terça-feira, 27 de setembro de 2011

Escandinávia (parte 4/4)

...continuação
Subimos no barco rumo a Svolver, ao norte. O tempo nublado e chuvoso mais a proximidade da costa fez a embarcação balançar. Após a chegada, enquanto aguardávamos o próximo barco, entramos em pub a fim de nos protegermos do mau tempo. Sentamos com três garotas alemãs divertidas, pedimos apenas uma bebida para não gastar muito. Enrolamos como pudemos. Contamos histórias, piadas, debochamos. O inglês mais tímido e recatado se escandalizava com nossas falas e ações, alegando que o deixávamos embaraçado. Todos riam ainda mais, inclusive o outro inglês, falante e descontraído.     
Nova partida em barco quase à meia noite. O tempo ruim continuava e a rota se aproximava à linha da costa, provocando fortes oscilações em meio às ondas altas formadas no mar. O pior trecho, até a conhecida Stamsund, causou ataques de mal estar na maioria dos passageiros. Muitos corriam aos banheiros para vomitar o que tinham e o que não tinham no estômago. Exibiam expressões de pânico, faces pálidas e esverdeadas. Nem as instruções de se manterem deitados nos pisos acarpetados amenizava a situação. A todo instante alguém se levantava e, com as mãos na boca, cambaleante, se dirigia rapidamente ao banheiro mais próximo. Eu me estendia no carpete, tentava conversar, respirava fundo. Enjoei também, mas sem vomitar. O inglês recatado era, disparado, o que mais sofria. Mas nunca se esquecia de pedir desculpa e licença antes de fugir para o vaso sanitário, de quem se tornou o maior companheiro na viagem.
Embora tentássemos adormecer, nada do sono envolver e afastar momentaneamente daquela tortura. O barco levantava a proa, voava sobre as ondas, depois despencava novamente, batendo violentamente contra as águas. Logo em seguida começava tudo novamente. Mesas e cadeiras das áreas sociais do barco prendiam-se ao piso por molas de aço, o que as impedia de sumirem pelos ares.
Após a escala em Stamsund, no meio da madrugada, o barco tomou rota afastada da terra, enfrentou águas mais calmas e a paz voltou a reinar. Usei a bagagem como travesseiro e consegui dormir. Os demais passageiros também desmaiaram de cansaço.

Desembarque pela manhã, sob o céu escuro e ameaçador, na cidade litorânea de Bodo, grafada com o segundo “o” cortado em diagonal. Ventava e chuviscava de maneira intermitente. Sem descansar dos dois desgastantes percursos de barco, do arquipélago das ilhas Lofoten ao continente, nós embarcamos em trem com destino a cidade de Trondheim. 
A diversificada paisagem evoluía entre montanhas, vales profundos, rios, lagos, fiordes esverdeados. Vales separavam vilas, bosques de pinheiros, trechos pedregosos e cobertos de vegetação rala amarelada ou alaranjada. Os rios alternavam entre caudalosos, verdes, cobertos de espessa neblina, e acinzentados e cheios de cascalhos.
Conversei bastante com os ingleses, sobretudo com o mais comunicativo. Desprendido e desapegado de posses materiais, ele planejava diversas viagens à Europa, África e Ásia. As norueguesas dos vagões do trem eram demasiadamente loiras, quase transparentes, de rostos e corpos arredondados, estaturas baixas, troncudas. E jamais sorriam ou se interessavam em conversar com estrangeiros.
Após quase vinte e quatro horas de viagens em dois barcos e um trem, desembarcamos em Trondheim à noite. A compensação veio com o excelente albergue da juventude, grande, impecavelmente limpo, tranquilo. Poucos hóspedes ocupavam as dependências, dando para escolher a cama nos quartos coletivos. Os dois ingleses preferiram seguir adiante.
E o café da manhã fez jus ao todo, servindo diversos tipos de iogurtes, pães, tortas, frutas, queijos, cereais, sucos. Os ovos cozidos eram separados pelo tempo de cozimento, 1 minuto, 3 minutos, 5 minutos, 7 minutos. E o banquete estava incluído na salgada diária, bem norueguesa.
Trondheim alegrava-se naquela manhã de sábado com muita gente circulando nas ruas e praças. Diversos trechos contavam com moradias exclusivamente de madeira, recém-pintadas, com vasos de flores nas entradas. A colina a oeste proporcionava visão ampla e privilegiada da cidade. As residências construídas nos altos eram brancas, de madeira, em sobrados, exibindo janelas com cortinas e pequenas floreiras debruçadas na calçada. O dia nublado e com pouca luz ofuscava a beleza do fiorde situado entre a cidade e o mar. Datada do século XI, a imponente catedral impressionava mesmo com a falta de luz nos interiores, evidenciando a atmosfera medieval e as pedras expostas.
Encontrei chilenos exilados durante manifestação de rua contra a ditadura militar do Chile, que massacrava o povo graças ao apoio direto do regime dos Estados Unidos. Informações esclarecedoras denunciavam a presença de dezenas de milhares de chilenos obrigados a morar fora do país em virtude de perseguições, torturas, assassinatos cometidos pela ditadura.
Cansado de comer sanduíches de itens dos supermercados, encarei pizza rápida no almoço e sanduíche com fritas em lanchonete no jantar. Gastei muito, sem por isso ficar satisfeito e bem alimentado. E a proximidade de Oslo, a capital norueguesa, fazia os preços subirem ainda mais.
À noite, como nas demais cidades pequenas, médias e até algumas grandes, da Escandinávia, tudo ficava deserto. Ninguém nas ruas, praças, restaurantes e lanchonetes em pleno verão norueguês. A fim de fugirem da atmosfera triste e pesada, espantar a solidão, os noruegueses de Trondheim lotavam as inúmeras máquinas de caça-níqueis, espalhadas nos quatro cantos da cidade. E, é claro, não faltavam os bêbados solitários, perambulando com garrafas nas mãos. Às vezes cantavam, às vezes pediam dinheiro, às vezes perturbavam os raros transeuntes.
A caminhada sob a chuva fina do albergue à estação ferroviária me deixou arrepiado de frio. E, com as roupas molhadas, embarquei pela manhã rumo à capital norueguesa.
O serviço a bordo do trem vendia salgadinhos, sanduíches, refrescos, a preços absurdos, regra nos trens europeus. Reparei em diversos noruegueses, homens e mulheres, novos e velhos, o movimento repetido e nervoso de, subitamente, abrir a boca, inspirar e expirar rápida e intensamente. Nas primeiras oportunidades, distraído, me assustava, pois parecia que fariam, logo em seguida, algo brusco e violento.
E a paisagem continuava a dar espetáculos. Altas montanhas, muitas cobertas de neve, vales profundos com cascatas e pequenas cachoeiras, planaltos, velhas cabanas de madeira. A vegetação escassa e amarelada rareava nas alturas junto à neve permanente. Nas regiões mais baixas predominavam bosques, pequenas plantações, chácaras. Dava vontade de desembarcar e seguir a pé, a fim de apreciar tudo lentamente, sem pressa, degustando, sobretudo entre Oppdal e Dombas. Após Lillehammer, o relevo aplainou-se e um lago grande e alongado surgiu a oeste.
No meio da tarde desembarquei na estação ferroviária de Oslo. De bonde cheguei ao albergue da juventude. Reencontrei os dois ingleses e o casal alemão que se recusara a embarcar no porto de Narvik. A boa recepção dos colegas aliviou o atendimento rude e grosseiro da recepção do albergue. O funcionário odiava responder perguntas, exibindo expressão enojada, não fazendo questão de esconder o racismo guardado. A diária em quarto coletivo era a mais cara já vista na Europa.
Sobretudo na zona central, Oslo mostrava-se confusa, poluída, barulhenta. O tráfego incomodava, obras dificultavam a circulação de pedestres. Motoristas infringiam as leis estacionando os veículos nas calçadas. Bêbados abundavam pelas ruas e estação ferroviária. Jovens vestindo roupas rasgadas e sujas juntavam-se em bandos pelas esquinas. E o tempo, invariavelmente cinzento, não ajudava em nada. Destino de asilados em geral, a capital exibia rostos de refugiados do Paquistão, Sri Lanka, de países africanos e americanos.
O extenso parque Frogner destoava do cenário desolador da cidade. Gramados sem fim, árvores simetricamente plantadas, bancos estrategicamente posicionados. Muita paz e tranquilidade em meio ao verde intenso. Em obeliscos ou estátuas, as obras de artista plástico norueguês se destacavam na parte central do parque. Apesar do frio cortante e úmido, eu adorava perambular pelos vazios daquele oásis de sossego. Outros parques menores mostravam que, pelo menos nisso, Oslo estava de parabéns.

