Ao olhar a praia sem graça, desânimo, mais leituras e preguiça geral. Tailandesas passavam pela areia oferecendo serviços de massagem. Um ou outro turista caía no papo. Nada havia de massagem, apenas enganação para as pencas de turistas deslumbrados.

Os infindáveis engarrafamentos pelas avenidas e minhocões deram as boas vindas ao pesadelo de Bancoc. Mais dias no inferno do Bancoc sem fazer absolutamente nada, apenas aguardando o voo ao Camboja.
Os tailandeses, sobretudo os de Bancoc, gananciosos, só se aproximavam com intenções de tirar o sangue. E mantinham submissão exagerada diante das figuras do rei e da rainha. Ninguém ousava questionar, criticar, zombar, fazer brincadeiras de qualquer tipo com os monarcas. Chegavam a ponto de jamais lamberem os selos com imagens do casal absolutista. Humilhação semelhante ocorria frente aos monges budistas. As mulheres não podiam tocá-los, nem lhes produzir sombra, obrigando-as a se abaixarem, a se contorcerem. A juventude e a maior parte da população se deslumbravam com o lixo musical e cinematográfico estadunidense. Rostos e corpos ocidentais ditavam padrões de beleza nos cartazes, propagandas em geral. Os tailandeses exibiam bandeiras estadunidenses afixadas nas roupas, carros, adornos pessoais.
Cruzar a fronteira terrestre da Tailândia com o Camboja era perigoso. Desde a invasão dos Estados Unidos ocorriam confrontos armados e poucos eram os lugares seguros. Recentemente tinham morrido turistas ao cruzar a fronteira terrestre. Voo tranquilo e visto rápido no aeroporto da capital do Camboja, Phnom Penh.
A lotação levou ao hotel mais comentado da cidade. A segurança precária desaconselhava andanças pelas ruas da capital depois das 20h.
Bem cedo ao apertado barco para Siem Reap, com teto baixo, janelas pequenas e escuras. A paisagem fluvial guardava sequências de palafitas, barcos, pescadores, habitantes sorridentes.
Em terra, lotação de pousada escolhida a esmo, situada em parte calma e silenciosa da cidade. Muitas pechinchas para adquirir as entradas para os templos de Angkor, o guia e o aluguel da moto durante vários dias. Siem Reap ardia de calor e não parávamos de beber água.

Garupa da moto ainda no escuro a fim de assistir ao nascer do sol no Angkor Wat, surgindo atrás das pontas do complexo de templos. Depois, os templos de Bayon e arredores, numa impressionante sequência de rostos esculpidos na rocha, pequenas áreas ricas em esculturas, entalhes em pedra. À tarde, volta a Angkor Wat, para explorá-lo por inteiro internamente, até o pôr-do-sol. Grupos de turistas se espalhavam pelas inúmeras dependências. A maioria dos templos da civilização Khmer estava em ruínas, em restauração ou se resumia a blocos de pedra amontoados. O tórrido calor desconcentrava e só queríamos beber líquidos.
Apesar de retraído, o motoqueiro, e também guia, conquistava pela simpatia e pontualidade. Eram os três na moto pequena. Não era aconselhável circular livremente em Siem Reap pela falta de segurança nas estradas e caminhos. O contato com o país real, povo, cultura local, inexistia até aquele momento.
Pela manhã, os templos da região de Ta Phron. As ruínas em meio às árvores lhes forneciam atmosfera misteriosa e intrigante. E sempre por caminhos entre blocos desmoronados, passagens estreitas, portais de templos, esculturas perdidas, galerias com pedras trabalhadas. A vegetação crescia nas paredes e rochas. O cenário formado pelos extensos labirintos, a ausência de turistas naquele horário, o verde intenso, as sombras refrescantes, os entalhes surpreendentes com desenhos de divindades e cenas de época, encantavam a cada nova descoberta.
Liberamos o motoqueiro até o começo da tarde. Nada da programação previsível e turística matinal por Angkor. Melhor mergulhar no Camboja real, ao lado dos cambojanos. Ignoramos as advertências sobre a insegurança. Caminhamos aos templos de Roulus, por ruas, a estrada principal, as estradas secundárias fornecendo perfil da vida rural do país. Casas de palha suspensas do solo, lavouras primitivas e pouco aproveitadas, vaivém de bicicletas, motos, caminhões. Os habitantes sorriam espontaneamente, interrompiam os afazeres, procuravam conversar. Mesmo apenas com gestos, olhares, havia a comunicação e as trocas de carinho.  De volta a Siem Reap, o mercado com o colorido e os burburinhos. Todos olhavam e lançavam sorrisos soltos. Comemos nas barraquinhas de rua. Mais saboroso e mais barato, sem falar no contato direto com os cambojanos. Nenhum outro turista se arriscava a conhecer o verdadeiro país, se restringindo em visitar os lugares indicados nas páginas dos famigerados guias.

À tarde, o pneu da moto furou e o guia a levou para a reparação. Enquanto esperávamos na beira da estrada, sozinhos, os cambojanos passavam e sorriam, estranhando dois estrangeiros parados no meio do nada. Um senhor de bicicleta parou, desceu, veio conversar. Três lavradoras também pararam as bicicletas.  Sorriram, gesticularam, falaram espontaneamente, deram batata doce. A mímica funcionou e bem em ambos os casos. O povo cambojano, distante do contato diário com o turismo, revelava-se mais simpático e acolhedor.
Com a moto reparada, repetição do pedaço favorito de Angkor, as ruínas de Ta Phron, durante horas pelos caminhos e restos de templos. Delicioso se perder pelas ruínas em meio às árvores, sentindo a magia daquela atmosfera. Retorno somente ao anoitecer.
Depois das comidas das barracas nas ruas do mercado, nunca mais a comida de hospital da pousada. Barata e boa comida em contato com o simpático povo cambojano. As donas da barraca habitual se sentaram para conversar. E despedidas festivas na certeza de que contatos com povo real valem mil vezes mais que visitas burocráticas a atrações turísticas.
continua...

