quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

do Maranhão à Paraíba (parte 6/6)

...continuação
A avenida da praia ficava interditada para o tráfego de veículos das 5h às 8h da manhã. Muita gente aproveitava para caminhar, correr, exercitar-se, na avenida, calçadão, na praia. Dia para fazer nada, apenas contemplar o visual, esticar na rede, ler, escrever, trocar ideias com os funcionários da pousada. A proibição de construir prédios de mais de quatro andares na praia de Tambaú mantinha de pé casas antigas e preservava a paisagem como um todo. No final da tarde, os pessoenses retornavam às caminhadas e corridas pelo calçadão da praia.
Alguns moradores se ressentiam da cidade não ser tão turística como Natal ou Fortaleza. Argumentei que, com o crescimento do turismo desorganizado, viriam mais turistas, mais putas, mais menores de rua, mais pedintes, mais concentração de renda, mais riqueza para poucos, mais miséria para muitos. E João Pessoa iria perder a atmosfera calma, as praias limpas, a natureza. O turismo jamais deveria ser prioridade, mas sim os investimentos sociais para a maioria.
O dia amanheceu brilhante. Percorri a praia de Tambaú, a praia de Cabo Branco. Subi as encostas da falésia do farol do Cabo Branco, Pontal do Seixas, o ponto mais oriental do Brasil e da América e, finalmente, baixei na praia do Seixas. Antes do farol, calçadões na praia, casas, edifícios poucos e baixos, muito verde, calmaria. Em seguida, caminhei pela areia da praia ou por ruas atrás das raras barracas ou casas. A praia do Seixas estava vazia e tranquila.
Parei em barraca de comes e bebes frequentada pelos vizinhos que faziam breves paradas e jogavam conversa fora. Entre eles estava o policial civil do turno da noite, o sargento aposentado, a garota bastante “rodada” e mãe de menina de quinze anos, o paulista motorista de táxi. O dono da barraca sabia como tirar as novidades e confissões dos frequentadores.

O taxista conheceu em São Paulo a paraibana onze anos mais velha. Decidiram se juntar e morar em João Pessoa. Nem bem ele acabara de contar a história, a dita cuja apareceu na barraca. Lançou-lhe broncas, xingou, gritou, acusou-o de só querer beber e de não voltar para casa. Ameaçou telefonar para a mãe do paulista e contar tudo sobre o “traste” do filho. Os demais da barraca permaneciam calados e atentos. Muito irritado, o paulista respondia no mesmo tom. O clima esquentou e faltou pouco para saírem no tapa. Mas bastou ela ir embora para ele desabafar. Não suportava mais tanta tirania e até pensava em largar tudo e voltar para São Paulo. Era o segundo casamento para ambos e com filhos em todos eles.
O dono da barraca lançou a teoria, logo endossada pelos demais, que não se devia casar com mulher já “feita” por outro homem. E declarava:
“O cabra tem que “fazer” a mulher para a relação dar certo”.
E todos ficaram à vontade para proclamar que “mulher é louca para dar”, “não existe mulher difícil, apenas mulher mal cantada” e outras frases tocantes. O sargento aposentado se lembrou de um pescador abandonado pela mulher que adorava se perfumar todos os dias antes de trabalhar na casa do patrão. E a conclusão de todos na barraca foi imediata: “só podia estar dando para o patrão”.
Jantei no famoso restaurante de comida regional no bairro da Manaíra. Antes de sair da pousada, a senhora idosa, doente e sedentária, que apenas dormia e se estirava no sofá da sala da recepção para assistir televisão, me declarou em voz alta e clara, carregando no sotaque nordestino, em tom bombástico, que aquele restaurante era muito bom e, o mais importante, era “Selv Selv”. O restaurante, com decoração rústica e preços altos, tinha atendimento simpático, às vezes pegajoso, com as garçonetes exagerando nos agrados e dificultando a escolha dos pratos com calma. Não serviam bebidas alcoólicas. As dezenas de opções no bufê vinham nadando no óleo. Os sabores não empolgavam. Matei a fome e foi só.
As noites de João Pessoa ganhavam mais movimento com a proximidade do final de semana. Mas a calma ainda era a marca e tudo se encerrava cedo. Os pessoenses arrumavam-se antes de sair, vestindo calças, sapato e meia, camisa de manga comprida. Raros os que usavam bermudas.
Peguei o ônibus para o centro da cidade. O centro de João Pessoa contém construções antigas e barrocas de grande valor arquitetônico e histórico, como a catedral, igreja do Carmo, Casa da Pólvora, teatro Santa Rosa e, especialmente, o convento de São Francisco. Datado do século XVII, o amplo convento guarda imagens, afrescos no teto, altares, púlpitos folhados a ouro. A administração atual, em atitude louvável, utilizava o espaço do convento como centro cultural da cidade, abrigando exposições de obras contemporâneas, objetos do folclore paraibano e de outras regiões do Brasil. O guia interno se mostrou bem informado e politizado. Além dos conhecimentos a respeito da história, características artísticas e religiosas do convento, abriu debate sobre a situação da igreja brasileira, o bispo Dom Pelé, o MST, movimentos populares, cultura regional entre outros temas.

Almocei em restaurante perto dali frequentado pelos trabalhadores da região e oferecendo pratos da culinária regional, como bode, galinha matriz de carne dura, arroz de leite e outras iguarias. Serviam comida paraibana na Paraíba. Certíssimo!
As praias não enchiam aos sábados. Mas em toda a extensão havia pessoas aqui e ali, sem multidão, com muito espaço e tranquilidade.
Os pessoenses saíram da toca no sábado à noite. As ruas ficaram cheias, leves congestionamentos, os bares lotados, olhares de busca e contatos, gente produzida. As famílias também se faziam presentes pelas calçadas e bancos da beira da praia. Praticamente todos de pele clara.
Dia longo e agradável pelas praias de Cabedelo e João Pessoa, ente elas Camboinha, Poço, Bessa e Intermares. O mar estava calmo, bonito e colorido, mesmo em domingo nada lotado. Foram comes e bebes nas barracas das praias, mergulhos, em companhia da família da colega piauiense. No final do dia, o pôr-do-sol no Jacaré, situado próximo à foz do rio de mesmo nome. Todos os bares, marinas, restaurantes, tocavam o Bolero de Ravel, sincronizando o final com o exato momento que o sol desaparece no horizonte. A maioria dos bares abusava e cobrava entrada. Nada especial e até pretensioso.
As aglomerações humanas nas calçadas, esquinas, praças, bares, sorveterias e restaurantes em João Pessoa, nos finais de semana, lembravam cidades de interior. Muitos reunidos, conversando ou apenas olhando o movimento, pequeno consumo, dispersão e volta cedo para casa. Os espaços públicos, felizmente, ainda predominavam no lazer de todas as idades. Que os templos do consumo, praga em outras capitais, não destruíssem o jeito pessoense de viver a vida.
Embarquei em passeio diurno pelo litoral sul da Paraíba. Passagem pelas praias de Barra do Gramame, do Amor, do Coqueirinho, Tabatinga, Jacumã, Carapibus. Paramos bastante, inclusive na de Tambaba que contava com área para nudistas. No meio da estrada, havia trecho ilegalmente interrompido com galhos espinhosos para o acesso à praia. Descemos e desimpedimos o caminho, barrando aquela tentativa de privatização da natureza. Era quarta-feira e as praias estavam perfeitas, vazias, tranquilas. Ficou a torcida para que esse paraíso não seja estragado pela indústria do turismo.
Moradora de João Pessoa, a colega piauiense se ressentia do comportamento da maioria dos pessoenses. Apesar de simpáticos e prestativos, orgulho ou arrogância os impedia de procurar, telefonar, retribuir gentilezas. E me contou que o irmão se formara em administração de empresas e ficou sem conseguir emprego por meses. Tentou daqui, dali e nada. Muito comunicativo, aceitou a bizarra sugestão de fazer curso para pastor neopentecostal, mesmo não sendo evangélico ou religioso de qualquer facção. Concluiu o curso com louvor. Passou a atuar como pastor nos templos do comércio da fé. Ganhou fortunas, em dinheiro e afins. Ficou rico com a indústria do fundamentalismo sem nunca ter sido religioso ou crer naquelas baboseiras que tanto repetia aos otários que o sustentavam nos chamados cultos das empresas evangélicas.

