segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Tunísia e Marrocos (parte 7/7)

...continuação
A primeira visita ocorreu nos jardins de Menara, cultivado de oliveiras. Ao lado, o reservatório de água com criação de carpas às quais os turistas lançavam comida para fotografá-las. Já dentro da cidade murada, a mesquita Koutoubia, cuja entrada era vedada a não muçulmanos. Em seguida, as tumbas saadianas, onde estão enterrados os membros da dinastia de mesmo nome. Depois o palácio Bahia, construído no século XIX para a residência do Grand Vizir e as respectivas quatro esposas.
O guia local, em cada cômodo do palácio, e eram dezenas deles, destrinchava detalhes sobre as características arquitetônicas e de uso da família. Demorava uma eternidade em suposições, inferências, imaginação, poucos fatos comprovados a despeito do curto tempo decorrido desde os acontecimentos. Eram tantas as minúcias que eu esquecia tudo antes de terminar a frase. Mas o palácio estava coalhado de turistas fotografando tudo. Bastavam os guias dos grupos apontarem algo para que o som dos cliques das câmaras, tablets e celulares inundasse o ambiente.
Perambulamos pelos souks, as ruelas comerciais do mercado da medina de Marrakech. Ali se vendia de tudo, mas sem o brilho plástico ou humano das demais medinas visitadas no Marrocos e, principalmente, na Tunísia. E a disputa acirrada entre pedestres e motos causava tensão e desconforto pelos becos.
Entramos de gaiato na cooperativa de produtos à base de amêndoas. Fomos confinados em uma sala. Um funcionário uniformizado, exibindo sorriso e disposição gastos pelo tempo e pela repetição, demonstrou, item a item, os processos de fabricação, os componentes, as propriedades, as indicações. Desde produtos para fins medicinais, cosméticos, passando por limpeza, de uso oral ou externo. E curavam tudo, de câncer a unha encravada, de diabetes a micoses. Mas, somente ali, com qualidade e preços baixos, ao contrário dos concorrentes. Ao final do infindável discurso e da enjoativa propaganda, perguntou o que eu iria levar, salientando que aceitava dirhans, dólares, euros, cartões de crédito. Respondi que não queria nada. Imediatamente o encanto do sorriso do sujeito se dissipou. Simplesmente abriu a porta da sala, nos mostrou a saída e foi à cata do próximo grupo de turistas.
Demos giro pela ampla e mundialmente famosa praça Djema el-Fna, repleta de charlatões, dos mais variados tipos, enganando somente os marinheiros de primeira viagem.
Permaneci mais tempo naquele engodo a fim de procurar almoço leve e, sobretudo, para tentar decifrar o motivo de tanta decepção e frustração diante de Marrakech, um dos paraísos do turismo internacional. Observei, analisei, refleti. Resolvi relaxar. Enganei o estômago com tajine de carne apenas comível. Perambulei mais pela tal praça. Registrei a enganação e a farsa daquela armadilha turística. Retornei a pé ao hotel, passando novamente pela mesquita, pelo discreto parque ao redor, pelo bairro segregado dos hotéis.
As estupendas montanhas nevadas da cordilheira do Alto Atlas se erguiam no horizonte. Mas a névoa seca as turvava, as desfocava, lhes restando apenas pálidos contornos.
Os termômetros rondavam os 40 graus durante o meio do dia. Era calor seco, mas um baita calor. E se tornava atividade de alto risco cruzar, se aproximar ou, pior ainda, tocar os europeus ou de outros países tidos como civilizados. Insuportável o cheiro azedo da pele não lavada e das roupas sujas e não trocadas. A fedentina deles e delas imperava nos interiores de palácios, tumbas, madraças, restaurantes, elevadores, ambientes fechados em geral.
A roubada da viagem foi deixada para trás. A perua tomou o rumo do oceano atlântico. Comentei com o motorista minhas péssimas impressões de Marrakech. Ele concordou em gênero, número e grau. Emendou que no exterior tem gente que nunca ouviu falar do Marrocos, mas sim e muito de Marrakech. E ainda ressaltou que a indústria do turismo de massas não conhece limites para destruir as próprias fontes de renda. A tragédia de Marrakech não era exceção no mundo, infelizmente.
A cordilheira do Atlas se afastava para sudoeste. O terreno se aplainava e se tornava mais seco, cultivado de oliveiras, alfafa, um pouco de trigo. A coloração de areia dos campos, os trabalhadores dando duro na colheita, as esparsas casas de pedra, baixas e quadrangulares, davam beleza e charme à paisagem nas imediações da cidade de Chichaoua. Em dado momento os olivais foram substituídos pelas árvores de argana, nativas e exclusivas daquela região do Marrocos.
E as cabras adoravam comer arganas, sobretudo a polpa. Para isso, escalavam o tronco das árvores e se postavam nos galhos ricos de frutos. Parecia alucinação, mas a imagem de árvores de cabras, árvores cujos galhos eram ocupados por cabras equilibristas se alimentando de arganas, merecia uma parada. Valia contemplar a cena tão inusitada.
Paramos para visitar a cooperativa feminina de derivados de argana, situada entre as cidades de Tafetachet e Ounara. Lá se produzia de maneira orgânica, a partir da noz da argana, sabonetes, óleos, resinas, cremes, loções, pomadas, voltadas para diversos fins alimentícios, cosméticos, medicinais, limpeza. E tudo dirigido de ponta a ponta por mulheres da região.
Antes do meio-dia alcançamos a simpática cidade de Essaouira, na beira do Atlântico, cujas construções caídas de branco se destacavam das areias das praias e do mar azul. Próximo ao porto da cidade, a fortificação erguida no século XV pelos invasores portugueses que batizaram o antigo nome da cidade de Mogador. Me lembrei de Othelo, versão cinematográfica de 1952, dirigida por Orson Welles. O filme em preto e branco contava com diversas cenas, tomadas e ângulos da arquitetura local.
Essaouira se tratava de destino turístico, sobretudo de marroquinos durante as férias de verão, mas me empolgou logo de cara. A praia discreta, as casas brancas, a fortaleza portuguesa, o porto cheio de vida, os habitantes acolhedores, e, sobretudo, a medina, pequena, autêntica, colorida, alegre, usada pela população local. Claro, havia hotéis, restaurantes, lojas, para turistas. No entanto, ainda não se descaracterizara demais e mantinha atmosfera marroquina, árabe. Enquanto Marrakech decepcionara profundamente, Essaouira surpreendia positivamente.
Com o bolso cheio de dirhans e restando poucos dias no Marrocos, mandei ver tajine de lulas regado a vinho marroquino no almoço. Valeu pelo sabor, pela vista do mar, das ameias do forte preenchidas pelos canhões apontados para o oceano.
Andando à toa pela cidade, um senegalês de pele bem escura me abordou vendendo pequenas pinturas em pele de carneiro esticada por armação externa de madeira. Lamentou que o turismo no Senegal sofresse crise e falta de visitantes, causando desemprego direto e indireto. Veio tentar a sorte no Marrocos com outros compatriotas, cruzando os países subsaarianos, o grande Saara, a Mauritânia, o Saara Ocidental.
Perambulei pelas ruelas da medina de Essaouira, entre colheradas de sorvete de café e pistache, entusiasmado pela doce surpresa daquela cidade costeira e pesqueira. As barracas de peixes e frutos do mar eram bastante procuradas nas imediações do porto. Me chamou atenção os gigantescos caranguejos de peito avermelhado cujo diâmetro superava trinta centímetros, fora as patas. E cheguei a recordar o sabor, experimentado quando de minha visita a Portugal muitos anos antes. Chamado de Sapateira em terras lusitanas, o crustáceo era obtido das profundezas do litoral oeste da África. Naquela viagem, entre goles de vinho verde, belisquei saborosos nacos do miolo ensopado servido dentro da própria carcaça, que parecia não terminar nunca.
O motorista comentou sobre as estadias lisérgicas de figurinhas carimbadas tais como Jimi Hendrix, Mick Jagger, Bob Marley, na região de Essaouira, durante os anos de 1960. Vinham em busca de mais aditivos para viajarem sem sair do lugar.
Chapinhei os pés nas águas frias do Atlântico africano. Os praticantes de esportes aquáticos estavam em estado de graça pelos ventos violentos e constantes. Poucos turistas circulavam nos lombos dos dromedários de aluguel. As areias e águas do entorno se enchiam de bosta despejada pelos animais do deserto. Mergulhando nas águas, ninguém. O vento frio e intenso, que não cessava um minuto, me tirava o equilíbrio.
Amanheceu sob a névoa espessa. Tudo parecia da mesma cor, cinza clara, o céu, a areia, o mar. Mas bastou subir a falésia atrás de Essaouira para a névoa se dissipar e o sol brilhar no céu incrivelmente azul.
