quarta-feira, 25 de maio de 2011

Patagônia - Chile e Argentina (parte 2/2)

...continuação
Chegada ao refúgio Grey, na margem gelada do lago de mesmo nome e com pedaços flutuantes de gelo. Desta vez não houve estadunidenses prepotentes e as reservas nos quartos coletivos se mantiveram. Muitas árvores enfeitavam as redondezas do refúgio, mas durante a noite o frio não permitia relaxar do lado de fora. O grupo se retirou cedo para compensar a noite anterior mal dormida.
Pela manhã caminhada à frente da geleira Grey, enorme formação de gelo entre blocos rochosos, que nascia na região do gelo continental e se desprendia lentamente nas águas do lago.
Da geleira Grey, passagem pelo refúgio e caminhada ao lago Pehoé. Novas rajadas de vento pelo caminho em meio a visual impressionante das geleiras e dos lagos. E, finalmente, hospedagem no refúgio Pehoé, a última noite depois do sexto dia de travessia pelo parque nacional Torres Del Paine.
Na manhã seguinte, o barco no cais da ponta do lago Pehoé. As últimas olhadas serviram de despedidas de região tão fascinante. Horas depois por estradas do extremo sul da América, novamente a fronteira da Argentina.
Estadia em El Calafate, cidade metida a besta, porém bem urbanizada e cheia de opções de bares e restaurantes. A avenida principal que cortava a cidade de ponta a ponta cobria-se de lojas de roupas caras e pretensiosas. Nem parecia que a Argentina estava mergulhada em crise profunda. A taxa de conversão entre o peso argentino e o dólar estadunidense ainda estava contida em 1 para 1. Os estabelecimentos comerciais aceitavam ambas as moedas.

Durante aqueles dias, vários presidentes argentinos se sentaram e se levantaram da cadeira oficial. Ninguém fazia previsões seguras. A incerteza pairava no ar. O garçom sexagenário do hotel, assim que servia a mesa do café da manhã, se juntava aos demais empregados e colava o ouvido no rádio da cozinha na busca de notícias alvissareiras. A maioria dos funcionários do hotel, lojas e restaurantes andava cabisbaixo e preocupado. Os olhares denunciavam a apreensão com os destinos do país e com o temor da situação social piorar ainda mais. Não havia espaço para piadas ou brincadeiras.
El Calafate servia como base para visitar o glacial Perito Moreno, distante poucos quilômetros da cidade. Da entrada, no alto do morro, a pé pelas passarelas, dava para circular por entre os vários níveis de observação. Ao descer as plataformas de madeira, mais se aproximavam os paredões de gelo. A visão era deslumbrante da montanha de gelo, alta, extensa e larga, que se debruçava sobre as águas. Vez ou outra, enormes pedaços se desprendiam e despencavam nas águas, causando fortes estrondos. A imensa massa de gelo, de tons azulados principalmente no miolo, se estendia a oeste, rumo ao gelo continental e à fronteira chilena. Horas benvindas de contemplação. Turistas de todos os tipos e idades se espalhavam por ali. Houve passeio de barco até bem perto dos paredões.
À noite em El Calafate, durante o lauto jantar, não foram poucas as garrafas de vinho consumidas. Além da qualidade do produto, das frias temperaturas da noite, a garrafa do precioso líquido custava o mesmo que uma xícara de café. Então, em vez de café, mais uma garrafa de vinho. Dólares estadunidenses e pesos argentinos se misturavam na mesa no momento de pagar a conta.
Pela manhã a caminhonete conduziu à cidadezinha de El Chalten, às portas do parque nacional Los Glaciares e próxima das principais montanhas da região.
El Chalten não era propriamente uma cidade. Ainda. Mas pequeno conjunto de pousadas, hotéis, bares e restaurantes na margem de rio pedregoso que corria no final de planície árida. Da estrada, mesmo distante, se via o vilarejo, as montanhas nevadas e pontiagudas ao fundo. Restaurantes de ótimo aspecto e preços altos apareciam aqui e ali.
Houve tempo suficiente para expedições à laguna Serena, à base do cerro El Chalten (Fitz Roy), à base do cerro Torre, nos pés dos quais se instalavam barracas dos acampamentos base, utilizadas principalmente por escaladores. As caminhadas não cansavam muito, cruzando bosques fechados, trechos mais secos, riachos parcialmente congelados. Nevou, nublou, garoou, esfriou muito. De perto vi apenas as bases das montanhas, desimpedidas das nuvens carregadas. Ventava furiosamente e não consegui permanecer muito tempo nas proximidades.

As comemorações pelo novo ano ocorreram em hotel próximo. Tudo simples, animado e espontâneo. Caminhantes se reuniram para beliscar e beber vinhos.
Em meio a outros turistas, as conversas evoluíram para a política mundial, com alguns argentinos e quatro suíços. Os quatro europeus questionavam a ausência de democracia em vários países da América, a miséria, a corrupção, o narcotráfico, as agressões ao meio ambiente. Avancei o debate no sentido de analisar as causas e os agentes dos problemas. Citei as transnacionais químicas e agrícolas suíças que atuavam impunemente pelo continente americano, agredindo a natureza e explorando a mão de obra barata. Primeiro silêncio e mal estar dos quatro. Também quis saber a posição deles frente ao então recente plebiscito sobre a abolição do sigilo das contas bancárias nos bancos suíços. Eram lá que os ditadores, assassinos, corruptos, megaempresários, traficantes do mundo inteiro, depositavam as fortunas decorrentes da exploração dos pobres. Com esse dinheiro os criminosos internacionais abasteciam a economia da Suíça. Os quatro suíços não responderam e tentaram desconversar. Insisti. E, finalmente, admitiram o apoio ao sigilo bancário dos bancos suíços. Apoiavam, portanto, a fuga de capitais, sobretudo dos países mais pobres. Concordaram que mantinham e desfrutavam do alto padrão de vida na Suíça graças à miséria de milhões de pessoas pelo mundo afora.
Após o acampamento base do cerro El Chalten (Fitz Roy), trilha para lá de íngreme rumo à laguna de Los Três, na base da montanha. Nevou na subida e no nível da lagoa, sem falar no vento gelado. Mas o cenário fascinava. Lagoa de águas azuladas, rochas negras e cinzentas, trechos de neve branca, a montanha, faziam qualquer um esquecer a neve, o vento, o frio.