Acordei no meio da madrugada com os sons da sacada ao lado. O hóspede dinamarquês, que se considerava escritor, dois paraibanos e uma garota morena com longos cabelos negros, tomavam todas, falavam e riam alto. Os dois paraibanos saíram e logo retornaram com mais bebidas. Então foram embora e o dinamarquês ficou sozinho com a morena que não passava dos dezoito anos. Começaram a sussurrar, ele em inglês com raras palavras em português e ela em português com raras palavras em inglês. O tom das vozes ficava cada vez mais melado. Ela se oferecia dizendo que o namorado não era de confiança e ele se empolgava. Entravam e saíam do quarto dele. Depois desceram as escadas e foram mergulhar nus no mar. Voltaram. Ela insinuava que ele lhe presenteasse com jóias. A partir de agora era love, eram friends. Ele fingia não entender e desconversava. Ela insistia de todas as maneiras. Entraram juntos no quarto do dinamarquês e o silêncio, enfim, reinou na pousada.
Terminei o fraco livro Pedra Viva, de Josué Montello. Doei ao funcionário da pousada que agradeceu comovido. E me contou que a mulher, ainda nova, apanhara demais do ex-marido. Nem o filho tinha escapado. Ela ainda exibia marcas da violência pelo rosto e corpo. Com o novo casamento, ela e o filho tentavam superar o trauma.
Depois de muito procurar, em sebo da cidade encontrei o livro O Círio Perfeito, de Pedro Nava.
Pela manhã o calor estava demais. Foi só preguiça. Li, cochilei, almocei, voltei a ler e a cochilar. Caminhei sob as luzes alaranjadas do pôr-do-sol, tomei banho e estava novo para seguir adiante.
Pensava em encerrar a viagem e retornar a São Paulo. Mas bastou anoitecer, refrescar, as calçadas encherem de gente, de alegria, para eu esquecer momentaneamente da volta. Eu e a piauiense circulamos pelos bares da Manaíra. Enrolamos antes de irmos à casa especializada em forró ao vivo, baseado nos estilos tradicionais como baião, xote e xaxado. Por proibirem a entrada de bermudas e chinelos, desenterrei a única calça que estava esquecida e amassada no fundo da mochila. A animação foi até de madrugada.
O domingo amanheceu indeciso antes de abrir o sol. Os pessoenses invadiram as praias. Caminhei até o farol do Cabo Branco. Mergulhei no mar em frente à pousada. Sentei na areia para contemplar o visual.
O hóspede dinamarquês, em quem pouco ou nada se podia confiar, contou que era navegador, separado com filhos, morava no interior da Dinamarca. Tinha várias namoradas em João Pessoa, todas elas bem jovens. Na pousada desconfiavam que ele era fugitivo da polícia internacional. Havia outro hóspede canadense de meia idade. Não conversava com ninguém. Comprava quilos de frutas tropicais e as consumia aos poucos no quarto. Vivia solitário no frio canadense e se presenteava com esses momentos um mês ao ano.
Almocei no restaurante próximo à pousada, especializado em comida sertaneja. Os saborosos pratos estavam dispostos em tigelas fumegantes. Era outro no estilo “Selv Selv”, mas sem comida nadando no óleo ou atendimento pegajoso. À noite aportei em bar para degustar excelentes cachaças paraibanas. Todas as cachaças brancas, nada de envelhecimento que estragam o odor e o sabor de cana destilada.
Os televisores infestavam todos os cantos da cidade. Nem carrinho de cachorro quente escapava da tirania. O proprietário trazia o aparelho de rodinhas para os fregueses comerem e se idiotizarem ao mesmo tempo.

A praia de Tambaú era bastante frequentada pelos casais durante a noite e madrugada. Alguns transavam, se lavavam nas águas do mar e voltavam ao calçadão tranquilamente.
Renovei meu estoque de livros em ótimo sebo do centro da cidade. Saí satisfeito com a aquisição dos dois volumes de Marco Zero, de Oswald de Andrade, Revolução Melancólica e Chão, além de Baú de Ossos, de Pedro Nava.
O nascimento da enorme lua cheia, no fundo do horizonte do mar e defronte à pousada foi de arrepiar. A bola avermelhada nascendo acima das águas fazia com que todos parassem para contemplar. Eventualmente as nuvens a cobriam para depois a exibirem ainda com mais brilho.
João Pessoa lotou durante o feriado da semana santa. E se perdeu com a mania do som no último volume vomitado dos porta-malas dos carros. A pousada recebeu casais pernambucanos e potiguares, invariavelmente fechados. Os machistas vigiavam as mulheres submissas. As praias estavam mais cheias que de costume. Mesmo assim não lotou e havia espaço para todos. Caminhei até o Cabo Branco entre mergulhos.
A encenação mais concorrida da paixão de Cristo na noite daquele sábado de aleluia ocorreu no centro de João Pessoa. Artistas de televisão foram contratados para atrair um público, claro, de televisão. As fãs compareceram em grande número para assistir ao espetáculo sob as árvores da praça central da cidade. Eram cinco palcos onde cerca de cinquenta atores e figurantes se revezavam. Um daqueles galãs de novelas interpretava o Cristo na cruz. Ao abrir a boca, as fãs gritavam histericamente, sequer ouvindo as palavras dele ou de outros atores.
Meu último dia na cidade foi o mais feio de toda a viagem. A chuva não deu descanso. As raras pessoas que arriscaram a praia logo se retiraram. As barracas ficaram vazias, as areias desertas, o mar crespo e acinzentado, a paisagem triste e silenciosa.
O plano original de passar três dias em João Pessoa se transformou em três semanas. Era sempre um dia a mais, outro dia a mais, mais um dia. E eu fui ficando, ficando, conhecendo pessoas interessantes, me envolvendo, gostando, ficando mais. E aqueles vinte e um dias de permanência refletiram fielmente a minha relação com a cidade.
O ônibus para São Paulo partiu com assentos vagos. Choveu muito na BR-101. Menores se prostituíam nas paradas de caminhoneiros em Pernambuco e Alagoas. Barracos de lona preta dos trabalhadores rurais sem terra se estendiam nos acostamentos. Imponentes formações rochosas chamaram a atenção nas imediações do vale do Jequitinhonha.
Entrei em casa no meio da manhã de abril. Fedido, cansado, faminto, mas indecentemente feliz pela longa viagem, livre e no meu ritmo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

do Maranhão à Paraíba (parte 5/6)

...continuação
Atingi os pés da estátua branca do Padre Cícero com vinte e cinco metros de altura. E logo fui cercado por guias, vendedores de pulseiras, correntes, anéis, lembranças, imagens religiosas, miniaturas relacionadas ao tema, a maioria crianças com menos de dez anos de idade. Quem não tentava vender, pedia esmola. Tudo com muita insistência. Não desgrudavam. A base da estátua estava coberta de plástico e tapumes aguardando verbas para a restauração e contenção da estrutura abalada pelas chuvas. Romeiros escreviam mensagens e nomes na tinta branca da estátua onde já não havia espaço livre. Escreviam sobre os textos antigos e ninguém conseguiria ler nada. Do topo do Horto, ampla visão da cidade de Juazeiro.
Perto dali o museu, reproduzindo cenas da vida do Padre Cícero, mais a exposição dos objetos e fotos dos devotos em agradecimento às graças alcançadas. Imagens fortes e tristes. Também estava sendo construído o novo santuário de estilo exageradamente moderno e de gosto duvidoso. Do lado do museu saía longa trilha até o Santo Sepulcro. Já trilhava os primeiros passos quando as senhoras do casebre ao lado me advertiram para não prosseguir desacompanhado, em virtude do risco de assaltos. Comentaram que naquela mesma semana uma senhora havia sido assaltada à faca.  
Parado ali na praça, um ônibus escolar muito velho, amarelado, frases em inglês na carroceria, em péssimo estado, aparentando mais de quarenta anos. O país original se livrou daquela sucata e ainda recebeu por isso.
Retornei à cidade pelo mesmo caminho, agora com sol e intenso mormaço. Não me apressei, a fim de observar melhor as casas e moradores.
Comovia o comportamento dos fieis diante das imagens do Padre Cícero, espalhadas pela cidade, estátuas e oratórios, admirando-as, tocando-as com as mãos antes de se persignarem e rogarem pela salvação. Alguns se ajoelhavam, lamuriavam, rezavam, veneravam as imagens, em atitudes cotidianas dos moradores, romeiros, visitantes.

As ruas da cidade viviam cheias de gente e com esgoto correndo a céu aberto. Menores de rua ofereciam insistentemente serviços de engraxate, vendas de bugigangas. Se nada funcionasse, pediam esmolas, qualquer quantia. Se não tinha trocado, respondiam que podia ser graúdo também. Pareciam gravadores, pior que mosca antes de chuva, não desistiam facilmente. A rua Padre Cícero concentrava as clínicas, os consultórios médicos e odontológicos, atendendo as cidades e vilas da região. Com esse nome de rua, devia ser grande a garantia de bom atendimento e, principalmente, da cura dos pacientes.
Visitei o memorial de Padre Cícero no centro, com fotos e pinturas relatando a história do santo. Próximo dali o oratório com a imagem em frente à igreja do Socorro, onde foi enterrado. Muitos paravam em frente ao oratório, ajoelhavam-se, pediam, choravam, imploravam, tocavam, se esfregavam nos panos da imagem. Uma idosa derrubou a pequena estátua do alto do oratório, que não se quebrou ao bater no chão. Pronto! Todos os demais se emocionaram e atribuíram a resistência ao Padre Cícero. Ao redor, lojinhas e barracas vendendo lembranças religiosas, além de muitos dormitórios simples para abrigar romeiros. No piso do altar da igreja de Socorro, local pequeno, simples e despretensioso, encontra-se a lápide da tumba com as últimas palavras dele antes de morrer e, é claro, a lista de parasitas da elite regional que exigiram a inclusão dos nomes ao lado.
Incalculável o número de pousadas, hotéis, dormitórios, abrigos, voltados aos romeiros, espalhadas pela cidade e principalmente nas imediações dos locais sagrados. Recebiam, na maioria dos casos, o nome de Padre Cícero, alterando apenas o antes, isto é, pousada, hotel, dormitório, hotel e pousada, pousada e restaurante, dormitório e refeitório e assim por diante. O mesmo acontecia com os demais pontos comerciais, sobretudo os mais simples.
O tempo abriu na parte da tarde e finalmente a noite foi limpa e estrelada. Aproveitei para andar bastante, sentar em barzinho da praça, Padre Cícero obviamente, para observar o vaivém dos moradores. No centro da praça arborizada e agradável, a estátua de cor dourada do padroeiro, bastante venerada e tocada pelos devotos.
Acordei cedo para ir a Santana do Cariri, aos pés da chapada do Araripe e sede de um dos principais museus de paleontologia do país. Peguei o ônibus urbano ao Crato onde subi na primeira caminhonete lotação da fila. O percurso subiu toda a chapada do Araripe, cruzou já no topo a floresta nacional do Araripe, efetuou rápida parada na cidade de Nova Olinda, desceu novamente a encosta da chapada, atingindo a cidadezinha de Santana do Cariri, incrustada no vale entre as escarpas da serra. Desconfortável foi manter a posição curvada enquanto sentado na carroceria coberta da caminhonete, ao lado de outros passageiros. Mesmo assim debati com o comerciante ilegal de fósseis da região, que coletava e vendia as preciosidades, clandestinamente e a preço de banana, aos grandes traficantes. Alertei sobre os malefícios da atividade predatória que, além de agredir a natureza, em pouco tempo esgotaria essa fonte de renda regional.
De Santana do Cariri se avistavam as imponentes montanhas da chapada, o Pontal da Cruz, localizado no topo da serra, composto da igreja e da cruz branca. A Chapada do Araripe é uma das maiores concentrações de fósseis do mundo, guardando espécies de peixes, plantas, insetos, ptetossauros de grandes de dimensões. E a maioria em ótimo estado de conservação. O museu de paleontologia, embora pequeno e básico, mostrou a história geológica da região em mais de cem milhões de anos.
Crato, Juazeiro e inúmeras cidades nordestinas exibiam linhas de trem e estações ferroviárias ainda intactas, grandes, bonitas, mas, infelizmente, desativadas. As linhas estavam abandonadas e cobertas pelo mato. Triste desperdício para o Brasil e os brasileiros na desativação premeditada para beneficiar as transnacionais do transporte rodoviário.