A estrada cortou infinitos bosques de tuias, a perderem de vista, esverdeando a paisagem semiárida. Lá embaixo da falésia, praias se sucediam, vilarejos de pescadores brotavam de quando em vez, assim como trechos de dunas de areia rente às águas. O mar azul batia em ondas nas areias das praias desertas. Esporadicamente, conjuntos de casas de temporada se erguiam nas encostas.
Sufocada por gigantescas unidades de beneficiamento de fosfato, despejando impunemente efluentes químicos nas águas do mar, pelo trânsito intenso de caminhões, muita fumaça e poeira, poluição sonora e do ar, a cidade industrial de Safi despontou. Paramos na avenida principal para esticar as pernas e molhar a goela. Charretes levavam passageiros para lá e para cá. Nos diversos salões de cafés, senhores se sentavam, pediam água e café, permanecendo horas e horas, lendo jornais, observando o movimento, olhando o nada.
De volta à rodovia e descendo as falésias, surgiram as pequenas baías da cidade de Oualidia, outro balneário de veraneio, deserto na primavera, de aspecto vistoso e aconchegante. A cor do mar, as praias em formato de ferradura, os rochedos dos recifes em frente, desenhavam cenário belíssimo, ainda mais na baixa estação, vazia, limpa, tranquila.
Mais quilômetros pela rodovia litorânea, outro complexo poluidor, refinarias de petróleo e gás, obras na estrada, ponto final de ferrovia, barulho, poeira.
Passava do meio da tarde ao entrarmos em El Jadida, balneário familiar de praias feias e mal cuidadas. Também invadida e tomada pelos portugueses, a cidade recebeu por uns tempos o nome de Marzagão. No centro da cidade, próximo ao porto, se erguia a fortaleza construída pelos lusitanos no século XVI, dentro da qual se estendia discreta medina, comercial e residencial. Através de pesada porta de madeira e descendo a escadaria, penetramos na escuridão. Ali, a antiga cisterna, abaixo do nível das ruas, encantou pelos reflexos e luz natural sob a lâmina d’água que molhava os pés de colunas seculares. E, percorrendo o breu do subsolo, novamente me veio à mente cenas do filme Othelo de Orson Welles, também filmadas ali em 1952. Subimos de volta à claridade e caminhamos pelo interior da medina. Ruas e brasões escritos em português, muralhas espessas e pesadas, canhões encaixados nas ameias e apontados para o mar, rampas de acesso via imponentes portões de madeira.
Ao norte, as cidadezinhas costeiras, as estradas sinuosas sobre as falésias, o mar e as praias, ficavam para trás. A rodovia sem cara de nada e sem belezas ao redor tornava evidente a sensação de fim de festa.
E as favelas da periferia, os infindáveis congestionamentos, os pedintes nos cruzamentos, as avenidas longas e parecidas umas às outras, os prédios sem personalidade, os cartazes de propaganda raramente escritos em árabe, a poluição sonora e do ar vinda dos escapamentos, as buzinas histéricas, nos deram as boas vindas a Casablanca.
Muitos os marroquinos com sérios problemas dentários. Guias locais com vagas na arcada superior e inferior. Outros com apenas um ou dois dentes em toda a boca. O garçom do hotel em Casablanca apresentava falhas na dentição, vagas espetaculares lhe fornecendo aspecto desleixado, molambento. A maioria dos dentes do motorista era implantada ou recolocada com estruturas de suporte, pivô, jaqueta, ponte fixa, ponte móvel, todos invariavelmente acinzentados, escurecidos, deformados.
Na manhã da partida, pendurei do lado externo da porta o aviso em vermelho para não me perturbarem. Mesmo assim a funcionária abriu a porta enquanto eu lia na cama em trajes mínimos. Embora árabe e coberta com o manto, não se abalou em me ver naquele estado. Me observou de cima até embaixo. Devo ter rendido causos entre as colegas de trabalho.
O motorista me deixou bem cedo no aeroporto de Casablanca.
Voo tranquilo até o aeroporto de Roma, mais conhecido como o cu do mundo.
Impressionante e inadmissível que cidade tão famosa, importante e procurada como Roma padecesse com aeroporto tão desorganizado, recebendo mal os visitantes do mundo todo. Como na ida, novamente infernal a transferência entre dois voos internacionais. Os passageiros em trânsito sofriam até não poder mais. Não havia sinalização. Ninguém para orientar por onde deveríamos seguir. O controle de bagagens e seres humanos, esse sim, havia aos montes numa tortura sem fim. Andei a pé bastante, entre escadas, corredores, até pela calçada externa do aeroporto, ao lado das ruas que o circundam, sem saber exatamente aonde ia. Outros passageiros, rumo a diversos destinos, sofriam a mesma situação e se indignavam. Em nenhum país da América, Ásia ou África eu havia vivenciado tamanhas mazelas. Todos corriam para não perder os voos, engrossando a revolta diante de tanto descaso e desserviço.
Finalmente, depois de saltar os obstáculos, cheguei à porta de embarque do voo para São Paulo. No assento ao meu lado uma senhora italiana logo virou a cara ao perceber que eu era de outro país, justamente aquele ao qual ela se dirigia. A energúmena devia achar normal e civilizada a pindaíba do aeroporto internacional da capital do próprio país.
Li pouco mais da metade do livro Deus Foi Almoçar, do escritor paulistano Ferréz em voo cansativo, apertado, desconfortável.
Entrei no lar doce lar em meados de maio, já pensando em minhas próximas incursões à África, de preferência sem conexões na Europa.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Tunísia e Marrocos (parte 6/7)

...continuação
O vale do rio Ziz, justamente o único indício de umidade nas redondezas, nos acompanhou contando com volume de água considerável para a aridez. Os vilarejos, esparsos e pequenos, se alinhavam no fundo do vale. Nas várzeas, tamareiras e árvores frutíferas abundavam em ambas as margens. O vale se tornava mais profundo entre escarpas íngremes e rochosas cujas estratificações exibiam desenhos inusitados.
Cruzamos a cidade de Errachidia, ocupada por militares e as respectivas famílias. A proximidade da fronteira da Argélia, com quem o reino do Marrocos não mantinha boas relações, servia como pretexto ideal para gastar mais dinheiro público em armas, segurança, fortificações.
Bem mais à frente, nos arredores da cidade de Arfoud (Erfoud), a rodovia percorreu planícies desérticas, arenosas. Dromedários pastavam à procura do pouco verde da vegetação arbustiva ou rasteira, vestígios do inverno úmido.
Na cidadezinha de Rissani a atração seria o mausoléu do fundador da dinastia que tem dominado o reino do Marrocos de pai para filho. Visita burocrática, previsível e sem graça. Não me incomodei. A maior e melhor atração ficaram por conta dos flagrantes do cotidiano em dia normal de estudos e trabalho. Pedestres em circulação ou em busca de transporte coletivo, estudantes uniformizadas à moda árabe ou berbere a caminho da escola, mulheres cobertas de tecidos negros da cabeça aos pés, homens de túnicas, moradias berberes da coloração ocre, o vaivém nos cruzamentos nervosos. A vida comum de pessoas comuns valia mais do que atrações oficiais da monarquia.
De volta à estrada, a paisagem desértica, com dunas distantes, solo terroso ou pedregoso próximo da rodovia. As moradias retangulares ou no estilo kasbah, ambas sem telhado e de barro marrom, davam espetáculo ao lado das mulheres inteirinhas de preto, roupas, véus e mantos, dos homens de túnicas claras e turbantes na cabeça. Antigas cisternas para água da chuva apareciam nas margens das estradas, em trechos mais arenosos.
Entrando ao longo do vale do rio Todra, a estrada subiu constantemente, descortinando vilarejos cujas construções retangulares ou no formato de fortificações possuíam o mesmo material das escarpas rochosas. As tamareiras dos oásis nas margens do rio, apontando para a única fonte de água em quilômetros, atraíram antigos povos nômades a se fixarem e a cultivarem a terra ao lado de pastagem de cabras e ovelhas. Bem acima do vale, cada vez mais estreito, surgiu a garganta de Todra, onde as escarpas íngremes se aproximavam mais, espremendo as águas do rio, ali de pouca vazão, correndo em leito raso e pedregoso.
O motorista me largou no centro da cidade de Tinerhir (Tineghir). Optei por bar e restaurante simples, ocupado por bebedores de café e leitores de jornal. Não havia cardápio. Perguntei o que tinha de comida e escolhi tajine de cordeiro e legumes. O que parecia ser o mandachuva do estabelecimento me arranjou mesa na sombra, de frente para a rua. E detonei um litro e meio de água, a fim de matar a sede e repor os líquidos em mais um dia extremamente seco e beirando os 40 graus. A primavera corria ainda pela metade.