Já de volta a Buenos Aires, houve tempo suficiente para dar voltas pela cidade, de noite e de dia, pelo centro antigo da capital, as imediações da Casa Rosada. Esticada a San Telmo e Puerto Madero. Aquele último domingo na Argentina seria também o último dia da paridade entre o dólar estadunidense e o peso argentino. As ruas anunciavam informalmente a desvalorização de cinquenta por cento do peso para o dia seguinte. Mas eu já estaria no Brasil.
Desembarquei em São Paulo em janeiro do ano seguinte. As imagens da Patagônia, chilena e argentina, das montanhas nevadas, lagos, vales e bosques impressionantes, do vento intenso sempre presente, não me sairiam da lembrança. Assim como os rostos preocupados dos argentinos frente às trágicas consequências do capitalismo no país que, como no mundo tudo, serve apenas a uma minoria, local e estrangeira, lançando milhões de trabalhadores na pobreza.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Patagônia - Chile e Argentina (parte 1/2)

Era alta temporada na Patagônia, ainda mais com as festas de natal e ano novo. Decidi encarar roteiro incluindo o lado chileno e argentino, com longas caminhadas às montanhas nevadas, visitas a vilas, glaciais e lagos.
Desembarquei em Buenos Aires em dezembro, justamente na noite seguinte às manifestações populares que expulsaram o presidente Fernando De La Rua. O povo argentino chamou a responsabilidade para si, se organizou e lutou, exigindo a renúncia de mais um fantoche do imperialismo, depois de sucessivos protestos de ruas, greves e passeatas. As ruas da capital se encontravam vazias. Vidros frontais de algumas instituições financeiras mostravam-se parcialmente quebrados. Pedaços de madeiras e tecidos queimados espalhavam-se pelas avenidas.
Em Rio Gallegos, extremo sul da Argentina, o furgão esperava no aeroporto. Apesar do sol e céu azul, o vento constante deixava tudo muito frio.
O veículo percorreu as estradas planas argentinas, cruzamos a fronteira do Chile, até Punta Arenas, na margem do estreito de Magalhães. Nem precisaria ressaltar o frio polar que baixava por ali. As altas latitudes, o vento que não sossegava um instante, transformavam o verão local em inverno. E a visita às areias escuras do gelado estreito de Magalhães durou o mínimo possível, o suficiente para olhadelas e registros fotográficos.     
No caminho ao parque nacional Torres Del Paine, uma reserva de pinguins. Na margem oposta do lago em Puerto Natales se erguiam as montanhas da cordilheira dos Andes.
Em área pertencente ao parque nacional, desembarque ao lado do refúgio Torres. O furgão ficaria por ali. De mochilas nas costas seguimos a trilha montanha acima, contra o vento e suave queda de neve.

Básico e de madeira, o refúgio Chileno garantiu o conforto necessário. Quartos amplos com beliches, sobre os quais eram desenrolados os sacos de dormir, banheiros coletivos com água quente, limpeza razoável, comida boa encomendada previamente. Mas o melhor, e o que eu já presenciara no Nepal, era o ambiente coletivo na sala de estar. Ao lado da lareira, turistas do mundo inteiro se distribuíam nas cadeiras e almofadas. Bancos de madeira do lado de fora, ao lado de rios encachoeirados vindos das geleiras acima, poderiam ser boas opções. Mas vento cortante e constante afugentava os oriundos de países tropicais.
O roteiro proposto era o chamado de “W”. A subida do refúgio Torres, passando pelo refúgio Chileno, até a base das Torres, compõe a perna oriental do “W”.
Bem cedo colocamos o pé na trilha em direção às famosas torres que dão nome ao parque nacional. Embora em subida constante e com trechos sobre blocos rochosos, a caminhada não chegou a cansar. As trilhas da Patagônia não atingem grandes altitudes, não provocam dificuldades de respiração ou prejudicam o rendimento físico. Atravessaram bosques, pequenas cascatas, campos abertos com visões de picos nevados, rios com corredeiras. A última subida, pela morena glacial, exigia mais cuidados para não escorregar nos enormes blocos de rochas justapostas. No alto, o relevo volta a descer ao lago do degelo e subir novamente a partir de onde se erguiam as três torres de pedra. Ao atingir a parte alta da morena, as nuvens cobriam as torres e os paredões ao lado. Mas em questão de minutos o vento as dissipou, e as torres se apresentaram imponentes bem à frente. Três enormes formações de rocha clara e maciça, pontiagudas, com pequenas nesgas de neve, se exibiam acima das águas acinzentadas do lago, desenhando imagem deslumbrante, chocante. E bem distinta dos Andes centrais.
Tempo de sobra no alto da morena. Comemos o lanche reparador. Inicialmente apreciamos aquela imponência sem mais ninguém, somente acompanhados da natureza. Depois o local se encheu de turistas. A maioria se calava diante das belezas naturais, não comprometendo a paz essencial à contemplação.  
Descida pela mesma trilha da subida, passando batido pelo refúgio Chileno. Parada no refúgio Torres, onde ficaríamos justamente a noite da véspera de natal. O refúgio serviu jantar no sistema de bufê, enriquecido de vinhos, espumantes e doces.
Bem cedinho, a travessia seguiu pela trilha na beira do lago. O visual se diversificava com bosques, campos, riachos cheios de pedras, pontes de madeira, morenas, encostas nevadas, picos rochosos, lagos de águas azuladas. As temperaturas durante o dia beiravam o agradável, sobretudo com o corpo em movimento. Eventualmente fazia calor, sob o sol, ou leve frio ao nublar e ventar.

Entre subidas e descidas pouco intensas, chegada ao refúgio Cuernos, na beira do lago, aos pés da imponente montanha de mesmo nome e em cujo topo a neve cobria a rocha negra. Rostos começavam a se tornar familiares devido às semelhanças de roteiro, ao mesmo ritmo. A morena inglesa, bonita e substanciosa, mereceu discretas atenções. E eu também não passara despercebido. Sutilmente, muito rapidamente, começou a me procurar com os olhos. Decidi degustar o flerte. E eu me divertia com os demais brasileiros, entre homens e mulheres, boas companhias de caminhadas. Além de comer bem, não dispensávamos o vinho chileno em todos os jantares. Servido em embalagem longa-vida para facilitar no transporte, a bebida ajudava a recuperar as energias e a descontração, entre goles e garfadas.
O quarto dia de caminhada foi o mais cênico de toda a travessia. Ainda próxima às águas dos lagos ao sul, a trilha ofereceu ramal transversal. Era o vale Francês, a perna central do “W”, que dava acesso ao acampamento Britânico, nas cabeceiras do riacho parcialmente congelado que acompanhava ao lado. Ventava terrivelmente. Nevava esporadicamente. O frio castigava mais à medida que o relevo subia. Imensos glaciais se assentavam nas paredes negras da montanha do lado oposto do vale Francês e atingiam o riacho. A imagem impressionava com o contraste entre o branco da neve e o preto das rochas. A vegetação, inicialmente composta de bosques, tornava-se mais rala vale acima. Pude avistar também a encosta leste do vale, acima da trilha, formada por agulhas rochosas e outras formações inusitadas. As pontas acinzentadas a levemente acastanhadas se projetavam no céu azul e criavam paisagens inóspitas e fascinantes. Sensações de estar em outro planeta. O vento insuportavelmente forte e o frio cortante castigavam sem dó.
De volta à trilha principal, o vento prosseguia a todo vapor, sobretudo nas proximidades do lago Pehoé, local de refúgio de mesmo nome e parada para aquela noite. Porém, inexplicavelmente, o refúgio aceitara mais reservas do que a capacidade normal. E já estava lotado. Um grupo de estadunidenses provavelmente subornara o administrador do refúgio, ocupando integralmente as dependências internas, expulsando os demais caminhantes, ainda que tivessem as reservas confirmadas várias vezes. Os cúmplices chilenos daquele escândalo talvez esquecessem que o regime do país de origem daqueles turistas preparou e organizou o golpe civil/militar de 11 de setembro de 1973, mantendo e financiando a ditadura por dezesseis anos, perseguindo e matando o povo chileno.