Embarquei em ônibus para Sousa na Paraíba. O trajeto cruzou campos e caatingas esverdeadas, serrotes, buritizais rodeados de aguapés coloridos, açudes quase cheios, cidadezinhas. Praticamente nada de plantações ou uso da terra. Na cidadezinha na beira da estrada, a faixa em frente ao bar e restaurante alertava “é proibido o uso de som do carro”. Perfeito! Se todos agissem assim, a paz voltaria a reinar nos espaços públicos e ficaríamos livres da ensurdecedora poluição sonora dos veículos.
Saía da pobreza do Ceará e entrava na miséria da Paraíba. Desolava o aspecto das vilas e cidades paraibanas. Ruas esburacadas, casas ou barracos em péssimo estado, semblante desesperador dos moradores na beira da estrada, escancaravam cenas reais do sertão nordestino devastado pelo latifúndio, autoritarismo, indústria da seca. Os paraibanos são ainda mais claros que os cearenses, alguns aloirados, e o sotaque mais carregado e rústico.
Em Sousa me hospedei em hotel velho e decadente, de propriedade de família tradicional da cidade, cujos funcionários pareciam fantasmas. O quarto era amplo e com cama de casal. Mas o hotel dava espetáculos de abandono e má gestão. A iluminação do quarto mal iluminava, sem falar na lâmpada queimada do banheiro. A janela do quarto tinha menos de meio metro de largura e a persiana estava emperrada, impedindo a entrada de luz. Os imundos tacos do piso se soltavam por nada. O chuveiro, mal instalado e direcionado para a torneira, vazava, ao lado do registro danificado. O telefone ainda era de disco e estava mudo. O supérfluo ar condicionado apresentava todos os seletores quebrados, tornando impossível regular temperatura, direção dos jatos, etc. O teto mofado denunciava vazamentos em outros andares. As formigas tomaram o poder no quarto, ocupando a maioria dos lugares, subindo e descendo da cama sem pedir autorização. E o paradoxo de tudo isso, o televisor, novíssimo, último tipo.
A área central de Sousa era organizada, com a praça principal rodeada de residências, sombreada pelo verde das árvores frondosas, a nova e imponente catedral ao lado da antiga igreja, pequena e charmosa. Os moradores saíam para caminhadas vespertinas pelas ruas e praças, usando uniformes esportivos, sobretudo as mulheres. Uiraúna, cidade natal de Luiza Erundina, ex-prefeita de São Paulo, fica a cinquenta quilômetros ao norte.
Descobri restaurante familiar muito simples, com serviço informal e atencioso, no quintal coberto de uma casa. As carnes desejadas, nas quantidades desejadas, no ponto desejado, vinham diretamente da grelha. Também serviam caldo de ovas de curimatã. O ambiente estava repleto de universitários da classe dominante local, de peles claras, bem vestidos, gordinhos, bem alimentados, com celular na cintura, rindo alto.
Caminhei quatro quilômetros em estrada asfaltada sem acostamento e mais um quilômetro na estrada de terra. Além do centro de visitação, logo na entrada, o parque dos Dinossauros reservava museu com fotos, amostras, gráficos explicativos sobre os dinossauros e as pegadas de mais de 120 milhões de anos, encontradas em vários municípios da região e figurando entre as mais importantes do mundo. Passarelas facilitavam a observação dos cerca de cinquenta metros de enormes pegadas dos dinossauros no leito seco do rio ao lado.
À noite, o salão coberto e ventilado do clube de Sousa, onde ocorria o festival de violeiros e repentistas, lotava com centenas de pessoas, da cidade e regiões vizinhas. Ninguém estava ali para se exibir, e sim para se encontrar e principalmente ouvir os artistas mostrarem as qualidades de poeta e cantador. A idade era variada, tanto dos repentistas como da plateia. A maioria das orgulhosas mulheres presentes estava acompanhada.
O festival consistia do concurso de improvisação para duplas de violeiros, provenientes da Paraíba, Pernambuco, Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte. O corpo de jurados sentado em frente ao palco avaliava o desempenho das duplas em quatro categorias distintas. No intervalo do desempenho dos concorrentes, havia apresentações da dupla de emboladores Beija Flor e Vem Vem, com cocos ao som dos pandeiros, e também de poetas que recitavam versos engraçados. Barraquinhas vendiam fitas cassete e CD’s.

A primeira categoria do concurso era a estrofe com seis versos, com tema sorteado na hora para cada dupla, as quais tinham um minuto de preparação e seis minutos de apresentação. Entre os temas sorteados, política, futebol, mulher, amizade, negócios. A segunda categoria sorteou o mote de sete sílabas, a ser repetido no último verso de cada estrofe improvisada. A terceira categoria, análoga à anterior, exigiu o mote com doze sílabas. A quarta categoria pedia tema livre, mas em cima de estilos sorteados, entre embolada, coco, galope à beira mar, reino da canoa.
Durante as apresentações, a plateia se manifestava conforme o efeito produzido pelos versos. Mas todos ouviam com atenção e ovacionavam os prediletos. Nos temas improvisados que remetiam a temas políticos, de segurança, pobreza, saúde, o calor dos versos contagiava e recebia apupos, gritos, palmas. Não havia truques, era improviso puro. Algumas duplas se sobressaíram, mas todas tinham valor.
Na parte externa do salão, o bar do clube vendia o trivial. Mas um ambulante oferecia espetinho de queijo ou carne com coberturas de creme de farinha de mandioca e outros ingredientes, por preço irrisório. O processo de preparo demorava, abrindo e fechando a chapa quente, jogando repetidas camadas de creme enquanto girava os espetos. Entrei duas vezes na fila para variar o sabor.
O hotel em que me hospedei possuía piscina no primeiro piso. Mas, considerando o desleixo em tudo, não estranhei a água suja, amarelada, coberta de uma variedade de bichos. Na última vez que foi limpa e tratada, provavelmente os dinossauros ainda circulavam na região. Entrei em acordo com as formigas, as legítimas proprietárias do quarto, e consegui dormir.
Embarquei em lotação rumo ao distrito de São Gonçalo, onde se encontrava açude de mesmo nome, cercado de colinas. Na primeira delas, havia gruta com oratório e oferendas, além de restaurantes e bares. Permaneci horas por ali, sentado, contemplando o visual do açude, as ilhas, barcos, casas, tomando caipirinhas, detonando tucunaré frito com baião-de-dois.
O percurso de ônibus se Sousa a João Pessoa cruzou a caatinga, verde pelas chuvas recentes, mas caatinga, com árvores espinhentas, galhos retorcidos, serras pedregosas com vegetação rala, nas proximidades de Santa Luzia. Após Campina Grande, a vegetação passou à agreste com trechos de mata atlântica. Poucas áreas plantadas, geralmente de milho e palma. O banheiro do ônibus logo apodreceu, exalando odor impraticável. Passageiros passaram mal e vomitaram devido ao mau cheiro. Exigimos que o motorista parasse no primeiro posto e providenciasse a limpeza interna, no que fomos prontamente atendidos. Tudo ficou limpo e cheiroso. A viagem prosseguiu em paz.
Cheguei na capital no horário de pico. O trânsito não fluía.
Ao descer do ônibus urbano vindo da rodoviária, avistei uma pousada de frente para o mar. Foi o achado da viagem. O quarto no pavimento superior era amplo, claro, com três camas, duas grandes janelas de vidro basculantes, propiciando ventilação natural e vista deslumbrante da praia de Tambaú. Ao lado do quarto, varanda com mesa, cadeiras e redes. O preço era razoável, a localização ideal, o aspecto satisfatório. Arriei a mochila e fiquei.
Dei volta rápida de reconhecimento pela praia. Pequeno movimento de pedestres, poucos bares abertos, lojinhas para turistas, raros prédios altos. A chuva desabou. Abri as janelas basculantes e entrou a brisa fresca. O supérfluo ar condicionado permaneceu desligado durante toda a minha estadia. Segunda-feira à noite, chuva, e a avenida da praia de Tambaú ficou completamente deserta, num silêncio total.
continua...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

do Maranhão à Paraíba (parte 4/6)