Depois do vale do Todra, as mulheres usavam mantos e véus de cores claras, às vezes estampadas de flores ou com o símbolo berbere bordado nos tecidos. Os homens sempre de cores claras, nas túnicas e turbantes, pelo menos aqueles vestidos ao estilo árabe ou berbere.
O horizonte do deserto rochoso contava com as montanhas do Alto Atlas cujas cristas e altos das encostas se cobriam de neve. E mais casas de barro, mais kasbahs, novos e antigos, inteiros e em uso ou em ruínas e abandonados. Mais oásis de tamareiras apareciam nos cursos d’água. Nas proximidades da cidade de Kelaat-M’Gouna, começava o cultivo de rosas, ao longo do vale do Dades. A flor trazida da Síria nos retornos das antigas peregrinações a pé para Meca era comercializada nas ruas e festivais culturais especialmente montados.
As escolas e órgãos da administração pública dali exibiam os nomes em árabe e em berbere, língua que o governo federal pretendia oficializar como a segunda do Marrocos, tanto falada como escrita, e cujas letras lembravam as do alfabeto grego.
O trânsito das estradas não chegava a ser pesado. Os motoristas agiam com gentileza, sem agressividades de selvagens das metrópoles ocidentais, em convivência pacífica de seres humanos. Pedintes brotavam nos pontos turísticos, nos de vista panorâmica. Os insistentes vendedores de artesanato, de velharias, dos fósseis muito comuns na região, tentavam reduzir os estoques de qualquer maneira. Lixo se concentrava nos terrenos baldios, nos leitos secos dos rios temporários. Simpáticos e solícitos, os marroquinos arriscavam qualquer língua para vender ou simplesmente se comunicar.
Na sombra o calor era agradável, a despeito da baixíssima umidade relativa do ar. Sob o sol, no entanto, a situação se tornava dramática, às vezes parecendo que não daria para suportar. As vias respiratórias secavam e se entupiam de secreções. A garganta empapava. O consumo de água virava exigência de sobrevivência. Mas eu não esperaria nada diferente em pleno deserto do Marrocos.
Chegada em Ouarzazate, cidade também de maioria berbere, antes do anoitecer.
Um senhor idoso, com somente um dente no maxilar superior, mas fluente em cinco línguas, nos guiou pelos interiores do kasbah Taourirt. Nos deu explicações sobre a construção e o uso pelos últimos moradores, a família do paxá polígamo, nos diferentes cômodos, utensílios domésticos, vestimentas, rotinas entre as refeições, sistemas de ventilação natural, janelas para as esposas verem o lado de fora sem serem vistas.
Dois casais de japoneses circulavam calados pelos interiores do kasbah. Ao passarem, sorriram, se curvaram, balançaram a cabeça naquele jeito oriental. Nada falaram e também não abri a boca. Ao iniciarem a descida pela escada interna, estreita e em curva, uma delas disse ao companheiro “Ô Sérrrrrgio, cuidado c’o degrau”, puxando o “r” caipira. Processei a situação de maneira tão lenta que os quatro já tinham desaparecido antes que eu pudesse chamá-los. Contei a história ao motorista, que riu e emendou com outra. Tempos atrás ele estava no saguão do aeroporto de Casablanca aguardando dez brasileiros. Segurava alto o cartão com o nome do grupo. Do meio de alguns japoneses que se aproximaram, uma senhora se adiantou dizendo que eram eles. O motorista pediu desculpas, afirmando que ela se enganara, pois esperava um grupo de brasileiros. Ela insistiu. Ele também insistiu que aguardava turistas brasileiros e não japoneses, solicitando para ela se afastar de modo que outros passageiros desembarcados pudessem ver a placa. Pacientemente ela garantiu que ela própria e os outros nove passageiros eram os brasileiros que ele tanto esperava no aeroporto, mostrando os nomes nos respectivos passaportes. Ainda desconfiado, ele aceitou a situação e os levou ao traslado. No caminho ao hotel, todo encabulado e não sem espanto, acabou aprendendo com os dez turistas brasileiros recém-chegados que o Brasil abrigava o maior número de japoneses depois do Japão.
 A cidade de Ouarzazate respirava cinema. Havia faculdade de cinema. Havia inúmeros estúdios cinematográficos ligados direta ou indiretamente à famigerada indústria de entretenimento estadunidense. Filmes épicos, futuristas ou modernos foram rodados nas imediações. Nas rotatórias das avenidas principais da cidade lá estavam monumentos representando a claquete, a filmadora, etc. Pelo que entendi, porém, o cinema ali produzido praticamente se restringia a ceder cenários naturais ou artificiais, além de figurantes, aos oligopólios estadunidenses. O cinema marroquino de verdade, com equipe artística e técnica nacional, escrito, interpretado, dirigido, montado e distribuído por marroquinos, não passava de exceção.
A cordilheira do Alto Atlas despontava imponente no horizonte, se erguendo acima das planícies desérticas do sudeste do Marrocos. A neve concentrada nas cristas e encostas mais altas duraria no máximo mais duas semanas devido ao calor tórrido da segunda metade da primavera, retornando a cobri-las somente a partir do inverno seguinte.
A perua pegou acesso a outro kasbah também usado como cenários eventuais de filmes épicos ou históricos. Mas era o maior e o mais famoso deles.
Ait Benhaddou, a milenar construção desabitada, virou procurada atração turística, entupida de lojinhas vendendo produtos típicos da região, outros nem tanto. Valeu pelo gigantismo, pela beleza, pela personalidade arquitetônica, erguida em taipa, constituída de patamares colina acima, com torres de base quadrada, tudo monocromático, cor de barro, marrom escuro.
Enquanto dava voltas despretensiosas pelo vilarejo na margem oposta do riacho que margeia o kasbah, um berbere idoso insistiu para que eu conhecesse a lojinha. Em meio à penumbra do interior do estabelecimento, me mostrou antiguidades, autênticas ou não, que guardava em baús velhos e empoeirados. Colares, pulseiras, brincos, broches, adagas, talismãs, de aparência envelhecida, carentes de polimento e carinho, mas de preços novíssimos e salgados. Dotado do tino e sangue de mercador milenar, me convidou a negociar, a barganhar, a pechinchar, a regatear. Eu não tinha a mínima intenção de comprar nada. Ele baixava levemente o preço. Eu, nada, repetindo que não queria. O senhor não desanimava e insistiu para que eu desse o meu preço. Quanto você acha que vale essa peça? Vamos lá, diga seu preço! Eu participava de negociação que vinha dos tempos dos caravançarais, das antigas rotas comerciais entre o ocidente e o oriente. Ele insistia. Eu tirava o corpo. Por fim, sem qualquer contraproposta recebida, se cansou. Me sorriu desdenhosamente e se despediu, retornando à companhia do colega sob a sombra do lado de fora.
E pé na estrada cortando o deserto terroso ou rochoso, entremeado de oásis ocasionais, repletos das onipresentes tamareiras, com vilarejos de casas de adobe marrom escuro. Colinas, serrotes, vales, planícies, se alternavam, à medida que a Cordilheira do Alto Atlas se aproximava. Rebanhos de dromedários e ovelhas surgiam espaçadamente.
Homens dos vilarejos vestiam túnicas brancas, limpíssimas, impecáveis, para a segunda oração islâmica da sexta-feira, justamente a oração mais importante do dia mais importante da semana para os religiosos muçulmanos. Adultos e crianças praticantes se preparavam para rezar e ouvir a pregação dos imãs, especialmente enviados às mesquitas dos vilarejos.
Ambulantes ofereciam falsos geodos na beira das estradas. Um olhar mais apurado denunciava os falsos cristais, as falsas cores, a falsa carapaça que, em vez de rochosa, não passava de massa escura e enrijecida de cerâmica pintada de cinza ou cimentada com areia. Trufas escuras também brotavam nas mãos de meninos nos acostamentos e nas paradas para vistas panorâmicas.
A estrada de trânsito pesado de caminhões começou a serpentear montanha acima. As cristas e picos com restos de neve se aproximavam. O relevo se tornava mais acidentado, mais íngreme, mais dramático. Abismos surgiam na margem da estrada estreita. Vilarejos berberes se erguiam nos vales repletos de tamareiras no fundo dos vales. Terraços cultivados de trigo desenhavam tapetes esverdeados nas encostas monocromáticas.
Subimos mais e mais a rodovia que seria fechada no inverno devido ao excesso de neve. E atingimos o passo Tichka, o ponto mais alto da estrada, porém bem abaixo dos principais picos e cristas da cordilheira ao redor, e muito inferior ao monte Jebel Toubkal, o ponto culminante do norte da África e não muito distante dali.
