...continuação
Saboroso e tradicional, o dhal bath era o prato
mais consumido na travessia. Estava bem à frente das diversas sopas com lamem
e lamem frito. Ovos cozidos, chá, chocolate quente, predominavam no café
da manhã.
Nevou durante a noite. Amanheceu com a paisagem toda branca.
As temperaturas despencaram. Parou de nevar à tarde e saímos para desenferrujar
as articulações. Deu para circundar o lago e seguir algumas centenas de metros
na trilha rumo ao passo em paisagem composta de neve, gelo, água, rocha. E
retorno para dentro dos sacos de dormir.
O refúgio estava abarrotado de franceses, se recusando a
falar inglês, mesmo quando sabiam, nem com os nepaleses. Nos poucos lugares da
cozinha do refúgio empurravam, forçavam espaço e sentavam sem olhar na cara.
Manhã da partida. Início em trilha escorregadia,
inteiramente coberta de neve. Durante a subida ao passo Laurebina a 4.610
metros de altitude, cenário todo branco, frio intenso. Nevava e ventava sem parar.
Não se via mais que a trilha e os lagos congelados. Reduzíamos o ritmo a fim de
perpetuar e fixar aquelas imagens e sensações. Depois descida por trilha
bastante inclinada. Não existia paisagem. A visibilidade não ultrapassava um
metro. A descida prosseguia íngreme. Mesmo rareando a neve o frio castigava sem
tréguas. Mas a trilha encantou entre florestas de rododendros, flores
amareladas e alaranjadas, musgos nas árvores e rochas.
O refúgio em Tharephati, a 3.490 metros, contava com
quarto coletivo. Espalhamos as bagagens e as roupas pelas demais camas vazias.
A cozinha era minúscula. Cama às 18h.
Choveu e nevou durante a noite. Partida cedo sob um frio
intenso. A neve e a chuva ficavam para trás, ou para cima. Mas o frio e o céu
nublado permaneciam. A descida se manteve por trilhas íngremes, cruzando florestas
de rododendros e pinheiros.
No vilarejo de Kuntunsang, a 2.470 metros de altitude,
hospedagem em refúgio isolado e tranquilo. O tempo melhorou e permitiu almoçar
ao ar livre. O sol apareceu no final da tarde para tirar o mofo de tudo. A
crista da cordilheira nevada se erguia no fundo do horizonte.
E o jantar no refúgio emocionou. A cozinha era espaçosa,
limpa, bem arrumada, com piso e paredes de barro batido, cuidadosamente
acabado. Mais ninguém hospedado. A família completa nos convidou a dividir o
espaço junto ao calor do rascunho de fogão no nível do chão, forçando-os a permanecer
de cócoras para manusear as panelas. Entre linguagens de sinais e sorrisos, sentamos
no chão ao lado deles. Serviram o farto e delicioso dhal bath. Ofereceram
chang, fermentado de milho com sabor agradável. A magia do momento, o
silêncio, os sorrisos, a comida saborosa, o lugar, a hospitalidade, afastaram o
desgaste dos dias anteriores.
A caminhada do dia seguinte contou com grandes subidas e
descidas íngremes. Em pequeno vilarejo os moradores hasteavam bandeirolas,
batiam percussões, comiam, bebiam, dançavam, sorriam. E comemoravam a morte de
um conterrâneo ocorrida meses antes. As trilhas em descida se alargavam e pareciam
estradas. O vilarejo de Chipling se cobria de sujeira, pobreza, doenças,
abandono, desolação.
Com exceção de Kuntunsang, a simpatia e espontaneidade dos
moradores das vilas diminuíam à medida que caía a altitude. Os sorrisos
careciam de naturalidade, os interesses materiais se sobrepunham aos de
amizade. Os olhares mostravam desconfiança e segundas intenções. A civilização
urbana se aproximava.
O refúgio em Chisopani, a 2.300 metros de altitude, era
horroroso. Havia sujeira grudada no chão, paredes, móveis. Os dois marmanjos
que nos serviram comida encaravam com ares de poucos amigos. A comida desceu
como pedra.
O ambiente do quarto cheirava a mofo, à coisa velha e abandonada.
Embaixo da cama suspensa, depósito de madeiras, garrafas, velharias em geral, sujas
e fedidas. Em frente à cama um buraco no canto do piso descia até a rua do
vilarejo. Durante a madrugada, ruídos estranhos sob a cama se propagavam pelo
piso do quarto, em som intermitente, apavorante. Alcancei a lanterna sobre a
mochila largada no chão e iluminei embaixo da cama. Nada vi além das velharias
amontoadas. Mas, porém, contudo, todavia, olhei melhor, apurei a visão e a
audição. E finalmente descobri. Ratos. Muitos ratos. Dezenas deles. Roíam as
madeiras entulhadas, cutucavam os objetos no chão, corriam para o buraco da
parede do canto do piso. Aos montes. Entravam e saíam do quarto. Trouxemos as
tralhas espalhadas no chão para cima da cama. Os ratos se agitavam de um lado
para outro. Demorou até os ratos diminuírem o ritmo. Conseguimos cochilar.