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 9/12)

...continuação
Até a descida empolgou. E mais samosas, tickias, xícaras de café com leite cremoso. Retorno ao quarto do hotel ao anoitecer.
Subidas em dois outros picos na manhã seguinte, caminhando sobre a neve. Era dia eleitoral e nada funcionou. Relaxar e preguiça. Havia os pequenos lanches e local para comer masala dosa e chowmein. O quarto do hotel agradava. A cidade e os moradores conquistaram logo de cara. As caminhadas maravilhavam. Não havia razões para mudanças ou partida de Nainital.
Já eram mais de três meses na estonteante Índia. O país fascinava e muito. As eventuais frustrações jamais lhe tirariam o brilho. A maioria dos indianos encontrados, no entanto, primava pela chatice. Os adolescentes puxavam a fila. Invariavelmente com visual de astros de cinema indiano, vestidos à moda dos anos de 1930, projetos de bigodes, pentes nos bolsos traseiros das calças para acertar os repartidos dos cabelos, esses indivíduos faziam o sangue subir. Não conversavam nada de interessante, apenas perguntavam. Grudavam e não se afastavam. Mas eles jamais tirariam o brilho dos detalhes e do conjunto da Índia.
Uma barraquinha de rua, na beira do lago, servia pão com omelete pelas manhãs. E havia o café com leite na barraca ao lado. Eu comia dois sanduíches e vários copos, tudo quente, preparado na hora. A fuligem enegrecia as mãos do homem da barraca e ele as usava diretamente nos ovos e pães. E, como toque final, colocava uma das fatias de pão sobre a omelete e a pressionava com a mão escurecida para penetrar o gosto, da omelete e das mãos dele. Nunca fez mal e repeti inúmeras vezes. E, para arrematar a refeição matinal, dois copos de coalhada artesanal no beco mais adiante.

Dia para relaxar e apreciar o movimento dos moradores sob o sol de inverno. Na volta, parada em bar para o chá com leite. O rapaz do balcão ofereceu a mesa na calçada. Então saíram os três funcionários do bar em direções diferentes. Um correu para o lado direito, outro para o lado esquerdo e o terceiro subiu na moto e disparou. Sumiram todos de vista. O bar ficou vazio, sem ninguém para atender. Dez minutos depois voltaram com pacotes nas mãos. Um com chá, outro com leite, o terceiro com o açúcar. Somente aí iniciaram a preparação. E serviram. Era a Índia. O chá temperado com leite empolgou, como sempre, ainda mais naquele friozinho de fim de tarde.
Nova subida ao pico Tiffin. Voltamos ao hotel, estendemos as roupas ao sol, nos sentamos. Permanecemos horas assim. Sentimos suave sensação de calor enquanto líamos e apreciávamos a paisagem.
Após pães com omelete, sucos, café com leite cremoso, durante a manhã na beira do lago, descida de ônibus para Kathgodan. Entre salgadinhos, chá no bar da plataforma, circuladas pelas ruas sem graça da cidade sem graça, o tempo passava lentamente. O relógio não andava. Mas o trem noturno finalmente partiu, pontualmente.
Em Delhi troquei livros e guias em sebo no meio da calçada. E saí com dois exemplares bem gorduchos, ambos em inglês, do escritor russo Leon Tolstoi, Guerra e Paz e Anna Karenina. Teria a viagem toda, e mais um pouco, para lê-los.
E bem cedo, o trem expresso, com comes e bebes incluídos na passagem, vagões com cadeiras reclináveis, contribuíram para o astral do percurso. Na estação ferroviária de Ajmer, ônibus para Pushkar, dessa vez sem a feira de camelos.
Pushkar mantinha-se linda e charmosa, mas o crescimento vertiginoso do turismo deixava marcas profundas. Meninos e meninas perambulavam pelas ruas e becos pedindo ou exigindo dinheiro, agressivamente. Os restaurantes ofereciam pratos ocidentalizados no formato de bufê. A comida com gosto de hospital preparada sem inspiração carecia de tempero. Somente depois de buscas prolongadas, vinham as comidas indianas. Pratos vegetarianos do sul do país, quase impossível. Paradoxal em cidade sagrada, vegetariana e abstêmia como Pushkar.
Café da manhã tardio e farto, longas e soltas caminhadas pela cidade, bastante música clássica indiana nas tendas. Sem a feira de camelos e os preços abusivos de meses antes, quando de nossa primeira visita, Pushkar agradava bem mais.
A mente se sentia leve, sem rumo, sem compromissos, sem roteiros. Os instintos conduziriam para cá, para lá, para lugar nenhum. Do topo de imensa duna de areia, o deserto de Thar sem fim. Um camelo descansava sob a sombra de árvore. Ignorávamos as crianças que continuavam a pedir de tudo. Nada dos bufês ocidentais que infestavam a cidade. Comíamos somente nos raros e escondidos restaurantes de comida indiana.