A partir do passo, o ziguezague da estrada passou à descendente, fornecendo visão impressionante das curvas fechadas em desnível montanha abaixo, me lembrando da Serra do Rio do Rastro em Santa Catarina, visitada no ano anterior. Nas encostas, e mais ainda nas planícies aos pés das montanhas, o verde voltou a aparecer, entre árvores, arbustos, gramíneas, terreno mais fértil. Terraços cultivados em níveis diferentes compunham cenário rico da vida agrícola dos trabalhadores rurais. Os dromedários a leste da cordilheira deram lugar a rebanhos ovinos e bovinos no lado oeste.
Anoitecia em Marrakech quando entrei no hotel construído em zona confinada para o turismo. Naquelas largas e arborizadas avenidas, nada de cidade ou gente comum, apenas imensos hotéis, um ao lado do outro, em ambas as calçadas, alternados de restaurantes voltados para turistas. Assim como na Tunísia, a política de turismo do Marrocos isolava os visitantes em regiões afastadas do centro. As raras exceções nem sequer arranhavam a regra.
No dia seguinte acordei para explorar a famosa e tão cantada em verso e prosa, a cidade de Marrakech, onde foi fundado o reino do Marrocos havia mais de mil anos. A cultuada e badalada Marrakech. Mas, porém, contudo, todavia, a cidade não passou de grande fiasco. Em bom português brasileiro, uma MERDA!
Provavelmente Marrakech fascinaria muitas décadas antes, quando a indústria predatória do turismo ainda não degradara tudo e todos. E fascinaria muitíssimo mais séculos atrás, nos tempos em que ali era um grande caravançarai, ponto de parada e intercâmbio de antigas rotas comerciais e culturais, de leste a oeste, de norte a sul.
Mas nada mais de décadas ou séculos atrás existia em Marrakech. Nenhum fascínio, nenhum charme, nenhuma beleza, nenhum mistério, nenhum exotismo, nenhum atrativo, exceto as montanhas nevadas da cordilheira do Atlas no horizonte.
A Marrakech do século XXI se tornou um deprimente parque de diversões temático, daqueles pontos turísticos onde tudo cheira a falso e desfigurado. As hordas de turistas saíam dos hotéis segregados da zona turística e entupiam a velha cidade murada. Vagueavam pelo labirinto de lojas com produtos falsificados travestidos de antiguidades ou com enxames de itens de fabricação chinesa. Lotavam bares e restaurantes que ofereciam bebidas e comidas insossas. No centro de tudo, a mui famosa praça Djema el-Fna, entupida de ambulantes, mulheres cobertas de véus lendo a sorte dos desavisados, encantadores de cobras cobrando pelas fotos ao som de melodias previsíveis, músicos tristes e cansados que batiam percussão ao se aproximarem os grupos de turistas. Os deslumbrados fotografavam qualquer coisa que aparecesse pela frente, até galinhas presas ou cavalos puxando charretes para inglês ver.
continua...

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Tunísia e Marrocos (parte 5/7)

...continuação
Em utilitário percorri os cerca de trinta quilômetros até o centro da enorme, moderna, e com favelas explícitas na periferia, Casablanca.
A cidade não tinha cara de nada. Avenidas, rotatórias, cruzamentos movimentados, prédios altos de ambos os lados das vias. Enxame de redes de comida de péssima qualidade, todas provenientes daquele regime terrorista ao norte do México. Raros os cartazes ou propagandas escritos em árabe. Raros os homens ou mulheres vestidos à maneira tradicional árabe ou muçulmana. Ali poderia ser qualquer cidade grande do triste e previsível mundo globalizado.
A música ambiente do hotel, gravada no salão do restaurante ou ao vivo nos bares, oferecia repertório daqueles dos hotéis de Águas de Lindóia durante a década de 1960.
Acordei para o dia sem grandes emoções em Casablanca. O mercado central, comum. A gigantesca e moderna mesquita Hassan II, nome do pai do rei da época, na beira do mar, cuja torre do minarete media duzentos metros de altura. A desinteressante praça Mohamed V, nome do avô do rei da época, cortada por linhas de bonde. O bairro Anfa, ocupado pela elite marroquina e estrangeira em trânsito pela cidade.
Na monarquia do Marrocos choviam atrações ligadas à família real, dos pais, avós, parentes. Havia mausoléus desse ou daquele membro da dinastia, palácios, estátuas, bustos, monumentos. Nada que merecesse admiração entusiasta. Eu preferia dar atenção às cenas do cotidiano do domingo marroquino. Famílias saíam para passear, em dia quente e ensolarado, nos parques, monumentos, nas rochas na beira do mar.
 Seguimos à avenida costeira do bairro de Anfa, de frente para o Atlântico. A praia se entupia de banhistas domingueiros, nas águas, areias, jogando futebol, caminhando no calçadão. As ofertas de restaurantes variavam, de comida marroquina ocidentalizada até as repugnantes redes estadunidenses, inclusive a que serve sanduíche de minhoca, refrigerantes químicos, batatas transgênicas, sorvete de gordura, açúcar e corante.
Circulei pelo calçadão urbanizado com balneários, piscinas, vestiários, construídos na areia da praia. Alguns se encontravam desativados e abandonados, fornecendo atmosfera entristecida a todo o conjunto, calçada, areia, mar.
Continuamos em autopista rumo à capital do Marrocos, Rabat, onde, devido a regras locais, nos foi designado guia da própria cidade. E veio o palácio do rei da época, Mohamed VI, o mausoléu do avô Mohamed V, tendo ao fundo o minarete da mesquita inacabada do século XII, a kasbah de Oldayas, abrigando residências pelos becos e ruelas. O guia, que falava de maneira robótica e de má vontade, pediu gorjeta ao final dos serviços. Não recebeu nenhum centavo.
Ao contrário da Tunísia, as atrações turísticas do Marrocos, mesmo as pouco atraentes, se enchiam de turistas despejados de dezenas de ônibus. E o tal pau-de-selfie era usado intensamente pelos estrangeiros. Quase ninguém queria fotografar paisagem, arquitetura, cenas culturais e do cotidiano. Os possuidores de tal artefato desejavam apenas serem fotografados. Os locais visitados, quando muito, já que na maioria das vezes sequer eram notados, serviam somente de pano de fundo.
E eu aguardava pelo Marrocos verdadeiro, profundo, autêntico, árabe. Ansiava por paisagens, arquiteturas, comidas, pessoas, escritos, costumes, realmente marroquinos.
O bar do hotel de Rabat, entre o restaurante e a recepção, fedia cigarro em todos os cantos. Parecia que ali todos fumavam, e em todos os lugares. Passei direto na busca de oxigênio. Enrolei nos sofás do saguão da entrada. Vazios e tristes. Levantei e fui até a calçada. Ruas escuras e desertas.
As estradas para além de Rabat cruzavam bosques, parques, florestas de sobreiros altamente produtivas de cortiça, áreas cultivadas com trigo, cereais, batatas, uvas, legumes, verduras, desenhando paisagem colorida, tal tapetes justapostos. As terras eram mais úmidas e férteis naquele centro-norte do país. Rebanhos de ovelhas e cabras, agora também de bovinos, surgiam de uma hora para outra. O relevo se acidentava. A rodovia se tornava sinuosa, indicando a proximidade da cordilheira Atlas, no caso o Médio Atlas.
Em Meknes, visitamos a medina murada, cujas imensas portas de entrada trabalhadas em madeira, e também rocha nos arcos superiores e laterais, nos davam as boas vindas. Uma dessas, a Bab el-Mansour, impressionava pelas dimensões, solidez, riqueza dos detalhes em relevo. O antigo palácio do fundador da cidadela, Moulay Ismail, cujas cavalariças, nos áureos tempos, chegaram a abrigar doze mil cavalos. O mausoléu onde estava enterrado contava com a tumba da família, mesquita, salão com mosaicos, fontes de água.
Assistimos a demonstrações das diversas fases do artesanato em metais gravados com fios de prata, depois os trabalhos de bordados em tecidos. Os insistentes comerciantes tentaram vender os produtos que garantiam ser exclusivos, de qualidade, a preços bem abaixo do custo somente por terem se afeiçoado a nós, somente a nós.
No centro da cidade, escolhi restaurante pequeno, barato, frequentado por marroquinos de Meknes. Comi tajine de carne de peru, prato ensopado, cozido e servido em recipiente cônico de cerâmica. A farta tigela de pães típicos da região me ajudou a mergulhar lentamente naquele prato que veio pelando de quente. Me satisfiz, na quantidade e na qualidade. Encerrei com salada de frutas cobertas de iogurte. Os garçons, sorridentes e atenciosos, me deixaram a vontade. Os fregueses me olhavam discretamente apesar de eu ser o único forasteiro comendo ali.