A alternativa foi em barracas para duas pessoas na beira do lago. Sempre adorei acampamento, ainda mais em meio à natureza tão privilegiada. Mas ficar em barracas iglu, altas e sem estabilidade, nas margens de lago de onde açoitava vento intenso e constante, não tinha a menor graça. Banheiros, somente os frios do acampamento. As dependências internas do refúgio eram liberadas apenas durante o jantar previamente encomendado. Nem bem acabamos de comer, fomos convidados a nos retirar e liberar espaço aos invasores estadunidenses. Durante a noite, o tecido da barraca, bastante inclinada pelo vento, balançava, vibrava, atingindo e açoitando meu rosto a todo instante.
A caminhada começou bem cedo, sob a neve e chuva fina. Pertencente à perna ocidental do “W”, a longa trilha subia leve, mas sem tréguas, até o alto da colina. O vento, como não poderia deixar de ser, soprava sem parar e com intensidade ainda maior que das outras vezes. Em certos momentos parecia que eu iria flutuar tal as rajadas vindas de todos os lados. A integrante do grupo, baixinha a magrinha, amedrontada com a situação, chegou a recolher duas pedras do chão, passando a caminhar com uma em cada mão, obtendo o lastro para não sair voando. Na descida do morro, em visão panorâmica do lago Grey, blocos de gelo flutuantes nas águas, que se desprenderam das geleiras mais ao fundo. Se não houve moleza durante o esforço físico da subida, o mesmo se repetiu ao longo da trilha de descida. Traçada na encosta do morro que se inclinava nas águas do lago, a trilha era castigada por impiedosas rajadas de vento. As árvores e arbustos estavam definitivamente inclinados e com os galhos todos voltados para um lado só. O vento contra vindo do lago era tão intenso que eu podia me soltar que não cairia. Eu abria os braços, tirava um pé do chão e quase tirava o segundo também. Aquelas flutuações viraram passatempo depois de acostumado com a velocidade do vento. Se por um acaso, repentinamente, o vento parasse de soprar, eu desabaria e me arrebentaria na trilha cheia de pedras pontiagudas.
continua...

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Cuba e México (parte 2/2)

...continuação
Comemorado no dia primeiro de janeiro, o aniversário da revolução cubana não contou com festas e discursos na tradicional praça da revolução. O governo alegou economia de recursos e cancelou o ato. Acordei cedo no primeiro dia do ano. A praça, ruas e redondezas estavam vazias naquela manhã ensolarada. Havana parecia de ressaca da virada do ano e ninguém dava sinal de vida.
Havia os opositores à revolução, que não se escondiam como insiste em mentir a imprensa burguesa. E nem se amedrontavam ao se depararem com os simpatizantes da revolução, a maioria do país. Ambos os lados faziam questão de expor as ideias em público. Segundo depoimentos que ouvi, o governo perseguia e prendia somente os que cometiam atos de traição e terrorismo, incêndios criminosos, sabotagens à economia nacional, espionagem para os estadunidenses. O conteúdo das críticas ouvidas se restringia à falta de variedade de roupas da moda internacional nas lojas, deficiência do transporte coletivo, lentidão no processo de melhorias na habitação, racionamentos. Mas se assustavam quando eu descrevia as “maravilhas” do capitalismo brasileiro e latino-americano. Também reconheciam que muitas das dificuldades da situação cubana provinham do criminoso bloqueio econômico e naval imposto pelo regime dos Estados Unidos desde o início dos anos de 1960. Conheci cubanos curiosos sobre o movimento social brasileiro e a então novidade do Partido dos Trabalhadores.
De maneira geral o povo cubano se assemelhava muito ao brasileiro. E sabiam disso pela música, dança, calor humano, malícia, bom humor, comunicabilidade. Embora com características físicas diferentes, a influência africana se fez presente em ambos os países, atingindo profundamente inúmeros setores da cultura popular.
Os cubanos se libertaram da miséria secular causada pelos domínios espanhol e estadunidense. Não por coincidência, a maior parte do povo, inclusive os negros e mulatos, possuíam curso universitário, se conscientizavam da situação social cubana e mundial, tinham todos os dentes. E não havia menores abandonados ou passando fome perambulando pelas ruas.

O tempo voava e tive que deixar Cuba.
Desembarquei perto da hora do almoço na capital mexicana. O simpático atendente do balcão de informações turísticas me auxiliou na escolha do hotel. Ao saber que eu vinha de Cuba, me perguntou, rindo, quantos fuzis eu carregava na bagagem. Informei que coube apenas um. E ele prontamente me ofereceu carona.
Nem sei o quanto demorou o trajeto ao distante centro da maior cidade do mundo, mas as conversas animadas do mexicano ajudaram o tempo passar rápido. Entre muitos outros povos, o mexicano sempre foi admirador do povo e cultura brasileira. Era evidente em cada frase dele. E eu sempre tentei retribuir esse acolhimento.
O hotel se localizava em área nobre, sem muitos edifícios altos, em razão da alta incidência de tremores de terra. E as conseqüências do terremoto de dois meses antes tinham se transformado em atração turística. Ruínas, desmoronamentos, rachaduras, escombros, entulhos, construções destruídas parcial ou totalmente, atraíam fotógrafos, mórbidos e curiosos em geral.
No café da manhã do hotel, arrisquei os huevos mexicanos. O dito cujo veio com pintinhas vermelhas por toda parte. Não deu outra. Queimou feito fogo no estômago. Não eram ovos com pimenta, mas pimenta com ovos. Trucidei todo o pão e manteiga possível. Bebi o jarro inteiro de café com leite. Amenizou o incêndio, mas não resolveu.
Caminhei pelas imediações do hotel, fui até o centro antigo, o Zócalo, passeei pelo parque, entrei em contato com a rotina dos mexicanos da capital. A situação social da maioria dos mexicanos contrastava com a dos cubanos, mas se assemelhava à dos brasileiros. Cenas ausentes em Cuba abundavam pela cidade do México. Menores de rua, pedintes, insegurança, miséria do povo, ao lado do luxo, riqueza e ostentação da minoria muito rica. Nem por isso os mexicanos perdiam a simpatia. Simpatia que logo crescia ao descobrirem que eu era brasileiro.
O destaque na cidade ficou por conta do estupendo Museu de Antropologia. Ao contrário da maioria dos do gênero pelo mundo afora, o museu mexicano conseguia a proeza de ensinar sem ser enfadonho. Percorri a imensa área, lentamente, aproveitando cada ponto. Constatei, mais uma vez, que é possível mostrar história de maneira profunda e empolgante.
E era hora de voltar ao Brasil.
Reencontrei no aeroporto com os judeus paulistas, aqueles que exigiram que a nora se convertesse ao judaísmo.
A escala do voo prevista em Lima não foi possível em razão das fortes chuvas na capital peruana. O avião pousou em Guayaquil, litoral sul do Equador. O comandante liberou o desembarque dos passageiros enquanto aguardava novas instruções. Desci e me dirigi ao café do pequeno aeroporto. Observei o mapa do Equador pendurado na parede. Era em alto relevo e logo me encantei. O pequeno país erguia-se do leste, a partir da floresta amazônica e do oeste, a partir do litoral, formando a cordilheira dos Andes, ao centro, como grande espigão, de norte a sul. Em minutos concluí que desejava explorar aquela obra de arte da geografia. Mas esse sonho teve que aguardar alguns anos.
Desembarquei em São Paulo em janeiro do ano seguinte, emocionado com o tanto que aprendera naquela viagem.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Cuba e México (parte 1/2)

