Pares de araras cruzavam de uma margem à outra, às vezes
em silêncio, às vezes gritando contra a nossa invasão à natureza. Embora eu não
pudesse ver, o barco passava próximo da entrada do lago e da cidade de Tefé,
protegida e distante da margem direita do Solimões.
Permaneci sentado na proa do piso de Lazer, com
tranquilidade para apreciar a paisagem do vale do Solimões, entre praias,
barrancos invariavelmente desmoronados, ilhas, barquinhos de pesca, raras casas
e comunidades, pássaros. O sol iluminava o conjunto, realçando cores e
contrastes. Nem sentia o tempo passar. Definitivamente adorava estar ali,
fazendo exatamente aquilo. Minha mente viajava no vazio calmo e tranquilo. A
mente e o coração agradeciam o privilégio do local e do momento, únicos.
A rádio pirata do barco informava que a noite fora picante
para as mães solteiras e alguns tripulantes. Elas abandonaram os filhos ainda
pequenos nas redes e passaram horas nos camarotes funcionais, deitando e
rolando. A rádio contava que crianças, deitadas nas redes, chamavam pelas mães.
Em vão. Passageiros ao lado tentavam distraí-las dizendo que as mães estavam
ocupadas e logo voltariam. Pela manhã elas acordaram amassadas, desconjuntadas,
mancando, sedentas, entornando copos e copos de água gelada da torneira do piso
Superior. Todos notaram. Ninguém pronunciou um comentário sequer.
O ambiente entre os passageiros, tripulantes, prezava pela
cordialidade. Todos se davam bem. Todos eram prestativos. Nada de mal ameaçava acontecer.
A boca do Japurá já podia ser avistada no horizonte. E logo
após o almoço passamos propriamente por ela, iniciando a subida daquele rio. A
boca, ou foz, muito larga, se compunha de barranco alto na margem direita, a
oeste, e extensa praia de areias amareladas a leste, abrigando palafitas
esparsas.
Mangoaris, mergulhões, patos selvagens, garças, pássaros
pretos, pássaros cinzentos de bico longo e grande envergadura, pássaros
menores, encantavam o entardecer, nas árvores das margens do rio, nos galhos
retorcidos e ressecados caídos dos barrancos desmoronados, nas vegetações
flutuantes.
Na mesma hora do dia anterior começou a ventar
intensamente, da direita para a esquerda. Levantou areia das praias da margem
esquerda do Japurá. Parecia poeira fina em suspensão vista de longe. Cenas bem
interessantes. Caiu agua dos céus gerando alvoroço entre os passageiros. Mas
ficou somente nos preâmbulos, sem os sustos da tarde anterior.
Mais um por do sol inesquecível, dourando as águas do rio,
seguido do nascer da lua cheia, no formato de imensa bola avermelhada,
incandescente, subindo atrás das árvores. Parecia até o sol se não fosse pela
escuridão e o céu cheio de estrelas.
Reservas indígenas apareciam na margem esquerda do Japurá,
cujos habitantes observavam a passagem do barco, sem acenar, sorrir ou qualquer
outra ação. Apenas observavam.
Emocionante amanhecer sobre as águas do Japurá, mesmo sob
o céu parcialmente nublado. Floresta mais preservada em ambas as margens.
Praias selvagens. Natureza bruta. Sinfonia de pássaros dos mais variados tipos,
tamanhos, cores, cantos. Trechos estreitos alternando com partes largas e
recheadas de ilhas alongadas. Respirei profundamente, ali na proa do piso de
Lazer, vazio de almas naquele momento.
Desde a partida de Manaus, os passageiros ansiosos pela
chegada tentavam calcular o dia e o horário certo que o barco atracaria no
destino. Diziam que chegaríamos em Maraã no meio do dia anterior. Depois
garantiram que seria durante a noite. Corrigiam então para aquela manhã, para
finalmente concluírem que aportaríamos ao meio-dia. Eu ouvia as apostas e nada
comentava. Não me importava com o motor fraco do barco. Nem com a
impossibilidade de utilizar os furos em razão da baixa das águas durante a
estação seca, obrigando o barco a imensas voltas pelo canal principal. Para mim
era tudo prazer e diversão.
Como de praxe nos barcos da região, os passageiros jogavam
quase tudo nas águas dos rios. Copos plásticos, latinhas de alumínio, lixo
orgânico, sacolinhas plásticas, entre outras barbaridades. Copos plásticos eram
disponibilizados próximos às torneiras de água potável do piso Superior. Os
passageiros bebiam um copo e o jogavam em seguida no lixo ou no rio. Minutos
depois, pegavam outro copo, bebiam água e jogavam no lixo ou no rio. E assim a
cada tomada de água. Todos os passageiros faziam o mesmo. Tais procedimentos se
repetiam durante as refeições com o café e os sucos servidos. O latão de lixo e
as águas do rio enchiam de copos plásticos. Algo precisava ser feito. Os
passageiros não traziam as próprias redes para dormir? Uns poucos não
carregavam até os próprios pratos e talheres para as refeições? Então! Por que
não trazer também recipientes plásticos, garrafas vazias ou afins, para beberem
água, café, sucos, líquidos em geral? Os barcos não deveriam mais oferecer
copos descartáveis. Simples assim. O que estaria faltando para isso acontecer?
E Maraã apontou no horizonte. Rebuliço geral entre os
passageiros a desembarcar. Desatar de redes. Embelezamento das mulheres, entre
retocar pinturas, arrumar os cabelos, vestir roupas limpas e novas, colocar
adornos. Mas o barco ainda percorreria as águas do rio por algumas horas.
