quarta-feira, 27 de abril de 2011

Gerais de Minas e Bahia (parte 4/4)

...continuação
Ao lado do vilarejo, peguei trilha ascendente entre blocos de calcário e vegetação rala, atingindo a entrada da gruta da Lapa dos Anjos. Passei pela entrada baixa, estreita, quase horizontal, o que me obrigou a deitar e girar o corpo para dentro da escuridão. Avancei pouco mais de um metro e já não enxergava nada. Comecei a ouvir vozes vindas do breu. Feixes de luz surgiram daquela direção. Eram três rapazes que voltavam da exploração aos interiores, portando lanternas e capacetes com carbureteiras. Ao demonstrar minha curiosidade em explorar a caverna, resolveram refazer o caminho até o fundo, me emprestando a lanterna de mão. Deslumbrante. Estalactites, estalagmites e cortinas, de diversos formatos e tamanhos, compunham amplo cenário, riquíssimo em beleza e detalhes. Sobes e desces, em meio a incríveis e variados espeleotemas, salões pequenos e grandes, baixos e altos, brilhavam com as luzes das lanternas. Bem adiante, nos deparamos com formação no piso, onde uma santa parecia carregar um bebê no colo.   
Voltamos ao Brejo do Amparo. Visitamos engenho de cana onde o herdeiro da família nos mostrou a linha de produção, limpa e organizada, da qual saíam toneladas de rapadura e inúmeras garrafas de cachaça. Pequenas e vendidas principalmente para merenda escolar, de tão saborosas, mesmo com sede, comi várias rapaduras.
Retornamos a Januária e nos instalamos em mesas na calçada do boteco. Surgiram mais colegas que dividiram os comes e bebes. Fiquei nas pingas puras, brancas, não envelhecidas, obviamente. Mesmo com o calor forte e abafado, entornei quatro doses generosas.

Um deles contou histórias sobre explorações nas cavernas das imediações de Montalvânia. Numa delas, descreveu a impossibilidade de descer de corda um abismo interno. A equipe tentou várias vezes. Sabia a profundidade, possuía cordas de comprimento mais que suficiente. Mas quando executava a descida algo ameaçador acontecia. Ou surgia neblina espessa impedindo a visão, ou desmoronavam pedras do teto principal da caverna ameaçando a segurança de todos. Ou isso, ou aquilo. Nem sequer conseguiam fotografar as etapas, cujas imagens saíam borradas. O guardião das cavernas, um senhor de idade, já lhes alertara da impossibilidade de penetrar onde não era permitido.
O centro antigo de Januária guardava casario do início do século XX, bem conservado, em ruas estreitas e silenciosas, com discreta arquitetura, abrigando as senhoras e os senhores sentados em cadeiras dispostas nas calçadas. Decepcionante era a igreja Matriz da cidade, moderna, horrorosa, sem personalidade, cinzenta, com cara de nada. Lembrava os templos das indústrias do fundamentalismo evangélico.
Reencontrei os colegas espeleólogos em botequim, tomando umas e outras. O local lembrava vendas antigas, com balcão pesado de madeira e prateleiras altas, em ambiente para lá de charmoso. Roda de samba e choro improvisada pelos fregueses contagiava aos sábados à tarde. O repertório de antigos sambas cariocas de morro acompanhava boas cachaças, linguiça, papos descontraídos. Vida simples e bem vivida.
Passei a noite pelos bares e restaurantes da orla fluvial. Gente, muita gente, circulava por ali. Espaço público, livre, alegre, democrático, sem o consumismo doentio das grandes cidades.
De volta ao povoado de Brejo do Amparo, botei o pé nas estradinhas de terra. Pequenos pastos, canaviais, lavouras simples, muitas mangueiras e goiabeiras desenhavam a paisagem rural. Pergunta daqui, confirma dali, e cheguei à antiga igreja Rosário dos Pretos, no povoado de Bairro Alto. Datada do século XVII, se encontrava desativada, sem qualquer utilidade para os moradores dos arredores. As pesadas portas estavam fechadas. A construção exibia apenas uma torre do lado esquerdo, sem sino. Desgastada e suja pelo tempo, a imagem em alto relevo de nossa senhora do Rosário dos Pretos aparecia acima da frente. Chupei três mangas das árvores espalhadas pelo adro. Da rosa ou da espada, sempre suculentas, as frutas possuíam sabor marcante e compensador para caminhadas sob o sol quente.
Depois dei grande volta, cruzei canaviais, roças, galinhas, gado, mais mangueiras e goiabeiras, mais gente sorridente e curiosa. No povoado me sentei sob a sombra e contemplei a manhã preguiçosa dos moradores. Um colega de bebes do bar da outra tarde passou de bicicleta e fomos até a casa dele. Bastante viajado e vivido pelas quebradas dos interiores do Brasil, já aprontara de tudo um pouco. As fotos que me mostrou, tiradas em diferentes fases da vida dele, confirmavam as aventuras. Aparentemente se aquietara e se estabilizara com a nova mulher.