Há muito me interessava em tomar contato com a experiência socialista de Cuba. O Brasil não possuía relações diplomáticas com a ilha, ainda sob os resquícios da ditadura civil/militar, submissa ao imperialismo estadunidense. Oficialmente, os brasileiros não teriam autorização de entrar legalmente em Cuba. Mas as agências de turismo contornavam a situação, inclusive na obtenção do visto de entrada. Comprei a passagem de ida e volta ao México, recebi um vale referente à passagem México/Havana/México, que seria trocado pela passagem aérea propriamente dita no aeroporto da cidade do México.
E assim em dezembro eu embarcava rumo ao México e Cuba.
Ainda não amanhecera quando o avião pousou na capital mexicana. Imediatamente me dirigi ao balcão da empresa aérea cubana. A troca do minúsculo papel, carimbado e rubricado em São Paulo, pelo bilhete de ida e volta a Havana, funcionou rápido e sem problemas. E novamente embarcava em avião, desta vez com destino à capital cubana.
A fiscalização da entrada em Havana, incluindo a verificação do visto e passaporte, foi rigorosa sem ser desrespeitosa.
O furgão local esperava outros brasileiros e eu na saída do aeroporto. Seguimos pelas avenidas de Havana, muitas delas com cartazes enaltecendo o país e o povo cubano. Fomos deixados no hotel, antigo reduto de luxo dos criminosos ricaços dos Estados Unidos, nos tempos anteriores à revolução, quando Cuba não passava de prostíbulo e quintal do regime estadunidense.
Visita com calma do centro da cidade, a Havana Velha, onde abundava a arquitetura barroca espanhola, com palácios, museus, fortes, jardins internos, monumentos históricos, becos. Segundo a guia cubana, simpática e comunicativa, 95% da cidade de Havana se ocupavam de favelas antes da revolução. As prioridades sociais do novo governo cubano resolveram muitos problemas crônicos. Mas a habitação em Cuba teria muito que melhorar, restando ainda muitas casas coletivas.

Onze brasileiros, a guia e o motorista do furgão compunham o grupo. Um simpático casal gaúcho, acompanhado dos dois filhos, transformou-se na melhor companhia. Completava o grupo um casal paulista idoso e ricaço, com os filhos adultos e as respectivas namoradas. Causou-me estranheza uma das namoradas se submeter à obrigação fundamentalista de se converter ao judaísmo da família do noivo. A outra namorada, mais consciente e boa companhia para conversas esclarecedoras, se recusara a tamanha humilhação, mantendo a integridade moral e a relação entre ambos.
As incursões ao interior de Cuba percorreram cidades como Cienfuegos, Santa Clara, Trinidad, Taina, Matanzas, Varadero, de onde fizemos incursões à ilha de Cayo Blanco e outras pequenas ilhotas.
Houve visitas a fazendas coletivas, bibliotecas rurais, cinemas ao ar livre, casas de agricultores, onde surgiram conversas livres com os membros da família. Não havia riqueza, nem tampouco pobreza, miséria, indigência. Eles possuíam o necessário para uma vida digna. Mas o que mais impressionava era a consciência política e social das conquistas da revolução. Ainda que apontassem defeitos e críticas, defendiam entusiasticamente o processo revolucionário, sentiam-se responsáveis e atuantes nos rumos a serem tomados. Exerciam plenamente a cidadania e se orgulhavam de viver em país soberano.
A educação e a saúde chamavam atenção pela qualidade, gratuidade e livre acesso a todos. Livrarias ofereciam publicações variadas a preços irrisórios. A música, a dança, alegria, bom humor, simpatia do povo, contagiavam. A língua espanhola facilitava a comunicação e não faltava boa vontade de eles responderem a quaisquer perguntas.
Pequena e aconchegante, a cidadezinha de Trinidad encantava pelo casario barroco, becos e ruas estreitas, história no ar, fazendo lembrar as cidades coloniais brasileiras. Em porta de escola local acompanhamos movimentação de estudantes infantis, uniformizados e prestes a entrar nas salas de aula. Experimentei a típica culinária local, baseada em arroz, feijão, frango ensopado, salada de alface, tomate e cebola. Bebemos suco de laranja e a sobremesa foi goiabada com queijo. Opção mais familiar seria impossível.
Nas imediações de Taina, réplica do que poderia ter sido uma antiga aldeia indígena, cuja população foi totalmente exterminada pelos invasores espanhóis. Ocas, roupas, objetos de caça simbolizavam o dia-a-dia das populações originais de Cuba, representados em figuras de barro em tamanho natural. Lagos de águas azuladas convidavam para banhos refrescantes ao redor, mas o inverno tropical cubano impedia de ir além da contemplação.
Hospedagem em hotel quase em frente à praia de Varadero. Logo na primeira noite, o filho mais velho do casal paulista, o mesmo casal que intimara a nora a se converter ao judaísmo, passou mal com dores insistentes na coluna. Foi atendido imediatamente pelos médicos do posto de saúde local. Sem qualquer despesa. E ainda trocaram o colchão da cama dele.

Aproveitei para perambular pelas areias brancas e finas da praia de Varadero, com o mar do caribe calmo e de águas transparentes, cujos tons das cores evoluíam de azulados a esverdeados. Tomei coquetéis de rum, evitei os turistas alienados, circulei pela vila, conversei bastante com a população local.
O barco partiu rumo às ilhas nas proximidades, com destaque para a de Cayo Blanco, onde desembarcamos e passamos boas horas naquele paraíso do caribe. Entrei varias vezes no mar tranquilo. Nadei e apreciei a natureza. Tentava desviar os olhos das turistas europeias sem a parte de cima do biquíni. Nenhuma se salvava. Rostos e corpos desconjuntados, desproporcionais, disformes, tortos. Ainda bem que as lagostas servidas, ricamente temperadas, me fizeram matar a fome e as boas conversas me fizeram esquecer aquilo.
Na volta a Havana, passagem pela cidade litorânea de Matanzas.
Completara uma semana de viagem pela ilha de Cuba e minha partida para o México estava marcada para a manhã seguinte. Mas me sentia insatisfeito e desejava permanecer mais dias no país. O que vi e aprendi naquela semana não era o bastante. Eu e a família gaúcha nos dirigimos à empresa aérea cubana, adiamos nossas passagens, reservamos mais dias no mesmo hotel e garantimos mais tempo naquele fascinante país. Com todo respeito ao povo mexicano, aquela era a vez de Cuba e dos cubanos.
Os ricaços paulistas se mandaram e levaram com eles o preconceito e o fundamentalismo. Fiquei livre para circular à minha maneira pela cidade de Havana. Eventualmente as explorações com a família gaúcha combinavam e passávamos momentos juntos.
Caminhei muito pelas ruas das partes velha e nova de Havana. Visitei parques e bairros distantes, tomei ônibus urbano, comi em restaurantes populares, parei e conversei com diversos tipos de pessoas. Sentava na murada na beira do mar, diante do malecon, ponto de encontro de todas as idades da capital cubana. Entrei em bares, ouvi a rica e contagiante música cubana. Debati a situação social cubana, brasileira e mundial com os politizados cubanos.
continua...

terça-feira, 10 de maio de 2011

da Bolívia ao Chile (parte 3/3)