...continuação
Estava na hora de seguir viagem depois de demorados dias em Jericoacoara.
No verso do bilhete da passagem de ônibus, a frase recomendando o uso de agasalhos devido ao ar condicionado exagerado. Fazia sentido com os demais absurdos impostos à cultura da vila. Novamente me lembrei da Tailândia, com os mesmos ônibus frigoríficos, os mesmos gringos deslumbrados e indiferentes à população local, os mesmos bares com músicas estadunidenses, a mesma destruição cultural. E a mesma vontade de ir embora.
Mochila nas costas e subida na jardineira até Jijoca de onde partiria o frigorífico noturno a Fortaleza. As cenas dos gringos abrindo as mochilas e retirando pesados agasalhos, em pleno litoral do nordeste do Brasil, eram surrealistas, insólitas. E também instrutivas naquela vila invadida e descaracterizada. Pobre Jericoacoara! O frio dentro do ônibus era indescritível. As janelas eram parafusadas ou substituídas por vidros fixos. O espaço para as pernas reduzido.
O ônibus frigorífico estacionou antes de clarear no terminal rodoviário de Fortaleza. Eu, a paulista e o colega de Niterói, resolvemos dividir o quarto em hotel na praia de Iracema.
Demos voltas pelo centro da cidade ainda guardando construções antigas, comércio agitado, centros culturais, o respeitável teatro José de Alencar, no qual percorremos os interiores, pátios, galerias, plateia. O moderno centro cultural da cidade anunciava a apresentação gratuita da Adriana Calcanhoto para o meio-dia. Estranhamos. Mas entramos na fila, pegamos o ingresso, aguardamos a abertura da plateia, sentamos em boa localização. O palco estava vazio e sem qualquer instrumento ou microfone. Apagaram-se as luzes, fez-se o silêncio e a tela grande e branca desceu sobre o palco. A apresentação, ou melhor, a exibição do vídeo gravado, teve início. Esperamos cinco minutos. Levantamos, pedimos licença e fomos embora bem quietinhos.

A orla de Iracema a Meireles, apesar do mar bonito, revelava praias feias, sujas, fedidas, poluídas pelo esgoto lançado diretamente na areia. Os calçadões fervilhavam. Feirinha com pseudo-artesanato, turistas brasileiros e estrangeiros, sempre bem vestidos com bermudas e camisetas novinhas. Travestis e putas perambulavam, paravam nas esquinas ou sentavam nos bares de turistas, às vezes agarradas aos gringos, várias delas menores de idade. Menores abandonados erravam ou dormiam pelas calçadas.
Os amigos do colega fluminense nos convidaram para passar o dia na praia de Cumbuco. Antes, saciamos nossa fome no vasto e diversificado café da manhã do hotel que, além do trivial, servia iogurte, ovos à vontade, tapioca, banana frita, sucos, entre outras delícias.
A beleza da praia de Cumbuco estava comprometida pela infraestrutura para receber os visitantes. As dezenas de restaurantes, com guarda-volumes e piscinas, eram a única maneira de entrar ou estacionar. Parecia praia privada. Chegamos à areia e logo encontramos os amigos em meio a impressionante número de vendedores ambulantes, oferecendo comida, passeios, roupas, redes, pinturas, pedindo esmolas. Eram insistentes e grudavam como moscas.
A cunhada de um dos cearenses apareceu e, muito prestativa, convidou-nos à praia Barra do Cauípe, mais adiante, mais selvagem, entre dunas, coqueirais, lagoas e riacho de águas claras. Do alto das dunas escorregávamos ou pulávamos diretamente nas águas do braço de mar. A barraca de palha, pequena, improvisada e rústica, nos serviu para os comes e bebes. Ninguém queria sair daquele paraíso. Novamente ela nos convidou a casa dela, onde comeríamos caranguejo, usaríamos a piscina, conheceríamos o restante da família. Compramos complementos no supermercado e permanecemos na casa até de noite.
Já de volta à capital, a paulista partiu para Natal. Eu o fluminense andamos pelos calçadões da praia de Iracema, em meio a putas, travestis, estrangeiros em busca de aventuras fáceis e abraçados com adolescentes nativas, turistas comprando lembranças inúteis, menores de rua largados pelos cantos. Estávamos de volta à civilização. O fluminense ainda queria jantar e saímos na busca. Ele tirou a camiseta, se recusando a vesti-la mesmo por exigência dos estabelecimentos. Fomos convidados a nos retirar em dois lugares. Em frente ao restaurante com o nome sugestivo de “O Rei do Camarão”, da calçada e sem entrar para olhar o cardápio, o niteroiense gritava ao garçom:
“tem pizza aí?”.
Acabamos em um bar qualquer e comemos bolinhos de peixe.
O fluminense partiu bem cedo.

A elite de Fortaleza, residente nos bairros próximos à Iracema e Meireles, calçava tênis pela manhã, caminhava pelo calçadão, jogava vôlei nas quadras, fazia massagem, bebia água de coco ou suco com pó de guaraná. Poucos nas areias da praia e menos ainda nas águas do mar. O calor continua implacável e sem sinais de chuva.
Visitei a exposição “Vaqueiros” no centro cultural Dragão do Mar. O pavimento superior expunha objetos usados pelos vaqueiros em diversas ocasiões. No pavimento inferior havia imagens e cenas do cotidiano, com sons da caatinga, pássaros, aboios, gado. Nas ruas ao redor do centro cultural encontravam-se casarões antigos e bem preservados. Alguns funcionavam à noite como bares, com mesas nas calçadas, música popular ao vivo e boa frequência local. E em outras ruas os casarões transformaram-se em oficinas de pintura, onde artistas locais exibiam, vendiam, ensinavam.
A Ponte Metálica se projetava sobre o mar com bares e bancos para sentar. Muito procurada para contemplar o pôr-do-sol, nascer da lua, namorar, conversar, meditar, relaxar. Dali chegava-se ao calçadão na beira do mar de Iracema, sem praia, com muitos bares e música ao vivo. A frequência predominante de gringos atraía putas. Muitas delas esfregavam-se satisfeitas aos clientes.
Segui à extensa praia do Futuro, com mar agitado e a infinidade de barracas, quase todas vazias naquele dia útil. Estrangeiros velhos e gordos agarravam-se com meninas adolescentes. Os garçons do bar ajudavam no contato, a quebrar o gelo. Mas muitos daqueles estrangeiros vieram com o uso e abuso das meninas já incluído no pacote de viagem, em puro turismo sexual.
Fortaleza era simpática, o povo acolhedor, as cearenses bonitas e sensuais. Mas a imagem que ficaria era das adolescentes se entregando a estrangeiros grotescos, putas e travestis pelos calçadões da praia, menores de rua abandonados, turistas de pacote, vendedores insistentes, edifícios altos na orla urbana.
Comprei passagem para Quixadá em ônibus gelado, confortável, espaçoso. A vegetação de caatinga predominava da janela. Da estação rodoviária local, caminhei poucos metros até o hotel, simples, barato, limpo, mas infestado de muriçocas no quarto e na sala do café da manhã.
Rochedos de diversos formatos e tamanhos rodeiam a Quixadá das muitas praças. Algumas ruas ou casas eram construídas coladas às paredes rochosas. As praças, como regra nas cidades quentes, ficavam vazias e desinteressantes durante o dia, devido ao sol e pouca sombra. À noite exibem o charme pela amplidão e iluminação, atraindo os moradores para passear, conversar, namorar, sentar, olhar o movimento.
Jantei espetinhos de carne com baião-de-dois e farofa, servidos na calçada do bar.
Inúmeros grupos cearenses se reivindicavam do forró, mas todos apavoravam de tão ruins. Alguns gravavam versões do lixo estadunidense em ritmos que passavam longe do que se acostumou chamar de forró ou outra música de qualidade. Eram tantos grupos e tão parecidos que, para se diferenciarem, tinham que gritar os próprios nomes no meio das músicas.
O café da manhã do hotel, servido na copa, era bom e farto. Mas quem estava com muita fome eram as muriçocas, insaciáveis, atacando pernas, pés, calcanhares.
Caminhei em direção ao açude do Cedro. Durante o percurso, mais formações rochosas interessantes de ambos os lados da estrada, entre elas a pedra da Galinha Choca, fazendo jus ao nome. Pequenas propriedades rurais com áreas plantadas davam sinal de vida. Carroças transportando barris com água potável indicavam a gravidade da seca. Após a entrada oficial na área pertencente ao açude, a estrada tornou-se alameda de mangueiras e a sombra aliviou.