A cinco quilômetros do centro, em meio a bucólico parque, o museu Viking guardava navios naufragados e resgatados no final do século XIX. Eram embarcações datadas do ano 900 antes de cristo. Valia a visita apesar de apenas dois navios inteiros e peças mal conservadas nos interiores.
Última noite na cidade mais cara do país mais caro da Escandinávia. Decidi me esbaldar e comer bem. Optei por restaurante de comida italiana. Nada de lanchonete ou comida rápida. Restaurante italiano legítimo, com cheiro de comida de verdade. Escolhi talharim ao sugo com fatias de calabresa, mais travessa de pães italianos para acompanhar e reforçar. Molho de tomate de verdade, nada de creme ou concentrados insípidos. Saboroso. Lambi os beiços, esfreguei as fatias de pão no prato até ele ficar bem limpinho. Gastei a fortuna mais bem gasta da viagem. Despedida perfeita da hostil e sombria Oslo, mas também da bela e cara Noruega.
Embarquei cedo em trem à cidade sueca de Gotemburgo. O relevo do sul da Noruega apresentava-se ondulado, com pequenas chácaras, plantações, poucas fábricas. Em áreas não povoadas, extensos bosques de pinheiros. O tempo claro e ensolarado finalmente voltara. Já em território da Suécia, a nova cobradora do trem, agora sueca e trabalhando em companhia da filha, exibia expressões mais leves e alegres.
Desembarquei no meio do dia em Gotemburgo. Atravessei correndo a rua em frente à estação para pegar o bonde até o porto. O horário extremamente apertado me deixava apreensivo. A condutora me orientou onde eu deveria descer, sempre sorrindo e me tranquilizando que eu chegaria a tempo. Desembarquei na boca do porto. A balsa já apitava. A sueca da bilheteria me aconselhou a correr e pagar a passagem a bordo. Atravessei a ponte de embarque no exato momento que o marujo se preparava para retirá-la. Se perdesse aquela, eu teria que esperar horas, complicando as conexões seguintes.
Em meia hora de retorno à Suécia, comprovei a solicitude e educação dos suecos. Definitivamente não sentiria saudades dos noruegueses. Menos ainda dos finlandeses.
Depois que a balsa atracou no meio da tarde, eu já andava em solo dinamarquês, na cidade de Frederikshavn. Caminhei à estação ferroviária, com tempo suficiente de pegar o trem para Aalborg. A paisagem plana cortada pela ferrovia agradava pelas pequenas casas esparsas nas plantações e chácaras. Grandes hélices metálicas coletavam energia eólica. A tênue luz do entardecer realçava os contornos.
Já em Aalborg, peguei ônibus urbano ao albergue da juventude. Tomei banho reconfortante, guardei as coisas no armário individual do quarto e me dirigi ao centro da cidade para saciar minha fome daquele dia sem almoço.
Dividida em duas pelas águas do fiorde, Aalborg contava com movimento agitado de pessoas e veículos, conquistando pela harmonia do urbanismo, construções antigas, ruas estreitas e sinuosas, tudo enfeitado e bem conservado. Não faltavam no centro bares, restaurantes e pubs, ao longo de calçadão exclusivo para lazer noturno, colorido, aventando grandes noitadas.
As dinamarquesas agradavam aos olhos, sobretudo se comparadas com as troncudas norueguesas. Porém eu ainda não estava diante de beldades irresistíveis. De qualquer maneira, a atmosfera geral passava mais descontração e leveza que a Noruega.
Os vagões do trem com destino a Copenhague lotaram e oscilaram bastante sobre os trilhos. E fez-se a luz! Não mais que de repente, para a felicidade geral da nação, a porta da cabine abriu. E entrou a condutora para conferir os bilhetes. Vinte e poucos anos, cabelos lisos e dourados, olhos claros, traços delicados, expressão jovem e alegre, sorriso natural, olhar oblíquo. Mesmo vestindo terrível uniforme azul escuro, ela me fez esquecer a lotação, os balanços fortes do trem, a frieza generalizada dos escandinavos. Loira com o charme e a sensualidade de morena, simplesmente era a mulher mais bonita e atraente de toda a viagem. Não me esqueceria dela tão cedo.
A monótona paisagem rural mantinha-se aplainada, com plantações, chácaras, vilarejos minúsculos. O trajeto cansou pelas quase vinte paradas até a capital, pela cabine cheia, abafada e carente de boas conversas. Fazendo frio ou calor, os dinamarqueses vestiam longos casacos ou jaquetas. E, tão logo entravam na cabine do vagão, fechavam janelas e portas, ligavam o então desnecessário aquecedor. O mesmo valia para os ônibus.
Depois da parada na cinzenta Arhus, a densidade populacional cresceu com mais vilarejos e plantações na ilha de Funen, unida por ponte à porção norte do país, chamada de Jutland. Os bosques já não eram comuns. Escala na cidade de Odense, com melhor aspecto que a anterior Arhus. Em travessia demorada, o trem subiu em balsa a fim de ser transportado até a ilha de Zealand. Antes, a composição se dividiu em várias partes que se juntariam do outro do lado do mar. Os passageiros aproveitaram e desembarcaram rumo ao bar, restaurante, áreas de lazer.
E a cabine permanecia lotada, majoritariamente de idosos mal humorados.
Depois de horas de percurso cansativo, desembarquei na estação ferroviária de Copenhague. Na plataforma procurei pela estonteante cobradora vestida de azul escuro. Em vão.
Desta vez optei pelo albergue mais distante, porém superior em tudo ao desorganizado do centro. Até o atendimento na recepção indicava um estabelecimento decente. Sem falar dos quartos bem conservados, banheiros limpos, hóspedes sociáveis. E mais barato.
Reencontrei a colega, dinamarquesa legítima, junto da qual fiquei até altas horas da madrugada, entre conversas e impressões. Embora exageradamente inquieta e carente, se tornou companhia agradável naquele final de viagem. À noite, o numero de bêbados crescia vertiginosamente, cambaleando pelas ruas e calçadas, gritando alto contra tudo e todos.
No dia seguinte ela e eu fomos a Roskilde, cidade com o fiorde e a catedral onde estavam enterrados os antigos reis da Dinamarca. Permanecemos apreciando o verde e a paz em parque próximo.
As escandinavas ocupavam diversas funções de trabalho, antes consideradas exclusivamente masculinas. Adiante da maioria dos países do mundo, elas dirigiam ônibus, metrôs, bondes, trens, máquinas perfuratrizes, tratores, motores de embarcações de diversos tamanhos, veículo de carga.
Revimos pontos já conhecidos de Copenhague. Entramos no interessantíssimo museu de holografia, e também no museu de Artes.
Me despedi da coleguinha ciente de que jamais nos veríamos novamente.
Desembarquei em São Paulo em fins de setembro, depois de um mês de viagem gratificante, mais pelos momentos e contatos humanos vividos do que pelos lugares visitados.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Escandinávia (parte 3/4)