...continuação
Do alto de rochedo no centro de Arica, cidade situada em região que já pertenceu à Bolívia, se tinha visão privilegiada das redondezas, do deserto, das praias. Encontramos praia razoável para relaxar e tomar banhos refrescantes nas águas do oceano Pacífico. E também para observar o comportamento dos chilenos na beira do mar. Aterrissavam bem vestidos. Os homens com calça e camisa social, com cinto e tudo, sapato e meias. As mulheres de vestidos de noite, maquiagem completa, cabelos impecáveis do cabeleireiro. Como os vestiários no estilo europeu só apareceriam nas praias das cidades mais ao sul do país, os banhistas tiravam aquela parafernália toda na própria areia. E, por fim, se transformavam em praieiros. Mas a operação completa era demorada e cuidadosa. E os chilenos vestiriam tudo aquilo novamente antes de retornarem para casa.
Fizemos amizade com alguns desses jovens, encontrando-os diversas vezes pela praia, em papos animados. Política ou temas afins eram expressamente proibidos. Quando eu tentava enveredar por aí, eles desconversavam de maneira bem ensaiada.
Boa comida em Arica, pratos baseados em frutos do mar, sucos de laranja e outros cítricos. As noites permaneciam desertas com os chilenos assustados nos interiores das casas. Após curtas voltas noturnas logo voltávamos ao hotel por pura falta do que fazer. Tudo fechava cedo. Apenas os militares armados de metralhadoras e o vento ocupavam os espaços que deviam ser públicos e animados naquela cidade quente na beira do mar.
De ônibus a Antofagasta pela rodovia pan-americana. Hospedagem em hotel improvisado em carrocerias de ônibus. As instalações deixavam a desejar, mas compensavam pela ousadia e criatividade, sem falar no ambiente mais descontraído que o dos hotéis convencionais.
Também na beira do mar, Antofagasta era porta de entrada para incursões mais profundas pelo deserto de Atacama. A cordilheira dos Andes avistava-se ao longe, formando imagem que lembrava cobertores de lã dobrados, pela textura e a coloração acastanhada. Areia e rochas compunham a paisagem. As luzes ao entardecer forneciam espetáculo raro naquela aridez.
O azul das águas do Pacífico encantava, porém as praias decepcionavam pelo excesso de intervenção humana. Os chilenos insistiam em urbanizar as praias com concreto, vestiários, rampas de acesso, áreas de lazer artificiais, ridículas quedas d’água, lanchonetes, pistas de dança e os insuportáveis alto-falantes voltados para a areia massacrando com o lixo estadunidense. Era praticamente impossível relaxar e aproveitar qualquer coisa naquelas excrescências de concreto.
O jeito foi fugir rumo à praia de La Portada, acessada por ônibus local. Praticamente deserta e intocada pelos temíveis arquitetos chilenos, a extensa área guardava pequenas baías, falésias, passagens estreitas pelos paredões rochosos, e o mar do pacífico. Nada se vendia por ali. Nem comida, nem água. Valia pela natureza bruta e mais envolvente.
Antofagasta agradava mais que Arica, o povo parecia mais acolhedor. Surgiram boas conversas. Sobre temas alienantes e fúteis, é verdade, mas houve contatos com os moradores. O toque de recolher da ditadura continuava a impedir a existência de qualquer vida noturna. Os assassinos do regime patrulhavam cada canto, com as onipresentes metralhadoras apontadas aos cidadãos, de dia e de noite.
Novo ônibus até Santiago e de lá mais um ao litoral, à cidade de Viña Del Mar. Na primeira etapa, mais longa e demorada, fui presenteado com assento sobre a escada da porta traseira. Não havia como descansar os pés e mantive as pernas penduradas durante todo o trajeto, sem paradas para descanso, lanches ou banheiro.
Em Viña Del Mar escolhemos pousada caseira, dirigida por senhora descendente de alemães. Quartos amplos e limpos, café da manhã saboroso, atendimento informal.