Ao clarear, em jejum, partimos aliviados daquele esgoto.
O guia sugeriu acompanhar outro grupo de caminhantes
devido à floresta com probabilidades de assaltos. Os ladrões abordavam os
turistas com facas e levavam tudo. Um final de travessia recheado de emoções,
sem dúvida. Apesar da névoa, visões do vale de Kathmandu durante a descida,
revelando terraços cultivados, esverdeados. E mais habitações, mais gente.
A sujeira no corpo apresentava-se indescritível. Barba
longa, roupas fedidas, sobretudo as meias, cansaço. Mas travessias como aquela valiam
e muito a pena. Trilhas sem eletricidade, sem veículos motorizados, sem
televisão, cozinhas com fogões à lenha ou a querosene. A despeito dos turistas
chatos e racistas, brindou o contato direto com a natureza única da cordilheira
e com nepaleses simples e acolhedores.
Depois de magistrais dezessete dias de travessia pela
cordilheira do Himalaia, a trilha terminou em área de estacionamento. O ônibus
local cruzou toda a cidade. E rumo a banhos quentes e demorados no hotel em
Kathmandu.
Dia para comer bem e bastante, muita preguiça. Em sebo
garimpei um exemplar, em inglês, do livro Do
Amor e Outros Demônios, de Gabriel García Márquez. Ajudaria nos dias de
doce vagabundagem que viriam pela frente.
Ida à cidade de Patan através de longa e interessante
caminhada. Primeiro a parte sul de Kathmandu, às margens do rio Bagmati, mostrando
mais pobreza, sujeira, abandono. Após a ponte, Patan contava com discreto patrimônio
histórico e arquitetônico, muito charme e raros pentelhos nas ruas. Inúmeros
eram os templos, inclusive o dedicado a Krishna, diferente de todos os
demais. As ruas exalavam tranquilidade, com oficinas de artesanato, sobretudo
de metal. O povo revelava simpatia e sorrisos sem interesse. As crianças não
nos pediam dinheiro ou presentes. O turismo predatório ainda não desvirtuara a
hospitalidade natural dos nepaleses de Patan, com a danosa mania de distribuir
dinheiro, canetas, doces e outros presentes a quem exigia apenas respeito e
justiça social.
Cedo em ônibus a Pokara. As janelas exibiram trechos de
rios com corredeiras e, mais no final, ligeiras aparições do Himalaia. Enxames
de taxistas e agentes de hotéis atacaram na chegada. Mal dava para ouvir o que
berravam. Pokara era bastante turística. Metade dos caminhantes que afluíam ao
Nepal preferia as trilhas da região dos picos Annapurnas, ao redor da cidade.
Na subida da montanha ao topo chamado Sarangkot, os
pentelhos ajudaram a aumentar o cansaço. Crianças e adolescentes grudavam,
ofereciam serviços de guia, forçavam a venda de tralhas inúteis, ou
simplesmente pediam canetas, dinheiro e demais presentes que os turistas dos países
imperialistas os obrigaram a sentir necessidade. Estava nublado no cume para o
lado das montanhas. E cobravam contribuições “espontâneas” para ver a paisagem.
Nem pensar! Novamente os pedintes nos cercaram na descida. O garoto que se
oferecera como guia na subida, agora nos pedia dinheiro agitando uma foice na
mão direita.
Ocidentalizada e inteiramente voltada ao turismo, Pokara oferecia
somente música descartável, sobretudo o lixo estadunidense de sempre. Os
restaurantes serviam comida ocidental e sem tempero. A arquitetura da cidade
nem dava sinais de país asiático. Os nepaleses abordavam para vender baboseiras
ou exigir doações. E ameaçavam:
“eu quero 10 rúpias”,
“me dê canetas”.
Geralmente antipáticos e hostis, os turistas criavam e
contribuíam para o agravamento da situação. O restaurante na beira do lago
tornou-se o refúgio na busca de paz e sossego. Mas era obrigatório consumir.
As montanhas nevadas se impuseram ao lado dos rios
encachoeirados durante ao ônibus da volta a Kathmandu.
Do topo do templo budista de Swayabunath se via a
cordilheira ao norte da capital. As interessantes ruas comerciais das
proximidades, calmas no princípio, se agitavam e lotavam à medida que se
aproximavam do centro. O sol brilhante tornava as cores das roupas, ruas e
lojas ainda mais vivas e alegres.