...continuação
Embarquei em trem rumo a Kemi, onde após pequena espera, peguei ônibus para Tornio ainda na Finlândia, de onde embarquei em novo trem para cidade sueca de Haparanda, com desembarque no meio do dia. Ali a espera foi longa. Aproveitei para dar uma volta.
Na beira do mar báltico, a pequena Haparanda envolvia pela singeleza, ordem e limpeza. Ruas arborizadas guardavam casas em cores vivas e flores nas janelas. Ninguém nas ruas. A pouca comida que eu trouxera não deu conta da fome. Calculei mal as coroas suecas restantes, não havia bancos abertos, nem chances de obter mais dinheiro. A única alternativa foi comprar uma barra de chocolate para enganar o estômago.  
Finalmente, depois de horas, novo embarque em trem com destino a Boden. O relevo, sempre plano, exibia extensos bosques, pastos de ovelhas ou gado, algumas casas vermelhas ou amarelas. Pouco antes da chegada, ao anoitecer, como se estivesse pegando fogo, o céu se tingiu de cor púrpura, luminoso, incandescente. Ninguém tirou os olhos daquela maravilha.
A espera em Boden pelo novo trem foi ainda mais longa e desconfortável. Os funcionários fecharam a estação ferroviária à noite e os passageiros de conexão tiveram que ficar ao relento. A noite caiu e, com ela, o frio cortante. A passagem subterrânea sob a ferrovia serviu como o único refúgio contra o frio e o vento. Mas o corredor era vazio e com paredes cimentadas, amenizando apenas parcialmente. Vesti tudo o que tinha direito, me agitando para não congelar.
Como posto militar no norte da Suécia, a cidade de Boden não oferecia nada de atraente para ver ou fazer, sobretudo em uma noite gelada. Bem que tentei circular pelas principais ruas. Tudo escuro, fechado, vazio. Apenas o som do vento e de meus passos se ouvia naquele fim de mundo da Lapônia sueca.
Retornei à passagem subterrânea. Me aproximei de dois ingleses comunicativos, evitando quatro italianos do norte que esbanjavam arrogância, presunção e racismo. Não era sem motivo que os italianos do sul os rotulavam de austríacos frustrados. Um dos ingleses, o mais falante, salvou o ambiente, ajudando passar o tempo e a espantar o frio.
E, depois de sofrer a tortura de mais uma espera sem fim, do frio insuportável, sem dormir, a estação reabriu. O trem encostou e partiu no absurdo horário das 2:15h da madrugada.

Chegada a Kiruna ao amanhecer em meio a morros e colinas cobertas de vegetação rala. Do lado oposto, encontrava-se uma mina de ferro. Meia hora depois embarque em novo trem, a sexta e última conexão do trajeto entre Rovaniemi, na Finlândia e Narvik, na Noruega. Ninguém aguentava mais.
O relevo mantinha-se com leves ondulações, colinas cobertas por vegetação mais rala. Aumentavam as latitudes, subiam as altitudes, o solo tornava-se mais árido e rochoso. Lagos surgiam nas margens da ferrovia. A névoa matinal que os cobria fornecia efeito visual interessante. Nenhum sinal de vida, casas ou plantações. E o relevo tornou-se mais acidentado após a estação de Abisko. As minúsculas estações ferroviárias atendiam quase que exclusivamente montanhistas e escaladores.
Nas imediações da fronteira norueguesa a paisagem ficou ainda mais dramática. Vales estreitos e profundos cortavam montanhas escarpadas e cobertas com finas camadas de neve. E o lindo fiorde de águas transparentes nos deu as boas vindas ao norte da Noruega.
No meio da manhã, depois de vinte e cinco horas de trens e ônibus pelos nortes da Finlândia, Suécia e Noruega, de longas esperas, do frio intenso, da noite sem dormir, cansado e faminto, eu desembarcava em Narvik na Noruega. Todos suspiraram aliviados. A maioria, como eu, hospedou-se no albergue da juventude.  Os dois ingleses seguiram adiante.
Situada 300 quilômetros ao norte do círculo polar ártico, Narvik agradava, sobretudo em razão do belíssimo fiorde ao lado e das montanhas escarpadas, parcialmente cobertas de neve e gelo. Por ser o único a nunca congelar no inverno, o porto da cidade tornou-se o principal do norte da Escandinávia. A maioria das residências era de madeira e pintada em cores vivas. Cenário típico escandinavo se exibia nas imediações das águas azuladas do fiorde, oriundas do derretimento da neve das montanhas. 
Os preços da alimentação do norte da Noruega conseguiam a inglória proeza de superar os dos vizinhos escandinavos. Impossível de comer nos restaurantes. Como saída, havia os supermercados com pães, sucos, frios, queijos, chocolates.
À tarde o tempo fechou. Baixou nuvem escura e carregada cobrindo as montanhas. A temperatura despencou, ventou forte, ameaçou chuva. Restou o acolhedor salão social do albergue que concentrava a maioria dos hóspedes.
À noite, depois de comer o que comprara no supermercado, com frio e chuva do lado de fora, me juntei ao pessoal que se sentava ao redor de grande mesa do albergue. Diversas partes do mundo se reuniam ali para conversar, ouvir, aprender, trocar ideias, passar o tempo. Todos se revezavam em saciar a curiosidade dos demais a respeito dos respectivos países. Queriam saber da geografia física e humana, situação social e política, cultura, esportes, detalhes desse e daquele tipo. Momentos para lá de agradáveis, quebrados somente pela chegada de um estadunidense. Brotou mal estar em todos assim que souberam a origem do infeliz. E o sujeito começou a perguntar qual a marca e o ano do carro de cada um. Ninguém deu bola à tamanha estupidez. Não satisfeito, pegou as vítimas do lado e, sem que se mostrassem interessadas, passou a descrever avidamente o modelo, a cor, o ano, as características mecânicas, do carro que alegava possuir, entre outras bobagens consumistas.
Demorou muito para que a prepotência do estadunidense lhe permitisse perceber que não era bem-vindo por ali. Saiu de mansinho e com olhar desentendido. A paz voltou a reinar naquela mesa cosmopolita. Por boas e longas horas.
Eu e mais quatro alemães fomos bem cedo ao porto da cidade. Planejávamos seguir ao arquipélago das ilhas Lofoten. Fazia frio naquela manhã nublada e chuvosa. O preço, que só soubemos depois de embarcar, era norueguês demais. Caríssimo. Não sabendo quando e se eu voltaria àquela parte do mundo, decidi encarar a empreitada. Os alemães se recusaram a pagar e desembarcaram imediatamente. Não sem antes, a alemã mais alta, e que parecia a líder do grupo, se despedir de mim com forte abraço e um molhado beijo na boca.

E o barco partiu com mais dez passageiros desconhecidos. O trajeto foi tranquilo e confortável, pouco balançando a embarcação moderna, aquecida, acarpetada. Depois de rápida escala numa ilhota, o barco continuou o percurso por entre ilhas montanhosas até parar em Svolver.
O escritório de turismo estava fechado. Apelei para a central de polícia, onde me informaram a suposta localização do albergue da juventude. Mas não consegui encontrá-lo. Após conversar, ou o que quer que os dois australianos rudes com quem cruzei no percurso chamassem aquelas frases cuspidas, decidi seguir até Stamsund, outra ilha do arquipélago.
Como o barco já partira, embarquei em ônibus no rumo sul. O trajeto reservou minúsculos vilarejos na beira do mar, com casas de madeira em cores vivas. Atrás, onipresentes montanhas escarpadas, rochosas, de picos pontiagudos. Novas, estreitas e sem acostamento, as estradas proporcionavam emoção e perigo nas curvas. O ônibus cruzou várias pontes antes de atingir o destino final.
Depois de passar por Leknes, desembarquei à tarde em Stamsund, pequeno vilarejo de pescadores varrido pelo vento e chuva fina. O pequeno porto, o comércio modesto, os inúmeros barcos atracados pareciam abandonados naquela tarde horrível. Caminhei até o albergue da juventude.
Galpão informal de madeira e isolado na beira do mar, a espelunca mais parecia brincadeira de mau gosto. O ambiente interno, por outro lado, com ares de república estudantil, seduzia pela liberdade e descontração, raras portas, paredes ou divisórias. Os hóspedes nem reparavam no que os outros faziam ou deixavam de fazer, mesmo estando bem ao lado. O albergue cobrava caro por cinco minutos de banho em instalações precárias, do lado de fora. Quem se dispusesse a pagar, teria que enfrentar o vento, a chuva, o frio, na ida e na volta do tal banho. Não notei ninguém com tamanha coragem. E não fui exceção.
Reencontrei os colegas ingleses da via sacra de Rovaniemi a Narvik. Encaramos aquele tempo sombrio, a estrada sem acostamento, e fomos comprar comida no supermercado do centrinho. Não vimos nenhum restaurante na vila de Stamsund.
O albergue possuía cozinha coletiva no andar térreo e o cheiro de comida se propagava pelo recinto, inclusive ao mezanino acima, onde se espalhavam colchões e sacos de dormir. Tudo escancarado e misturado. O clima entre os hóspedes contagiava pela atmosfera de paz e amor. Beiraria a perfeição se ali se encontrasse uma, pelo menos uma mulher com o mínimo de atributos elogiáveis. Mas todas eram assustadoras sob quaisquer ângulos. E muitas estavam acompanhadas dos respectivos. Nem sei o que aconteceria se, por algum desastre natural, todos ficassem retidos ali por semanas e mais semanas, isolados do mundo.
Depois de muita comida, papo gostoso, o sono veio devagar, pegando um a um. O albergue, finalmente, mergulhou no silêncio da noite. Nem reparei em roncos ou outros ruídos.
Amanheceu com o clima peculiar da região. Nublado, frio, com chuva fina, vento forte. As raras pessoas que se aventuravam pelas ruas e estradas curvavam-se para se protegeram. Os hóspedes do albergue permaneciam recolhidos e cobertos de roupas. Iam às ruas apenas na busca de mais comida. Rodinhas se formavam na cozinha e invariavelmente próximas aos fogões. Eu e os ingleses decidimos partir aquela noite.
A retirada incluía esdrúxulo roteiro até o continente. Primeiro um barco rumo norte, a Svolver, depois outro barco rumo sul, a Bodo, mas com a aparentemente inexplicável escala em Stamsund, justamente onde estávamos. É que queríamos, a todo custo, evitar as tarifas ainda mais caras das sextas-feiras, o dia seguinte. Abrimos mapas, consultamos horários de barcos. O esquema das conexões não poderia furar.
E lá fomos nós, no começo da noite, com todas as bagagens, até o porto de Stamsund. Éramos em mais de dez pessoas.
continua...

