...continuação
O quarto alugado se localizava nos morros residenciais de Buda,
lado oeste do rio Danúbio. As ruas curvas e acidentadas se cobriam de árvores.
Sobrados e conjuntos de quatro andares predominavam. Peste, a parte
plana e mais agitada da cidade, com o comércio instalado em enormes e antigas
construções, prédios públicos, pontos de lazer, ficava na margem oposta do rio.
A maioria das construções de Peste remetia à virada do século XIX para o
XX. Palácios, museus, monumentos, autarquias, grandes e imponentes, forneciam
ar antigo e pesado à cidade. Bares e restaurantes com cadeiras ao ar livre se
espalhavam pelas calçadas e serviam café, chá, bebidas, comidas, doces. Linhas
de bonde corriam paralelas às águas do rio.
Com mais de dois milhões de habitantes, Budapeste era
bonita e com personalidade, arborizada, saudável. O transporte público cobria
todas as regiões, seja ônibus, bonde ou metrô. Alguns deles eram conduzidos por
mulheres. E tudo era muito barato na Hungria.
Os moradores vestiam-se de maneira variada, com roupas
jovens, sóbrias ou até ousadas. Apesar da impossibilidade da comunicação, os
húngaros mostravam boa vontade em me auxiliar. Muitas mulheres encantavam pela
beleza, olhos amendoados, insinuantes. Predominavam as morenas claras, e não as
loiras. Olhavam, sorriam, queriam conversar.
O distrito do Castelo, elevado, na parte sul de Buda,
reservava visão privilegiada de Peste, em especial do imponente
parlamento. O castelo possuía um grande palácio, vários museus, e nada cobravam
para entrar. Mais adiante ficava a igreja de Mathias e, ao lado, o Templo do
Pescador com muralhas medievais e torres pontiagudas. Todo o conjunto formava
complexo em estilo similar ao barroco, cercado por ruas e becos sinuosos.
Entretanto, nas proximidades daquela região histórica,
incrustado nas ruínas do antigo castelo, fora construído hotel moderno com dez
andares envidraçados, pertencente à rede transnacional de hotelaria. Destoava
dos arredores pelo mau gosto e pela agressão à cultura húngara.
Modernas e eficientes, as três linhas do metrô cobriam boa
parte de Peste. A sinalização, contudo, deixava a desejar, seja nos
trens ou fora deles. Eu nunca sabia o nome e nem qual linha pegar nas estações.
Dentro dos vagões a situação não melhorava, pois nas paradas não se via o nome
das estações escritas nas paredes da plataforma. Eu apenas ouvia a voz, em
húngaro, dos alto-falantes. A saída era contar as paradas e desembarcar.
As pessoas em geral demonstravam felicidade e alegria nas
ruas. Riam, falavam e cantavam muito. Presenciei grupos de amigos cantando e
dançando canções ciganas até alta madrugada na região central da cidade.
Curiosos se aproximavam e os mais atirados se juntavam à cantoria. Tudo livre,
descontraído, sem excesso de álcool ou estimulantes afins.
Não existiam cartazes nas ruas com propaganda comercial ou
política. Não se percebia sob qual forma de governo se vivia. Muito diferente
da caricatura divulgada pelos países capitalistas sobre aquele país rotulado de
comunista. Jamais vi a polícia circulando pelas ruas.
Segui por larga, extensa e arborizada avenida. Nos dois
lados da avenida se prolongava uma sucessão de conjuntos arquitetônicos
históricos que davam ao ambiente a impressão de se caminhar na virada do século
XIX. Neles se encontravam cinemas, teatros, museus, embaixadas. A avenida se
encerrava no portal do parque da cidade. Os moradores afluíam ao local naquele
domingo ensolarado. De vez em quando eu conseguia tirar sorrisos das mulheres,
me fazendo bem depois de tanto tempo cercado pelas frias europeias dos outros
países.
Segui de metrô a um bairro no extremo leste da cidade. De
um lado, conjuntos habitacionais de até dez andares, separados por pátios e
jardins. No lado oposto, antigos e grandes sobrados cortados por alamedas
sombreadas e charmosas. Árvores de diversos tipos enfeitavam as calçadas cobertas
de folhas caídas do outono. Hortas, galinheiros, jardins ou gramados
razoavelmente bem cuidados ocupavam os quintais dos sobrados. As alamedas
desenhavam um cenário aconchegante de passear e se morar. Tudo parecia bem
silencioso e tranquilo, apesar da proximidade da estação do metrô, terminal de
ônibus urbano e linhas de bonde.