Por estradas acidentadas, cortando paisagens cultivadas nos vales e encostas, o veículo seguiu para Moulay Idriss, cidadezinha encravada na encosta de colina e isolada no meio do nada. Fundada no século VII e mantida de forma tradicional, a cidade atraía peregrinos de diversas regiões do país.
Perto dali se erguiam as ruínas romanas de Volubilis, datadas dos séculos II e III depois de Cristo, e situadas estrategicamente no alto do morro.
Mais uma vez um guia local nos foi designado. Sem a mínima vontade de prestar o serviço, o sujeito vomitou de maneira monocórdia frases decoradas sobre a história das ruínas, os possíveis significados de cada setor, cômodo, terreno, muro, mosaico, coluna, caminho. As ruínas revelavam trechos bem preservados, outros restaurados, outros ainda somente com a reconstituição do original. Cegonhas montavam e usavam ninhos enormes e confortáveis nos altos das colunas romanas, nos estilos dóricos, jônicos ou coríntios.
Ao final do circuito, o dito cujo que se considerava guia me coagiu a lhe dar gorjeta. Não pediu, ordenou. Nem pensar. Ainda mais pelo péssimo serviço, incluído no ingresso. E vivas à indústria predatória do turismo que produz párias em vez de treinar verdadeiros guias locais.
No final da tarde o veículo entrou em Fes (Fez), erguida entre as montanhas Rif e a cadeia do Médio Atlas, e dividida em três setores. A cidade antiga, datada do século IX, a parte nova ou medieval, do século XIV, a moderna, construída nas décadas da invasão e ocupação francesa.
Nos cruzamentos da cidade, cenas já notadas em outros pontos do país. Negros de pele muito escura, recém-chegados do centro e do sul da África, pediam esmolas. Segundo o motorista, pretendiam juntar dinheiro para cruzar de barco o Mediterrâneo e entrar na Europa. A mesma Europa que fatiou em pedaços o continente africano em meados do século XIX, dando uma parte para cada país europeu saquear, pilhar, escravizar. A mesma Europa que invadiu e ocupou a África por mais de cem anos, que dirigiu e sustentou o comércio de escravos. A mesma Europa que, agora submissa ao regime estadunidense, ainda deita e rola em território africano, manipulando governos fantoches, jogando civilizações contra civilizações. Mas a população da África espoliada era proibida de entrar e viver nessa mesma Europa.
E, finalmente, a extraordinária medina de Fes (Fez), completando mil e duzentos anos de idade. Ali dentro, somente a pé ou de jumento.
Distribuída num imenso labirinto de quilômetros de becos, ruelas, escadarias, comércio dividido em souks conforme a especialidade ou ramo de atividade, mesquitas, madraças ou escolas corânicas, moradias, oficinas, cooperativas de artesanatos, entre outras tantas subdivisões, a milenar medina, verdadeiro planeta dentro da área metropolitana, encantou de ponta a ponta. Passamos pela universidade mais antiga do mundo, datada do século IX, constituída de faculdades ativas nas mais diversas áreas do conhecimento. O setor de alimentos empolgou entre azeitonas de tamanhos e cores diversas, doces variados, tâmaras baratas, tâmaras caríssimas, frutas, grãos, verduras, laticínios, carnes, inclusive as de dromedários, como eu já notara nos interiores da Tunísia.
O ponto alto veio com o setor de curtumes. Amaciavam o couro, tingiam em tinas de diferentes cores naturais, secavam, costuravam, expunham para venda. Dentro das cavidades cilíndricas de tingimento, amarelas do açafrão, vermelhas da papoula, azuis do índigo, brancas da cal, marrons, verdes, os coureiros nela imersos mergulhavam dezenas de vezes as peças de material cru e previamente amaciado. Imagem impressionante dos coloridos, da metodologia artesanal, do tempo do onça, desumanas.
No almoço me deliciei com outro tajine, dessa de vez de frango e legumes em mesinha ao ar livre, de frente para o movimento frenético dos transeuntes. Comi bem, bastante e barato.
Nos dirigimos à medina medieval, ou nova, que contava com “somente” setecentos anos de existência. Entrei pela imponente Porta Azul, justamente a cor da cidade de Fes (Fez), rumo aos inúmeros souks, distribuídos em outra sequência de labirintos. Nem se comparava à medina antiga, no tamanho, complexidade, beleza, mistérios. Mas agradou pela frequência majoritariamente local. Num dos becos internos, um marroquino me ofereceu haxixe e outros produtos mais elaborados, mais potentes, mais alucinógenos. Não lhe faltariam clientes, sobretudo estrangeiros. Eu não precisava de nada daquilo. Já estava em estado de graça por ter perambulado horas dentro da estonteante medina de Fes (Fez).
O vício do cigarro atingia níveis tão alarmantes no Marrocos, e similares ao da Tunísia e Turquia, que em hotéis e restaurantes havia cinzeiros afixados até nas paredes internas dos elevadores, ou ao lado dos vasos e cavidades sanitárias. Se fumava muito e em todos os lugares, sem restrição. Os não fumantes que inalassem a fumaça. A saúde perdia de goleada para as doenças derivadas dos males do cigarro. E as corporações que lucravam com a dependência química deitavam e rolavam.
Saímos bem cedo de Fes (Fez) sob a névoa e nuvens baixas. As planícies intensamente cultivadas de alimentos, frutas, flores, deram lugar a serras, sobre as quais a estrada estreita se tornou sinuosa, acidentada, ao lado de escarpas rochosas, vales férteis e verdejantes. Cancelas na beira do asfalto interromperiam o tráfego de veículos durante o inverno, quando a neve cobriria tudo. Nos altos a névoa e as nuvens desapareceram e o sol brilhou no céu azul. O relevo subiu, passando pelas cidadezinhas de Imouzzer Kandar, Ifrane, voltadas ao turismo regional de verão, quando os marroquinos fugiam do forno e se refrescavam serra acima. O estilo arquitetônico do casario imitava os vilarejos alpinos europeus, da mesma forma que em algumas cidadezinhas serranas no Brasil.
Depois do entroncamento nas imediações da cidade de Azrou, ainda nos altos da serra, reserva natural contendo grupos de macacos dóceis, aguardando doações de bananas, melancias e afins dos turistas que paravam para fotografá-los.
 As curvas fechadas e o relevo acidentado prosseguiam nos arredores de Tinahdite. As primeiras imagens do Médio Atlas começaram a aparecer, em montanhas, cujas cristas e encostas altas se cobriam de neve. À medida que a estrada descia o relevo, nada mais de colinas verdejantes, florestas de cedro, oliveiras, flores diversas e coloridas. O ocre das escarpas rochosas passaria a dominar a paisagem. As culturas agrícolas desapareceriam, restando somente o verde do fundo dos vales, ao longo dos quais se erguiam vilas menores. A arquitetura berbere predominava. Casas de barro e pedra, acastanhadas, de taipa, térreas e baixas, retangulares, sem cobertura de telhas ou algo do gênero. Rebanhos de ovelhas e cabras eram o que restava àqueles terrenos e clima secos depois da cidadezinha de Midelt.
continua...

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Tunísia e Marrocos (parte 4/7)

...continuação
Na estação ferroviária, comprei passagem para Bizerta (Bizerte). Completamente perdida e chutando qualquer resposta para me despachar, a garota do balcão de informações interpretou os dados do bilhete, numa mistura de inglês, francês e árabe, da maneira mais estapafúrdia possível. Confundiu o número do assento com a plataforma, o número do vagão com a classe. Repeti as mesmas perguntas ao funcionário das plataformas e tudo se esclareceu. Trens de linhas suburbanas desovavam passageiros de tantos em tantos minutos.
E veio o trem velho e mal cuidado para Bizerta (Bizerte). A numeração dos vagões e dos assentos não era respeitada e me sentei em banco rasgado de um vagão qualquer e envelhecido. Papei o sanduíche de salame, queijo, salada e, é claro, a picante harissa para incendiar tudo. O cobrador verificava os bilhetes e brigava com os que queriam viajar de graça. O bate-boca esquentou com um deles parecendo que chegariam às vias-de-fato. Mas se entenderam na conversa.
De início, a periferia da capital, feia, empoeirada, inacabada. Depois das ruínas do aqueduto, a zona rural, cultivada com grãos e frutas, ou com capim e alfafa para alimentar os rebanhos de ovelhas, cabras, eventualmente gado. O norte da Tunísia se mostrava mais úmido, verde, fértil.
Passageiros embarcavam e desembarcavam no meio do nada ou em cidadezinhas acinzentadas. Pequenos vilarejos brotavam no meio das plantações sem fim. Serrotes se erguiam e desapareciam. O extenso lago salgado, entre Mateur e Tinja, cristalizava sal nas bordas.
Após cruzar a extensa zona militar e fortemente protegida, o trem parou na estação final de Bizerta (Bizerte), construção velha, caindo aos pedaços, em obras intermináveis. Em frente à estação, lotações, as louages, trazendo e levando passageiros.