O imponente açude, construído no final do século XIX, exibia o eixo todo em granito, sobre o qual se caminhava de uma extremidade à outra. As poucas e fracas chuvas da época refletiam na marca abaixo de um metro no paredão do açude, que sangrou pela última vez em 1984. Nos bons tempos havia canais de irrigação para as plantações e pequenos vagões sobre trilhos para o transporte das colheitas. Espalhados pelas imediações, agora bares propiciavam a vista panorâmica com as onipresentes formações rochosas. A música ao vivo animava os poucos frequentadores. Estacionei por ali, entre goles e contemplações dos arredores.
O sol forte durante a caminhada da volta não deu tréguas. Estava abafado e sem vento. A rápida pancada de chuva refrescou no meio da tarde. E animou os pequenos agricultores na possibilidade de salvarem as plantações. As funcionárias do hotel ficaram surpresas com a extensão da minha caminhada de ida e volta. Mas logo se retiraram para os fundos com receio do patrão, que as proibia de conversar com os hóspedes.
A praça da matriz fervia durante a noite com gente bem arrumada, olhares insinuantes, vaivém de mulheres bonitas, aliás, adolescentes. Lançavam olhares assustados e curiosos, na tentativa de adivinhar de qual planeta eu viera.
Tomei ônibus para Juazeiro do Norte. A rodovia tornou-se sinuosa logo após a saída de Quixadá. A paisagem reservava serras, rochosas ou com cristas cobertas de vegetação. Mais ao sul o relevo rebaixado estava verde e úmido. Nas proximidades de Crato, no fértil vale do Cariri, as nuvens anteciparam a tempestade que desabou em seguida.
Juazeiro do Norte possuía centro comercial alongado, movimentado. As imagens e referências ao padre Cícero proliferavam pelas lojas e nas lembranças vendidas pelos ambulantes. Crianças pediam esmola com insistência irritante nas ruas do centro e nos interiores da estação rodoviária.
Fiz a minha romaria solitária ao Horto, local da estátua e museu do padre Cícero. Como não era nenhuma das quatro grandes datas de romarias, quando a cidade transborda de visitantes, pude percorrer o caminho com calma. Iniciei na parte plana e baixa da cidade em rua calçada de paralelepípedos. No final da rua surgiram as primeiras imagens da via sacra. No começo da subida as ruas se estreitam, o traçado se torna sinuoso, o calçamento de pedras irregular. Casas e casebres ladeiam todo o caminho. Algumas minúsculas, com portas de até um metro e meio de altura, parecendo miniaturas, muito pobres, algumas de taipa, com cômodos entupidos de imagens religiosas, cobrindo cada milímetro das paredes. O esgoto corria impunemente pelas guias. Crianças nuas se aproximavam pedindo esmolas. Imagens da via sacra em pequenas capelas e oratórios se alternavam entre as moradias. Ninguém me acompanhava na subida, mas muitos apareciam nas janelas para me observar, cumprimentar, puxar prosa. Mulheres e crianças nos interiores das casas trançavam palha para cestos e outros objetos artesanais.
continua...

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

do Maranhão à Paraíba (parte 3/6)

...continuação
A vila de Alcântara permanecia bela e calma. Pouco me lembrava da última visita vinte e cinco anos antes. Apreciamos a atmosfera local no nosso ritmo. Várias construções de alto valor histórico e arquitetônico, algumas em ruínas com apenas as colunas e fundações, outras restauradas e bem preservadas, usadas como residência ou escritórios públicos. Muitas as praças e a localização, no alto da colina, propiciavam belo visual da cidade e do mar. As poucas pousadas e restaurantes mantinham o estilo e o bom gosto da decoração local. O restaurante escolhido reservava mesas ao ar livre com coberturas de palha, em local situado no alto da escarpa com vistas para o mar. A cachaça artesanal, curtida no cravo, ajudou a escancarar o apetite. Optamos pela peixada com arroz de cuxá e farofa, servidas em vasilhas de madeira feitas a mão. Comemos a sobremesa na vendinha mais adiante, o chamado doce-de-espécie, bolinho à base de muito coco, ovos e açúcar.
Regressamos a São Luís no último barco. Ficamos do lado de fora, na beirada do convés, para evitar os enjoos dos passageiros sentados nas dependências internas. A maré estava subindo e o mar bastante agitado. Seguramos firme nas hastes verticais, nos embalando no forte balançar do barco, em cujas embicadas recebíamos banhos de água, ficando ensopados da cabeça aos pés. Na parte interna, especialmente na sala reservada aos mais sensíveis, os seguidos vômitos formaram a atração principal. Apesar do horário avançado, a maré ainda não subira o suficiente e o barco não chegou ao porto da Praia Grande. Ônibus gratuitos da prefeitura nos esperavam na praia da Ponta da Areia. Preferimos retornar a pé, em longa e agradável caminhada.
À noite os bares do projeto Reviver estavam cheios e animados, ao som de música popular brasileira na voz e violão. Os bons intérpretes imitavam ou tentavam imitar o intérprete original, inclusive nos gestos e trejeitos. Perdiam a espontaneidade e a possibilidade de fazerem leitura própria, mais criativa.
Era hora de partir. Comprei passagem em ônibus noturno para o Ceará. Encontrei a revista Caros Amigos. Enrolei durante o dia, assisti a filme no cineclube do centro histórico, comi alguma coisa e rumei para o terminal rodoviário.

O ônibus saiu lotado. Dormi bem antes de desembarcar em Tianguá no começo da manhã. Esperei o segundo ônibus no meio das lojinhas de artesanato, comidas típicas, queijos e doces. Aproveitei o tempo comendo queijo de cabra. O ônibus me transportou por rodovia estreita e acidentada. A vegetação, desde o Piauí na base de caatinga esverdeada pelas chuvas, tornou-se mais verde e de maior porte, com palmeiras e florestas.
A pequena Ubajara se movimentava pela feira de domingo, típico comércio do interior do nordeste, vendendo de tudo e informalmente. Só paravam para me ver passar abaixado por entre cobertas das barracas. A pousada cobrava a fortuna de seis reais pela diária. Entrei no quarto amplo, limpo, de frente para a praça, com banheiro espaçoso. Ao acordar do cochilo, a feira se encerrara e a cidade dormiu no domingo à tarde.
À noite praticamente não havia pessoas com mais de dezoito anos pelas ruas. E a maioria dos moradores ainda me considerava bicho estranho. Olhavam assustados como se nunca tivessem visto coisa parecida. Nos altos da serra de Ibiapaba, Ubajara esfriava durante a noite e início da manhã. Desconfortável se permanecesse muito tempo nas mesinhas de bar ao ar livre.
A cidade tinha ritmo sonolento. Parece que nada acontecia. O jeitão de cemitério se acentuava na hora da sesta e sob o sol a pino. E me impressionava a quantidade de moscas. Chegavam em nuvens, em todos os lugares. Eram tantas que até trombavam comigo. Pousavam cinco ou seis juntas, quase grudadas.
Caminhei até a portaria do parque nacional de Ubajara. Os guias obrigatórios aguardavam na portaria. A trilha, em declive e calçada com pedras, atingia desnível de quatrocentos metros da serra de Ibiapaba, em meio à vegetação de grande porte, muitos pássaros, quedas d’água, macacos, mangueiras, babaçus, jatobás, escarpas rochosas. No fim da caminhada, a boca da gruta com pequeno circuito à visitação com iluminação artificial.

Pegamos o bondinho para a parte alta do parque, com outra portaria, revelando visão completa da serra, para além dos limites do parque. Paredões de calcário cinza, diversas quedas d’água, vales verdes, formações rochosas sobressaindo acima das copas das árvores e, ao fundo e à direita, vilas esparsas. Manchas de chuva, rodeadas de trechos ensolarados alternavam-se em constante movimento por toda a planície. Pouco abaixo, procurando comida, o casal de mocós, o lagarto e a lenta caninana.
A trilha do parque nacional, ainda utilizada pelos moradores dos vilarejos vizinhos, depois de acordo com o IBAMA, garantia assim a preservação da natureza e a manutenção do caminho anterior à criação do parque.
        Ao partir de Ubajara, passei o dia subindo e descendo em transportes coletivos, três ônibus e uma jardineira. Cedo embarquei a Sobral ao lado da cearense que trabalhava com a irmã no comércio de confecções. Após Tianguá a rodovia sinuosa cortou várias montanhas. A abafada Sobral, situada no pé da serra, fervia como caldeirão. Esperei na rodoviária velha, cheia e suja. Forrei o estômago antes de embarcar para Cruz. A rodovia passou por campos de caatinga esverdeados e extensos buritizais. As cidades, pequenas, sonolentas e tórridas, apresentavam aspecto melhor que as do interior maranhense. Logo após descer em Cruz, estacionou o ônibus vindo de Fortaleza. Me sentei ao lado de uma idosa cearense. Os demais bancos eram ocupados por turistas, sobretudo estrangeiros. No outro lado do corredor, uma mineira e uma norueguesa que arranhava o português. Desembarquei em Jijoca e joguei a mochila na cobertura da jardineira que levaria até Jericoacoara, a quarta é última etapa do itinerário do dia. A jardineira, na verdade veículo potente e adaptado a terrenos arenosos, com longo reboque, parecia vagão de bonde. Sentei-me ao lado da mineira e da norueguesa. As dunas surgiram apenas no final, pouco antes da chegada.
Em Jericoacoara os funcionários das pousadas abordaram oferecendo quartos “bons, baratos e bem localizados”. Era baixa estação. Pechinchamos com insistência e fechamos o quarto por preço baixo para três pessoas, eu, a mineira e a norueguesa.
A turística Jericoacoara reunia uma infinidade de pousadas, bares, restaurantes, lojas, lojas e lojas, por onde desfilavam casais bem vestidos, famílias, grupinhos. Os estabelecimentos contavam com energia elétrica, exceto ruas e praias.