Pushkar era vegetariana e proibia o consumo de álcool e drogas, de acordo com o código de conduta afixado em todos os cantos da cidade. O comércio de cigarros e do alucinógeno indiano bang, no entanto, se escancarava pelas lojas e ruas. Nada de ovos, mas tudo de laticínios em geral, venda de artigos de couro e demais derivados de animais. Sem falar nos golpes dos ônibus privados que sentíramos na pele meses antes. A cidade sofria nas mãos da casta dos brâmanes, para quem o lucro falava mais alto. A tal cidade sagrada, vegetariana e abstêmia constava apenas nos folhetos e guias turísticos. Os turistas, na esmagadora maioria, consumiam de tudo, sem ressalvas. E contribuíam para a descaracterização de lugar tão especial.
O pôr-do-sol de um lado do horizonte, enquanto a enorme lua cheia nascia do lado oposto, foi de cair o queixo. O alto do morro, como se não bastassem o sol e a lua, proporcionava imagens marcantes das construções brancas e azuladas da cidadezinha refletida nas águas espelhadas do lago. E, pelos becos da cidade, a refeição foi de katchori e gulab jamun.
Entre perambuladas pelas pequenas dunas nos arredores da cidade, cabras se aproximaram e gostaram da companhia. Chamamos o rebanho na volta à cidade. Seguiram bem de perto pelas ruas. Entra e sai de ruas, e elas atrás, firmes e animadas. Conseguimos despistá-las no centro da cidade somente após acelerar o passo e aumentar a distância delas.
De ônibus à cidade não turística de Ajmer. Em restaurante muito simples em frente à estação ferroviária, pedimos masala dosa. E vieram pegando fogo de tanta pimenta. As lágrimas se derramavam caudalosas dos olhos e molhavam as camisetas. A pimenta realmente incendiava por dentro. Mas não dava para parar de comer. Estava delicioso demais. E viramos atração mais uma vez. Os cozinheiros, garçons, frequentadores, não acreditavam no que viam, sobretudo depois de repetirmos os pratos. Os olhos estavam vermelhos, os rostos molhados de lágrimas que não paravam de brotar. Mas que masala dosa divino! O café e chá com leite cortou parcialmente o ardor generalizado.
O trem noturno partiu a Delhi, onde foi difícil conseguir riquixá à outra estação. Mais uma hora e meia para deixar as mochilas no guarda-volumes na estação de Nova Delhi.
Ao entrar no vagão do expresso Rajdhani, muita euforia diante da cabine privativa, exclusiva. A melhor cabine de primeira classe do melhor trem de toda a Índia aguardava ampla e arrumada. Enorme e confortável sofá de couro, carpete, armário, pia, duas pequenas mesas. O sofá virava cama abaixo de outra cama embutida mais acima. O serviço dos funcionários internos primava pela opulência. Trouxeram vasos de flores, jornais, travesseiros, água mineral, sabonetes, toalhas, entre dezenas de itens para tornar a viagem a mais agradável possível.

O expresso Rajdhani partiu à tarde rumo a Calcutá e todas as refeições estariam incluídas no baixo preço das passagens. Serviram chá em xícaras de porcelana pintada, acompanhado de biscoitos e bolachas. A imensa janela exibia as paisagens externas nitidamente. O som ambiente divulgava avisos sobre o funcionamento dos serviços e, para destoar da perfeição, vomitava lixo musical estadunidense, em imperdoável deslize da eficaz empresa estatal ferroviária da Índia. Tantas maravilhas da música clássica indiana e optaram justo por aquilo.
O jantar oferecia opção vegetariana ou não. Para manter a classe, foi servido em quatro etapas. A primeira consistia de sopa, pães, torradas, manteiga. A segunda incluía fatias de carneiro assado com batatas fritas e verdura cozida. A terceira chegou com maçã recheada e legumes. A quarta e última etapa coroou o lauto jantar com sorvete.
Mais à noite o prestativo funcionário trouxe lençóis perfumados e cobertores.
Logo ao amanhecer serviram chá com pães e biscoitos. Mas ainda não era o café da manhã. O verdadeiro surgiu em seguida, incluindo omeletes, peixe frito, batatas, queijo, maçã, mais chá.
As curtíssimas dezessete horas voaram e Calcutá se fazia visível pela enorme periferia. A escolha de viajar pelo expresso Rajdhani não poderia ter sido mais apropriada rumo à última cidade a ser visitada na Índia. Parabéns ao expresso Rajdhani. Parabéns a todo o sistema ferroviário estatal indiano, em constante expansão e modernização. Com muita admiração e inveja de dois viajantes residentes em um Brasil criminosamente rodoviário.
A Índia, os trens, as ferrovias, já deixavam saudades depois dos quatro meses de explorações pelo país. Foram tantas as imagens, internas e externas. As estações, os vendedores ambulantes, as filas imensas, os cagões matinais alinhados nas dormentes, os sacolejos, os assentos, as camas, os banheiros no estilo indiano, os lugares destinados às bagagens, as conversas, os indianos que nunca abriam mão de conforto, levando colchão, lençol, travesseiro, cobertor, gorro, sempre bem alimentados com comida de verdade, nada de lanches ocidentais. Difícil esquecer aqueles momentos ferroviários. Nem se eu quisesse. E eu não queria.
Calcutá contava com personalidade e charme de cidade grande. Diferentemente da industrial Mumbai e da administrativa Delhi, Calcutá era a capital intelectual da Índia. Ali residiam as principais cabeças culturais do país e produziam os filmes de qualidade que frequentavam festivais internacionais. Não parecia ser cidade tão barulhenta como diziam, reservava áreas verdes, árvores nas calçadas, construções antigas, cafés simpáticos. O eficiente metrô primava pela limpeza.
O jantar de despedida da Índia, em grande estilo, veio de apenas masala dosa e idli. Foram vários deles para a felicidade geral da nação.
A minoria de indianos no avião da manhã tornou-se maioria em razão do tumulto criado. Não paravam quietos, incomodavam as comissárias com pedidos insistentes, encaravam as pessoas, fumavam demais. O avião ainda nem aterrissara e se levantaram espalhafatosos. E imediatamente me lembrei das sessões de cinema quando os espectadores se assanhavam e saíam da sala antes do final do filme. Era a Índia que não queria ir embora, mesmo próximo do desembarque na tenebrosa Tailândia.

O avião pousou à noite em Bancoc debaixo de calor forte e abafado. Foi difícil encontrar quarto livre no hotel em que me hospedara dois anos antes. Um pat thay na rua, outras coisinhas para completar o estômago e cama.
Pela famigerada região de Khao San tentamos traçar planos das próximas etapas. Não havia disposição para nada. Rango novamente nas barracas de rua, local mais saboroso, mais fresco e ventilado que os restaurantes. Entre mapas, fotos, guias, agências de viagens, muitos planos, muitas incertezas, nada decidido. O calor beirava o insuportável, fazendo transpirar por todas as partes do corpo, nas ruas, bares, sob o ventilador do quarto do hotel. A região do Grand Palace lotava de turistas como sempre.
À noite, durante andanças pelas ruas previsíveis de Khao San, eu vestia camiseta amarela com frases e propagandas de produtos tipicamente brasileiros. De dentro de um das dezenas de bares entupidos de turistas, saiu um cabeludo de pouco mais de vinte anos. Correu em minha direção, balançando os braços, gritando qualquer coisa. Só quando se aproximou percebi o motivo. Brasileiro e por muito tempo sem contatos com outros brasileiros, ele me reconhecera pela camiseta. Os olhos dele brilhavam de emoção indisfarçável. E convidou à mesa do bar junto a mais brasileiros que também viajavam havia muito tempo. Moraram na Austrália, passaram por vários países e planejavam voltar ao Brasil. Foram horas e copos sem perceber o tempo passar. Brasileiros fazem festa quando encontram brasileiros, sobretudo durante longas viagens restritas a contatos com turistas insípidos dos demais países.
Depois da estonteante Índia, nada despertava entusiasmo. O tremendo equívoco cometido no roteiro da viagem começava a aparecer. Eu já sentira parcialmente a frustração dois anos antes. O sudeste asiático atraía bem menos que o subcontinente indiano. Desta vez o choque negativo fora mais intenso. A decisão correta seria ter tomado rumo oeste, em direção ao Paquistão, Irã, Síria, Turquia. A viagem ganharia contornos mais desafiadores e instigantes.
continua...