Um recém-formado em marketing, desempregado da mesma maneira que quarenta por cento dos jovens tunisianos, que eu conhecera na zona dos engates dos vagões durante o percurso, me acompanhou pelas primeiras ruas da cidade. Ele falava e entendia pouco o inglês. Eu falava e entendia pouquíssimo o francês. Era ateu e com visão progressista sobre a Tunísia e o resto do mundo. Seguia a caminho de entrevistas de emprego.
Andei sem rumo pelas ruas, sabendo que no outro extremo havia o mar. De repente, dei de frente a charmoso canal do mar, ladeado por casario árabe de um lado, pela fortaleza murada de outro, dentro da qual se emaranhava a medina da cidade. Nas beiras do canal, dezenas de barcos de pesca e de passeio. Nas calçadas, bares e restaurantes informais serviam peixes, mariscos, ostras, camarões. O sol brilhante do meio da tarde valorizava as cores, contornos, relevos, contrastes.
Dei volta rápida pelos becos e sinuosidades da medina, pequena e residencial. Contornei a sólida murada e avistei as águas azuladas e convidativas. Me assustei com a construção alta, imensa, cinzenta, horrenda, agressiva e inacabada à direita. Pisei a areia fina e clara da praia. O azul profundo do Mediterrâneo não poderia ser mais emblemático do que aquele à minha frente. Azul de encantar os olhos do mais indiferente dos mortais. Nem o vento frio, nem o lixo acumulado em trechos da areia, nem o bando de cachorros antissociais que topei pelo caminho me tirariam dali.
Mas eu não tinha todo o tempo até a partida do último trem para Túnis. Retornei pelo calçadão da beira do canal, agora contra a luz do sol, que fornecia efeito ainda mais espetacular ao conjunto casas, água, barcos, muralha. O casario caiado de branco com as janelas e portas azuis tinha o minarete da mesquita de base quadrada ao fundo.
Atingi o centro comercial de Bizerta (Bizerte) com o estômago roncando de fome. Encontrei restaurante que servia pratos-feitos tunisianos. O chawarma, salada, batatas, arroz com açafrão, pasta condimentada de berinjela e, obviamente, a onipresente, a saborosíssima, a incendiária harissa, veio acompanhado da cesta de pães, muitos pães. Me empanturrei de tanto comer, em mesa solitária na calçada, para deleite dos transeuntes que me olhavam curiosamente. Completei o almoço tardio, ou o jantar antecipado, com doces de tâmaras, os chifres-de-gazela, a fim de adoçar o sangue e afastar os últimos vestígios apimentados da harissa.
Embarquei em trem elétrico de apenas dois vagões, mais moderno e em melhor estado do que o da ida. O sol se pôs durante o percurso.
Embora não afeitos a regras de trânsito, para veículos ou para pedestres, os tunisianos não agiam agressivamente. Trocavam gentilezas naturalmente. Usavam da boa e velha convivência humana contra as regras quadradas e impostas pelo ocidente invasor e colonizador. E geralmente funcionava. Mas não estavam nem aí para os avisos sobre o uso preferencial de assentos, em trens, ônibus, bondes. Todos se sentavam impunemente, independente se houvesse pessoas mais necessitadas. Se alguém preferencial se aproximava, e não havia assentos disponíveis, ninguém se mexia. E o passageiro preferencial permanecia de pé.
O TGM, trem de subúrbio, de vagões velhos e descuidados, partiu bem cheio da estação Túnis Marina. Após parar em diversas estações intermediárias, La Goulette, Cartagho, a graciosa Sid Bou Said, desembarquei no final da linha.
La Marsa era cidade de veraneio, repleta de casas suntuosas erguidas sobre a colina que desce para a praia no Mediterrâneo. O azul profundo das águas agitadas do mar convidava a mergulhos refrescantes em dias mais quentes. O comércio sofisticado, ou metido a isso, inferia os frequentadores habituais, as elites árabes e europeias. Construções faraônicas e irregulares afrontavam o bom gosto e, sobretudo, o ecossistema marinho. As ruas e becos do bairro dos ricos, pela consciência pesada, mantinham exagerado esquema de segurança armada.
Peguei o trem de novo e desembarquei em Sid Bou Said, vilazinha transbordando em beleza, bucolismo, bom gosto, serenidade. Convidava a andar preguiçosamente pelas ladeiras, becos, escadarias em curva, sobrados avarandados do casario, invariavelmente caiado de branco com portas e janelas azuis. As portas tunisianas eram um caso à parte, pesadas, sólidas, desenhadas com pontas de metal fundido, protegidas acima por arcos de pedra. Do alto da colina, o Mediterrâneo de um lado, recebendo o vento frio da Europa, os lagos e mares internos do oposto, com marinas, montanhas ao fundo, águas mais calmas. Moradia de artistas e descolados, a vila remetia à paulista Embu das Artes. Me instalei em restaurante com vista privilegiada e sem o vento. Valeu pelo mar escandalosamente azul, o chawarma bem acompanhado de legumes, arroz, batatas, legumes, mais a harissa e a pasta de berinjela, picantes até dizer chega.
Desci a colina para tomar o trem de volta a Túnis. O sol brilhava mais do que os dias anteriores.
Os hóspedes do hotel iam trocando de rostos. Falantes de árabe cujas mulheres se cobriam de véus e mantos, falantes de línguas monossilábicas e multitônicas do sudeste asiático, falantes de francês. Uma branca jovem, ao escolher no bufê matinal, colocou no prato isso e aquilo, além de colherada de pasta avermelhada, supondo tipo de geleia tunisiana. Ao mandar à língua uma boa porção de harissa, junto a um naco de pão, veio o pulo na cadeira. Desesperada e olhando para todos os lados, não sabia se cuspia tudo no prato, se engolia, se bebia água, café, chá, suco, se chamava os bombeiros, se gritava ou o quê. Por fim, engolindo os demais itens, líquidos e sólidos, o incêndio interno amenizou, o vermelho do rosto clareou, os olhos ficaram menos esbugalhados, o corpo relaxou na cadeira.
E lá fui à estação ferroviária comprar passagem de trem para Sousse, visando mais o trajeto de trem em si do que propriamente revisitar a cidade dos resorts.
O trem velho e confortável partiu lotado. Parou somente nas estações de Hamana Lif e Bir Bou Regba antes de eu desembarcar em Sousse. Os passageiros ainda seguiriam para diversas estações intermediárias, além de Sfax e da parada final em Tozeur, prevista para o anoitecer.
Pouca gente na popular praia do centro, Boujaafar. Perambulei sem rumo pelas ruelas da medina de Sousse.
Almocei peixe grelhado com legumes e batatas, acompanhado de feijão branco nadando em harissa. O restaurante era simples, desajeitado, despreocupado com a aparência. Uma senhora por duas vezes passou ao meu lado, carregando o balde encardido cheio de batatas descascadas e cortadas. Gatos me rondavam a fim das sobras do peixe. A frequência de moradores da cidade ou a trabalho nas redondezas, familiarizados com a cozinha, me tranquilizaram quanta a possíveis consequências estomacais.
Relaxei nos bancos sob as sombras das árvores da praça, observando o movimento do centro nervoso. Um tunisiano se sentou ao meu lado e puxou assunto. Não decolou e ambos desistiram. Fui abordado por malandro que insistia em me passar moedas sei lá de que países. Falei umas bobagens em português e ele se mandou.
O moderno trem elétrico de apenas dois vagões lotou imediatamente. Consegui assento privilegiado na primeira fileira, bem em frente à cabine de comando. Fumante inveterado, o maquinista atingia a velocidade máxima permitida nas retas de cento e trinta quilômetros por hora. Balançava para cima, para baixo e para os lados, feito um boneco, enquanto sentado no banco de molas exageradamente flexíveis da cabine.
No topo dos postes de metal e das torres de transmissão de eletricidade, as cegonhas construíam ninhos grandes e confortáveis. Ninhos completos. Permaneciam com o pescoço esticado para fora, chocando, se prevenindo de possíveis predadores. Cenas que se repetiam por toda a Tunísia, de norte a sul, tal qual marcas registradas na paisagem.
Desembarquei em Túnis ao anoitecer. Papei salame e queijo com harissa no pão chapatti. Os cafés da avenida Habib Bourguiba lotavam de tunisianos tomando café, chá, água, jogando conversa fora, olhando o vaivém dos pedestres a caminho de casa. Consumo de bebidas alcoólicas somente em bares mais discretos, e do lado de dentro, com a porta meio aberta. Nada de exibição ou ostentação ao ar livre.