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Escandinávia (parte 2/4)

...continuação
A campanha eleitoral sueca se animava. Cartazes nos muros, discretos e localizados comícios despontavam pelo centro da cidade. Construções pré-fabricadas em madeira nas calçadas centralizavam a distribuição de material publicitário dos candidatos. Como em qualquer país capitalista, era visível a ostentação de partidos mais poderosos economicamente, com mais estrutura, dinheiro, material, tecnologia de campanha. Vez ou outra, os sorridentes candidatos cediam o microfone aos passantes, que desabafavam e exerciam minutos de cidadania. E assim como em qualquer outro país capitalista, os pobres coitados seriam solenemente ignorados depois da posse dos nobres parlamentares. O grau das mentiras e promessas não cumpridas poderia variar, mas a demagogia burguesa era a mesma aqui e lá.
No final da tarde embarquei no Silja Line rumo a Helsinque na Finlândia. O branco e imenso navio oferecia camarotes, assentos individuais, beliches, diversos restaurantes, bares, lojas, auditórios, casas noturnas, distribuídos em nove confortáveis andares.
Incluída no passe de trem que adquirira no Brasil, minha passagem permitia usar o beliche numerado, que mais parecia buraco em extenso pombal. Tratava-se de cavidade retangular na parede mal cabendo uma pessoa, sem porta ou cortina. Apenas um fino colchão emborrachado e nada mais. Outras vagas iguais existiam acima, embaixo, à esquerda, à direita, em três andares. Com as leves oscilações do navio ficava impossível relaxar. O receio de despencar dali era bem real. Sem citar a bagagem que ia espremida comigo no mesmo espaço.
A maioria dos passageiros, escandinavos, vestia-se de modo sofisticado para os jantares e demais opções noturnas do navio, inacessíveis para os mochileiros como eu. Os preços afixados doíam aos olhos e aos bolsos. Ainda bem que eu trouxera comida suficiente.
Me aproximei de uma mexicana residente em Paris e de uma japonesa legítima do Japão. A alegria e descontração da mexicana contrastavam com a retração e o excesso de formalidades da japonesa. Conversamos, circulamos, exploramos todos os andares da embarcação. Abrimos as sacolas de comida, engolimos tudo enquanto observávamos o movimento. Enrolamos e rimos bastante até bater o sono.
O navio atracou de manhãzinha no porto de Helsinque depois de quinze agradáveis horas pelo mar báltico.
O controle de imigração finlandês deu espetáculos de racismo e prepotência. Os funcionários parecendo carcereiros separavam os passageiros da fila pela cor da pele, tipo físico, fachada de endinheirado ou não. E com frases secas, militares, acenos de mão bruscos, como se dividissem as maçãs podres das frescas. Eu, a mexicana e a japonesa fomos atirados para o lado das maçãs podres. Nos obrigaram a abrir as bagagens, fizeram perguntas constrangedoras, insistiram para que mostrássemos todo o dinheiro em mãos. Com ar de repugnância, rispidamente, nos liberaram. Bem-vindos à Finlândia?!
Seguimos a pé à estação ferroviária, de onde pegamos bonde para o distante albergue da juventude. Localizado no estádio usado nas olimpíadas de 1952, contava com instalações velhas, mas limpas e razoáveis.
Acompanhei minhas colegas ao restaurante universitário, onde serviam comida boa e barata, embora pouca, me deixando com fome. Frutas e chocolates comprados na rua a saciaram de vez. Encontramos supermercado muito barato, coisa raríssima na Escandinávia, nos subsolos da estação ferroviária. Com a quantidade adquirida, eu não passaria fome tão cedo. Congelada e escura na maior parte do ano, Helsinque se escondia em sucessões de galerias subterrâneas, oferecendo lojas, restaurantes, bares, cinemas, áreas de serviços, lazer.