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 8/12)

...continuação
Os condutores de riquixás abordaram gentilmente na plataforma da estação. Após as pechinchas de praxe, surpreendeu a ausência de tentativas de arrastar a hotéis que lhes pagavam comissão. Ainda mais em cidade turística como Varanasi. O riquixá percorreu diversos becos, entrou à esquerda, à direita, entrou no pátio interno e parou nas escadas em frente à recepção. Quanta atenção e carinho! Embora com preços levemente acima da média, o quarto razoável agradou. Mas somente no momento de preencher o formulário na recepção percebi que era outro hotel. Em nenhum lugar visível dentro ou fora do sobrado exibiam o nome em destaque. O condutor do riquixá desaparecera na poeira, com a comissão obviamente. E aquele hotel se localizava distante da margem do rio Ganges, o contrário do desejado inicialmente.
Em longa caminhada ao centro antigo de Varanasi, nas imediações da margem do Ganges, contato direto com a incrível e fascinante confusão da cidade. O trânsito beirava o absurdo, mesmo sem ônibus, caminhões, poucos carros. Os vendedores de serviços e objetos em geral abordavam a todo instante. A atmosfera religiosa com peregrinos, becos muito estreitos, gente por todos os lados, cheiro de leite fervido e das coalhadas caseiras, vacas e mais vacas gordas e bem nutridas, sem falar no rio com toda a parafernália mística e espiritual nos degraus da margem.
Opções melhores e mais caras de hospedagem seduziam pela privilegiada localização no centro antigo, pela vista deslumbrante do Ganges, os degraus, as cerimônias, os becos, os telhados das casas antigas, se descortinando das janelas e sacadas dos quartos decorados à indiana.

Varanasi era referência musical na Índia. À noite, procura de recitais de música clássica indiana. O primeiro local era praticamente inacessível à noite devido à completa escuridão dos becos da cidade antiga. Nem com o acompanhamento “desinteressado” das crianças dava para encarar aquele breu. A segunda tentativa, em bar e restaurante, estava às moscas, sem sinal de música. O terceiro local lotava de espectadores e quiseram nos jogar no fundo escondido e longe dos músicos. Nos restaurantes, com música de fita, eles impunham lixo estadunidense. Mas, se pedia música indiana, concordavam sem pestanejar. Ufa, alívio para a mente e corpo.
Varanasi tornava-se a cidade com mais assédios e abordagens interesseiras. Nenhum minuto de sossego, sobretudo na margem do Ganges. Multidão de vendedores, massagistas, homens sagrados, guias, estudantes de história, agentes de empresas de turismo, muitos inteiramente falsos, procuravam turistas desavisados. Da linha das águas, ou mesmo nos degraus, os barqueiros ofereciam passeios, a todo instante, insistentemente. Nem nos setores das cremações davam trégua.
Tarde de domingo para pegar uma sessão de cinema. Finalmente o famoso Raja Hindusthani, o mais comentado e adorado filme indiano daquela temporada.
Depois da fila imensa, as bilheterias ofereciam diversos preços conforme o setor da sala. Mais próximo à tela e nas laterais, os mais baratos. No balcão superior, os mais caros. Ainda nem todos tinham entrado e o filme já começara. Com as luzes acesas. Ninguém parecia se importar com isso. Não se apressavam, continuavam a entrar, conversavam alto, iam e voltavam do banheiro, comiam, bebiam. E o filme seguia na tela. As luzes finalmente se apagaram. Tudo indicava que viria o silêncio e eles prestariam atenção. Nada disso. Não parava de entrar gente e a gritaria prosseguia. Os lanterninhas mais atrapalhavam que ajudavam. Os seguranças disfarçavam e nem pressionavam para botar ordem no recinto. As luzes se acendiam e apagavam diversas vezes. E o filme seguia na tela. De repente entrou um sujeito com uma bandeja repleta de xícaras de café com leite e as ofereceu em voz alta. Alguns aceitavam. Outros falavam. Os lanterninhas e os seguranças circulavam para lá e para cá. E o filme seguia na tela. Sim, tinha gente que prestava atenção no filme, gritava e aplaudia. Outros vendedores entraram na plateia. Agora carregavam caixas de refrigerantes e de salgadinhos. Raspavam o abridor nas garrafas de vidro, berravam as ofertas, todos ao mesmo tempo, com nas feiras livres. E o filme seguia na tela. Veio o intervalo. A maioria se levantou, comprou comes e bebes, foi ao banheiro. O intervalo terminou sem qualquer aviso. O filme recomeçou com a maior parte dos espectadores ainda do lado de fora. Novamente ninguém se abalou ou se apressou para voltar às cadeiras. Mais divertido pela balbúrdia indiana na plateia do que pelo filme de mais de três horas de duração, falado em hindi, sem legendas. A barreira da língua nunca seria problema. Dramalhões, interpretações exageradas e risíveis, enredo mais que óbvio orientavam a entender o enredo. Bastaram as penúltimas cenas apareceram na tela, para a maioria se levantar e se dirigir às saídas. Mas o filme ainda não terminara!
A afirmação que os indianos são a principal paisagem na Índia era a mais pura verdade durante uma sessão de cinema.
À noite finalmente restaurante com música clássica indiana, ao vivo. A apresentação se resumiu a menos da metade do prometido. E aquilo nunca foi música clássica indiana. Os tais que se exibiam no minúsculo palco no canto do ambiente apostavam na ignorância dos fregueses, cem por cento de estrangeiros, e enrolavam improvisos nas cítaras, flautas, tablas. Nada além de embromação para turistas.