Lixo e entulhos acumulados nos terrenos baldios, ruas e becos, áreas desocupadas, ferrovias, estações de trem. Sacos plásticos presos aos galhos de árvores, soltos nos interiores e periferias urbanas. Córregos canalizados, imundos, entupidos de lixo fedorento. Alguns pedintes idosos em trens de subúrbio, calçadas, praças, próximos a mesquitas. Apenas parte do que vi do lado menos admirado da Tunísia.
E parece que o calor aportou de vez no norte da África. Ainda não era o típico de verão, quando as temperaturas beirariam os 50 graus, mas as temperaturas subiam significativamente. Não por acaso, chapéus passavam a ser vendidos em lojas e ambulantes, imediatamente usados pelas primeiras tunisianas, sobre os véus e mantos. Também os óculos de sol se tornavam itens essenciais.
Dei giro pela medina, a residencial e menos desfigurada, situada ao lado da medina comercial. Becos, ruelas em arco, casario caiado de branco, caminhos estreitos, portas espetacularmente antigas, minúsculas oficinas, marcenarias, alfaiatarias, barbearias, trabalhos em tecidos, metais, madeira, pedras, moradias simples, lado a lado, frente a frente. Tudo muito próximo. Impossível não praticar a convivência pacífica.
Um sujeito idoso e muito comunicativo insistiu para me desvendar tesouros escondidos pelos labirintos da medina. Eu estava solto mesmo e o acompanhei. Me mostrou coisas pelas quais eu já tinha passado e outras nem tanto ou das quais não me lembrava. E ele falava, contava, explicava, narrava, enaltecia, ressaltava, valorizava a experiência única adquirida em décadas circulando por ali. Andamos muito. Ele falou muito. Eu ouvi muito. Ao final, me pediu gorjeta pelo trabalho. A cobrança e o valor tinham sido expostos antes? Então nada feito. Nem um centavo, mesmo após os implorados pedidos, mencionando netos sem condições de pagar o uniforme e o material escolar.
O feriado do dia internacional do trabalho concentrava militantes de roupas e bandeiras vermelhas ao longo da avenida Habib Bourguiba. Torcedores argelinos circulavam em grupos, de uniforme do time, agitando bandeirolas e flâmulas, gritando versos de torcida organizada. O policiamento, para lá de numeroso e ostensivo desde o atentado do mês anterior, se ouriçou com as novidades e retraiu os músculos nas armas pesadas a tiracolo. Palavras de ordem eram entoadas pelos grupos organizados para as manifestações. As rondas policiais armadas até os dentes cercavam os pontos estratégicos. Preferi não me arriscar em país estrangeiro com passado recente turbulento. A tensão crescia e se tornava incompatível com um viajante curioso com câmera fotográfica à mão.
Acordei bem antes do despertador e esperei o início do café da manhã. Subi no táxi reservado para me levar ao aeroporto não interligado por transporte coletivo. O taxista ignorou o valor marcado no taxímetro, garantindo que combinara na recepção do hotel um valor três vezes maior. Golpe descarado e escancarado. Eu não queria discutir, pois tinha dinares de sobra que, de qualquer maneira, morreriam inúteis na minha mão. E nem assim acabou o dinheiro tunisiano, não conversível em outros países.
Peregrinos muçulmanos vestidos a caráter, com túnicas brancas ou de cores bem claras, eles e elas, embarcavam para a Arábia Saudita, provavelmente rumo a Meca, uma das cinco metas de todos os muçulmanos sadios e com condições financeiras.
Da mesma forma de Roma, ali no aeroporto de Túnis também havia a estapafúrdia área reservada aos fumantes. Pequena, apertada, envidraçada, expondo os desejosos de câncer, todos de pé, inalando e baforando fumaça, tornando o ar nebuloso, contaminado, patético feito aquário esfumaçado. E ainda assim se sujeitavam ao vício, e pagando por ele.
Voo de Túnis a Casablanca tranquilo na empresa aérea do Marrocos, com refeição comível à base de cuscuz marroquino. A paisagem se tornou árida próxima à fronteira com a Argélia. Exibia montanhas com cristas e as encostas altas nevadas, sobretudo nas imediações da cidade argelina de Constantine. Ainda mais desértica na porção ocidental da Argélia. O cenário voltou ao semiárido depois de entrar em território marroquino, com algum verde pálido, plantações, vales mais ou menos férteis. Cristas e encostas nevadas das altas montanhas da cordilheira do Atlas. O solo secou nos arredores de Casablanca, expondo terreno ocre, monocromático.
continua...

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Tunísia e Marrocos (parte 3/7)

...continuação
Levantei ainda no escuro. Na porta de vidro do salão do café da manhã estava afixada a programação para o grupo de motoqueiros belgas, hospedado naquele hotel. E tudo escrito em duas línguas, flamengo e francês. Incrível a Bélgica, país cuja área é pouco maior que a do estado de Alagoas, possuir duas línguas faladas por duas partes fisicamente separadas, divididas, que não se bicam, que uma se recusa a falar a língua da outra, que não raramente se estranham e entram em confronto. E havia ainda o alemão, língua falada por uma terceira parte daquele país.
Partimos via o litoral leste tunisiano. Margeamos a economicamente dinâmica cidade de Gabes, repleta de refinarias lançando efluentes químicos nos córregos, solo, praias. Então pegamos rodovia com tráfego pesado, passando ao lado de pequenos vilarejos empoeirados e sujos. Ambulantes na beira da estrada vendiam frutas, verduras, gasolina contrabandeada da Líbia, eletroeletrônicos, cerâmica, inutilidades, carne de carneiro grelhada, cujos estabelecimentos penduravam a pele do animal abatido para atrair os clientes. Também senhores ferviam água em chaleiras escurecidas para venda de chá, entre outras dezenas de itens expostos à poeira e aos escapamentos de automóveis, motos, caminhões, ônibus. Veículos com placas da Líbia ultrapassavam feito loucos, pela esquerda, pela direita, trafegando na contramão, pedindo para morrer e matar.
E assim foi, passando pelas cidades de Skira e Mahres, até Sfax, a segunda cidade mais populosa da Tunísia. Um baita engarrafamento nos recebeu pelas avenidas de entrada da zona urbana, entre muita poeira, fumaça dos escapamentos, obras nas vias e calçadas, pedestres aos montes disputando espaço com os veículos aos montes.
Era sexta-feira, o dia mais sagrado para o islamismo, cujos praticantes deveriam orar pelo menos uma das cinco orações diárias na própria mesquita. Homens barbudos vestiam túnicas cinzas-clara ou brancas, limpíssimas, impecavelmente passadas. Mulheres se cobriam de burca negra ou azul. Mas todos esses religiosos, homens e mulheres, eram minoritários em comparação aos não praticantes ou praticantes moderados, vestidos à maneira ocidental.
  Desembarquei em frente ao portão principal da medina de Sfax, cercada em todo o perímetro por muralha alta, espessa, pesada, com direito a ameias e orifícios para observação ou defesa armada nos séculos passados. Dentro da medina, intensamente procurada pela população para comprar ou consertar todos os produtos que se podia imaginar. Os diversos souks concentravam, de maneira organizada, ramos de itens ou atividades afins. Mulheres, homens, crianças, idosos, circulavam, literalmente fervendo os becos e ruelas internas. Como nas demais zonas comerciais do país, destaque para os morangos, frescos, enormes, vermelhos-escuros, convidativos, perfumados, suculentos, apetitosos. E também laranjas deliciosamente azedas, ali chamadas simplesmente de portugal.
De volta à estrada carregada de caminhões e automóveis antes de desviar para rodovia nova de pista dupla. A paisagem semiárida guardava, desde antes de Sfax, olivais sem fim, de ambos os lados, a perderem de vista, geometricamente plantados. Nos pedágios, vendedores ofereciam pães redondos assados nas redondezas.
O veículo entrou nas ruas empoeiradas da cidade de El Jem, em cujo centro se erguia o coliseu romano construído no século III. A construção ovalada, com capacidade para trinta mil espectadores, possuía arquibancadas distintas para imperadores e cônsules, galerias para escravos, animais ferozes, gladiadores.
Subi e desci as escadarias. Caminhei por galerias superiores, inferiores, a arena, os portões. Novamente, pouquíssimos turistas perambulando pela imensidão do coliseu. Do lado de fora, ao redor, ambulantes sonolentos e sem compradores, dromedários sonolentos e sem montadores, cafés com garçons sonolentos e sem clientes.
Almoçamos em restaurante frequentado por trabalhadores locais engravatados. Servia comida picante, com a onipresente harissa, usada na preparação dos pratos e disposta nas entradas junto à generosa cesta de pães. A sequência veio de sopa de grãos, coelho assado com macarrão ao molho apimentado, regada a refresco de tamarindo.
