sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O Rio Japurá (parte 3/6)

...continuação
Pares de araras cruzavam de uma margem à outra, às vezes em silêncio, às vezes gritando contra a nossa invasão à natureza. Embora eu não pudesse ver, o barco passava próximo da entrada do lago e da cidade de Tefé, protegida e distante da margem direita do Solimões.
Permaneci sentado na proa do piso de Lazer, com tranquilidade para apreciar a paisagem do vale do Solimões, entre praias, barrancos invariavelmente desmoronados, ilhas, barquinhos de pesca, raras casas e comunidades, pássaros. O sol iluminava o conjunto, realçando cores e contrastes. Nem sentia o tempo passar. Definitivamente adorava estar ali, fazendo exatamente aquilo. Minha mente viajava no vazio calmo e tranquilo. A mente e o coração agradeciam o privilégio do local e do momento, únicos.
A rádio pirata do barco informava que a noite fora picante para as mães solteiras e alguns tripulantes. Elas abandonaram os filhos ainda pequenos nas redes e passaram horas nos camarotes funcionais, deitando e rolando. A rádio contava que crianças, deitadas nas redes, chamavam pelas mães. Em vão. Passageiros ao lado tentavam distraí-las dizendo que as mães estavam ocupadas e logo voltariam. Pela manhã elas acordaram amassadas, desconjuntadas, mancando, sedentas, entornando copos e copos de água gelada da torneira do piso Superior. Todos notaram. Ninguém pronunciou um comentário sequer.
O ambiente entre os passageiros, tripulantes, prezava pela cordialidade. Todos se davam bem. Todos eram prestativos. Nada de mal ameaçava acontecer.
A boca do Japurá já podia ser avistada no horizonte. E logo após o almoço passamos propriamente por ela, iniciando a subida daquele rio. A boca, ou foz, muito larga, se compunha de barranco alto na margem direita, a oeste, e extensa praia de areias amareladas a leste, abrigando palafitas esparsas.
Mangoaris, mergulhões, patos selvagens, garças, pássaros pretos, pássaros cinzentos de bico longo e grande envergadura, pássaros menores, encantavam o entardecer, nas árvores das margens do rio, nos galhos retorcidos e ressecados caídos dos barrancos desmoronados, nas vegetações flutuantes.
Na mesma hora do dia anterior começou a ventar intensamente, da direita para a esquerda. Levantou areia das praias da margem esquerda do Japurá. Parecia poeira fina em suspensão vista de longe. Cenas bem interessantes. Caiu agua dos céus gerando alvoroço entre os passageiros. Mas ficou somente nos preâmbulos, sem os sustos da tarde anterior.
Mais um por do sol inesquecível, dourando as águas do rio, seguido do nascer da lua cheia, no formato de imensa bola avermelhada, incandescente, subindo atrás das árvores. Parecia até o sol se não fosse pela escuridão e o céu cheio de estrelas.
Reservas indígenas apareciam na margem esquerda do Japurá, cujos habitantes observavam a passagem do barco, sem acenar, sorrir ou qualquer outra ação. Apenas observavam.
Emocionante amanhecer sobre as águas do Japurá, mesmo sob o céu parcialmente nublado. Floresta mais preservada em ambas as margens. Praias selvagens. Natureza bruta. Sinfonia de pássaros dos mais variados tipos, tamanhos, cores, cantos. Trechos estreitos alternando com partes largas e recheadas de ilhas alongadas. Respirei profundamente, ali na proa do piso de Lazer, vazio de almas naquele momento.
Desde a partida de Manaus, os passageiros ansiosos pela chegada tentavam calcular o dia e o horário certo que o barco atracaria no destino. Diziam que chegaríamos em Maraã no meio do dia anterior. Depois garantiram que seria durante a noite. Corrigiam então para aquela manhã, para finalmente concluírem que aportaríamos ao meio-dia. Eu ouvia as apostas e nada comentava. Não me importava com o motor fraco do barco. Nem com a impossibilidade de utilizar os furos em razão da baixa das águas durante a estação seca, obrigando o barco a imensas voltas pelo canal principal. Para mim era tudo prazer e diversão.
Como de praxe nos barcos da região, os passageiros jogavam quase tudo nas águas dos rios. Copos plásticos, latinhas de alumínio, lixo orgânico, sacolinhas plásticas, entre outras barbaridades. Copos plásticos eram disponibilizados próximos às torneiras de água potável do piso Superior. Os passageiros bebiam um copo e o jogavam em seguida no lixo ou no rio. Minutos depois, pegavam outro copo, bebiam água e jogavam no lixo ou no rio. E assim a cada tomada de água. Todos os passageiros faziam o mesmo. Tais procedimentos se repetiam durante as refeições com o café e os sucos servidos. O latão de lixo e as águas do rio enchiam de copos plásticos. Algo precisava ser feito. Os passageiros não traziam as próprias redes para dormir? Uns poucos não carregavam até os próprios pratos e talheres para as refeições? Então! Por que não trazer também recipientes plásticos, garrafas vazias ou afins, para beberem água, café, sucos, líquidos em geral? Os barcos não deveriam mais oferecer copos descartáveis. Simples assim. O que estaria faltando para isso acontecer?
E Maraã apontou no horizonte. Rebuliço geral entre os passageiros a desembarcar. Desatar de redes. Embelezamento das mulheres, entre retocar pinturas, arrumar os cabelos, vestir roupas limpas e novas, colocar adornos. Mas o barco ainda percorreria as águas do rio por algumas horas.