Os finlandeses possuíam pele muito clara, cabelos loiros quase brancos. Os olhares e as expressões selvagens, nada amistosas, me faziam sentir longe, muito longe de casa. As mulheres raramente atraíam. A maioria deles e delas agia de modo rude e assustado, desacostumados da simpatia e da cordialidade. Em nenhum local se notavam sorrisos e bom atendimento. E na estação ferroviária recebi o legítimo tratamento finlandês. A loirinha do guichê não sabia ou não queria falar inglês. Lançou-me cara feia, levantou a mão espalmada e saiu sem me dar satisfações. Foi substituída por outro funcionário, impaciente, mal humorado, mas ligeiramente fluente em inglês. A comunicação enfim se fez, não sem antes sofrer novamente com a doçura cativante dos finlandeses.
Então chamada de Leningrado, cidade do norte da União Soviética, a apenas seis horas de trem, era o destino favorito de finlandeses na busca de diversão e alegria. Queriam a todo custo fugir da tristeza e depressão de Helsinque, gastar pouco, beber muito, viver intensamente. A ironia é que eles deixavam país capitalista considerado desenvolvido rumo a segunda maior cidade do maior país comunista do mundo, a União Soviética. Aquele enorme fluxo de pessoas contrariava a propaganda burguesa, tão martelada diariamente, de que os países chamados de comunistas eram tristes e cujos habitantes não podiam ou não sabiam se divertir.
Eu e a mexicana deixamos a japonesa à vontade para fazer turismo e, sem almoçar, pegamos ônibus rumo à periferia da cidade. A mexicana planejava fazer visita surpresa à amiga finlandesa, com quem estudara francês e dividira apartamento durante meses em Paris naquele mesmo ano. A finlandesa residia sozinha em bairro afastado, ocupado por conjuntos residenciais padronizados de até cinco andares e separados por áreas verdes.
Subimos as escadas do prédio, encontramos o apartamento, tocamos a campainha. A finlandesa abriu a porta e exibiu expressão de intensa contrariedade. Sem sorrir ou nos convidar a entrar, disparou a pergunta para a mexicana:
“O que você quer?”.
A mexicana manteve o sorriso latino e amistoso e respondeu: “Eu vim visitá-la, amiga”.
Não adiantou. A pedra gelada finlandesa insistiu furiosa:
“Por que veio me visitar?”.
A mexicana sorriu mais ainda. Tentou descontrair a situação. Disse que viera pelos bons tempos, gostaria de conversar, saber como estava a colega. Afinal, brincou, não era sempre que uma mexicana passaria pela Finlândia.
Impotente diante da alegria contagiante da mexicana, mas inteiramente contra a vontade, a finlandesa finalmente liberou a entrada. Sentei no sofá ao lado da mexicana, com a finlandesa à frente exibindo expressão que mais parecia de interrogadora da polícia. A mexicana iniciou a conversa, em inglês para eu participar também, mas foi logo interrompida pela finlandesa que, visivelmente irritada, atirava frases do tipo:
“eu não sei como alguém tem a coragem de visitar Helsinque e a Finlândia. Esse país é uma merda e não tem nada para ver ou fazer. O que vocês vieram fazer aqui?”
Eu entrei no diálogo e aleguei que a Escandinávia era fascinante e diferente para quem vinha da América. A mexicana seguiu por essa trilha e a coisa andou de maneira menos traumática.
O tempo passava e o ambiente tornou-se mais leve. Pelo menos até o limite suportável de alegria da finlandesa. Dela escapavam sorrisos tímidos e, em certo momento, parecia que não desejava mais nos expulsar dali. O papo fluía. Entre outras novidades esclarecedoras, a finlandesa nos salientou que, no verão, os finlandeses costumavam tirar férias, não somente da cidade, mas também de toda a família. Cada membro da casa, o marido, a mulher, os filhos, seguia para direções diferentes a fim de viver momentos livres e privativos. Assim cada um aproveitaria as férias para se libertar da convivência familiar sufocante do resto do ano.
Sentimos cheiro de comida. A fome bateu. A imprevisível finlandesa nos ofereceu comida. Nem podíamos acreditar naquela súbita mudança de comportamento. Sem titubear, aceitamos na hora. Cada um recebeu o prato razoavelmente preenchido.
Ainda permanecemos ali após o almoço. Mas nos despedimos no momento em que a dona da casa fechava a cara novamente. Deixamos o prédio, satisfeitos por quebrarmos, ainda que parcialmente, o gelo finlandês, mas intrigados e confusos com tanta frieza e hostilidade.
Andei ao belo parque nas imediações do centro de Helsinque. Contava nos dedos as pessoas por ali. Sentado em um banco próximo, um senhor quarentão, sozinho, com terno e gravata, largou a pasta de executivo de lado e abriu o embrulho de supermercado. Dali saiu garrafa grande de bebida alcoólica destilada. Tirou o lacre, virou e deu longos e vigorosos goles. Repetiu o movimento dezenas de vezes, sozinho, olhando para o nada. A garrafa ficou bem abaixo da metade. E era quinta-feira útil, faltando bastante para as 16h.
A arquitetura de Helsinque pesava aos olhos, predominando as cores cinza, castanho, marrom escuro. Sempre os mesmos e monótonos edifícios de cinco ou seis andares. Visitei o chato e dispensável Museu Nacional.
Como nas demais cidades escandinavas, os finlandeses adoravam sorvete. No horário de pico da saída do trabalho formavam-se longas filas nas sorveterias, padarias e cafés. Ainda era verão, apesar da temperatura nunca ultrapassar 18 graus durante o dia. Para eles, o verão ardia e o calor exigia refrescos.
Embarquei à noite no trem rumo à cidade de Rovaniemi, localizada no círculo polar ártico, Lapônia finlandesa. O vagão lotado contava com assentos semelhantes a ônibus e conforto suficiente. A paisagem da janela revelava relevo plano, com bosques, plantações, dezenas de lagos. Mais ao norte os bosques predominavam largamente. Raras casas de madeira surgiam no meio das árvores.
Desembarquei na manhã seguinte e me hospedei em albergue da juventude limpo, aconchegante, caseiro. Sob o sol a temperatura beirava os 20 graus, mas bastava nublar para despencar para menos de 10 graus. Destruída quase que inteiramente durante a segunda guerra mundial, a moderna Rovaniemi nada tinha a oferecer de beleza ou detalhes arquitetônicos.
Peguei ônibus à cidade de Kemijarvi, localizada exatamente onde passava a linha imaginária do círculo polar ártico, e também o escritório sede do Papai Noel, personagem original do folclore finlandês. Nada de interessante em local extremamente turístico. Lojas ofereciam presentes de mau gosto, postais e selos da Lapônia. Quatro renas cercadas pastavam ao lado do centro de visitantes. Em sala ampla, lá estava ele, o Papai Noel, vestido a caráter, sentado defronte à mesa grande, forrada de cartas e pilhas de papéis. Funcionário público comum, o dito cujo cumpria horários e, ao final do turno, seria substituído por outro funcionário público.
No quarto do albergue hospedavam-se um japonês legítimo e um húngaro, ambos jovens e viajantes de longa duração. Barbudo, de aspecto de explorador do século XIX, o japonês não sabia ou não queria falar inglês. Balbuciava poucas palavras mal pronunciadas. Mais acolhedor, o húngaro se mostrou curioso sobre o Brasil. Andamos bastante pelas ruas da cidade e arredores sob o sol brilhante e temperatura agradável.
Naquele mês de setembro, às 22:00h, o sol ainda não se pusera completamente, o céu brilhava e se tingia de azul escuro. Mas antes desse horário, muito antes, o comércio fechara as portas e não havia alma viva pelas ruas de Rovaniemi. Apenas eu circulava sem rumo na busca de sinais de vida humana. Em vão. Retornei sem sono ao albergue e puxei assunto com a primeira pessoa que me apareceu pela frente.
Acordei cedo para encarar a viagem com destino a Narvik no litoral norte da Noruega. Conforme eu me informara previamente, o percurso total seria recheado de conexões, de longas esperas em estações ferroviárias e rodoviárias. Requereria muita paciência. A compensação era que todas as passagens, de trens e ônibus, estavam incluídas no passe de trem adquirido no Brasil.
continua...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Escandinávia (parte 1/4)

Embarquei para a Escandinávia, norte da Europa, em meados de agosto.
Antes disso, o diretor da empresa onde eu trabalhava me perguntou onde eu passaria as férias. Ao ouvir a palavra Escandinávia, pensou, hesitou, pensou novamente. Depois sorriu e, em voz alta e clara, com tapinhas nas minhas costas, soltou a pérola:
“Muito bem, vai visitar a terra do Drácula, eim?”.
Depois de voo longo entre raros cochilos, desembarquei na Dinamarca, no aeroporto de Copenhague.
O atendimento no balcão de informações do aeroporto foi deplorável. Recusavam-se a informar algo que estivesse fora da lista dos hotéis caríssimos. A única coisa que arranquei foi sugestão de me dirigir à estação ferroviária central e lá tentar novamente. Do lado de fora do aeroporto, perguntei ao policial e descobri quais ônibus pegar. Foram dois até a estação ferroviária, onde o atendimento também não era dos mais amigáveis.  
O albergue da juventude central era ruim e sujo. Possuía quartos imensos e lotados, camas desconfortáveis, banheiro distante e mal cuidado. As camas suspensas por cabos de aço rangiam até dizer chega. Alguns hóspedes não respeitaram o silêncio exigido e perturbaram o sono dos demais à noite. E a direção do albergue nada fez para impedi-los.
Circulei pelo centro antigo, o Stroget. Cruzei o canal e subi na torre espiral da igreja. Copenhague passava atmosfera leve e descontraída, apesar das construções muito iguais, monótonas, cinzentas. A zona norte da cidade, após o castelo de Amaliamborg, oferecia mais beleza e tranquilidade. Delicioso parque, ainda que pequeno, estendia-se na margem do mar báltico.
A maioria da população revelava pele clara, cabelos loiros, olhos azuis. Muitas mulheres bonitas, sobretudo de rosto. O corpo incógnito escondia-se atrás de roupas largas. Moradores de rua vasculhavam alimentos e outros objetos nos lixos das ruas. Mas não só eles. Outros razoavelmente vestidos, sobretudo idosos, olhavam e cutucavam tudo pelas esquinas.