Para a estação ferroviária rumo ao embarque depois da meia noite. Com longos cassetetes de madeira pendurados no cinto, policiais abordavam e posavam de rigorosos na segurança das plataformas. Exibiam olhares inquisidores e enchiam de perguntas.
Pela primeira vez na Índia, um trem feio, velho, mal conservado. Mais parecia sucata. O desembarque em Satna na manhã seguinte aconteceu por pura sorte. No exato momento em que o trem parara, avistei sem querer, pela porta de saída, o nome da estação no muro da plataforma. Ainda adormecidos, conseguimos correr e descer assustados com as mochilas antes que o trem partisse.
Não havia trens de Satna a Khajuraho. O ônibus podre, caindo aos pedaços, seguiu por estradas esburacadas. O pequeno vilarejo de Khajuraho, no estado de Madhia Pradesh, oferecia paz e tranquilidade, quebradas apenas pelos berros dos insistentes donos de lojas de bugigangas.
Foram várias horas perambulando em meio aos templos de Khajuraho. Mereciam! Se dispunham ao redor de gramados e flores, formando conjuntos harmônicos e bem preservados. Mesmo depois de tantos templos visitados, encantavam profundamente, no geral e no detalhe. Guardavam arquitetura impecável, ricamente ornamentada com esculturas, imagens, trabalhos em alto relevo em rocha dos mais impressionantes em toda a Índia. Os detalhes incluíam temas variados da história, costumes, cenas cotidianas da vida, sexo, guerras, danças, festas, trabalho. As maravilhas emocionavam inclusive os discretos casais e as recatadas famílias indianas diante de posições nítidas e explícitas de sexo entre duas pessoas, casais, grupal, zoofilia. Poses sensuais de mulheres exibiam corpos perfeitos e a alegria de viver. A cada ângulo, os detalhes revelavam mais e mais belezas.
Perto da vila, outros grupos de templos. Embora bonitos, se ofuscavam pelo impacto dos templos principais. Valeu pela caminhada nas estradas e na vila velha de Khajuraho, por entre casinhas brancas com portas pequenas e baixas, chão de barro, gente colorida, muita delicadeza, limpeza. Os adultos sorriam e cumprimentavam. Desvirtuadas pelo turismo predatório, as crianças imploravam por caneta, chocolate, dinheiro.
À tarde preguiça gostosa e relaxante nos arredores da vila, ao embalo dos sons da natureza.
Ainda no escuro ônibus a Jhansi, em Uthar Pradesh, de onde o riquixá levou à estação ferroviária. Em vagão de segunda classe, quase vazio, chegada em Agra antes do tempo previsto. E mais parabéns ao eficiente transporte público e estatal indiano.
Possuidora da atração mais famosa da Índia, Agra não deixaria de contar com batalhões de chatos ainda na plataforma da estação. Cercaram e¸ com a insistência habitual, ofereceram riquixás, táxis, hotéis, passeios. Cobravam inicialmente preços altíssimos pela corrida. Alegavam que cumpriam a tabela. Tabelas de riquixás na Índia? Outros condutores se aproximaram e os preços baixaram gradualmente. E os condutores comunicaram solenemente que a região do Taj Ghanj, perto do Taj Mahal, não existia mais. Segundo eles, depois de repetidas enchentes, o governo demolira a área a fim de preservar o Taj Mahal. E que havia melhores opções de hospedagem em outros bairros, das quais, por acaso, eles tinham sugestões a mostrar. Impressionante a imaginação de inventar estórias mirabolantes para conduzir a hotéis dos quais arrancavam comissões. Nem pensar! Baixaram os preços, mais ainda. Depois de tanta encenação, um condutor de ciclo-riquixá, mais sereno, aceitou levar ao Taj Ghanj por preço justo.