Mais à noite em Januária troquei figurinhas com os demais hóspedes, vendedores, representantes técnicos, prestadores de serviços, gente de passagem. Já me habituara com essa frequência nas centenas de hotéis pelos quais passei nos quatro cantos do Brasil. Milhões de vezes mais agradáveis que os turistas, eles rendiam boas e divertidas conversas sobre tudo e todos. Valia a pena escutar as peripécias, pouco importando a veracidade, mas sim a maneira detalhada e engaçada como eram contadas.
Também na margem esquerda do São Francisco, as águas da cidade de Itacarambi causavam maior impacto, correndo mais próximas à cidade pelo vale estreito e profundo, dando-lhe aspecto mais fluvial e pitoresco. Barcos pequenos trocavam de margens transportando areia e passageiros. A cidade guardava urbanismo mais caprichado, cujas praças pequenas ofereciam painéis com pinturas descrevendo cenas rurais da época colonial.
Jantei em restaurante na orla fluvial de Januária, vazia naquela noite. Ouvia-se apenas o barulho do vento nas folhas das árvores, as rodas das raras bicicletas, o atrito dos chinelos no paralelepípedo.
Visitei novamente a igreja Rosário dos Pretos no povoado de Brejo de Amparo. Desta vez entrei na construção que guardava estilo entre barroco mineiro e barroco baiano, com belas pinturas no teto próximo ao altar. No final da tarde, preguiça merecida nas moradeiras a norte de Januária, com direito à vista do São Francisco, pescadores com tarrafa ou anzol, do alto do barranco da margem esquerda.
A epidemia de lanhouses por todo o país tornou-se questão de educação e saúde pública. Sempre cheios e frequentados por crianças e adolescentes, esses locais revelavam o nível cultural das novas gerações. Nada de pesquisas escolares ou curiosidade sobre assuntos gerais. Nada de atualizar o correio eletrônico. As crianças se afundavam por horas e horas em jogos eletrônicos extremamente violentos, acompanhados de gritos histéricos, xingamentos, ameaças, provocações. Já os adolescentes se atolavam em páginas de relacionamento e grupos de amigos virtuais. E se intrometiam na intimidade dos outros, observando o que faziam, do que falavam, com quem se comunicavam, aonde tinham ido, com quem, o que houve com esse ou aquele.
Acessados por estrada de chão revestida de cascalhos, o rio Pandeiros e as cachoeiras encantaram pela beleza rústica. A trilha na margem levava às três quedas d’água. Escolhi a segunda delas para sentar na sombra, entrar nas águas refrescantes, observar o trabalho incessante das formigas, admirar pássaros de várias cores e tamanhos que voavam das pedras às árvores. A vegetação revelava zona de transição do cerrado à caatinga, em trecho pertencente à Área de Proteção Ambiental de Pandeiros. Percebi preocupação em preservar o ecossistema em conjunto com a população do vilarejo de mesmo nome. No entanto, com o projeto ainda em fase inicial, a situação do lixo nas imediações do vilarejo preocupava.