Peguei trem à exageradamente turística cidade de Helsinore. Na vila de Kronborg, visitei o imponente castelo na beira do mar, celebrizado pela estória de Hamlet. Destaque para as fúnebres e impressionantes casamatas. O tempo cinzento e chuvoso, com nuvens escuras e carregadas, acentuava a atmosfera pesada. Mas nada de excepcional ou imperdível.
Conversei com o chinês de Hong Kong e o japonês de Kioto no amplo saguão do albergue. Ambos enalteceram as qualidades de Estocolmo e o frio cortante da Lapônia.
Novos hóspedes chegavam de madrugada ao albergue, normalmente de países e continentes distantes. Devido às diferenças de fuso horário e à fadiga da longa viagem, sem se importarem com os demais que tentavam dormir, entravam como cavalos no quarto, jogavam as bagagens no chão, trocavam frases aos berros e despencavam na cama barulhenta. Nem se banhavam ou se trocavam. Dormiam com a própria roupa e as botas de bico fino.
A manhã brilhante daquele dia de semana alegrava a Radsus Pladsen, praça central, sem vegetação, mas com muitos bancos, repleta de gente para se aquecer sob o sol do verão escandinavo. Ao contrário de outras cidades europeias, Copenhague não contava com o eficiente serviço de bondes.
Reservei a tarde para passear no parque Tivoli. A área bem menor que o parque do Ibirapuera de São Paulo incluía parques de diversão com brinquedos tradicionais e eletrônicos, lojas, restaurantes, bares, teatros, cinemas, vários palcos ao ar livre, onde se apresentavam artistas e músicos de diversos estilos. A frequência variava nas idades. Os idosos participavam ativamente dos jogos e eventos culturais. Mas também abundavam os cassinos, com roletas, máquinas caça-níqueis, fliperamas e outras arapucas.
Após o horário comercial o parque lotou, multiplicando-se as atividades. Música, acrobacias, peças ligeiras de teatro, improvisações. O público assistia e aplaudia com entusiasmo, principalmente os mais idosos. A impressão era de que quase toda a cidade afluía ao local.
Embarquei à noite em trem a Estocolmo. Os vagões lotaram e ficou difícil adormecer nos bancos desconfortáveis. Ao cruzar o mar Báltico, os vagões subiram na balsa, sem a necessidade de desembarque dos passageiros. Na cabine se encontrava grupo animado com idades na faixa dos vinte e poucos anos. Entre eles uma jovem, morena, de olhos e cabelos negros, sorridente, rosto cativante, jeito de paulistana, mas legítima italiana, calabresa morando em Roma.  Fizemos companhia um ao outro para passar, da maneira mais agradável possível, a longa noite.
O trem atingiu a estação ferroviária de Estocolmo no começo da manhã.
A italiana me acompanhou nas andanças pela cidade. Almoçamos juntos, trocamos olhares, abrimos possibilidades. Retornamos ao albergue no final da tarde.
Situado em uma das ilhas de Estocolmo, o albergue da juventude ficava de frente à cidade velha, a Gamla Stan. E, como se isso não bastasse, o entardecer nos presenteou com um pôr-do-sol onde as luzes amarelas e alaranjadas tingiram os prédios antigos refletidos nas águas do mar.
Eu, a italiana e outros colegas de albergue saímos pela noite. Notei que ela vestia a mesma roupa que saíra de Copenhague, não tomara banho e nem sequer deixara a recepção enquanto eu me banhava e me trocava. Escolhemos bar ao ar livre, alegre, mas com preços absurdamente caros. Enrolei o mais que pude com um coquetel aguado.
A cidade de Estocolmo realmente encantava. Distribuía-se em ilhas ligadas por pontes apenas nos trechos mais estreitos e centrais. De cada uma delas se tinha visão privilegiada das demais. A ilha onde ficava Gamla Stan, guardava construções históricas e preservadas, palácios, ruas estreitas e medievais. Outra ilha incluía o centro comercial e moderno. A ilha mais ao sul e pouco ocupada reservava imensa área verde com parques, bosques, museus, muita área livre para relaxar.
No centro comercial e financeiro, vendedores ambulantes espalhavam-se pelas calçadas, oferecendo de tudo ao microfone. Artistas mambembes se esforçavam para chamar a atenção dos passantes. As barracas da feira central ofereciam frutas e verduras. Por outro lado, muita música estadunidense e o excesso de propagandas comerciais tornavam as lanchonetes e afins locais insuportáveis.

Visitamos o bairro residencial de Ostermalm com apartamentos de até sete andares distribuídos em ruas arborizadas e tranquilas. Apesar de pequenos, não faltavam ao redor parques e praças, sempre bem cuidados.
A população vestia-se bem, mas sem luxo ou sofisticação. Havia os que se soltavam e caíam na descontração total. Praticamente não se viam mendigos nem tampouco pessoas vasculhando lixo. A polícia raramente dava o ar da graça. A miscigenação racial era notada, ao contrário da Dinamarca. Exilados ou imigrados adotaram, temporária ou definitivamente, a Suécia como novo país. Cinco mil chilenos se exilavam no país fugindo dos horrores da ditadura militar no Chile, comandada por Pinochet, mas criminosamente apoiada e financiada pelo regime estadunidense.
Novamente, no final da tarde, voltamos ao albergue. Novamente a italiana não tomou banho e nem se trocou. A mesma camiseta, a mesma calça, a mesma roupa desde a Dinamarca. Eu nem desconfiava desde quando ela se mantinha assim. Sob a unhas das mãos dela se formavam linhas escuras. O cabelo ensebado se empapava. Manchas suspeitas despontavam sobre os braços e odores desagradáveis exalavam do corpo dela. Minha atração inicial evoluiu para a desconfiança, suspeitas graves, e finalmente a repulsa.
Subi em barco que me transportou ao lago Malaren, onde ficava o palácio real, residência oficial da monarquia sueca. Imensos e vistosos jardins tornavam-no ideal para descanso. Mas valeu principalmente pelo trajeto de barco.
O tempo mantinha-se excelente, com céu azul, sol, temperaturas amenas. Escurecia tarde. Enorme e alaranjada lua cheia surgiu com as luzes refletidas nas águas do mar. Do albergue, com a cidade antiga bem à frente, o acender das primeiras luzes realçou todo o charme da cidade. O luar, a iluminação pública, a disposição das ilhas, o urbanismo humano e de bom gosto, a água do mar, compunham cenário de cair o queixo.
Tomei trem e ônibus até a Sigtuma, datada do século XI e considerada a cidade mais antiga da Suécia. Casas de madeira ocupavam a rua principal e as transversais. Espécie de Embu das Artes sueca, Sigtuma era frequentada principalmente por suecos da capital, em meio a lojas de antiguidades, apresentações de danças folclóricas, corais e brincadeiras com os artistas vestidos à moda antiga.  
Mais um ônibus a Marsta e mais um trem me levaram a Uppsala. A antiga capital sueca guardava bela catedral, sede do arcebispado nacional. Ninguém nas ruas naquele domingo à tarde. A fama da antiga universidade e principalmente as cenas inesquecíveis em preto e branco do filme Morangos Silvestres me despertaram a curiosidade de visitar Uppsala. Porém, em cores e sem a presença da estonteante Ingrid Thulin, a terra natal do diretor Ingmar Bergman perdia todo brilho.
Um alemão praticamente morava no albergue em Estocolmo. Estudante de línguas escandinavas, fez do quarto a residência e o escritório de estudos. Simpático e falante, o estudante tornou-se companheiro de discussões sobre a Escandinávia, Alemanha, Europa, Brasil, o mundo, geralmente no final da tarde, quando eu voltava das caminhadas para tomar banho e descansar. Curioso e bom ouvinte, ele me questionou sobre a destruição da Amazônia brasileira. Certo de que ele ignorava que aquela questão não se restringia ao Brasil e aos brasileiros, expliquei-lhe que as grandes empresas transnacionais, incluídas as alemãs, lucravam com a devastação da floresta. E que o mundo consumia a madeira nobre e demais matérias primas arrancadas do Brasil a preços mínimos, graças aos baixos salários e às condições desumanas impostas aos trabalhadores brasileiros. O alemão ouvia com atenção e parecia captar a realidade até então bloqueada pela ditadura dos meios de comunicação da burguesia.
Fui a Djurgarden, ilha imensa e pouco habitada, coberta de bosques e parques. Na beira do mar báltico, estava o Vasa, velho navio datado do século XVII. O parque Skansen concentrava o principal do verde da ilha. No amplo e bem cuidado espaço, as diversas trilhas permitiam melhor exploração do interior dos bosques e maior contato com a natureza. Destino ideal para relaxar, refletir, namorar.  
Ao entardecer, barcos promoviam festas e jantares dançantes sobre as águas do mar. Iluminados e alegres, levavam passageiros navegando próximos ou entre as ilhas que compunham Estocolmo, emitindo sons ao vivo de jazz, blues e outros gêneros musicais, todos ao mesmo tempo. À noite os sinos das igrejas badalavam melodicamente por longo tempo e a acústica das ilhas separadas pelas águas causavam efeito acústico para lá de instigante.
Repeti a caminhada à cidade velha, agora mais lenta e detalhadamente, sem a companhia da simpática, mas suja e fedida italiana. Me deixei levar pela atmosfera medieval e bem preservada das vielas, ladeiras, casarões, passarelas superiores, harmonia arquitetônica, cafés, pequenos e caros restaurantes.
Eu evitava comer em restaurantes, os caríssimos restaurantes suecos e escandinavos em geral. Forçosamente apelava a supermercados, onde adquiria pães, frios, queijos, cremes de queijo, água ou sucos industrializados, frutas, chocolates e demais itens para garantir a melhor alimentação possível. Comia em parques ou em áreas comuns do próprio albergue. Era pura questão de sobrevivência financeira.
continua...