A região de Taj Ghanj, claro, permanecia de pé, firme e forte, sem enchentes, sem demolições. A vista do hotel dirigido por muçulmano vestido a caráter exibia parte da cúpula do Taj Mahal.
Era o dia do nascer do sol no Taj Mahal. Ainda nem amanhecera. O Taj Mahal mudava gradativamente de cores à medida que o dia nascia. Nem o frio tirou o encanto do visual. Construído por encomenda de um muçulmano, o Taj Mahal guardava formas de mesquita. Mas, como o idealizador visava apenas guardar os restos mortais da ex-esposa, a face da construção não se voltou para Meca, impedindo que se transformasse em destino de fiéis. Foram horas apreciando as simétricas formas, de longe, de perto. Retorno ao Taj Mahal perto do meio-dia e também durante o pôr-do-sol. De todas as maneiras, sob todas as luzes, de todas as distâncias.
Mas nem tudo são flores no Taj Mahal. Os turistas dos países imperialistas, aqueles que os desinformados chamam de primeiro mundo, continuavam a dar espetáculos de má educação, desrespeito, arrogância, prepotência. Com posturas racistas, de superiores em contato com os inferiores, os sujeitos pisavam na grama, mesmo diante de avisos em inglês, grandes e visíveis. Sentavam nas escadas impedindo o livre trânsito dos demais visitantes. Empurravam. Jogavam lixo fora das lixeiras.
O muçulmano a caráter que dirigia o hotel gostava de conversar. Sempre parava para trocar frases e observações. Nunca tocou em assuntos religiosos ou tentou converter ninguém. Apenas queria falar e ouvir sobre assuntos em geral.
O vagão de segunda classe do trem para Delhi transbordou de passageiros. Não adiantou aguardar os trens seguintes. Era um mar de gente, muita gente. Permanecemos em pé, esmagados entre os outros passageiros, enquanto as mochilas eram esmagadas e pisoteadas.
Em Delhi, riquixá à outra estação ferroviária, de onde sairia o próximo trem. A estação oferecia boa infraestrutura para comer e descansar. O trem noturno entrou na manhã seguinte em Kathgodan, ponto final da ferrovia. Dali somente ônibus com destino a cidade serrana e gelada de Nainital, ainda em Uthar Pradesh.
O hotel contava com água quente no banheiro, quarto amplo com janelas, vista para o lago e para as montanhas mais ao fundo. A diária não era das mais baratas, mas a baixa temporada permitiu generoso desconto após as pechinchas de costume.
Nainital servia como destino dos indianos que se refrescavam do forte calor das planícies. Mas a temporada começaria somente em um mês. Era inverno ainda. Ventava, o frio castigava, na sombra e à noite. Ainda havia neve nas ruas e nas montanhas do outro lado do lago. A cidadezinha conquistou de imediato, com o grande lago, bazares, moradores simpáticos de tipos montanheses. A maioria dos hotéis e restaurantes se mantinha fechado e sobravam poucas opções de refeições, sobretudo à noite, em meio a ruas desertas e geladas. O céu estrelado se refletia nas águas espelhadas do lago. Era outra Índia, montanhosa, fria, bela.
A caminhada bem cedo visava alcançar o topo do pico Cheena, a poucas horas do centro da cidade. Mas já bem no alto da montanha o tempo nublara. Escurecia, ventava forte, o frio doía nos ossos. Nada feito. Meia volta volver. Descida e café da manhã reforçado em mercearia da cidade. E nos abastecemos de muita comida antes de retornar ao quarto do hotel e permanecer debaixo dos cobertores. Não saímos mais. Pela janela, deitados e aquecidos, víamos o tempo piorar. Escurecia, relampejava, trovoava, chovia, nevava, enevoava. E dificultava a visão do lago e das montanhas em frente. Delícia a preguiça. Leituras, sonecas, comes e bebes no quarto aconchegante e aquecido, dormir bem cedo.
Amanheceu dia brilhante, ensolarado, céu limpo, raras nuvens. A cidade cobria-se de neve nos telhados, árvores, veículos, ruas, estátuas.
Nova tentativa de subir o pico Cheena. Os caminhos se cobriam de neve. O branco predominava nas árvores da floresta, nas casas esparsas, no pequeno templo do início da subida. Dificuldades de avançar na neve espessa. Os pés afundavam, escorregavam, perdiam a trilha. Mas a brancura, a sombra da vegetação sobre a neve, a vista da cidade lá embaixo, compensavam as dificuldades. Mas novamente nada de topo. A trilha sumiu encoberta pela camada de neve. A fome e sede vieram com toda a força. De volta à cidade.

As ruelas e becos de Nainital se animavam pelos carregadores, as lojinhas lado a lado. A neve derretia rapidamente sob o sol, escorria dos telhados, permanecia apenas nos lugares sombreados. O cenário brilhava sob a luz típica de inverno. Reforços ao estoque de comestíveis para o quarto. Circuladas despretensiosas ao redor do lago, pelos bazares da outra extremidade da cidade. Muita leveza das sensações e prazeres.
O cardápio do bar simples do centro da cidade não ia além do chowmein e do divino masala dosa. Foram vários dessas maravilhas apimentadas, sempre regadas a xícaras de café com leite bem quente e cremoso coberto com chocolate em pó.
Subida do pico Tiffin, do outro lado do lago, por trilha fácil e agradável. A visão da cidade e da cordilheira do Himalaia ao fundo era impressionante. Animados com a visão das montanhas, nova tentativa da subida do pico Cheena. Após ultrapassar o ponto de impasse do dia anterior, o rumo certo, um pouco mais visível, entre florestas cobertas de neve. A luz do sol penetrava por entre as árvores e brilhava todo o cenário. Caminhar sobre a neve era desgastante, mas as diferentes paisagens espantavam o cansaço. E, depois de subir mais e mais, caminhar bastante sobre neve escorregadia, finalmente o topo do pico Cheena. Na terceira tentativa. E que visual! A extensa faixa da cordilheira do Himalaia dominava o horizonte com dezenas de picos nevados. Nainital e o lago azulado marcavam a visão do lado oposto. Difícil descrever exatamente os sentimentos. Demais! Ninguém queria sair dali.
continua...

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 7/12)

...continuação
Vestindo roupas demasiadamente sociais, calças, cinto, camisa por dentro das calças, sapatos e meias, os indianos pós-adolescentes perambulavam pela praia observando as turistas ocidentais de biquínis ou maiôs. Ao se aproximarem, diminuíam o passo e as olhavam de queixo caído. Raros os indianos que tiravam as roupas sociais, ficavam à vontade ou entravam no mar. As indianas, dentro de coloridos e insinuantes saris, apenas permaneciam sentadas na areia e, de longe, apreciavam a paisagem e a diversão dos homens da família. Os olhares revelavam sonhos e desejos não permitidos pela opressão machista da sociedade indiana.
Visita ao conjunto de templos mais ao sul da cidade. Cercado e com cobrança de ingressos, o complexo interessava pelo todo, perdendo feio nos detalhes para os templos da beira da praia. Os becos de Mahabalipuram se decoravam para o Pongal. Os moradores desenhavam figuras coloridas nas calçadas e ruas de areia, geralmente em forma de plantas e flores.
A cada dia o céu ficava mais limpo e a cor do mar se acentuava em tons azulados ou esverdeados. A correnteza diminuía e as águas se tornavam mais límpidas. Mas, na extensa praia de tombo oferecendo sequência de ondas ininterruptas e mar agitado, era entrar, tirar o suor, balançar para cá e para lá, voltar para a areia. Eram ali todos os finais da tarde. A luz do entardecer valorizava a beira do mar, becos, casinhas de pescadores, grutas, templos.