O café da manhã reforçado no terraço de sempre se
alternava entre leituras, banhos de sol, o não fazer nada. Em ritmo lento,
circuladas pela região da praça Durbar. Sentamos nas escadarias do templo,
comemos banana, observamos o movimento do alto. Outro livro em sebo, mais um de
Gabriel García Márquez, mais uma vez em inglês, A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada.
Releitura, mas valeria a pena.
Antes do amanhecer para assistir aos rituais no complexo
de templos hindus de Pashupatinath. Os macacos do bosque atacaram e roubaram
metade do lanche. O local fascinava pelas bênçãos no rio, o culto ao lingan de
Shiva, as roupas multicoloridas das mulheres, a plástica dos rituais, a beleza
dos templos, do bosque ao redor. As cremações emocionaram, envoltas em
atmosfera triste e pesada. A preparação da lenha e do corpo, as bênçãos, a comoção
dos familiares, o acender do fogo ardendo durante horas antes das cinzas e
lenha serem atirados nas águas sagradas do rio. A maioria dos turistas do
chamado primeiro desprezava o local e os familiares, circulando pelas áreas
exclusivas de cremação, fotografando, filmando o sofrimento alheio, rindo,
debochando. Vestiam roupas curtas e inadequadas ao local das cerimônias.
Lançavam olhares de desdém aos familiares do morto.
Depois, a pé ao templo budista de Boldhanath, com direito
a delicioso dhal bath e retorno em ônibus local junto com os nepaleses.
À noite, pela região da praça Durbar, a cidade se preparava para mais um
festival. As ruas se enfeitavam de gente e enfeites coloridos. Os comerciantes
pintavam as portas das lojas.
Os condutores de ciclo-riquixás ganhavam em simpatia.
Ofereciam os serviços educadamente, sempre alegres, sem precipitação. Diante
das recusas, seguiam sorridentes e felizes. Eram pessoas simples, autênticas,
alegres, resgatando o humanismo desgastado na turística Kathmandu.
Dois ônibus até Bungamati, ainda no vale de Kathmandu,
guardando becos e o templo hindu impressionante. Os moradores usavam os mais
diversos lugares para secagem ou limpeza de arroz e milho. As espigas, ainda
dentro dos sabugos, eram penduradas e secadas nas paredes das casas. Pelas ruas
estreitas, os habitantes cumprimentavam e sorriam espontaneamente. Raras
crianças pediam qualquer coisa, a maioria apenas sorria e nos acenava. Dos
terraços cultivados ao redor da cidade, ao fundo, a faixa da cordilheira do Himalaia.
Sentados na guia da calçada do vilarejo, comemos duas dúzias de bananas.
continua...
vc de braços abertos...naquela neve toda...e as paisagens que descreve....adorei particularmente o Nepal, natureza pouco tocada pelo homem...
ResponderExcluirOlá, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirLá é lindo mesmo, embora tenha sido sim bem tocado pelo homem. O turismo naquela região tem causado impactos preocupantes.
O turismo predatório, no mundo todo, é uma praga que poucos tomam consciência. Pena.
Abraços!
Tua detalhada descrição me empurrou para um episódio semelhante de enfrentamento com os ratos...
ResponderExcluirBem longe das trilhas nepalesas, os bichinhos também faziam a festa, enquanto nós subíamos o que pudíamos para os bancos e cadeiras, numa noite apavorante.
Ratos são ratos, no Himalaia ou sertão nordestino
Ratos, sobretudo às dezenas, sempre apavoram.
ResponderExcluiruaí, os ratos me trouxeram lembranças! até o "u" pelo "o" eu troquei, vixe!
ResponderExcluirA Ásia sempre atraiu minha curiosidade, mas é a primeira vez que leio com tanto prazer. Sua linguagem é tão acessível, detalhada, que imaginei cada dia que aqui descreveu. Continuo na carona...Abraços.
ResponderExcluirOlá Ivete!
ResponderExcluirA Ásia também sempre me atraiu, daí ter ido duas vezes para lá e ficado tanto tempo em ambas as oportunidades.
Mereceu cada dia vivido, mesmo nos lugares que não gostei ou até detestei.
Mas a Índia merece todo e qualquer sacrifício ou desconforto.
Você chegará nas partes em que descrevo minhas impressões sobre o país.
Abraços e comente sempre!
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluirOlá, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirSeria uma boa ideia o que sugeriu. Como quer fazer?
O que mais lhe chamou a atenção em meus relatos sobre o Camboja?
Comente sempre!
Abraços!