Destino de chilenos abonados, guardando casas e apartamentos de padrão médio ou superior, Viña Del Mar encontrava-se bem urbanizada, limpa, florida. Ali ficava a minoria que apoiava a carnificina contra o povo chileno. Comércio de luxo, redes de lojas estrangeiras, artigos importados, futilidades em geral abasteciam a elite dominante. 
As praias, como não poderiam deixar de ser no Chile, assustavam com as agressões urbanísticas. Talvez no passado distante tenha havido beleza por ali. O concreto, as lanchonetes, as danceterias ao som do lixo estadunidense, os alto-falantes acabaram com a natureza. Na praia de Reñaca edifícios tentavam acompanhar a inclinação das encostas, formando construções esdrúxulas com elevadores panorâmicos.
Chilenos e chilenas mantinham-se extremamente formais quando iam à praia. Roupas sociais, penteados, maquiagem de quem ia a cerimônias de casamento, compunham o estilo de todas as idades. As raras camisetas exibiam estampas de Ipanema, Copacabana, Cabo Frio. E se espantavam com o que vestíamos, roupas simples e básicas, roupas de ir à praia.
Ainda assim permanecíamos bastante tempo nas areias, tentando apreciar as nesgas do que restou da natureza, observando o comportamento formal dos frequentadores. Raramente entrávamos na água, sempre gelada e com forte correnteza. Reparávamos também nas corridas repentinas dos cães pelas areias. No Chile ocorriam diariamente milhares de tremores de terra, a maioria imperceptível ao ser humano, mas registrada pelos sismógrafos ou pelos cachorros, devido à faixa de frequência das ondas sísmicas, imperceptíveis ao ouvido humano.
Muito mais interessante que a chata Viña Del Mar era a cidade portuária de Valparaíso, perto dali. Antiga, cheia de ladeiras estreitas, depósitos de madeira, barcos de pesca, mercados, bares e restaurantes nem sempre convidativos, moradores típicos. Tudo se encontrava mal conservado e sujo, mas autenticamente portuário. Um Chile mais chileno e menos submetido a invasões de costumes estrangeiros. Os militares fardados e armados de metralhadoras, no entanto, circulavam por todos os lados. Terror sem retoques. 
Em Santiago a escolha foi em hotel nas imediações do palácio de La Moneda, sede do governo de Salvador Allende, legitimamente eleito pelo povo, mas assassinado pelo golpe militar de 11 de setembro de 1973, patrocinado e organizado pelo regime dos Estados Unidos. O prédio estava ocupado pelo ditador Augusto Pinochet, lacaio das transnacionais, assassino do povo chileno, conforme ordens recebidas da classe dominante chilena e dos capitalistas estadunidenses. Marcas de balas e bombas ainda apreciam nas paredes externas do palácio. Mas ninguém podia observar esses registros por muito tempo, muito menos fotografá-los. As duplas de militares armados de metralhadoras logo apareciam e apontavam os canos na cabeça dos curiosos.
Perguntei na portaria do hotel por lugares interessantes para aproveitar as noites da capital. O funcionário respondeu laconicamente que não havia vida noturna no Chile. Contestei com o fato amplamente conhecido de que os chilenos sempre adoraram cantar e dançar nas praças e parques. Impassível, ele soltou a pérola que os chilenos mudaram e não gostavam mais de se divertir nos espaços públicos. Nada havia na cidade após 21h. As ruas, avenidas e praças da capital chilena se esvaziavam. Apenas os assassinos do regime pró-estadunidense marchavam com expressões de cães ferozes.
Lembrei-me do excelente filme Desaparecido do diretor Costa Gavras quando cruzei a ponte sobre o rio Mapocho. Durante aqueles anos da ditadura, o povo se deparava com cadáveres boiando nas águas levadas pela correnteza. Os assassinos do regime nem sequer se preocupavam em enterrar ou esconder os corpos dos chilenos que resistiam à barbárie.
Antes do golpe militar que impôs a ditadura civil/militar em 1973, o Chile contava com apenas 2% de analfabetos, possuía alto padrão de vida para a maioria do povo e era praticamente autossuficiente em gêneros de primeira necessidade. Dez anos depois, o regime a serviço das transnacionais importava quase tudo o que os chilenos precisavam. Papel higiênico vinha do Brasil, manteiga da Irlanda, chá do Sri Lanka, e assim por diante. A limpeza e a paz dos cemitérios do centro e bairros próximos escondiam a miséria das periferias. Mais da metade da população chilena se amontoava em Santiago. O desemprego esbarrava os 50%. A repressão sangrenta calava as vozes e as mentes do povo. Jamais consegui dialogar com o povo chileno sobre assuntos que abordassem a situação do país ou das pessoas. Eles logo entravam em pânico e receavam ser assassinados pelos militares. Nem depois de longos e animados comentários sobre o craque Garrincha, falecido naqueles dias e com fotos estampadas nas primeiras páginas dos jornais, eles se descontraiam ou pelo menos insinuavam algo. Ninguém queria engrossar os números do genocídio do povo chileno.
Talvez tenha sido no Chile onde mais ocorreram problemas com a diferença das línguas portuguesa e espanhola. Eu os entendia quase perfeitamente. Raramente precisava pedir que repetissem as frases. O inverso era terrível. Os chilenos não entendiam, não se esforçavam para entender o português, ou mesmo as tentativas de algumas palavras minhas em espanhol. Bastava a pronúncia não ser exatamente a que costumavam ouvir para não compreenderem nada. O ápice se deu em bar do centro de Santiago, onde pedi água mineral. Ambas as palavras são inteiramente iguais nas línguas portuguesa e espanhola. As pronúncias variam, mas não passam de detalhes imperceptíveis para quem queira se comunicar. O balconista não compreendia, ou fingia não compreender. Repeti três vezes, abrindo bem a boca, e nada. Somente quando dei a enrolada na língua, a fim de imitar o sotaque espanhol, ele saltou da letargia e me trouxe a garrafa.       
Tínhamos o endereço de senhora estadunidense residente em Santiago que encontramos em Machu Pichu. Pegamos o metrô. Da janela do vagão eu tentava ver na escuridão dos túneis sinais de corpos jogados nos concretos das paredes durante a construção das linhas. Era praxe nas ditaduras sul-americanas, incluindo a do Brasil, lançarem os corpos dos assassinados sob as torturas em buracos a serem preenchidos de cimento. Com a palavra, as paredes e fundações da hidrelétrica de Itaipu! Chegamos ao bairro da classe dominante da capital. Mansões e mais mansões se distribuíam em ruas arborizadas e fortemente vigiadas pelos agentes do regime. Fiquei impressionado com o tamanho e opulência da propriedade da senhora estadunidense, justamente em país que sofria com a miséria. E me recusei a entrar. Dei meia volta e peguei o metrô para o centro da cidade.
O retorno para casa seria em ônibus direto de Santiago a São Paulo.
A exceção fascinante do longo trajeto ficou por conta do trecho entre Santiago e Mendoza. O ônibus escalou por entre curvas acentuadas a cordilheira dos Andes até quase os 5 mil metros de altitude, cruzou terrenos rochosos, abismos, escarpas, picos nevados. As cores intensas se restringiam ao preto das rochas, ao branco da neve, ao azul do céu. Perto se erguia o Aconcágua, com cerca de 7 mil metros de altitude, a montanha mais alta da América.
A fronteira entre o Chile e a Argentina se deu no ponto mais alto da rodovia. Um túnel separava os dois postos de fiscalização. Ao desembarcar, o frio do verão dos Andes castigava. A beleza daquele cenário, no entanto, compensava qualquer desconforto climático. A descida pelo lado argentino não foi menos impressionante. Não cansava de me revirar no assento do ônibus para aproveitar cada ângulo da cordilheira.
Entre a cidade vinícola de Mendoza e Porto Alegre a monotonia reinou absoluta na paisagem. Os pampas de terras escuras eram um tédio só. Paradas tristes serviam para abastecer o estômago em restaurantes decadentes. A Argentina vivia momentos de hiperinflação e não faltavam notas de valor exageradamente alto. Até peguei nas mãos uma nota de 1.000.000, um milhão de pesos. Pena que a passei em frente logo em seguida. Perdi a oportunidade de guardar aquela raridade.
A chegada a São Paulo se deu de forma catastrófica. Enchentes de verão inundavam as ruas da cidade. O motorista do ônibus fez malabarismos para tentar atingir o terminal rodoviário do Tietê. Circulou por ruas estreitas e altas dos bairros de Freguesia do Ó, Casa Verde, Santana. Mesmo assim não conseguiu. O rio Tietê transbordara e cobrira as marginais. Mais peripécias, desta vez para chegar ao antigo terminal rodoviário da praça Júlio Prestes. Os passageiros chilenos comentavam entre si que não havia terremotos no Brasil, mas muita água.
Passavam das 2h da madrugada ao desembarcar em transversal da avenida Rio Branco, no começo de fevereiro, setenta e duas horas depois de sair de Santiago. Lembranças da viagem, intensas, belas e fascinantes, tenebrosas e apavorantes, vistas e sentidas nos olhos, peles, mentes, corações.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

da Bolívia ao Chile (parte 2/3)

...continuação
A linha de trem para visitar a cidade Inca de Machu Pichu se encerrava em Águas Callientes, de onde subiam ônibus à entrada da cidade. Machu Pichu mais parecia um planeta, tal a infinidade de construções de diversos formatos e tamanhos, erguidas em níveis diferentes. Tempo de sobra para subir, descer, cruzar portas e passagens, sentar, olhar, ouvir, investigar, absorver, apreciar, contemplar, refletir. A localização privilegiada e protegida impediu a intromissão de invasores por séculos. Os turistas se maravilhavam com tamanha herança de força e sabedoria. Do alto, vista panorâmica e estratégica da região ao redor. Montanhas esverdeadas, escarpas abruptas, abismos, vales profundos, rios de forte correnteza que quilômetros adiante, junto a outros cursos d’água, formariam o rio Amazonas. As nuvens jamais abandonavam os céus, característica típica dos meses de verão.
Mais dias na imponente e instigante cidade de Cuzco. Depois, trem com destino a Arequipa, localizada nas encostas ocidentais da cordilheira dos Andes. O outro casal ficara para trás e o rumo que tomaram a partir dali somente ao voltar para o Brasil.
O trem noturno contava com as mesmas características dos demais, compartilhando bancos com famílias peruanas. Não faltaram boas e esclarecedoras conversas. O frango com batatas, o pollo con papas fritas, opção monótona, mas segura em termos sanitários, abastecia a fome e garantia chegada saudável aos destinos.
Amanheceu durante a descida da cordilheira e o visual das encostas cobria-se de branco. Num primeiro momento pensei que estivessem cobertas de neve. À medida que o sol clareava e a paisagem tornava-se mais nítida, pude notar que não era neve, e sim areia. Muita areia. A ferrovia cruzava o trecho peruano do deserto do Atacama. Nada de vegetação. Apenas areia e rochas de coloração acinzentada. Raríssimos casebres perdidos no meio do deserto desafiavam a aridez.