Depois de meses pela Índia, com olhos anestesiados, as coloridas roupas femininas já não chamavam tanto a atenção. Não que os saris, punjabis e sarongues não merecessem elogios. Apenas tinham perdido o impacto da novidade. Os indianos do sul chamavam mais a atenção e se diferenciavam dos colegas mais ao norte. A maioria vestia sarongues, estampados ou não, soltos até os tornozelos ou recolhidos acima dos joelhos para espantar o calor. Os tons da pele, no entanto, em ambos os sexos, evoluíam para o escuro.
A cidade amanheceu para o dia principal do Pongal. O comércio estava quase todo fechado. Moradores saíam às ruas para festejar. Não faltavam bêbados cambaleantes. Policiais observavam o movimento. Crianças entravam nos restaurantes turísticos e, com o cofrinho nas mãos, desejavam Feliz Pongal. E pediam dinheiro, por tradição ou por mendicância vinda do turismo.
Pela praia ao entardecer, a fim das despedidas da areia e do mar. Adolescentes e pós-adolescentes indianos, levemente bêbados, nos cercaram. Ela entrou no mar. Não desgrudavam os olhos na expectativa de a verem sair da água de maiô. Mudei de lugar na areia e ela fez o mesmo nadando. Não adiantou. Continuavam seguindo. Ao tentar espantá-los, me perguntavam o nome. O turismo predatório, aliado à invasão do lixo cultural ocidental, combinado com a sociedade indiana machista e repressora, provocava cenas absurdas como aquelas. Mas não com os mais velhos, mais simples, ainda imunes às influências do exterior, guardando mais simpatia, hospitalidade, tolerância.
Cedo o ônibus logo entrou na doce cidade de Chenai, o paraíso na Terra. Que alegria estar em cidade tão bela e acolhedora! Mas finalmente uma sorveteria, tão comum na Índia central, raras por ali. Foram duas enormes taças de três bolas, várias caldas, castanhas. Ainda sobrou espaço para a coalhada batida com sorvete de café. Aqueles sorvetes fizeram mudar o mundo.
Noite para comer masala dosa no bar instalado em sobrado horrível, cheio, desorganizado, esfumaçado, com atendimento odioso. Mas, quando chegava o soberbo masala dosa, nenhum mal ou problema existia, apenas prazeres diante da naquela delícia.
O trem procedente de cidades mais ao sul atrasou. O compartimento que continha os assentos e as camas reservadas estava entulhado de malas, sacolas, comida, bugigangas, pertencentes à família de quatro indianos de Calcutá. Como uma das camas era no nível superior, a usávamos para largar as mochilas durante o dia. Quando comia, a família se espalhava, não sobrando espaço para ninguém. Mas surgiram boas conversas durante o trajeto.
À noite o jeito foi dividir o exíguo espaço das camas com as grandes mochilas. Não conseguimos relaxar, nem pregar os olhos. E, na cama acima, um dos bengaleses roncava feito trator na subida com o afogador entupido.
As mais de vinte e quatro horas do trajeto cruzaram o nordeste de Tamil Nadu, Andhra Pradesh de sul a norte, o sudeste de Orissa. Além dos bons papos com os demais passageiros, daquele e de outros compartimentos, valeu o variado serviço de comida vendida nos vagões pelos ambulantes, aparecendo a todo instante com algo para comer, beliscar, beber. O cardápio incluía thalis completos, samosas, bolinhos, frituras em geral, pães, doces, sorvetes, frutas variadas, inclusive goiabas vermelhas e gordas salpicadas de pimenta vermelha.

Os banheiros nas extremidades dos vagões se separavam entre os de estilo indiano e os de estilo ocidental. Os primeiros não possuíam vaso sanitário, apenas latrina pouco acima do nível do chão. Mais higiênicos ao impedirem contatos físicos e mais convenientes nas eventuais prisões de ventre, foram os eleitos em todos os trens na Índia.
Desembarque do trem lotado em Khurda Road, estação de conexão ferroviária rodeada de poucas e esparsas casinhas.
Os moradores do vilarejo aos poucos se aproximaram da estação ainda vazia. E, tomados de infinita curiosidade, se aproximavam mais e mais. Revelavam expressões de espanto e perplexidade diante de seres tão incomuns. Os mais corajosos chegavam bem perto e olhavam estupefatos. Não acreditavam no que viam. Dois estrangeiros despenteados, sujos, vestidos como malucos, com bagagem esquisita nas costas. Adolescentes na maioria se arrumaram e se pentearam antes de se aproximar. Não assimilavam um ser do sexo feminino, vestido de camiseta, calça esverdeada, com cabelos pretos e cacheados, um enorme saco junto ao corpo. Um deles vestia camisa e calça folgadas, ambas sociais e coloridas, sandália de dedo e, apesar do calor, cachecol verde limão cuidadosamente enlaçado no pescoço. Às vezes puxava o pente do bolso traseiro da calça e ajeitava as franjas dos cabelos pretos e lisos. Escolheu postura e olhar de ator de cinema indiano e se posicionou na frente dela. A menos de um metro de distância, cruzou os braços, se compenetrou e examinou cada centímetro. Os olhos dele percorriam o corpo dela de baixo para cima sem deixar nada despercebido. Quanto mais a olhava e a analisava, menos ele compreendia. Não pronunciou nenhuma palavra. Depois de tentar em vão explicar o inexplicável, se retirou cheio de interrogações. Outros se seguiram nas infrutíferas investigações e partiam intrigados de volta às casas.
Horas depois o trem de passageiros chegou, lotado. E partiu lotadíssimo. Fomos empurrados no canto próximo à porta do vagão e esmagados pelos passageiros que entravam ou saíam. E todos nos olhavam como se fôssemos extraterrestres.
Desembarque em Puri, amassados, cansados, com as pernas bambas, braços doloridos. Aceitamos o primeiro hotel, pequeno e razoável. Era Orissa, mais um estado indiano com língua, escrita e culturas diferenciadas. Nocauteados pelos dois desgastantes trajetos ferroviários, jantar e cama cedo. Camas confortáveis, poucos mosquitos, temperatura agradável, contribuíram para o sono ininterrupto.
Após café da manhã reforçado, caminhada ao centro da cidade nas imediações do templo hindu de Jagarnath. Como de praxe, não permitiam a entrada de não hindus. Ao redor, o febril movimento dos fiéis, religiosos, homens sagrados, peregrinos, mendigos, vendedores em geral, vacas, búfalos. O colorido e a vida pulsante impressionavam. Os becos nas proximidades do templo, sem turistas, tranquilos, se ocupavam por gente simples e gentil.