Embora desejasse ficar na preguiça ou em leves reconhecimentos da vila, aceitei, junto com as colegas de quarto, o passeio pelas praias e lagoas próximas a Jijoca. A mãe e o filho gaúchos, a família cearense residente no Acre e o paulista estudante de psicologia nos acompanharam na caminhonete. A primeira parada foi na praia do Preá, vila de pescadores com a construção das primeiras pousadas, espécie de Jericoacoara de ontem. Passamos pela praia do Riacho Doce. Paramos para relaxar, observar, beber, comer, nas barracas da lagoa Azul e da lagoa Paraíso, bucólicas, bonitas, refrescantes.
Peregrinações diárias aconteciam na grande duna de Jericoacoara para assistir ao pôr-do-sol. Moradores e forasteiros aproveitavam para exibir os dotes naqueles esportes denominados de radicais, deslizando duna abaixo sobre pequenas pranchas de madeira amarrada aos pés. Repetiam isso dezenas de vezes. E quando executavam completamente as manobras, a plateia aplaudia aos gritos de yeah, yeah. Era o custo para apreciar o belíssimo pôr-do-sol, exatamente em frente ao mar.
O estudante de psicologia e eu concordamos na avaliação negativa da situação do turismo em Jericoacoara e no pessimismo quanto às perspectivas futuras. A vila não exibia vida ou cultura própria. Dominava música, comida e estilos de vida estrangeiros. Involuntariamente me lembrei daquelas nefastas ilhas tailandesas, invadidas por gringos que pouco se lixavam para a cultura local. Os forasteiros ocuparam a vila de Jericoacoara e botaram os nativos para trabalharem para eles, implantando o trabalho infantil e a prostituição de menores. Os habitantes originais sobreviviam morando em favelas nos fundos, longe do mar e da natureza, com quem antes se relacionavam em harmonia. Segundo moradores antigos, o estrangeiro e também prefeito do município, dono da maior pousada da época, controlava o tráfico de meninas para os turistas. E pretendia liberar completamente a especulação imobiliária, inclusive sobre as dunas. O parque nacional de Jericoacoara, recém-criado, aliado à conscientização e organização dos moradores, poderia iniciar o processo de salvação da região.
Depois de dar uma olhada no salão de forró para turistas, às moscas naquela noite, eu e o paulista fomos ao aniversário do proprietário de bar na vila, cearense de Fortaleza que morava em mansão com muros altos. Para transpor os grandes portões, somente com convite. Além dos turistas, os convidados pertenciam à classe dominante local, donos e gerentes de hotéis, pousadas, restaurantes, bares, agências de turismo. Ninguém natural de Jericoacoara ou dos arredores. Cenário emblemático para entender Jericoacoara.
O sol esteve implacável e quente durante todo o dia, sobretudo durante a curta caminhada até a praia da Pedra Furada.
As comidas típicas do litoral cearense eram cada vez mais raras nos restaurantes de Jericoacoara. O mesmo poderia ser dito da música e demais manifestações culturais da região. A culinária predominante era internacional, servida em espaços moderninhos, ao som de música estrangeira. A impressão era que eu não estava no Ceará, nem no nordeste, nem no Brasil.
Num bar na beira do mar um senhor nativo da região, completamente bêbado e de aspecto miserável, gritava desnorteado para o dono ou gerente do estabelecimento:
“quero a minha parte”,
“eu tenho uma parte nisso”.
Imediatamente, dois policiais o algemaram e o retiraram do local. Afinal, ele estava constrangendo e perturbando a paz dos turistas.

Os locais com forró permaneciam com frequência pequena, a maioria de meninas cearenses da região, todas bem pintadas e arrumadas, chamando os turistas, sobretudo estrangeiros, para dançar. As mais bem sucedidas saíam abraçadas com os gringos e desapareciam nos becos escuros sem iluminação pública. A polícia, ágil para reprimir o senhor que reclamou em frente ao bar de turistas, nada fazia para combater os flagrantes de prostituição infantil. Na sorveteria na beira da praia, um senhor bem vestido e de aspecto estrangeiro comprava sorvetes para quatro garotas menores e sorridentes com tamanha generosidade.
Mas nem tudo estava perdido. Durante a noite e madrugada, aconteciam apresentações de música popular brasileira em local próximo à praia. Todos ficavam à vontade, se sentando ao ar livre, na areia, bancos, muradas.
Em cinco decidimos por passeio à cidade de Tatajuba, pela beira do mar. Passamos pelo vilarejo de Guriú, na margem de extenso braço de mar, atravessado por balsa manual. O veículo atolou na subida da balsa. Todos desceram e ajudaram a desencalhar. As praias, extensas, planas, não contavam com sombras ou morros. Pequena e calma, a nova Tatajuba tinha energia elétrica, duas pousadas, poucas ruas. A vila pioneira fora coberta pelas dunas que, longas e altas, não faltavam nas imediações, algumas com encostas bem íngremes, como a duna do Funil. Paramos na lagoa da Torta, ao lado da barraquinha de comes e bebes, rodeada de dunas e carnaubais. Mas as águas leitosas desanimaram.
Os moradores de Tatajuba levavam vida simples, desprovidos de serviços sociais, completamente abandonados pelos órgãos púbicos. As crianças, para irem à única escola, precisavam caminhar cerca de dez quilômetros. E, acompanhadas de pessoas mais velhas, vendiam cocadas e bolos nos pontos turísticos, com muita insistência, alegando que a renda pagaria o uniforme escolar.
A paisagem monótona da volta pela praia foi maravilhosamente quebrada pelos pastos esverdeados e cobertos de pequenas flores brancas, onde pastavam cabras e bodes. A maré começou a subir, obrigando o veículo a acelerar e a inclinar exageradamente nas areias. O bugueiro, natural da região, reclamava bastante do comportamento dos empresários forasteiros que monopolizavam os passeios, expulsando os nativos do ramo.
Acordei tarde e me entreguei à preguiça. Depois caminhei pelas praias a oeste, sem vegetação, sem sombra, poucas dunas. O vento rasteiro, forte e constante carregava fina camada de areia e açoitava violentamente o corpo. Era entrar no mar ou ir embora.
Almocei em lugar ventilado, simples e barato. Enrolei até o sol baixar e o calor amenizar. Conversei com uma paulista sentada em outra mesa. Depois de muito papo descobrimos amigos comuns e até que comparecêramos às mesmas festas em São Paulo.
continua...

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

do Maranhão à Paraíba (parte 2/6)

...continuação
Bem cedo em ônibus a Barreirinhas e aos Lençóis Maranhenses. A rodovia recém-asfaltada cortava florestas nativas com babaçuais e açaizais, pequenas dunas espalhadas, comunidades miseráveis e sujas vegetando em casas de barro cobertas de palha.
Barreirinhas, porta de entrada aos Lençóis Maranhenses, fica na margem do preguiçoso rio Preguiças. Os pequenos barcos iam e vinham. Bucólica paisagem surgia de qualquer direção que se olhasse.
Embarquei em caminhonete com tração nas quatro rodas. Cruzamos o rio Preguiças em balsa puxada manualmente por quatro rapazes através de corda amarrada em ambas as margens. Era um veículo por vez e ajudamos a puxar também. Na outra margem, já dentro dos limites do parque nacional, avançamos por estrada de areia deslizante, margeando raras casas e roças, diversos cajueiros sem frutos, pequenas lagoas, fios de água, sacolejos pelos sobes e desces. E a borda das grandes dunas de areia clara, de onde seguimos a pé.
Percorremos as imensas dunas, na depressão das quais apenas as maiores lagoas contavam com água permanente durante todo o ano. As águas variavam de esverdeadas a azuladas, incrivelmente transparentes, com temperatura ideal para mergulhos. Do alto das dunas, o deserto infinito e único.
À noite os novos colegas marcaram jantar em restaurante regado ao guaraná regional, da marca Jesus, de coloração rosa choque, homenageando o nome do criador da marca. Doce e enjoativo demais. E conseguiu piorar, de gosto e preço, depois de adquirido por famigerada transnacional estadunidense.

O barco básico e de linha regular para Caburé não tinha hora certa para a partida, dependendo da maré. O trajeto pelo rio Preguiças margeou manguezais, florestas, palmeiras, raros e pequenos vilarejos com cabanas feitas de palha, dunas nos arredores de Vassouras, a vila de Mandacaru com o farol. Na grande curva do rio, já com menos vegetação e mais areia, surgiu Caburé, situada em faixa de areia entre o rio e o mar. A vila se resumia a seis pousadas com chalés, cerca de quinze cabanas de palha. E muita areia.
Não havia energia elétrica. O vento permanente refrescava e espantava os mosquitos. Os chalés eram espaçosos, rústicos e com tijolo aparente, muita ventilação interna garantida pelas venezianas e pelos pequenos orifícios deliberadamente abertos nas paredes. A cobertura de palha proporcionava som agradável de chuva fina.
O vento constante causava a contínua movimentação das dunas. Os moradores comumente se mudavam das casas invadidas pela areia, total ou parcialmente. Mesmo as pousadas mais estruturadas não escapavam.
À noite, depois da volta dos barcos de turismo para Barreirinhas, a paz em Caburé era incomparável. A ausência de pão no saboroso café da manhã foi compensada pela tapioca.
Tentei alcançar a pé a foz do rio Preguiças pela margem do rio, em caminho com areia fofa, pontilhado de cabanas de palha, as águas do rio à esquerda, as dunas à direita. Depois, os manguezais, árvores de porte. E ficou impossível prosseguir. Dobrei à direita, superei pequenas dunas e lagoas com pouca água ou completamente secas. Somente cabras e jumentos no alto das dunas. Atingi a praia em trecho reto e plano. Nas proximidades da foz do rio Preguiças, a cabana para se proteger do sol, bem alta e com escada. Deslumbrava a vista lá de cima, da foz do rio, do vilarejo de Atins na outra margem, do mar aberto. O rio desaguava em curvas no oceano. O choque das águas provocava ondas, numa minúscula pororoca. A sombra e o vento constante refrescavam.
Retornei a Caburé pela praia, com direito a mergulhos em mar bastante agitado. A praia, limpa e deserta, não primava pela beleza, mas reservava significativa quantidade de conchas e caramujos, de formatos e tamanhos variados.

