Acordei novamente antes de clarear. O barco balançava,
embora mais suavemente. Amanheceu nublado. As coisas pareciam amenizar com a
claridade. Não senti tensão entre os passageiros.
Mas a calma era apenas aparente. Durante o café da manhã os
passageiros comentavam o susto da madrugada, o medo sentido, o desespero pelo
qual passaram. Alternavam as narrações e desabafos com risos nervosos e olhares
assustados para as águas do rio. Mesmo os metidos a machões, tidos com
escolados nas águas da Amazônia, mostraram que são de carne e osso e também passíveis
de pânico.
Recomeçou a chover entre trovoadas esparsas. As águas do
Solimões novamente se encresparam. Ondas consideráveis surgiram e banzeiros se
formavam de todos os lados. O barco voltou a balançar violentamente. A água da
chuva fustigava o barco junto com os ventos fortes. De vez em quando um trovão
violento estourava no céu, assustando para valer. A água do rio entrava
impunemente no barco. O convés do piso Superior estava ensopado, mesmo com a
lona plástica arriada. Pânico generalizado, novamente.
Meia hora depois, de volta à calmaria, os dois do camarote
ao lado pegaram a voadeira rumo a Coari. Antes, nos desejaram boa viagem e boa
sorte. A dupla estava livre de mais temporais e mais sustos, pelo menos naquela
viagem.
A tensão pareceu sumir de vez. A mesa no piso de Lazer
abrigava rodas sucessivas de caixeta, agora a um real a aposta. O calor e o céu
azul voltaram, aquecendo os corações apertados. As instabilidades climáticas se
concentravam para os lados do médio Solimões e do vale do Japurá. Tempo manso
pela frente. Notícia alentadora. Alívio geral.
Passamos sem parar por Codajás, cidade da margem esquerda
do Solimões que eu visitara dois anos antes. O porto e a rampa de acesso, ambos
novíssimos, chamavam a atenção. Restaria saber se o restante da cidade, tão desmazelada
anteriormente, recebera os mesmos cuidados. Os moradores da capital do açaí bem
que mereciam tratamento humano das administrações públicas.
Depois do futebol, a pequena plateia se concentrou nos
fulgurantes e esplendorosos programas de domingo pela televisão. O proprietário
e a mulher, o filho e namorada, a conferente, arrumaram as cadeiras
estrategicamente para não perder nada das maravilhas da telinha. E, como de
praxe, alguém se posicionou sob o cano da antena parabólica, a fim de girá-la
sempre que fosse necessário recuperar a imagem.
Aquelas cenas, de vários enfileirados diante da telinha, me
lembraram das provocações que eu costumava fazer às segundas-feiras quando meus
colegas de trabalho deitavam falar mal da programação televisiva dos fins de
semana. Eles, ou elas, escandalizados, descrevendo os detalhes, reclamavam que
aqueles programas eram cretinos, idiotas, absurdos. Ao terminarem as lamúrias, eu
emendava:
- Se esses programas são cretinos e idiotas, quem assiste
é o quê?
Como não sou chegado à televisão, seja durante a semana ou
aos fins de semana, seja em canal aberto, a cabo ou satélite, me sentia
inteiramente à vontade.
Durante a noite,
enquanto eu avistava as luzes de Anori e Anamã vindas da margem esquerda do
Solimões, os relâmpagos estouravam no horizonte oeste, justamente de onde o
barco vinha e não aonde ia. Ufa!
E o piso de Lazer
encheu. Era a última noite a bordo. Noite quente e estrelada. A animação era
geral, pela proximidade da chegada, pela certeza de estarem vivos depois dos
sustos nas tempestades.
Noite e madrugada tranquilas sobre as águas quase
espelhadas do Solimões.
Acordei já em águas do rio Negro. A maioria dos
passageiros já arrumara as tralhas dentro das bagagens. Poucas redes
permaneciam atadas. Muitos se apoiavam nas laterais do convés para avistar a
cidade de Manaus ao fundo.
O barco atracou na balsa da Manaus Moderna, a Escadaria, no
começo da manhã. Observei os primeiros passageiros a desembarcar. Alguns
recebidos por familiares ou amigos. Outros sumiam na multidão, apenas acompanhados
das bagagens. Esperei o tumulto arrefecer. Recolhi e guardei tudo nas bagagens.
Lentamente desci ao piso Principal. Me despedi dos passageiros. Entreguei a
chave do camarote. Me despedi da família do proprietário, da conferente, de
outros tripulantes.
Caminhei pela ponte, cruzei a balsa flutuante, andei pelas
areias, subi as escadas metálicas e ganhei as ruas do centro de Manaus, vazias
pelo feriado de finados. Evitei os taxistas que me abordaram nas imediações do
porto. Queria andar, me movimentar, me exercitar. Cruzei o antigo comércio da
zona franca. Peguei à esquerda a avenida Sete de Setembro. Dobrei à direita e
subi a avenida Eduardo Ribeiro. Logo eu entrava no hotel cujo quarto só seria
liberado mais tarde. Larguei as bagagens na sala de guarda-volumes.
O café da manhã rolava solto. Certamente ninguém notaria
se eu beliscasse algo. Discretamente avancei pelas mesas, até os bufês. Engoli
quatro pães de queijo e dois copos de suco de laranja. E me satisfiz.
E me veio à mente a incrível viagem da qual acabara de
voltar. Viva o rio Japurá! Com os defeitos e as qualidades. Valeu!
