Eu tinha retornado a São Paulo vindo de projeto de
prospecção mineral de quase um ano em Rondônia. E, junto a novos colegas, surgiu
ideia da viagem. Não nos esquecemos do visto de entrada na Bolívia, ainda
necessário na época.
Desembarcamos no início de janeiro no aeroporto de El
Alto, a 4 mil metros de altitude e quatrocentos metros acima do centro de La
Paz. Ainda que coberta parcialmente por nuvens, avistamos os picos nevados de
parte da cordilheira dos Andes, ali a cordilheira Real, muito próxima da capital.
Era minha primeira viagem internacional, e não conseguia
disfarçar o nervosismo assim que pisei em solo boliviano. Logo nas esteiras,
enquanto esperávamos as bagagens, fomos abordados pelos cambistas, funcionários
e afins do próprio aeroporto, com a intenção de trocar pesos bolivianos. Obtivemos
apenas o indispensável até chegar ao centro da cidade, onde escolheríamos
melhores taxas e condições.
A escolha caiu em hotel simples e barato instalado em
sobrado no centro antigo de La Paz antes de partir para explorar as ruas da
cidade.
Militares entupiam as esquinas e praças. A Bolívia vivia
anos de turbulência política. Golpes militares se sucediam com rapidez
impressionante. Generais entravam e saíam da fama de uma hora para outra,
invariavelmente ligados ao narcotráfico e submetidos às ordens do regime dos
Estados Unidos. A mobilizada população boliviana não conseguia oferecer
alternativas aos desgovernos capitalistas e sofria as conseqüências da
exploração econômica e opressão política.
A tensão e o terror flutuavam no ar com tanta intensidade
que nem sequer percebíamos os efeitos da altitude. Cansava durante as
caminhadas pelas intermináveis ladeiras da capital, mas nada de mal estar ou
dores de cabeça. O centro antigo fascinava pelas construções antigas, ruas e
ruelas, ladeiras, calçamento de pedra, praças arborizadas, as montanhas nevadas
sempre visíveis.
A maioria dos bolivianos exibia fortes traços indígenas,
Aymara ou Quéchua. Nas raras tentativas de fotografar as bolivianas, chamativas
com compridas saias coloridas, chapéus coco, adereços, aprendemos que não
aprovavam a atitude. Ameaçavam atirar pedras ou simplesmente se viravam escondendo
o rosto. Afinal não se tratavam de objetos exóticos a serem fotografados por
turistas deslumbrados. Contentei-me em registrá-las visualmente.
Ainda inexperientes em descobrir pontos mais saborosos,
enjoávamos de tanto comer pollo con papas
fritas.
Circulamos rapidamente pela parte nova de La Paz. Avenidas
novas, prédios novos, mansões novas, lojas novas, lanchonetes novas de redes
estrangeiras. Chatice bem familiar. Muita segurança e proteção para a elite de
sempre.
Visitamos o Vale da Lua, nos subúrbios da cidade.
Paisagens inóspitas e fascinantes, áridas, íngremes, vales profundos e
escarpas, vegetação rala e espinhosa, areia cinza clara, desabitada,
intrigante.
Percorremos a zona rural boliviana rumo às ruínas e aos vestígios
da antiga civilização em Tiwanaku. Exploramos sem pressa o sitio arqueológico
com a cordilheira Real sempre a perfilar no horizonte. O ambiente não lotava e
permitiu captar a atmosfera do local.
Compramos passagens conjugadas de barco e ônibus à cidade
peruana de Puno. Senti um frio insuportável na travessia de barco pelo lago
Titicaca. A blusa de lã que eu vestia estava longe de me proteger do vento e
das baixas temperaturas andinas. Paramos na ilha de Copacabana, a cerca de
3.850 metros de altitude, onde pudemos circular pelas redondezas, escadarias,
pequenas ruínas, templos.
Já em solo peruano, ônibus com destino a Puno, ainda na
beira do lago Titicaca. A rodovia se afastou levemente da margem do lago e
pudemos apreciar a paisagem rural, as pequenas comunidades, plantações, índios,
mestiços.
Puno mais parecia uma periferia de cidade grande tal a
feiúra e sujeira generalizada. Telhados de zinco se refletiam sob a fraca luz
do entardecer. Lama e lixo se espalhavam nas ruas devido às chuvas de verão. As
margens do lago Titicaca assustavam pelos detritos e mau cheiro. Mas era por
uma noite apenas.
Após acertar hospedagem em hotel precário, providenciamos
na estação ferroviária, para o dia seguinte, as passagens de trem com destino a
Cuzco. Circulamos sem grandes pretensões pela cidade, comemos o trivial e
retornamos ao hotel. O tempo nublado tornava tudo sem graça ao redor e nada
realçava na paisagem. O vento gelado da cordilheira e do lago açoitava tudo e
todos.
Embarcamos pela manhã no trem em classe que, se não era a
primeira, também não era a última. Bancos acolchoados para duas pessoas, um de
frente para outro, com mesa no meio, nos deixaram, os quatro, formando um
grupo. As bagagens seguiam acima de nossas cabeças, amarradas aos ferros a fim
de prevenir eventuais furtos.
Conversamos bastante. Tentamos cochilar sobre a mesa ou na
vã tentativa de nos acomodarmos nos encostos verticais e fixos. Comemos frango
com batatas, cobrados à parte da passagem, pollo
com papas fritas. Em paradas mais demoradas, era possível desembarcar e
arriscar comprar algo que nos enganasse o estômago. O frio e o vento vinham das
montanhas. Em dada estação nevava tão fortemente que nem deu para colocar a
cara fora do vagão.