Arequipa localizava-se aos pés do cone do vulcão ativo El Misti, imponência de 5.800 metros de altitude, cujo cume nevado invariavelmente cobria-se de densa névoa. A cidade pertencia à faixa sujeita a tremores de terra, além de possíveis erupções vulcânicas. Construções, sempre de um ou no máximo dois pavimentos, parcialmente destruídas ou inacabadas, surgiam em ruas e becos. Muitas delas utilizavam material vulcânico como matéria prima, fornecendo-lhes coloração acinzentada e vistosa.
O centro antigo de Arequipa guardava arquitetura barroca, sobretudo ao redor da praça das Armas, onde palácios com sacadas sobre as calçadas, colunas trabalhadas, torres da catedral, formavam harmonia exuberante com o verde pálido das árvores do miolo da praça e a cordilheira desértica ao fundo. Aquele imponente conjunto arquitetônico revelava a opulência do passado da região, mas somente para a minoria de grandes latifundiários, associada à miséria da maioria da população.
Caminhamos pelas ruas que davam acesso às encostas do vulcão Misti, as quais viravam becos, caminhos de terra e finalmente trilhas. A simples visão daquele enorme cone impunha respeito.
Arequipa estendia-se ao lado da rodovia pan-americana que seguia ao sul, ao Chile, o próximo destino. O plano consistia de ônibus até a última cidade do sul do Peru e táxi ou outro transporte local rumo a Arica, a primeira cidade do norte do Chile. Transporte direto de Arequipa a Arica sairia muito mais caro devido às tarifas internacionais.
O ônibus peruano percorreu a sinuosa rodovia pan-americana, cujas pistas estreitas atravessavam o deserto do Atacama, através de paisagem montanhosa de areia e rochas. As encostas ocidentais dos Andes, inteiramente áridas, encantavam pela completa desolação e pela variação das cores de acordo com a inclinação da luz do sol.
A rodovia cruzou a cidade de Tacna antes do desembarque na fronteira peruana em Concórdia. Então o táxi que levaria a Arica, já em território chileno.
 
A saída do Peru não trouxe novidades além das formalidades aduaneiras. A entrada no Chile, ao contrário, mostrou aperitivos do que seria enfrentar a ditadura civil/militar chilena, organizada, apoiada e financiada pela burguesia local e principalmente pelo regime dos Estados Unidos.
Nos primeiros metros em território chileno o veículo foi barrado. Todos eram obrigados a desembarcar. Militares fortemente armados com as metralhadoras apontadas em nossa direção nos arrancaram do táxi, exigiram a abertura do porta-malas, revistaram os interiores do veículo. Jogaram as bagagens no chão empoeirado e nos forçaram a abri-las, enquanto as metralhadoras continuavam a mirar nossas cabeças.
Minha aparência não era das melhores, tampouco minhas roupas. O preconceito incutido nos militares chilenos, duramente treinados nas escolas de tortura dos Estados Unidos e assessorados pelos agentes da ditadura do Brasil, só fez aumentar as desconfianças. Mas a vistoria nas bagagens não demorou tanto assim. Cutucaram mais as peças de cima e enfiaram os canos das armas mais abaixo. Mantendo as expressões e comportamento de assassinos, os animais amestrados mandaram fechar as bagagens, entrar no táxi e seguir adiante. Logo eu lembraria que guardava por mera curiosidade no fundo da mochila farto material sobre o grupo guerrilheiro peruano Sendero Luminoso, entre periódicos, panfletos, programa, lista de reivindicações.
O taxista parou em frente ao escritório de informações turísticas de Arica. Eu viajava sem qualquer guia ou coisa parecida, precisando me informar em cada parada sobre hospedagens e pontos de interesse.
Uma morena trintona, tremendamente simpática e sensual, veio atender. Entre sorrisos discretos e olhares dissimulados indicou hotel de luxo, com piscinas, quadras de esportes, instalações de muitas estrelas, mais outras opulências. Imediatamente argumentei que o orçamento era curto e que pretendia hospedagem mais simples e mais barata. Porém, para a surpresa geral, após os preços de tabela do hotel de luxo, ela mostrou os preços com descontos. Os valores após os descontos equivaliam a menos de um sexto dos preços oficiais. Era difícil de acreditar que um hotel daquela categoria pudesse oferecer descontos de mais de 80%, em cidade na beira no mar, com praias no oceano pacífico, em pleno mês de janeiro, alta temporada, verão, principal mês das maiores férias do hemisfério sul. Alegou que o Chile andava vazio de turistas em virtude dos preços altos. Era a versão oficial que a ditadura a obrigava decorar, omitindo que os turistas evitavam o país com medo de serem perseguidos, presos, torturados, mortos, pelo terror de Pinochet.
Aproveitei as deixas para pedir-lhe o endereço a fim de passar lá mais tarde. Ela sorriu e escreveu tudo num papel com certo prazer e expectativa.

O hotel era realmente demais. A enorme e bem aproveitada área verde escondia os apartamentos térreos com sacada, tudo amplo, confortável, de bom gosto. O atendimento exageradamente formal tornava-se ainda mais incômodo naquela imensidão quase sem hóspedes. Os preços de tabela apareciam afixados na parede da recepção, mas não passavam de ficção em tempos de ditadura.
No início da noite caminhei pelas ruas escuras e vazias de Arica na busca da casa da funcionária de turismo. Com o mapa da cidade fornecido por ela nas mãos, não foi difícil encontrar o endereço. A mãe atendeu desconfiada. Olhando para os lados, falando baixo, afirmou que a filha saíra e não tinha horas para voltar. Insisti sobre o combinado naquele horário e naquele local. Com expressão que não fora com minha cara e muito menos com minhas insistências, a mãe me pediu que fosse embora. Agradeci a atenção, me despedi e voltei às ruas. Algo me dizia que a funcionária de turismo, que tanto se animara com o encontro, se encontrava próxima à porta semiaberta pela mãe. Eu estava em cidade do interior de outro país, diante de outra cultura e de pessoas apavoradas com a situação política vivida pelo país.
Retornei pelas ruas desertas daquela noite de Arica. O horário do toque de recolher imposto pela ditadura se aproximava. Ninguém ousava desafiar o instinto assassino do regime e se trancafiava em casa. Tanto na ida como na volta da casa dela, senti estar sendo seguido por um homem à paisana. Ele mantinha distância de segurança sem jamais me perder de vista. Fingi não perceber. Também fingi normalidade diante das constantes e móveis duplas de militares uniformizados e armados com metralhadoras apontadas aos pedestres.
continua...

quarta-feira, 4 de maio de 2011

da Bolívia ao Chile (parte 1/3)

Eu tinha retornado a São Paulo vindo de projeto de prospecção mineral de quase um ano em Rondônia. E, junto a novos colegas, surgiu ideia da viagem. Não nos esquecemos do visto de entrada na Bolívia, ainda necessário na época.
Desembarcamos no início de janeiro no aeroporto de El Alto, a 4 mil metros de altitude e quatrocentos metros acima do centro de La Paz. Ainda que coberta parcialmente por nuvens, avistamos os picos nevados de parte da cordilheira dos Andes, ali a cordilheira Real, muito próxima da capital.
Era minha primeira viagem internacional, e não conseguia disfarçar o nervosismo assim que pisei em solo boliviano. Logo nas esteiras, enquanto esperávamos as bagagens, fomos abordados pelos cambistas, funcionários e afins do próprio aeroporto, com a intenção de trocar pesos bolivianos. Obtivemos apenas o indispensável até chegar ao centro da cidade, onde escolheríamos melhores taxas e condições.
A escolha caiu em hotel simples e barato instalado em sobrado no centro antigo de La Paz antes de partir para explorar as ruas da cidade.
Militares entupiam as esquinas e praças. A Bolívia vivia anos de turbulência política. Golpes militares se sucediam com rapidez impressionante. Generais entravam e saíam da fama de uma hora para outra, invariavelmente ligados ao narcotráfico e submetidos às ordens do regime dos Estados Unidos. A mobilizada população boliviana não conseguia oferecer alternativas aos desgovernos capitalistas e sofria as conseqüências da exploração econômica e opressão política.