Eu queria visitar uma cidade pequena do interior da
Hungria que não fosse turística ou visitada por estrangeiros. Analisei o mapa e
escolhi Békéscsaba, situada no sudeste do país, a vinte quilômetros da
fronteira com a Romênia. E nem constava dos guias turísticos.
Escrevi o nome da cidade num pedaço de papel. A
funcionária do guichê da estação ferroviária escreveu o preço no mesmo papel. O
trem percorreu duzentos quilômetros de infinitas planícies cultivadas de milho
e outros grãos, cortadas por vilarejos, e Szolnok, cidade de porte médio.
Pequenos bosques e raras ovelhas quebravam a uniformidade do extenso puszta
húngaro.
Cidade agrícola, planejada, com avenidas largas,
Békéscsaba contava com centro antigo, ocupado por igrejas barrocas e casarões. A
maioria das habitações era de conjunto de apartamentos distribuídos em
superquadras. Cartazes e convocações indicavam grande variedade de opções
culturais nos inúmeros teatros, cinemas e videotecas existentes. Também não
faltavam creches e lavanderias públicas para desafogar as tarefas caseiras,
sobretudo das mulheres.
Békéscsaba contava com comércio bem desenvolvido, lojas
que ofereciam de tudo, restaurantes de boa aparência e convidativos. Obras de
canalização de água e esgoto nos conjuntos habitacionais, calçamento de ruas,
surgiam nas periferias. Em todas havia calçadas arborizadas na forma de
alamedas com árvores que ofereciam frutos avermelhados, semelhantes à cereja.
Na periferia sul da cidade, caminho da estrada à Romênia e próximo a fábricas,
canais de água corriam a céu aberto entre as casas ao longo das ruas não
pavimentadas, geralmente em mal estado e cobertas de poeira.
Crianças das escolas primárias atravessavam as ruas em
grupos e sempre acompanhadas pelas professoras. Jovens roqueiros se postavam na
frente das videotecas. Não se viam vadios, mendigos ou favelas. Barracas fixas
com venda de produtos nas ruas substituíam os incômodos ambulantes.
Como não podia deixar de ser em cidade não visitada por
turistas, eu era observado com curiosidade em Békéscsaba. Alguns riam entre si
e faziam comentários incompreensíveis. Escolhi restaurante simples para almoçar.
Os demais clientes me olharam na hora. O garçom assustado me entregou o
cardápio em húngaro. Apontei um prato qualquer da lista. Desconfiado, ele encaminhou
o pedido à cozinha. E veio mais uma opção barata e boa da culinária húngara.
Voltei à noite para Budapeste.
À cerca de vinte minutos de trem do centro da capital, a bucólica
Szentendre se assentava na margem de braço do rio Danúbio. A cidade erguida em
estilo barroco lembrava as similares brasileiras, como Embu das Artes. Tamanho
reduzido, cheia de becos e vielas sinuosas, muitas em ladeiras, com calçamento
de pedra, por entre casarões pintados e com janelas envernizadas, igrejas
antigas, lojas de artesanato. Diversos turistas circulavam pelas ruas da
cidadezinha bem conservada. Ali o Danúbio era realmente azul, limpo e bom para
a pesca. Havia pequenas praias, mas a baixa temperatura das águas devia
humilhar até as cachoeiras dos altos da serra da Mantiqueira no sudeste do
Brasil.
De volta a Budapeste, músicos se apresentavam em praças do
centro em busca de trocados. Os húngaros consumiam muito sorvete, de todos os
tipos, em inúmeras sorveterias espalhadas pela cidade. Dentro das passagens
subterrâneas e estações do metrô, ambulantes vendiam correntes, blusas, batons,
relógios. Nada de barracas ou esteiras, mas oferecendo os produtos nas próprias
mãos e braços.
Mais largo que o Tâmisa em Londres, o Danúbio contava com
águas castanhas a acinzentadas, limpas, cheias de peixes. Dezenas de pescadores
nas margens não tinham do que reclamar. Nem os pássaros com voos rasantes em
busca de alimentos. Poucas embarcações subiam e desciam o rio. Em razão das altas
latitudes, o sol nunca ficava a pino, as sombras se alongavam e as cores
brilhavam com mais intensidade.
Embarquei no trem para a Áustria, com a cabine ocupada por
um casal chinês, uma senhora húngara e um francês que fora visitar parentes,
companhias que empolgaram pelas conversas, troca de ideias, bons momentos de
interação cultural.
Após conexão fulminante em Viena, o novo trem contava com
mais conforto nas cadeiras, mas preços proibitivos nos lanches oferecidos. De
volta à Europa ocidental.