Em virtude do carnaval, eu deveria desocupar o quarto da pousada na manhã seguinte. Me entristecia deixar o sossego de Caburé.
Arranjei espaço na carroceria na caminhonete. Emocionou o trajeto pela beira do mar e por dentro das dunas dos pequenos Lençóis, no topo das quais, a pé, apreciei o visual das lagoas. Petiscos na vila de Rio Novo (Paulino Neves). Depois passamos por pequenas aldeias rurais, lagoas, riachos. O papo corria solto e animado na carroceria.
Feriado de carnaval. Tudo lotado ou reservado em Tutóia na chegada à noite. Tentei em vários hotéis e pousadas. Em um deles, o funcionário me ofereceu, a preço simbólico, o quarto de cerca de dois metros quadrados, na companhia de vassouras, latas, caixas velhas. Mas se lembrou de outro hotel, a quarteirões dali, no final da rua. Foi e voltou correndo. E me comunicou que um quarto vagara devido à reserva cancelada. Era pegar ou largar. Aceitei sem ao menos olhar. Agradeci a boa vontade e paciência do maranhense.
O hotel tinha quartos com entradas independentes da recepção, todos de frente para a escuridão. Nada se via depois das escadas e a impressão era de final da cidade. Tomei banho caprichado a fim de remover a areia no rosto, corpo, cabelos.
No bar em frente à recepção tomei umas e fui andar. Penetrar naquele breu, em frente ao hotel, de onde não vinha nenhum sinal de vida, nem pensar. Mais à direita, ao fundo, bares sujos e deprimentes, a iluminação avermelhada, mulheres velhas vestindo roupas curtas e brilhantes. Na região eram chamados de “ambientes”. E mais nada. O centro da cidade ficava longe. Voltei ao quarto.
Choveu do início da madrugada até o amanhecer. Assim que abri a porta do quarto e olhei para frente, percebi que o negrume da noite anterior se tratava de uma praia. A maré baixa e a escuridão sem luar impediram que eu notasse a luz ou o som das águas. Era extensa, sem grandes belezas, com areia dura e cinzenta. E quase em frente, havia um longo navio encalhado, naufragado décadas atrás. Os limites ocidentais do delta do Parnaíba aparecem no fundo à direita.
Aproveitei a tranquilidade da manhã, escolhi uma mesa coberta de palha, localizada em frente ao bar do hotel, e sentei-me para relaxar, refletir, escrever. Era domingo de carnaval. Pequenos bares e turistas regionais completavam o cenário.

O sossego durou pouco. Dois carros, trazendo doze pessoas, estacionaram ao lado. Ocuparam duas mesas e, assim que o garçom apareceu, perguntaram:
“e o som?”, “e o som?”.
O garçom respondeu que ligaria em poucos minutos. Não querendo esperar, um deles dirigiu-se ao carro e, para o meu desespero e da natureza ao redor, ligou o som no último volume. Alto, muito alto. Nem entre eles era possível conversar. O carro vomitava lixo do tipo axé, ou qualquer coisa parecida. E ainda não eram 10h da manhã.
E veio a hecatombe. Dois imensos caminhões de som, semelhantes a trios elétricos, ali estacionaram. Durante todo o dia martelaram o som dos carnavais baianos. Talvez disputando entre si o som mais potente. A praia em frente lotou. Mal se podia circular. A maioria bebia muito. Choviam jatos de espuma e farinha.
Calmaria somente depois de caminhar centenas de metros pela praia. Mesmo assim, nada para apreciar. A poluição sonora se encerrou antes das 18h. A legião de bêbados e anestesiados pelo barulho saiu em procissão, atrás dos caminhões, rumo ao centro da cidade, local das festas noturnas.
Encontrei um restaurante simples para o jantar, o mesmo em que comi dois anos antes. Ofereciam frango, lingüiça e carne de sol na grelha, acompanhado de arroz, feijão e farofa. Tudo, muito saboroso, saía por apenas cinco reais.
Finalmente dia de folga para os ouvidos. A agitação diurna da segunda-feira de carnaval seria em distrito rural distante.
A funcionária do hotel, não registrada como os demais, recebia apenas cento e vinte reais por mês, para trabalhar sete dias por semana, doze horas por dia, ficando quatorze horas no dia anterior. Era obrigada a fazer de tudo, faxina, cozinha, sem direito à folga. Adoeceu e teve que faltar cinco dias. Descontaram do salário. Tinha trinta anos, embora aparentasse mais de cinquenta. A dona do hotel dirigia a casa ao estilo dos velhos coronéis. Abusava do autoritarismo e despertava o ódio dos empregados. Era grande o desemprego em Tutóia, ainda pior para analfabetos ou semianalfabetos.
O centro da cidade era típico de cidadezinhas do interior do nordeste nas manhãs de segunda-feira. Comércio intenso, movimentação grande de pessoas, dezenas de ambulantes, barracas vendendo de tudo, alto-falantes das lojas chamando os fregueses. Vida, muita vida. A situação se repetia nos arredores do porto fluvial. Por entre o mercado de peixes, prostitutas menores de idade circulavam pelas barracas ou sentadas tomando umas e outras.
Na maré baixa era possível chegar até o navio encalhado. Restavam-lhe somente ruínas e ferrugem. O sol apareceu na parte da tarde e, com ele, uma luz maravilhosa. Era delicioso sentar fora do quarto, contemplar a paisagem e o tranquilo movimento de pessoas na praia.

Embarquei em ônibus sujo e caindo aos pedaços. Da empresa Transbrasiliana, claro. Cheirava mal, os bancos não conseguiam reclinar, a lataria se soltava numa barulheira infernal. Com as estradas maranhenses esburacadas e repletas de crateras, o ônibus parecia se desmanchar. O trajeto passou por cidades pequenas, onde o carnaval de rua seguia solto e animado.
O ônibus chegou na estação rodoviária de São Luís bem antes do amanhecer. Sentei no banco da rodoviária, deserta naquela hora, coloquei a mochila entre as pernas e, sem adormecer, permaneci até o sol raiar. No banheiro limpo e bem bolado da estação, as latrinas ficavam no nível do chão, entre azulejos e ranhuras antiderrapantes no piso. Ideia genial para banheiros públicos. Higiênicos, sem contato físico, auxiliam em prisões de ventre.
A noite no centro histórico da Praia Grande ofereceu apresentações de grupos de Tambor de Crioula, danças típicas, pequenos blocos carnavalescos. O Tambor de Crioula, oriundo dos quilombos, guarda som básico e rústico. Longos tambores dão o tom. Um ou mais vocalistas improvisam versos, nem sempre compreensíveis. As mulheres, com vestidos coloridos e rodados, acompanham a percussão dançando e se chocando no umbigo. Vez ou outra, os homens paravam de tocar e colocavam os instrumentos próximos ao fogo, para afiná-los.
São Luís acordou como feriado, com poucos estabelecimentos abertos, pouca gente nas ruas. Parecia cemitério. Vazio e triste. Entreguei-me à preguiça envolvente.
Ao entardecer e à noite, diversos tipos de caldos faziam muito sucesso na região. De carne, peixe, camarão, frango e, principalmente, de ovos, em pratos fundos, sustentavam bem.
Peguei o ônibus rumo às praias, via avenida litorânea. Cruzei o rio Anil e entrei nos bairros novos, através de grandes avenidas, ao lado de altos edifícios, bastante asfalto, pouco verde. Outro mundo, completamente diferente do centro histórico. As praias de Ponta de Areia, São Marcos e Calhau foram urbanizadas com avenidas, calçadões, quiosques com comes e bebes. Nunca foram bonitas, apenas grandes extensões de areia dura com pouca vegetação. Desci na praia do Calhau onde não havia quase ninguém. Escolhi uma barraca montada na areia. Mas não havia nada nem ninguém para apreciar. Nuvens escuras e grossas trouxeram pancadas de chuva, fracas e passageiras.
O centro comercial de São Luís girava em torno da rua Grande, fechada para tráfego de veículos e lotada de lojas em ambos os lados. Guardava jeitão leve, agradável e nada opressivo. Eu chamava a atenção dos pedestres, sobretudo depois de babar sorvete de chocolate na camiseta de cor clara.
Como na Bahia, onde centenas de lugares levavam o nome da família do famigerado Magalhães, no Maranhão tinham o nome da família do famigerado Sarney. Deputados, vereadores, e principalmente o próprio chefe do clã, estragavam o nome de pontes, escolas, hospitais, ruas, avenidas, prédios públicos, entre outros.
Passei o dia, ao lado do casal de geógrafos paulistas, na cidade histórica de Alcântara, acessada de barco pela baía de São Marcos. A maioria dos passageiros era de turistas do norte e nordeste do Brasil. Poucos estrangeiros. A maré da baía provoca oscilação do nível do mar de até doze metros. O mar praticamente sumia da Praia Grande, substituído por extenso e escuro lamaçal.
continua...