De micro-ônibus ao vilarejo de Konark. Deslumbrante o complexo do templo do Sol, entre diversas construções distribuídas nos gramados. Seduzia pela grandeza e imponência, apesar de pontos em ruínas e mal conservados. Milhares de figuras finamente trabalhadas nas paredes de rocha mostravam cenas eróticas, danças, poses sensuais. Em certos momentos parecia que não daria mais para suportar visitas a templos. Mas, ao deparar com construções imperdíveis, a emoção brotava ao lado do desejo de contemplar por mais tempo. Assim era com Konark, tombado formalmente pela UNESCO. Mas a entidade não contribuía com dinheiro ou assistência. Era uma placa e nada mais.
Ao contrário de Tamil Nadu, terra de gorduchos e barrigudos, os habitantes de Orissa apresentavam corpos magros e franzinos, ainda de tez escura, mas pequenos e esqueléticos.
Puri reservava atmosfera calma, com pouco movimento nas imediações da praia. Pelo labirinto de cabanas de palha montadas sobre a areia da vila de pescadores, poços comunitários, peixes espalhados para secagem, gente colorida e alegre chamando e saudando. As crianças irritavam pelo assédio, pedindo dinheiro, caneta, fotos. As principais atividades ocorriam fora das cabanas, em espaços comuns, tornando constante o contato entre os moradores. O passeio fascinava do início ao fim, entre cenas emocionantes, marcantes.
À beira-mar, o belo e o horror se misturavam. Homens teciam, consertavam redes de pesca, ou, junto a mulheres e crianças, as puxavam do mar, num forte colorido de roupas. Como contraponto, merda, mas muita merda mesmo, e lixo amontoado, se estendiam ao longo da linha da maré. Cemitérios de peixes se espalhavam na areia, ao lado de carcaças de tubarões, enguias que mais pareciam cobras, caranguejo com jeito de aranhas. Sem falar nas águas-vivas e cachorros mortos às dezenas largados na beira da água.
Resolvemos mudar a disposição do quarto hotel. As lâmpadas do banheiro foram para o quarto, que, sem o lustre, ficou mais claro e agradável. Giramos as duas camas em noventa graus. Diante do pouco espaço interno, a operação foi difícil e barulhenta. Caíram pedaços da armação do mosquiteiro que estavam presas à janela pelo varal de roupas improvisado. Quase quebrei o vidro da janela no momento em que ajeitava as ripas de madeira. As mudanças trouxeram mais claridade e espaço livre.
A praia de Puri se dividia etnicamente em duas partes. Os indianos permaneciam ao sul, os estrangeiros e ocidentais se postavam ao norte. A maioria dos indianos se compunha de turistas provenientes de Calcutá. As mulheres se vestiam de sari, da cabeça aos pés, sob o sol, em plena areia da praia. Às vezes levantavam poucos centímetros da roupa e molhavam os pés. Raras as que entravam no mar e jamais tiravam o sari. Os homens que se banhavam usavam apenas calções, sem as camisas. Não se cansavam de tirar fotos, sempre em grupos, fazendo poses de cinema.
À noite esfriava suavemente. O céu amanheceu azul e sem nuvens. Mas, calor mesmo, só perto do meio-dia. Caminhadas sem compromisso pela região do templo Jagarnath, pelos becos, em meio ao dia a dia das pessoas. Leituras durante boa parte da tarde na sacada do quarto do hotel. Preguiça bem-vinda. Puri não contava com praias lindas. Mas o conjunto agradava. A sensação de rotina, vez ou outra, caía bem. E sempre vinha mais um dia de estadia em Puri.
Nos diversos restaurantes experimentados a comida nunca passou do comível. Nenhum lugar muito bom ou muito ruim. O café da manhã tornou-se a vedete do dia. Saboroso demais, em especial a coalhada caseira. Os lugares favoritos daquele lugar cativante mereciam incontáveis repetições. Vila de pescadores, becos ao redor do templo Jagarnath, praia, recepção dos barcos vindos do mar seguidos de leilões dos peixes frescos, sol, pôr-do-sol.
Viagem tranquila e rápida em vagão de segunda classe no trem para a capital de Orissa, Bhubaneswar. Para não perder o costume, o mapa da cidade no tal guia estrangeiro reservava erros grosseiros e fez dar voltas desnecessárias até o ponto desejado.

Comemos thali insípido em ambiente pesado. Os thalis variavam de estado para estado. Aquele fora o thali típico de Gujarat, adocicado, provocando saudades dos saborosos thalis de Tamil Nadu. Barraquinhas vendiam pan, um coquetel de pós, sementes, cremes, envoltos em folha de bethel. Feito para mascar, tornava-se mania entre homens e mulheres de Orissa. Mascavam e cuspiam líquidos, deixando o calçamento das ruas cheias de manchas coloridas, os lábios e dentes avermelhados.
Orissa contava com comunidades isoladas da chamada civilização, mantendo estilos de vida intocados há milhares de anos. Depois de experiências mal sucedidas com o turismo, o governo indiano suspendeu a visitação àquelas áreas.
À noite, minúsculos pontos, em geral nas calçadas, serviam pratos da cozinha chinesa, como sopas substanciosas, rolinhos primavera, chowmein. Só funcionavam no início da noite e não ofereciam lugares para sentar. Era de pé ou sentados nas guias das calçadas ao lado dos fregueses.
 Longa distância separava o centro da região dos templos da capital. Pelo caminho, multidões e congestionamentos nas ruas e avenidas. Bhubaneswar revelava o charme durante a noite. A tênue iluminação pública e do comércio proporcionava atmosfera instigante. Miniaturas de lojinhas vendiam doces, bebidas, sorvetes, pratos rápidos da culinária chinesa. E nas ruazinhas transversais, incrivelmente fazia silêncio, ou pouco barulho, fornecendo à cidade peculiaridade especial e cativante. Mas somente à noite.
Desta vez foi moleza dormir no trem noturno a Varanasi. O compartimento jamais lotou. Dava para relaxar, esticar, escolher posições, e até deitar antes do horário estipulado. O serviço de bordo não chegava aos pés das outras linhas, mas abasteceu o estômago. Adormeci. Desembarque em Varanasi, no estado de Uthar Pradesh, no meio da manhã.
continua...