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

da Inglaterra à Suiça (parte 4/4)

...continuação
O quarto alugado se localizava nos morros residenciais de Buda, lado oeste do rio Danúbio. As ruas curvas e acidentadas se cobriam de árvores. Sobrados e conjuntos de quatro andares predominavam. Peste, a parte plana e mais agitada da cidade, com o comércio instalado em enormes e antigas construções, prédios públicos, pontos de lazer, ficava na margem oposta do rio. A maioria das construções de Peste remetia à virada do século XIX para o XX. Palácios, museus, monumentos, autarquias, grandes e imponentes, forneciam ar antigo e pesado à cidade. Bares e restaurantes com cadeiras ao ar livre se espalhavam pelas calçadas e serviam café, chá, bebidas, comidas, doces. Linhas de bonde corriam paralelas às águas do rio.
Com mais de dois milhões de habitantes, Budapeste era bonita e com personalidade, arborizada, saudável. O transporte público cobria todas as regiões, seja ônibus, bonde ou metrô. Alguns deles eram conduzidos por mulheres. E tudo era muito barato na Hungria.
Os moradores vestiam-se de maneira variada, com roupas jovens, sóbrias ou até ousadas. Apesar da impossibilidade da comunicação, os húngaros mostravam boa vontade em me auxiliar. Muitas mulheres encantavam pela beleza, olhos amendoados, insinuantes. Predominavam as morenas claras, e não as loiras. Olhavam, sorriam, queriam conversar.
O distrito do Castelo, elevado, na parte sul de Buda, reservava visão privilegiada de Peste, em especial do imponente parlamento. O castelo possuía um grande palácio, vários museus, e nada cobravam para entrar. Mais adiante ficava a igreja de Mathias e, ao lado, o Templo do Pescador com muralhas medievais e torres pontiagudas. Todo o conjunto formava complexo em estilo similar ao barroco, cercado por ruas e becos sinuosos.
Entretanto, nas proximidades daquela região histórica, incrustado nas ruínas do antigo castelo, fora construído hotel moderno com dez andares envidraçados, pertencente à rede transnacional de hotelaria. Destoava dos arredores pelo mau gosto e pela agressão à cultura húngara.
Modernas e eficientes, as três linhas do metrô cobriam boa parte de Peste. A sinalização, contudo, deixava a desejar, seja nos trens ou fora deles. Eu nunca sabia o nome e nem qual linha pegar nas estações. Dentro dos vagões a situação não melhorava, pois nas paradas não se via o nome das estações escritas nas paredes da plataforma. Eu apenas ouvia a voz, em húngaro, dos alto-falantes. A saída era contar as paradas e desembarcar.
As pessoas em geral demonstravam felicidade e alegria nas ruas. Riam, falavam e cantavam muito. Presenciei grupos de amigos cantando e dançando canções ciganas até alta madrugada na região central da cidade. Curiosos se aproximavam e os mais atirados se juntavam à cantoria. Tudo livre, descontraído, sem excesso de álcool ou estimulantes afins.

Não existiam cartazes nas ruas com propaganda comercial ou política. Não se percebia sob qual forma de governo se vivia. Muito diferente da caricatura divulgada pelos países capitalistas sobre aquele país rotulado de comunista. Jamais vi a polícia circulando pelas ruas.
Segui por larga, extensa e arborizada avenida. Nos dois lados da avenida se prolongava uma sucessão de conjuntos arquitetônicos históricos que davam ao ambiente a impressão de se caminhar na virada do século XIX. Neles se encontravam cinemas, teatros, museus, embaixadas. A avenida se encerrava no portal do parque da cidade. Os moradores afluíam ao local naquele domingo ensolarado. De vez em quando eu conseguia tirar sorrisos das mulheres, me fazendo bem depois de tanto tempo cercado pelas frias europeias dos outros países.
Segui de metrô a um bairro no extremo leste da cidade. De um lado, conjuntos habitacionais de até dez andares, separados por pátios e jardins. No lado oposto, antigos e grandes sobrados cortados por alamedas sombreadas e charmosas. Árvores de diversos tipos enfeitavam as calçadas cobertas de folhas caídas do outono. Hortas, galinheiros, jardins ou gramados razoavelmente bem cuidados ocupavam os quintais dos sobrados. As alamedas desenhavam um cenário aconchegante de passear e se morar. Tudo parecia bem silencioso e tranquilo, apesar da proximidade da estação do metrô, terminal de ônibus urbano e linhas de bonde.
Eu queria visitar uma cidade pequena do interior da Hungria que não fosse turística ou visitada por estrangeiros. Analisei o mapa e escolhi Békéscsaba, situada no sudeste do país, a vinte quilômetros da fronteira com a Romênia. E nem constava dos guias turísticos.
Escrevi o nome da cidade num pedaço de papel. A funcionária do guichê da estação ferroviária escreveu o preço no mesmo papel. O trem percorreu duzentos quilômetros de infinitas planícies cultivadas de milho e outros grãos, cortadas por vilarejos, e Szolnok, cidade de porte médio. Pequenos bosques e raras ovelhas quebravam a uniformidade do extenso puszta húngaro.
Cidade agrícola, planejada, com avenidas largas, Békéscsaba contava com centro antigo, ocupado por igrejas barrocas e casarões. A maioria das habitações era de conjunto de apartamentos distribuídos em superquadras. Cartazes e convocações indicavam grande variedade de opções culturais nos inúmeros teatros, cinemas e videotecas existentes. Também não faltavam creches e lavanderias públicas para desafogar as tarefas caseiras, sobretudo das mulheres.
Békéscsaba contava com comércio bem desenvolvido, lojas que ofereciam de tudo, restaurantes de boa aparência e convidativos. Obras de canalização de água e esgoto nos conjuntos habitacionais, calçamento de ruas, surgiam nas periferias. Em todas havia calçadas arborizadas na forma de alamedas com árvores que ofereciam frutos avermelhados, semelhantes à cereja. Na periferia sul da cidade, caminho da estrada à Romênia e próximo a fábricas, canais de água corriam a céu aberto entre as casas ao longo das ruas não pavimentadas, geralmente em mal estado e cobertas de poeira.
Crianças das escolas primárias atravessavam as ruas em grupos e sempre acompanhadas pelas professoras. Jovens roqueiros se postavam na frente das videotecas. Não se viam vadios, mendigos ou favelas. Barracas fixas com venda de produtos nas ruas substituíam os incômodos ambulantes.
Como não podia deixar de ser em cidade não visitada por turistas, eu era observado com curiosidade em Békéscsaba. Alguns riam entre si e faziam comentários incompreensíveis. Escolhi restaurante simples para almoçar. Os demais clientes me olharam na hora. O garçom assustado me entregou o cardápio em húngaro. Apontei um prato qualquer da lista. Desconfiado, ele encaminhou o pedido à cozinha. E veio mais uma opção barata e boa da culinária húngara.
Voltei à noite para Budapeste.