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

do Maranhão à Paraíba (parte 1/6)

Nada melhor que, em seguida à exploração da Patagônia, contrapor um roteiro leve e quente pelo nordeste do Brasil.
O ônibus partiu em janeiro do terminal rodoviário do Tietê com apenas cinco passageiros. Dormi bastante e até sonhei. O dia clareou em Goiás, iluminando a paisagem plana do cerrado entre muitas cercas e poucas plantações.
Após as serras da divisa entre Goiás e Bahia, surgiu a imensa planície, tomada pelas monoculturas de soja e milho. Além da presença dos nomes de testas-de-ferro brasileiros, o cenário era ocupado pelas transnacionais Cargill, John Deere, Monsanto, entre outras. Pistas de pouso, hangares, aviões voando baixo e borrifando agrotóxicos cujas marcas apareciam em grandes cartazes ao lado dos produtos transgênicos como o milho Roundup, a soja Monsoy e demais venenos. Foram quilômetros e quilômetros de paisagem ostensiva e desoladora. Lojas das transnacionais, agências bancárias, cartazes, indicavam financiamento federal e estadual para aqueles empreendimentos. E dezenas de áreas loteadas com corretores de imóveis sentados à espera de compradores. Tudo parecia feito às pressas, sem qualquer preocupação social. E o município teve o nome original alterado para Luís Eduardo Magalhães, o filho de Antonio Carlos Magalhães. Não era à toa que esse nome figurava ao lado de transnacionais, transgênicos, agrotóxicos, dinheiro público para o capital estrangeiro.

Na Bahia muitos nomes foram alterados após a morte do dito cujo. O pai, ao lado dos capitalistas beneficiados, desprezou o nome original de terminais rodoviários, escolas, hospitais, centros esportivos, ruas, avenidas, praças, aeroportos e até cidade. E o novo nome imposto era sempre o mesmo. Enquanto isso, as estradas baianas figuravam entre as piores do Brasil e a população entre as mais miseráveis.
Pouco antes de Barreiras, o relevo do cerrado acentuou-se cortado por rios com corredeiras. A população refrescava-se nas águas naquele domingo ensolarado. Depois, até a divisa do Piauí, a rodovia transformou-se em calamidade. Nada de pavimentação, somente terra, areia, buracos, mato com espinhos invadindo o caminho e entrando pelas janelas do ônibus. A situação melhorou bastante após a entrada no Piauí.
Depois de passar por Corrente e Gilbués, o ônibus embicou na estação rodoviária de Floriano no início da manhã.
Na margem do rio Parnaíba, construções antigas, bares e restaurantes, inclusive flutuantes. Muitas lavadeiras e moradores, em busca de sombra e brisa, naquele final de tarde. Na outra margem do rio, já no Maranhão, se erguia a cidadezinha de Barão de Grajaú. A estação chuvosa deixava alto o nível das águas do rio. Devido a grandes enchentes recentemente, carros de som circulavam pedindo ajuda aos desabrigados. 
O ônibus da empresa Transbrasiliana apresentava problemas mecânicos, nos freios, na estabilidade, nas janelas que não abriam, abafando o interior do veículo. Atravessou o rio Parnaíba, saiu do Piauí e entrou no Maranhão.
O relevo se acidentava ligeiramente com pequenas serras, extensas planícies, vales alongados. O cerrado predominava entre buritizais, babaçuais, carnaubais. As recentes chuvas esverdearam a vegetação. Os vilarejos miseráveis, com casas de barro e cobertas de palha, raras as de alvenaria e telhas, pareciam aldeias primitivas, em contato brusco com a rodovia. Nada além de depósitos de gente sobrevivendo muito abaixo das mínimas condições humanas. Entre São João dos Patos e Balsas, a monocultura da soja ocupava imensas áreas, com a presença de imigrantes do sul do país.
Muitos passageiros viajavam de pé, reclamavam dos preços abusivos, dos serviços ruins da Transbrasiliana. Os rostos se renovavam seguidamente pelos que subiam e desciam, carregando muita bagagem e mercadorias.
Em Carolina me hospedei em pousada na qual seria o único hóspede por aqueles dias. A cidade era graciosa, sem construções de mais de dois andares, para a sorte dos moradores. Apesar de antiga, contava com traçado urbanístico arrojado, ruas e calçadas largas, canteiros centrais arborizados com bancos para relaxar, amplas praças com bares, lanchonetes, diversas mesas ao ar livre. A população aproveitava e bem os espaços públicos. Deixavam as casas, colocavam cadeiras nas calçadas e conversavam com os vizinhos pela noite adentro. A bicicleta era muito usada, especialmente pelas crianças e jovens.

O rio Tocantins, que margeia cidade e divide o Maranhão do Tocantins, estava bem alto.
De carona em ônibus de longo percurso, a rodovia cruzou a região da Chapada das Mesas. Morros chapados apareceram em ambos os lados, esculpidos pela natureza em formatos e tamanhos peculiares. Desci na entrada do caminho de terra.
A trilha à cachoeira da Pedra Caída, somente com guias e, em área particular, pagando ingressos. Caminhada pelas águas do estreito leito do riacho através da garganta formada de altos paredões de rocha, parcialmente cobertos de samambaias, sempre acompanhados de pequenos fios de água que respingavam de todos os lados. A garganta tornou-se ainda mais estreita. A água ficou pela cintura. Finalmente atingimos o salão arredondado e escuro, com pequena abertura acima da qual vinha a queda d’água, de fora para dentro.
Novamente carona, de volta a Carolina.
A balsa cruzou o rio Tocantins até a cidadezinha de Filadélfia, já no estado do Tocantins. Apenas bares, pessoas mal encaradas, a longa rua que se transformava em estrada mais adiante. Matei minha sede e voltei ao Maranhão.
A cidade acordava e se alegrava à noite. As ruas e calçadas ficavam repletas. O colírio ficava por conta das atraentes caboclinhas desfilando levemente nas bicicletas, para lá e para cá. Comi sob as árvores da praça principal de Carolina, em meio à agitação noturna da cidade e ao visual dos caminhantes e ciclistas. Fora os televisores ligados, matracando dos quiosques qualquer lixo para as pessoas se desinformarem, o que mais estragava aquele ambiente bucólico eram os carros que estacionavam, abriam os porta-malas, recheados de potentes caixas de som, e vomitavam os últimos sucessos no máximo volume.
De ônibus às duas cachoeiras do rio Itapecuru. Ficavam quase lado a lado e, no grande lago formado, cabia um banho refrescante. No local muito desfigurado, com estacionamento, pousada, bar, restaurante com mesas fixas na beira da água, valeu a saborosa galinha ao molho pardo.
O adolescente que vigiava a pousada à noite mudara com a família para Carolina devido à violência, assaltos e assassinatos da cidade natal, Araguaína, no Tocantins. E afirmou que a situação se agravou após a criação do estado do Tocantins em 1989.
Havia opção de ônibus para São Luis, mais barata e mais rápida, porém exposta aos assaltos nas estradas, sobretudo entre Imperatriz e Açailândia. O funcionário da empresa garantiu que dois carros com homens armados escoltariam o ônibus, na frente e atrás. E que, na semana anterior, numa tentativa de assalto ao ônibus, o segurança armado foi obrigado a atirar. Mas me tranquilizou:
“tudo bem, o tiro só pegou na cabeça de um e os outros fugiram...”.
Comprei passagem na bilheteria da empresa ao lado que passaria por rodovias menos trafegadas. E sem assaltos.

Três técnicos da Fundação Nacional de Saúde partiam ao Rio de Janeiro para combater a epidemia de dengue junto à grande força tarefa que envolvia, além do Maranhão, mais cinco estados. Segundo os técnicos, a situação era muito pior do que o divulgado, pois as autoridades fluminenses temiam prejuízos ao turismo durante o carnaval carioca. E o “miserável” nordeste compunha os mutirões de auxílio ao estado do “rico” sudeste do Brasil.
Houve troca de ônibus em Balsas. Anoiteceu. A temperatura interna do supérfluo ar condicionado, digna de frigoríficos, e as televisões internas, vomitando os lixos estadunidenses de sempre, incomodaram.
O ônibus entrou no terminal rodoviário da capital maranhense no meio da manhã.
O centro histórico de São Luís, no bairro de Praia Grande, encontrava-se bastante heterogêneo na conservação. A melhor parte, nos arredores do chamado projeto Reviver, exibia casarões restaurados, bares e restaurantes, cineclube, praça de eventos culturais, lojas com produtos regionais. Perto, no entanto, imensos sobrados caíam aos pedaços, em verdadeiras ruínas. Em alguns havia a placa de interditado, outros em processo de restauração, os demais abandonados ou ocupados por miseráveis sem teto. Mas sentia enorme prazer em caminhar por aquelas ruas seculares, ladeiras, becos, escadarias, tendo o mar da baía de São Marcos sempre ao lado. À noite, a iluminação amarelada deixava tudo ainda mais charmoso.
No sábado anterior ao carnaval, as ruas da Praia Grande estavam tomadas por blocos, gritarias, talco, farinha e espuma líquida. A maioria caía na dança. Cantavam, se embebedavam, balançavam o esqueleto, espontaneamente, sem brigas ou confusões.
Aproveitei o dia na distante praia de Araçagi, ainda limpa e preservada. O ônibus percorreu vinte quilômetros de grandes avenidas por dentro da ilha. Bairros miseráveis, ausência de saneamento básico, abandono, carnes à venda penduradas ao sol e às moscas. Desci e caminhei por estrada de terra entre manguezais e milhares de mutucas que atacavam sem piedade. Bastava se afastar dezenas de metros da zona dos bares, onde a maioria se concentrava, e Araçagi virava praia deserta. Comprida e com mar bravo, escandalizava pela livre circulação de veículos pela areia. No trecho mais deserto, cresciam as dunas, frente a vilarejos de pescadores, manguezais ricos em caranguejos.
O ponto forte da cidade, porém, era mesmo o centro histórico, a marcante cultura, os discretos e simpáticos moradores. O projeto Reviver na Praia Grande apresentava bom movimento à noite. Bebi caipirinha numa das mesas ao ar livre. Na mesa mais adiante, sob outra árvore, uma cafuza de beleza exótica.
continua...