A paisagem externa chamava a atenção. Montanhas nevadas,
picos agudos, planícies esverdeadas, vegetação abundante nos fundos dos vales,
abismos, escarpas rochosas, rios encachoeirados, pequenas cascatas, vilarejos,
lhamas, alpacas, comunidades indígenas.
A frequência no vagão compunha-se majoritariamente de
turistas independentes em meio a peruanos de classe média. Sempre que surgiram
oportunidades trocávamos ideias com os passageiros próximos. Circulamos pelos
vagões de passagens mais baratas. Os peruanos pobres eram transportados como
gado, amontoados, esmagados em vagões apertados, sujos, mal conservados,
insuportavelmente lotados.
As primeiras divergências dentro do grupo não tardaram a
aparecer. Diferentes pontos de vista sobre os lugares visitados, sobre modos de
vida, sobre o ritmo da viagem, sobre o roteiro para os dias futuros.
Cuzco surgiu no dia seguinte depois de trajeto
extremamente exuberante e variado, exibindo facetas distintas do altiplano peruano.
Em hotel simples no centro da cidade, logo no banho houve problemas com a água
quente, prometida enfaticamente pelos agentes que nos levaram da estação
ferroviária. Sem soluções à vista, saímos à rua e nos hospedamos em outro
local, também simples e barato, mas com água quente e conforto compatível com o
oferecido.
Jantamos todos juntos naquela primeira noite. A unidade do
grupo, no entanto, estava comprometida. Eu e minha irmã marcharíamos à parte
nas atividades seguintes. Antes mesmo da metade da viagem não havia mais as
convergências de intenções surgidas originalmente entre os quatro.
Exploramos a pé a fascinante Cuzco, cidade erguida sobre
os alicerces dos escombros de antiga cidade Inca, destruída impiedosamente
pelos invasores europeus. Cuzco era um museu ao ar livre, tal a infinidade de
ruas e becos estreitos, arquitetura barroca, praças aconchegantes, igrejas
pesadas, balcões e colunas sobre as calçadas. Ruínas Incas nos arredores da
cidade comprovavam a avançada tecnologia em construções adquiridas pelos
antigos habitantes da região. Caminhadas sem pressa pelas ruas do centro e
bairros, entre conversas com os moradores. Paradas em pontos altos a fim de
contemplar o visual urbano e das montanhas próximas.
Turistas e mais turistas se distribuíam em hotéis,
bares e restaurantes de Cuzco. A vida noturna fervia entre apresentações
musicais e comidas típicas regadas a pisco. As cores vivas das malhas e gorros
de lã alegravam os ambientes.
continua...
Que bela reportagem... lindas fotos e incrível sua percepção...Parabéns!! abraço....sucesso!!
ResponderExcluirÉ incrível sua capacidade de percepção visual mesmo com as atribulações locais.
ResponderExcluirGostei do relato, e olha que não estou sendo gentil nheim!
Bjus!
Estive no Peru e Bolívia há 2 anos. Percorri a "Rodovia do Pacífico",recentemente inaugurada, do Acre até Cuzco. Parece-me que na época em que você esteve em Assis Brasil, a travessia ainda não se fazia pela ponte, certo?
ResponderExcluirAgora, em pouquissimos minutos já estamos do outro lado, Iñapari, onde o setor de imigração continua precário. Poucos brasileiros vão até Cusco por ali, ainda.
Com relação à rodovia: surpreendeu-me o encontro da engenhosidade humana com a grandeza da natureza. Apesar das consequencias que poderão surgir, prefiro acreditar que venha melhorar as condições de vida daquele povo sofrido que vive nos diversos lugarejos por onde ela corta.
A ponte estava em contrução quando estive em Assis Brasil em 2005. Cruzei o rio Acre de canoa, conforme os relatos "do Acre à Bahia".
ResponderExcluirEstes relatos acima, porém, são do início dos anos de 1980.
Retornei ao Chile em 2001 e à Bolívia e ao Peru em 2003, em viagens cujos relatos já publiquei aqui.
Já pensei em entrar no Brasil vindo do Peru, seja pelo Acre via rodovias, seja pelo rio Amazonas/Solimões via fluvial. Quem sabe um dia...
A paisagem externa chamava a atenção. Montanhas nevadas, picos agudos, planícies esverdeadas, vegetação abundante nos fundo dos vales, abismos, escarpas rochosas, rios encachoeirados, pequenas cascatas, vilarejos, lhamas, alpacas, comunidades indígenas, simplesmente fantástica a descrição. Como não viajar na leitura? Obrigada...sigo adiante.
ResponderExcluirTaí outro lugar que preciso voltar. Estive na Bolívia novamente em 2003, mas rapidamente, de passagem.
ResponderExcluirO país, a cultura, o momento político promissor, merecem uma visita sem pressa, detalhada, exploratória, em contato com os bolivianos.
Mais um destino na listinha que sempre vira um listão!
Abraços!
Um dia eu chego lá...
ResponderExcluirOi Rita!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Vc vai chegar lá, sim!
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Amo a América Latina. Pena que usada e destruída com apoio dos Estados Unidos.
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Além das três partes dos relatos dessa viagem aos três países vizinhos da América, publiquei as impressões de mais cinco viagens pela América, também subdivididas em partes. Leia e se encantará, com os belos e os feios do nosso continente ainda muito espoliado. Vamos virar essa página de catástrofes,?
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