Um jacaré boiava tranquilamente nas águas do rio. Nem piscou. Mais em frente, uma preguiça nadava lentamente através de movimentos repetidos dos braços curtos, sem se importar com a passagem do barco. Atingiria a margem oposta sei lá quando, certamente esgotada pelo esforço de atravessar o rio em trecho tão largo.
E chegou o momento vibrante da chegada do barco, o desembarque e embarque de passageiros e principalmente de cargas. Era Maraã, a primeira e única parada oficial antes do destino final. O barco se aproximou do porto flutuante na margem esquerda do Japurá. Tripulantes ataram as cordas na balsa. Colocaram as ripas de madeira entre o barco e a balsa. Pronto. Os de terra entraram para ajudar e receber parentes e amigos. Ou então para oferecer serviços de carregadores e transportadores.
Antes mesmo de iniciar a descarga de mercadorias, pulei na balsa flutuante e subi a rampa para explorar a cidade de Maraã, onde eu estivera nove anos antes.
Maraã, logo à primeira vista, continuava o mesmo descaso. Pobre, ausência de qualquer tipo de urbanismo, suja, habitada por povo cabisbaixo. Muitas casas de madeira, aos pedaços, embora as de alvenaria não ficassem muito melhor na fita. Cães vagavam pelas ruas somente em pele e osso, sarnas e feridas, exibindo olhares moribundos que refletiam a situação em que se encontrava a cidade. Meia dúzia de bêbados zanzava pela região do mercado municipal.
As ruas e avenidas novas deprimiam de feiura. A famigerada poda geométrica das raras árvores mutilava a natureza. E reduzia as sombras, artigo de primeira necessidade em local tórrido como Maraã, a minúsculas áreas, privando a população de alívios do sol escaldante. Para piorar, essas mesmas ruas e avenidas eram asfaltadas, esquentando e abafando ainda mais o caldeirão.
Por outro lado, as operadoras de telefonia celular, serviço público privatizado a preço de banana durante o regime neoliberal da aliança PSDB/DEM, sobre o comando de Fernando Henrique Cardoso, iam muito bem, obrigado. A maioria dos moradores cutucava de modo esquizofrênico os aparelhinhos, indiferentes ao abandono da cidade e de si próprios. Entrei num comércio desmazelado, peguei o produto e passei no caixa para pagar. Nem bem recolheu o dinheiro, e sem me olhar na cara, a adolescente abaixou a cabeça e voltou a cutucar o fetiche eletrônico.
Não encontrei o buraco onde eu me hospedara nove anos antes. Nem o outro buraco onde comera e arranjara de brinde um desarranjo intestinal. Não estavam mais lá. A seleção natural os extinguira. A humanidade agradecia aliviada.
Zanzando pela cidade eu reconhecia e cumprimentava passageiros do barco ali desembarcados. Até trocava frases com um e outro. Já estavam instalados e em atividade.
Em circulei pela esplendorosa Maraã, inclusive pela abandonada, quase acabada ou quase destruída, orla fluvial, onde administradores municipais torraram em absolutamente nada o dinheiro do bolso da população, a mesma e apática população.
Retornei ao barco enquanto a descarga de mercadorias prosseguia em ritmo acelerado. Carregadores transitavam ininterruptamente pelas rampas de madeira, arqueados pelo peso excessivo nas costas.
No piso de Lazer do barco soprava brisa leve, amenizando parcialmente a quentura. Não me cansava de olhar para o canal de água ocupado por residências e comércios, todos flutuantes, formando conjunto charmoso, ao contrário do resto da cidade. Pequeno barco ali parado guardava singela horta suspensa de temperos e hortaliças sobre o piso superior, ainda sobrando espaço para o varal de roupas coloridas.
E partimos de Maraã, rio Japurá acima, sob a deslumbrante luz de fim de tarde, dourando as águas, as árvores, os barrancos argilosos. O por do sol veio em seguida encantando até não poder mais. A cada segundo, novas emoções de luzes e cores nas águas e no céu de poucas nuvens.
Embarcara novo passageiro em Maraã. Cearense, idoso, viúvo, magro demais, constantemente fungando o nariz. Falante, cheio de ideias mirabolantes de negócios, comércios, plantações. Comprava faqueiros no Peru e Colômbia para revender no Brasil seis vezes mais caro. Afirmou que se curara de câncer em Cuba, depois de desenganado pelos médicos de Manaus. Residente em Itapiranga, no médio Amazonas, propunha o fim da educação formal em escolas. Segundo ele, as crianças e jovens deveriam trabalhar na roça, plantar alimentos, e não perder tempo com letras e estudos. Estudar, segundo o próprio, não dava futuro a ninguém. Disparava:
- Educação para essa cambada de fiadaputa deveria ser uma bala na cabeça.
- Os prisioneiros deveriam trabalhar na agricultura, e sob a supervisão do exército. E não ficarem vadiando nos presídios.
- Jumento é melhor que mulher. Essa dá carga ao homem, enquanto que o animal carrega a carga do homem.
Ele adorava caldo de cana, afirmando ser afrodisíaco. Planejava plantar roça de cana-de-açúcar em Japurá.
Até os tripulantes riam duvidando das façanhas e projetos do “Ceará”.
Como desembarcou mais passageiros que embarcou, o setor de redes do piso Superior oferecia vazios entre elas, permitindo mais espaço, mas também mais vento e mais frio durante as noites.
continua...

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