Um jacaré boiava tranquilamente nas águas do rio. Nem
piscou. Mais em frente, uma preguiça nadava lentamente através de movimentos
repetidos dos braços curtos, sem se importar com a passagem do barco. Atingiria
a margem oposta sei lá quando, certamente esgotada pelo esforço de atravessar o
rio em trecho tão largo.
E chegou o momento vibrante da chegada do barco, o
desembarque e embarque de passageiros e principalmente de cargas. Era Maraã, a
primeira e única parada oficial antes do destino final. O barco se aproximou do
porto flutuante na margem esquerda do Japurá. Tripulantes ataram as cordas na
balsa. Colocaram as ripas de madeira entre o barco e a balsa. Pronto. Os de
terra entraram para ajudar e receber parentes e amigos. Ou então para oferecer
serviços de carregadores e transportadores.
Antes mesmo de iniciar a descarga de mercadorias, pulei na
balsa flutuante e subi a rampa para explorar a cidade de Maraã, onde eu
estivera nove anos antes.
Maraã, logo à primeira vista, continuava o mesmo descaso. Pobre,
ausência de qualquer tipo de urbanismo, suja, habitada por povo cabisbaixo.
Muitas casas de madeira, aos pedaços, embora as de alvenaria não ficassem muito
melhor na fita. Cães vagavam pelas ruas somente em pele e osso, sarnas e
feridas, exibindo olhares moribundos que refletiam a situação em que se
encontrava a cidade. Meia dúzia de bêbados zanzava pela região do mercado
municipal.
As ruas e avenidas novas deprimiam de feiura. A famigerada
poda geométrica das raras árvores mutilava a natureza. E reduzia as sombras,
artigo de primeira necessidade em local tórrido como Maraã, a minúsculas áreas,
privando a população de alívios do sol escaldante. Para piorar, essas mesmas
ruas e avenidas eram asfaltadas, esquentando e abafando ainda mais o caldeirão.
Por outro lado, as operadoras de telefonia celular, serviço
público privatizado a preço de banana durante o regime neoliberal da aliança
PSDB/DEM, sobre o comando de Fernando Henrique Cardoso, iam muito bem,
obrigado. A maioria dos moradores cutucava de modo esquizofrênico os
aparelhinhos, indiferentes ao abandono da cidade e de si próprios. Entrei num
comércio desmazelado, peguei o produto e passei no caixa para pagar. Nem bem
recolheu o dinheiro, e sem me olhar na cara, a adolescente abaixou a cabeça e voltou
a cutucar o fetiche eletrônico.
Não encontrei o buraco onde eu me hospedara nove anos
antes. Nem o outro buraco onde comera e arranjara de brinde um desarranjo
intestinal. Não estavam mais lá. A seleção natural os extinguira. A humanidade
agradecia aliviada.
Zanzando pela cidade eu reconhecia e cumprimentava
passageiros do barco ali desembarcados. Até trocava frases com um e outro. Já
estavam instalados e em atividade.
Em circulei pela esplendorosa Maraã, inclusive pela
abandonada, quase acabada ou quase destruída, orla fluvial, onde
administradores municipais torraram em absolutamente nada o dinheiro do bolso
da população, a mesma e apática população.
Retornei ao barco enquanto a descarga de mercadorias
prosseguia em ritmo acelerado. Carregadores transitavam ininterruptamente pelas
rampas de madeira, arqueados pelo peso excessivo nas costas.
No piso de Lazer do barco soprava brisa leve, amenizando
parcialmente a quentura. Não me cansava de olhar para o canal de água ocupado
por residências e comércios, todos flutuantes, formando conjunto charmoso, ao
contrário do resto da cidade. Pequeno barco ali parado guardava singela horta
suspensa de temperos e hortaliças sobre o piso superior, ainda sobrando espaço
para o varal de roupas coloridas.
E partimos de Maraã, rio Japurá acima, sob a deslumbrante
luz de fim de tarde, dourando as águas, as árvores, os barrancos argilosos. O
por do sol veio em seguida encantando até não poder mais. A cada segundo, novas
emoções de luzes e cores nas águas e no céu de poucas nuvens.
Embarcara novo passageiro em Maraã. Cearense, idoso, viúvo,
magro demais, constantemente fungando o nariz. Falante, cheio de ideias
mirabolantes de negócios, comércios, plantações. Comprava faqueiros no Peru e
Colômbia para revender no Brasil seis vezes mais caro. Afirmou que se curara de
câncer em Cuba, depois de desenganado pelos médicos de Manaus. Residente em
Itapiranga, no médio Amazonas, propunha o fim da educação formal em escolas.
Segundo ele, as crianças e jovens deveriam trabalhar na roça, plantar
alimentos, e não perder tempo com letras e estudos. Estudar, segundo o próprio,
não dava futuro a ninguém. Disparava:
- Educação para essa cambada de fiadaputa deveria ser uma
bala na cabeça.
- Os prisioneiros deveriam trabalhar na agricultura, e sob
a supervisão do exército. E não ficarem vadiando nos presídios.
- Jumento é melhor que mulher. Essa dá carga ao homem,
enquanto que o animal carrega a carga do homem.
Ele adorava caldo de cana, afirmando ser afrodisíaco. Planejava
plantar roça de cana-de-açúcar em Japurá.
Até os tripulantes riam duvidando das façanhas e projetos
do “Ceará”.
Como desembarcou mais passageiros que embarcou, o setor de
redes do piso Superior oferecia vazios entre elas, permitindo mais espaço, mas
também mais vento e mais frio durante as noites.
continua...
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