A tensão e o terror flutuavam no ar com tanta intensidade que nem sequer percebíamos os efeitos da altitude. Cansava durante as caminhadas pelas intermináveis ladeiras da capital, mas nada de mal estar ou dores de cabeça. O centro antigo fascinava pelas construções antigas, ruas e ruelas, ladeiras, calçamento de pedra, praças arborizadas, as montanhas nevadas sempre visíveis.
A maioria dos bolivianos exibia fortes traços indígenas, Aymara ou Quéchua. Nas raras tentativas de fotografar as bolivianas, chamativas com compridas saias coloridas, chapéus coco, adereços, aprendemos que não aprovavam a atitude. Ameaçavam atirar pedras ou simplesmente se viravam escondendo o rosto. Afinal não se tratavam de objetos exóticos a serem fotografados por turistas deslumbrados. Contentei-me em registrá-las visualmente.
Ainda inexperientes em descobrir pontos mais saborosos, enjoávamos de tanto comer pollo con papas fritas.
Circulamos rapidamente pela parte nova de La Paz. Avenidas novas, prédios novos, mansões novas, lojas novas, lanchonetes novas de redes estrangeiras. Chatice bem familiar. Muita segurança e proteção para a elite de sempre.
Visitamos o Vale da Lua, nos subúrbios da cidade. Paisagens inóspitas e fascinantes, áridas, íngremes, vales profundos e escarpas, vegetação rala e espinhosa, areia cinza clara, desabitada, intrigante.
Percorremos a zona rural boliviana rumo às ruínas e aos vestígios da antiga civilização em Tiwanaku. Exploramos sem pressa o sitio arqueológico com a cordilheira Real sempre a perfilar no horizonte. O ambiente não lotava e permitiu captar a atmosfera do local.
Compramos passagens conjugadas de barco e ônibus à cidade peruana de Puno. Senti um frio insuportável na travessia de barco pelo lago Titicaca. A blusa de lã que eu vestia estava longe de me proteger do vento e das baixas temperaturas andinas. Paramos na ilha de Copacabana, a cerca de 3.850 metros de altitude, onde pudemos circular pelas redondezas, escadarias, pequenas ruínas, templos.
Já em solo peruano, ônibus com destino a Puno, ainda na beira do lago Titicaca. A rodovia se afastou levemente da margem do lago e pudemos apreciar a paisagem rural, as pequenas comunidades, plantações, índios, mestiços.
Puno mais parecia uma periferia de cidade grande tal a feiúra e sujeira generalizada. Telhados de zinco se refletiam sob a fraca luz do entardecer. Lama e lixo se espalhavam nas ruas devido às chuvas de verão. As margens do lago Titicaca assustavam pelos detritos e mau cheiro. Mas era por uma noite apenas.

Após acertar hospedagem em hotel precário, providenciamos na estação ferroviária, para o dia seguinte, as passagens de trem com destino a Cuzco. Circulamos sem grandes pretensões pela cidade, comemos o trivial e retornamos ao hotel. O tempo nublado tornava tudo sem graça ao redor e nada realçava na paisagem. O vento gelado da cordilheira e do lago açoitava tudo e todos.
Embarcamos pela manhã no trem em classe que, se não era a primeira, também não era a última. Bancos acolchoados para duas pessoas, um de frente para outro, com mesa no meio, nos deixaram, os quatro, formando um grupo. As bagagens seguiam acima de nossas cabeças, amarradas aos ferros a fim de prevenir eventuais furtos. 
Conversamos bastante. Tentamos cochilar sobre a mesa ou na vã tentativa de nos acomodarmos nos encostos verticais e fixos. Comemos frango com batatas, cobrados à parte da passagem, pollo com papas fritas. Em paradas mais demoradas, era possível desembarcar e arriscar comprar algo que nos enganasse o estômago. O frio e o vento vinham das montanhas. Em dada estação nevava tão fortemente que nem deu para colocar a cara fora do vagão.
A paisagem externa chamava a atenção. Montanhas nevadas, picos agudos, planícies esverdeadas, vegetação abundante nos fundos dos vales, abismos, escarpas rochosas, rios encachoeirados, pequenas cascatas, vilarejos, lhamas, alpacas, comunidades indígenas.
A frequência no vagão compunha-se majoritariamente de turistas independentes em meio a peruanos de classe média. Sempre que surgiram oportunidades trocávamos ideias com os passageiros próximos. Circulamos pelos vagões de passagens mais baratas. Os peruanos pobres eram transportados como gado, amontoados, esmagados em vagões apertados, sujos, mal conservados, insuportavelmente lotados.

As primeiras divergências dentro do grupo não tardaram a aparecer. Diferentes pontos de vista sobre os lugares visitados, sobre modos de vida, sobre o ritmo da viagem, sobre o roteiro para os dias futuros.
Cuzco surgiu no dia seguinte depois de trajeto extremamente exuberante e variado, exibindo facetas distintas do altiplano peruano. Em hotel simples no centro da cidade, logo no banho houve problemas com a água quente, prometida enfaticamente pelos agentes que nos levaram da estação ferroviária. Sem soluções à vista, saímos à rua e nos hospedamos em outro local, também simples e barato, mas com água quente e conforto compatível com o oferecido.
Jantamos todos juntos naquela primeira noite. A unidade do grupo, no entanto, estava comprometida. Eu e minha irmã marcharíamos à parte nas atividades seguintes. Antes mesmo da metade da viagem não havia mais as convergências de intenções surgidas originalmente entre os quatro.

Exploramos a pé a fascinante Cuzco, cidade erguida sobre os alicerces dos escombros de antiga cidade Inca, destruída impiedosamente pelos invasores europeus. Cuzco era um museu ao ar livre, tal a infinidade de ruas e becos estreitos, arquitetura barroca, praças aconchegantes, igrejas pesadas, balcões e colunas sobre as calçadas. Ruínas Incas nos arredores da cidade comprovavam a avançada tecnologia em construções adquiridas pelos antigos habitantes da região. Caminhadas sem pressa pelas ruas do centro e bairros, entre conversas com os moradores. Paradas em pontos altos a fim de contemplar o visual urbano e das montanhas próximas.
Turistas e mais turistas se distribuíam em hotéis, bares e restaurantes de Cuzco. A vida noturna fervia entre apresentações musicais e comidas típicas regadas a pisco. As cores vivas das malhas e gorros de lã alegravam os ambientes.
continua...