À cerca de vinte minutos de trem do centro da capital, a bucólica Szentendre se assentava na margem de braço do rio Danúbio. A cidade erguida em estilo barroco lembrava as similares brasileiras, como Embu das Artes. Tamanho reduzido, cheia de becos e vielas sinuosas, muitas em ladeiras, com calçamento de pedra, por entre casarões pintados e com janelas envernizadas, igrejas antigas, lojas de artesanato. Diversos turistas circulavam pelas ruas da cidadezinha bem conservada. Ali o Danúbio era realmente azul, limpo e bom para a pesca. Havia pequenas praias, mas a baixa temperatura das águas devia humilhar até as cachoeiras dos altos da serra da Mantiqueira no sudeste do Brasil.
De volta a Budapeste, músicos se apresentavam em praças do centro em busca de trocados. Os húngaros consumiam muito sorvete, de todos os tipos, em inúmeras sorveterias espalhadas pela cidade. Dentro das passagens subterrâneas e estações do metrô, ambulantes vendiam correntes, blusas, batons, relógios. Nada de barracas ou esteiras, mas oferecendo os produtos nas próprias mãos e braços.
Mais largo que o Tâmisa em Londres, o Danúbio contava com águas castanhas a acinzentadas, limpas, cheias de peixes. Dezenas de pescadores nas margens não tinham do que reclamar. Nem os pássaros com voos rasantes em busca de alimentos. Poucas embarcações subiam e desciam o rio. Em razão das altas latitudes, o sol nunca ficava a pino, as sombras se alongavam e as cores brilhavam com mais intensidade.
Embarquei no trem para a Áustria, com a cabine ocupada por um casal chinês, uma senhora húngara e um francês que fora visitar parentes, companhias que empolgaram pelas conversas, troca de ideias, bons momentos de interação cultural.
Após conexão fulminante em Viena, o novo trem contava com mais conforto nas cadeiras, mas preços proibitivos nos lanches oferecidos. De volta à Europa ocidental.
A partir de Salzburgo a paisagem começou a dar espetáculos entre altas e escarpadas montanhas, cortadas por riachos encachoeirados, bosques de pinheiros e afins. Infelizmente logo anoiteceu.
Nova troca de trens. Alternavam-se passageiros de língua germânica, me maltratando os ouvidos com sons ásperos. A cabeça latejava de ouvir incessantemente pessoas que mais discursavam, ou anunciavam a próxima invasão bárbara, do que conversavam em volume civilizado. Me sentia aliviado quando desembarcavam e a cabine mergulhava na tranquilidade. Acabou por sobrar eu e uma senhora russa que não entendia nada de inglês. Mas ganhava dos demais pela simpatia e calor humano. Nos comunicamos mais por mímica. Descobrimos as respectivas nacionalidades somente depois de mostrarmos os passaportes. Porém a dificuldade de comunicação logo interrompia a ameaça de diálogo. E ela se recostava no banco de frente ao meu, colava o rosto na janela da cabine, mirava a escuridão, apontava e dizia:
“cosmos”, “cosmos”.
Desembarquei no meio da noite em Innsbruck. O balcão de informações turísticas já se fechara. Pedi informações ao guarda e soube qual ônibus urbano pegar ao albergue da juventude. O albergue estava lotado. A mulher da recepção parecia inflexível. Me sugeriu hotel nas redondezas, mas o preço doía nos bolsos. Com ares de vítima, lhe transferi a responsabilidade de me conseguir hospedagem naquela noite. Talvez por arrependimento, ela reviu a lista dos quartos e “descobriu” que existiam vagas. Lançou-me olhar falso de quem salvara alguém da forca. Mantive a farsa e a agradeci repetidamente. Fiz o menor barulho possível no quarto já com luzes apagadas e com duas pessoas adormecidas.
Típica cidade encravada entre as montanhas, destino de turismo local e internacional, Innsbruck primava pela organização, limpeza e zelo em cada centímetro. O centro histórico não decepcionava, mas o destaque ficou por conta dos picos alpinos que circundam a cidade. Poucos edifícios altos se isolavam em meio a casarões com arquitetura rebuscada e as onipresentes flores nas janelas. Bares, restaurantes, cafés com mesinhas, se estendiam por ruas e becos bloqueados ao trânsito. Passagens em arco apareciam para aumentar o charme do local. Estreito córrego de águas esverdeadas cortava a cidade tirolesa.
A subida até o cume do pico Hafelekar, em três etapas, foi em bondinhos coletivos. Cada uma das paradas contava com bares, restaurantes, de qualidade e preços razoáveis. O visual do alto deslumbrava, apesar de raríssimos pontos de neve. Dezenas de pássaros de penas pretas revoavam por ali. Do alto, Innsbruck não parecia tão pequena como sugeria a primeira impressão.
Vez ou outra eu me deparava com moradores, principalmente os idosos, vestidos à moda tirolesa. Calças de tecido xadrez até a canela, meia soquete, paletó curto, chapéu decorado com pena de pássaro.
Tomei trem para a Suíça. Muitas montanhas, vales profundos cortados por rios de águas esverdeadas, pequenas casas esparsas em plantações ou bosques de pinheiros predominavam naquele pedaço da Áustria. A ferrovia cortava elevados paredões rochosos escarpados ou via extensos túneis. O trem cruzou a fronteira da Suíça, seguida de rápida verificação de passaportes dentro da cabine. Vales amplos guardavam vilarejos. Despontavam lagos de tamanhos variados e com águas esverdeadas.
Em Sargais troquei para trem com corredor central e desconfortável. Desembarquei na estação ferroviária de Zurique, confusa, lotada, suja. Desocupados loiros e de olhos azuis esperavam o cochilo de viajantes para roubá-los. Nem os copos dos bares escapavam. Os garçons bobeavam e objetos sumiam para dentro de bolsas e sacolas. Gente e mais gente se amontoava pelo saguão principal, cafés, bares, restaurantes e plataformas.
Após nova conexão para outro trem desconfortável, desembarquei finalmente em Lucerna. Segui a manada de mochileiros até o ponto de ônibus que nos levaria ao albergue da juventude. Foi o de diária mais cara naquela viagem, além de entupido de crianças e muito barulho pelos corredores.
Lucerna, nas margens do lago de mesmo nome, cercava-se de altas montanhas. Ao lado de colegas australianos do albergue, subi a pé o pico Pilatus. Recusamos, é claro, o caro teleférico que cobrava uma fortuna pela subida. Várias trilhas levavam ao topo em meio a bosques de pinheiros cortados por pequenos córregos gelados. Chalés vendendo comes e bebes, banheiros com água encanada, apareciam periodicamente. Sentamos, comemos o lanche adquirido na cidade, conversamos sobre viagens e destinos. 
Lucerna também contava com centro antigo, marcado por várias torres e ruas estreitas. Patos e cisnes flutuavam nas águas esverdeadas do lago. Não era raro observar pequenos gramados inclinados e ocupados por vacas e bois, formando imagens das embalagens de chocolate. Lojas, bares, restaurantes, cafés com mesinhas ao ar livre, alegravam as margens do lago com frequência variada, principalmente de suíços jovens. Mas não dava para sentar em nenhum deles. Os preços assustavam e afastavam viajantes independentes. Na Suíça tudo era caro, inclusive os chocolates, os queijos, os canivetes vermelhos.
Idosos circulavam sempre lançando olhares de censura aos jovens e estrangeiros. Aliás, os suíços, de qualquer idade, empinavam os narizes, se mostravam arrogantes, racistas, em clara demonstração de ódio e discriminação a estrangeiros. E contrariando a fama de país pacífico e neutro, militares patrulhavam por todos os lados, sempre fardados, em grupos, fortemente armados. Estavam no interior dos trens, estações, praças, ruas, observando tudo e todos.
Os simpáticos colegas australianos, morenos e descendentes de aborígines, me apresentaram a outros australianos, esses anglo-saxões. Mas esses loiros não eram agradáveis ou acolhedores. Adoravam contar lorotas sobre as conquistas sexuais na Tailândia, país famigerado pelo turismo sexual, inclusive de menores. Um deles abusou da ignorância e cometeu o atentado de dizer que nunca estivera na África ao ouvir minhas descrições entusiasmadas de Cuba.
Retornei a Zurique que, com cerca de quatrocentos mil habitantes, tinha movimento de cidade grande, trânsito de cidade grande, comércio de cidade grande. Também possuía centro antigo com becos e vielas, calçamento de pedra e dezenas de lojas, restaurantes e bares com mesinhas na calçada. A maioria dos moradores exagerava na arrogância do andar, olhar, falar. Propaganda de cigarros e bebidas poluía a paisagem nas paredes, muros e prédios. Quase todos os filmes em cartaz eram estadunidenses, legendados em três línguas, alemão, francês e italiano. O terço inferior da tela ficava coberto com as frases das legendas. Pelo menos não eram dublados como acontecia em países europeus vizinhos.
Em Zurique, novamente a presença ostensiva de militares fardados e fortemente armados perturbava os ambientes, parecendo praças de guerra. Assustador e inexplicável.
Depois de enrolar pela cidade, salas de cinema, me dirigi de trem ao aeroporto de Zurique.
Embarquei de volta a São Paulo em voo noturno em meados de outubro.