No almoço tracei a estupenda caldeirada de tambaqui depois
de duas caipirinhas e do serviço lentíssimo dos garçons. Mesquinhez do dono do
restaurante. Eram poucos funcionários para muitos clientes.
Trovejou, nublou, veio o vento refrescante. Mas nada de
chuva. Só o calor sufocante da Manaus do concreto e asfalto.
Fui à parada de ônibus. Me fiei nas placas que listavam as
linhas de ônibus que paravam em cada ponto específico da avenida. Aparentemente
passavam por ali todas as linhas da cidade. Dezenas de ônibus se amontoavam nas
paradas, às vezes em fila dupla. Passageiros aos montes corriam desesperados de
um lado para outro. O caos. As placas desatualizadas me fizeram perder os dois
primeiros. Demorou até eu perceber que o ponto da linha desejada se situava cem
metros adiante, em cuja placa não constava o número correspondente.
Durante o ônibus da volta, um idiota fundamentalista
gritava histericamente as bobagens de sempre do comércio da fé vindo das
empresas evangélicas. Berrava sem parar, sem respirar, compulsivamente,
inserindo aleatoriamente as palavras “aleluia” e “jesus” no meio das frases e
até das palavras. Tortura. Massacre em volume ensurdecedor. Ele olhava de modo
esbugalhado sem enxergar nada à frente. Parecia sob o efeito de drogas, de
alucinógenos. Um patético robô programado pelas corporações evangélicas. A
maioria dos passageiros ignorava o sujeito, preferindo conferir a paisagem
cinzenta do lado de fora, conversar entre si, cutucar o celular. E ele não
parava de esbravejar contra o diabo, contra o divórcio, contra homens e
mulheres, contra o mundo. Subitamente se dirigiu à porta de saída do ônibus e
conclamou:
- Quem gostou que bata palmas!
Três senhoras aplaudiram. As três da claque do indivíduo.
As três bigodudas. As três cabeludas. As três com olhares de sofredoras e de
quem vê o diabo em cada canto.
O ônibus inteiro suspirou aliviado ao desembarque do
fundamentalista. A calma voltou entre os passageiros normais.
Bebi meio litro de guaraná natural com mel e limão. Nada
de almoço. Comprei a revista Caros Amigos
e retornei ao hotel. O tempo continuava nublado e abafado, com garoas esparsas.
O largo São Sebastião em noite comum, sem atrações
especiais, estava charmosíssimo como sempre. Número de frequentadores na medida
certa, para não tirar o encanto do conjunto.
Ao fechar os olhos ainda sentia o corpo oscilante como se
estivesse navegando em águas do rio Japurá. Ressaca fluvial!
Na região da Escadaria repeti guaraná com mel e limão.
Comprei cem gramas de guaraná em pó. Detonei outro copão de açaí fresco. Me
sentei no banco do mercado, derretendo de calor, enquanto grupos de gringos
idosos perambulavam acompanhados de guia local. Invariavelmente vestidos de
maneira inapropriada para o clima regional, cambaleavam ensopados de suor.
Arrumei as bagagens. Antes mesmo de alcançar o ponto de
ônibus para o aeroporto, a três quarteirões do hotel, eu já estava suado e ardendo de calor. Embarquei
e desembarquei sem problemas. E só desembolsei três reais, ao contrário dos
setenta e cinco reais que os taxistas ousavam cobrar.
O aeroporto de Manaus, geladíssimo desnecessariamente,
contava com a tal praça de alimentação. Apenas as redes pertencentes àquele regime terrorista ao norte do México. Pizzas de papelão, sanduíches de carne de
minhoca, batatas transgênicas, sorvete de açúcar, gordura e corante. Dava nojo
só de olhar de longe. E tudo muito caro, absurdamente caro. O lance era levar
algo ou comer antes de ir ao aeroporto.
Li artigos da revista Caros
Amigos enquanto aguardava os ponteiros do relógio avençarem.
Bateu sede e quis tomar refrigerante, pois suco natural
não havia em nenhuma parte do aeroporto. Ia pagando quando ouvi o preço da
caixa: SETE REAIS. Sete reais pelo refrigerante??? Nem pensar! Peguei o
dinheiro de volta. Iria de água de bebedouro mesmo. Além de oferecer somente
lixo para comer e beber, as redes estadunidenses cobravam o olho da cara. Era o
aeroporto internacional de Manaus, reformado para a Copa de 2014, novinho em
folha. Mas indo de mal a pior. Não era à toa que o comércio estava às moscas.
Quase ninguém se sujeitava aos venenos a preço de ouro.
Li bastante durante o voo vespertino. E Fogo Morto, de José Lins do Rego, frustrava
a cada página. Envelheceu, talvez, não sei. Só sei que não via a hora de virar
a última página. Aprecio bastante a literatura regional daquela geração,
inclusive outros romances desse autor. Mas aquele livro especificamente, ao
contrário dos prazeres durante a primeira leitura na adolescência, se tornou um
sacrifício. Antes tivesse trazido o ótimo Quarto
de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, livro que começara a reler em casa.
O céu noturno paulistano deu tréguas das recentes chuvas e
abriu estrelado para o pouso seguro no aeroporto de Cumbica.
Ônibus comum e metrô para casa. Tomei banho e caí na cama tarde
da noite.
E mais vivas à Amazônia fluvial! À Amazônia fluvial, bem
entendido.