As ruas das proximidades do restaurante, situado em esquina nervosa, se coalhavam de muçulmanos vestidos a caráter saindo das mesquitas após a mais importante oração do dia. O trânsito, que já não era dos mais fluentes, parou de vez, entre carros, ônibus, motos, bicicletas, pedestres, a poeira das obras viárias.
De volta à rodovia nova. No meio da tarde já percorríamos as avenidas de Sousse, cidade litorânea e moderna, contando com dezenas de resorts que abrigavam europeus desembarcados no aeroporto local vindos de voos fretados.
E foi num desses resorts, na região de Port Kantaoui, que me hospedei. O gigantesco quarto, atulhado de móveis, precisaria de mapa para não me perder.
Desci para o jantar. Os diversos bares já estavam tomados pela profusão de turistas. As lojas do andar térreo, vazias, só contavam com os tristes vendedores mirando o nada. Figuras fantasiadas de personagens de estórias infantis recebiam os hóspedes na entrada do salão de jantar. Em ambiente imenso, lembrando as churrascarias do ABC paulista, os turistas disputavam as comidas insossas, insípidas, hospitalares, dispostas em bufês. As bebidas, entre sucos, refrigerantes, cervejas, vinhos, se obtinham a partir de torneiras automáticas. Tudo, absolutamente tudo, sem gosto, sem tempero, sem personalidade, sem carinho. Somente quantidade, nada de qualidade.
Em outro salão, cartazes convidavam para apresentação de variedades daí a duas horas. Máquinas automáticas tiravam fotografias dos presentes. O conjunto das áreas comuns internas do hotel, bares, restaurantes, salão de eventos, lojas, compunham a sucursal do inferno. Um cruzeiro marítimo em terra, mal frequentado, mal servido, mal decorado, mal animado.
Verdadeiro enclave em território tunisiano, o hotel isolava os hóspedes do povo e culturas locais. E parece que era exatamente o que aqueles seres vomitados de voos fretados europeus desejavam. Não vieram à Tunísia, mas sim ao resort, que, por acaso, fora construído por uma dessas redes internacionais de hotelaria em frente ao mar da Tunísia.
Durante o café da manhã a circulação de personagens fellinianos prosseguiu. Em vez de sucos, chá, café, leite, muitos se empanturravam de refrigerantes químicos, abrindo as torneirinhas a todo instante.
No térreo, entre o prédio principal e o mar, o complexo de piscinas do hotel, mais bares, palcos de animação, salão de ginástica, salão de massagem, quadras de jogos estranhos e venerados pelos britânicos. Mas para chegar até ali era necessário ultrapassar o corredor polonês de ambulantes cadastrados, vendendo inutilidades e quinquilharias de péssima qualidade.
Depois do último bar do hotel, e eram muitos os bares, a areia da praia e o mar, com mais garçons circulando com os pedidos nas bandejas. Os demais hotéis, à esquerda e à direita, tinham as mesmas coisas, da mesma maneira, frequentados pelos mesmos tipos, todos em série, lado a lado.
Não fazia calor, principalmente pelo constante vento frio da primavera. Provenientes de países distantes da linha do equador, contudo, os turistas vestiam somente sungas e biquínis, se derretendo de calor naquela manhã de 19 graus. Liam livros de autoajuda, revistas com a última novidade para emagrecer sem esforço, fofocas das celebridades ou das decadentes monarquias europeias, crônicas esportivas, best-sellers da temporada. Cutucavam esquizofrenicamente celulares, tablets, notebooks. Bebiam todas e largavam latinhas e garrafas ao lado. Era para isso que pagaram e vieram.
Ali a atração turística não era a Tunísia, o povo tunisiano, a cultura árabe, o mar Mediterrâneo. A atração era os próprios turistas.
O trajeto rodoviário de Sousse a Túnis, à beira mar, valeu pela cidadezinha de Hergla, procurada durante o verão para alugueis de imóveis. Fora da estação, no entanto, transbordava charme, silêncio, tranquilidade, ocupada apenas por tunisianos sem pressa, nos cafés, praças, porta das casas, invariavelmente caiadas de branco com portas e janelas pintadas de azul, costume do Mediterrâneo. O brilho da luz do sol lhe fornecia autêntico ar de vila árabe e litorânea. O mar azul, os pescadores matinais, tudo convidava a ficar, a relaxar.
Antes do almoço eu já estava hospedado no hotel em transversal da avenida Habib Bourguiba, centro novo de Túnis. Almocei bem e barato cuscuz com carne de coelho em restaurante pequeno e familiar.
Dei volta pelo calçadão da avenida, fortemente policiada com homens armados até os dentes, bloqueios com arame farpado e barricadas de sacos de areia, rondas ostensivas de segurança. O atentado do mês anterior ainda rendia reflexos. Os cafés de ambas as calçadas afrancesadas da avenida enchiam de tunisianos e de visitantes regionais, tomando chá, café, água, doces, sorvetes, ou simplesmente conversando e admirando o vaivém daquela tarde de domingo ensolarado.
Na manhã seguinte, cruzei a Porta do Mar que os invasores franceses rebatizaram com outro nome, e optei por uma das ruelas de entrada da medina, sem pressa, sem roteiro. Vez ou outra arriscava vielas mais estreitas e transversais. Dobrei aqui, virei ali, para esquerda, para direita e, de uma hora para outra, já não sabia onde estava e nem como sair. Pacientemente retornava, sabe-se lá como, a algum trecho visualmente familiar e retomava as incursões.
Cada souk da medina concentrava um tipo ou grupo de produtos ou serviços, abrigando lojas e mais lojas, uma ao lado da outra. Nenhum espaço, por menor que fosse, era desperdiçado. Motos e carrinhos de carga eventualmente atrapalhavam o fluxo de pedestres. Casas de chá e café, algumas charmosíssimas e ornadas de almofadas e tapetes coloridos, mosaicos nas paredes, recebiam os fregueses para conversar, ver o tempo passar, fazer negócios, fumar narguilé. O calçamento de pedra das ruazinhas contava com depressão central e longitudinal para facilitar o escoamento da água e de sujeiras em geral. Mesquitas, incluindo a principal de Túnis, a Zaytouna, fechavam as salas de oração aos não muçulmanos. Becos e ruelas se cobriam de arcos de tijolos, sobre os quais janelas trabalhadas abrigavam moradias ou depósitos comerciais. Em trecho mais aberto e degradado, ambulantes vendiam roupas baratas amontoadas em esteiras no chão ou penduradas em toscos cabides. Ali as tunisianas de mantos, véus, roupas largas e longas, se esbaldavam, regateavam, levando uma ou mais peças. Do lado ocidental da medina, órgãos governamentais fortemente protegidos pela polícia e pelo exército. E mais além, avenidas congestionadas durante o horário matinal de pico.
Devido a questões de segurança, após o atentado no museu Bardo, faixas da avenida Habib Bourguiba foram bloqueadas ao tráfego de veículos. O trânsito então vivia engarrafado, sobretudo no acesso das transversais. De vez em quando, uma batidinha de para-choques, um amassadinho. Os motoristas saíam dos veículos, verificavam os danos, resmungavam, ameaçavam discutir, mas acabavam desistindo e seguindo em frente. Nessas horas as buzinas geravam sinfonia de estourar os tímpanos.
Andei pelas transversais da avenida Habib Bourguiba, entre ruas e construções europeizadas de até cinco andares, comércio monótono, tráfego intenso de pedestres e veículos. Desviei ziguezagueando na busca do que me chamasse atenção. Virei para lá, dobrei para cá, acabei caindo em becos irregulares de outra medina, residencial, com raras lojas de produtos essenciais. E me descobri perdido naquele magnífico labirinto tunisiano.
Eu não tinha a mínima ideia de como sair dali. Optei por me manter no rumo sul. Mais becos, mais curvas, mais medina. Nada de ruas ou avenidas retas. De repente caí numa região de construções suntuosas, ao lado de escritórios de advogados, cartórios, locais para cópias de documentos, escritórios de tradutores juramentados. Homens vestiam terno e gravata, outros carregavam pastas com documentos. Conversavam entre si, explicando pacientemente isso e aquilo. De uma construção grande e pesada, centenas de pessoas subiam e desciam as escadarias. Intuí estar em área de tribunais ou algo parecido. Mais á frente, eis que surge o conjunto de prédios públicos avistados no dia anterior. E logo vi a torre da mesquita Zaytouna. Eu me localizara.
Mulheres vestidas de roupas longas, folgadas e cobrindo as cabeças com véus e mantos, levantavam cartazes e gritavam palavras de ordem. Uma delas esbravejava com o soldado da guarda nacional. A polícia aumentava a segurança e bloqueava mais ruas e acessos do que o normal. Senti tensão no ar. Contornei o movimento nervoso e entrei na parte comercial da medina para cruzá-la de ponta a ponta, até a Porta do Mar, entrando na área afrancesada de Túnis.
continua...