No jantar em Januária, mergulhei de cabeça em delicioso churrasco em restaurante na beira do São Francisco, precedido, obviamente, de duas doses de cachaça artesanal. As januarienses vestidas para matar prometiam horrores para a noite que apenas dava os primeiros passos. Realizado pelo dia bem aproveitado, eu só pensava em escovar os dentes e desabar na cama.
E finalmente saiu o passeio ao vale do Peruaçu. Não às cavernas e às principais atrações, fechadas em função da inexistência de plano de manejo do parque nacional. Mas a aperitivos e a vistas panorâmicas a fim de ter ideia superficial do que poderiam render passeios futuros.
As serras e serrotes de calcário do vale escondiam cavernas, dolinas, paredões com pinturas rupestres, vegetação nativa, mais para caatinga que para cerrado, inclusive com a charmosa Barriguda. Alta, imponente, e barriguda, com o caule espinhoso mais espesso no centro, galhos curtos e de poucas folhas, copa mínima. Estranha e bela. Visita, de cima, do Buraco dos Macacos, enorme abertura entre duas partes da caverna do Janelão, formando vale profundo, com vegetação espessa lá embaixo, os paredões, uma das aberturas da caverna em cuja boca estalactites e outras formações pendiam aleatoriamente. Dava para ter visão panorâmica e imaginar o potencial de explorações mais detalhadas do conjunto. Parada no Paredão do Malhador, com formações e restos de pinturas rupestres no paredão vertical.
E acabou a visão geral do parque nacional das Cavernas do Peruaçu. Preço absurdamente caro, da quilometragem do veículo e do guia, por apenas três horas de passeio e duas visitas rápidas. Mais nada. Era por isso que apareciam poucos interessados em visitar o vale do Peruaçu. Com as principais atrações vetadas, valores tão exorbitantes cobrados por passeios curtos, não soava estranho o sumiço dos turistas em plenas férias, na alta estação.
À noite compareci ao aniversário de moradora da cidade, no quintal da casa, com direito à música ao vivo, serviço de garçons uniformizados, muita comida, cerveja e refrigerantes servidos em mesas de plástico cobertas por tecidos brancos de algodão e laços verdes nas cadeiras. A seleção musical, baseada em música regional, MPB, marchinhas de carnaval, agradou. Convidados pegavam o microfone e acompanhavam o vocalista oficial com vozes e palmas.
Fora dali, o mantra sonoro, o massacre mental da viagem, excedendo a todos os limites de tolerância do ser humano, quebrando qualquer lógica, prosseguia destruindo o mínimo de desenvolvimento de gosto, esmagando o bom senso do pior dos mortais. A tal banda de forró eletrônico superava todas as torturas sonoras que presenciara em décadas pelos interiores brasileiros e, pelo jeito, ainda se superaria a si própria por muito tempo. E aquilo continuava tocando, tocando, repetidas vezes, tocando, tocando, nos carros, nas casas, nos bares, tocando, tocando, tocando...

Uma traíra sem espinho, no calçadão da orla fluvial, acompanhada de cachaça de alambique, encerrou minha última noite em Januária. A cidade fervia nas imediações da orla. Muita gente, muita animação, embora, na maioria dos casos, proibida para maiores de 20 anos de idade.
E acabava mais uma viagem pelo norte de Minas Gerais que valera e muito a pena. Pelo povo simpático, acolhedor, hospitaleiro, educado, bom de prosa. Pelas paisagens dos Gerais, em meio ao cerrado em transição ao agreste e à caatinga. Pelas serras e serrotes, vales, rios de águas ainda límpidas, veredas decoradas de buritis. Pelas estradas de chão, largas e cobertas de cascalhos, ou estreitas e com bicos de pedras, dentro de ônibus empoeirados e acompanhados de passageiros, motoristas e cobradores prestativos e gentis. Pelos trabalhadores dos hoteizinhos, invariavelmente boas companhias para conversar, trocar informações e aprendizados sobre as idas e vindas. Pela boa comida e pelas deliciosas cachaças. Pela experiência adquirida diante das qualidades e defeitos da região, defeitos associados à miséria e às injustiças sociais, às monoculturas do agronegócio, envenenadas de agrotóxicos, que expulsam a população rural para as cidades.
Pegaria o caminho de volta para casa, gratificado por tanta coisa, boa ou má, a me enriquecer dali em diante. Embarquei em ônibus da monopolista empresa privada Gontijo, que lotou nas primeiras paradas. Estupendo pôr-do-sol amarelado, alaranjado, avermelhado, violeta, nos fundos do horizonte. Amanheceu pouco antes da cidade de Perdões, ainda em Minas Gerais.
Desembarquei no terminal rodoviário do Tietê em São Paulo naquele mês de agosto. E eu tinha que voltar e explorar, logo, mais trechos no norte de Minas Gerais.

2 comentários:

  1. Ufa!
    Acabou.
    Viu? Li tudo com paciência.
    Gostei. Se bem que quando vc viaja eu me esforço muito pra sentir saudades... e até consigo rsrsrs... só um pouquinho ...rsrsrs
    Bjinhos!
    (não precisa publicar)

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  2. Precisa publicar sim. Todos os comentários pertinentes são bem-vindos. Ainda mais os seus. Em maio voltarei com mais relatos. E fique à vontade para escrever, comentar, criticar, elogiar, tudo...
    Beijos!

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