A partir de Salzburgo a paisagem começou a dar espetáculos
entre altas e escarpadas montanhas, cortadas por riachos encachoeirados,
bosques de pinheiros e afins. Infelizmente logo anoiteceu.
Nova troca de trens. Alternavam-se passageiros de língua
germânica, me maltratando os ouvidos com sons ásperos. A cabeça latejava de
ouvir incessantemente pessoas que mais discursavam, ou anunciavam a próxima
invasão bárbara, do que conversavam em volume civilizado. Me sentia aliviado
quando desembarcavam e a cabine mergulhava na tranquilidade. Acabou por sobrar
eu e uma senhora russa que não entendia nada de inglês. Mas ganhava dos demais
pela simpatia e calor humano. Nos comunicamos mais por mímica. Descobrimos as
respectivas nacionalidades somente depois de mostrarmos os passaportes. Porém a
dificuldade de comunicação logo interrompia a ameaça de diálogo. E ela se
recostava no banco de frente ao meu, colava o rosto na janela da cabine, mirava
a escuridão, apontava e dizia:
“cosmos”, “cosmos”.
Desembarquei no meio da noite em Innsbruck. O balcão de
informações turísticas já se fechara. Pedi informações ao guarda e soube qual
ônibus urbano pegar ao albergue da juventude. O albergue estava lotado. A
mulher da recepção parecia inflexível. Me sugeriu hotel nas redondezas, mas o
preço doía nos bolsos. Com ares de vítima, lhe transferi a responsabilidade de me
conseguir hospedagem naquela noite. Talvez por arrependimento, ela reviu a
lista dos quartos e “descobriu” que existiam vagas. Lançou-me olhar falso de
quem salvara alguém da forca. Mantive a farsa e a agradeci repetidamente. Fiz o
menor barulho possível no quarto já com luzes apagadas e com duas pessoas
adormecidas.
Típica cidade encravada entre as montanhas, destino de
turismo local e internacional, Innsbruck primava pela organização, limpeza e
zelo em cada centímetro. O centro histórico não decepcionava, mas o destaque
ficou por conta dos picos alpinos que circundam a cidade. Poucos edifícios
altos se isolavam em meio a casarões com arquitetura rebuscada e as
onipresentes flores nas janelas. Bares, restaurantes, cafés com mesinhas, se
estendiam por ruas e becos bloqueados ao trânsito. Passagens em arco apareciam
para aumentar o charme do local. Estreito córrego de águas esverdeadas cortava
a cidade tirolesa.
A subida até o cume do pico Hafelekar, em três etapas, foi
em bondinhos coletivos. Cada uma das paradas contava com bares, restaurantes, de
qualidade e preços razoáveis. O visual do alto deslumbrava, apesar de
raríssimos pontos de neve. Dezenas de pássaros de penas pretas revoavam por
ali. Do alto, Innsbruck não parecia tão pequena como sugeria a primeira
impressão.
Vez ou outra eu me deparava com moradores, principalmente
os idosos, vestidos à moda tirolesa. Calças de tecido xadrez até a canela, meia
soquete, paletó curto, chapéu decorado com pena de pássaro.
Tomei trem para a Suíça. Muitas montanhas, vales profundos
cortados por rios de águas esverdeadas, pequenas casas esparsas em plantações
ou bosques de pinheiros predominavam naquele pedaço da Áustria. A ferrovia
cortava elevados paredões rochosos escarpados ou via extensos túneis. O trem
cruzou a fronteira da Suíça, seguida de rápida verificação de passaportes
dentro da cabine. Vales amplos guardavam vilarejos. Despontavam lagos de
tamanhos variados e com águas esverdeadas.
Em Sargais troquei para trem com corredor central e
desconfortável. Desembarquei na estação ferroviária de Zurique, confusa, lotada,
suja. Desocupados loiros e de olhos azuis esperavam o cochilo de viajantes para
roubá-los. Nem os copos dos bares escapavam. Os garçons bobeavam e objetos sumiam
para dentro de bolsas e sacolas. Gente e mais gente se amontoava pelo saguão
principal, cafés, bares, restaurantes e plataformas.
Após nova conexão para outro trem desconfortável, desembarquei
finalmente em Lucerna. Segui a manada de mochileiros até o ponto de ônibus que
nos levaria ao albergue da juventude. Foi o de diária mais cara naquela viagem,
além de entupido de crianças e muito barulho pelos corredores.
Lucerna, nas margens do lago de mesmo nome, cercava-se de
altas montanhas. Ao lado de colegas australianos do albergue, subi a pé o pico
Pilatus. Recusamos, é claro, o caro teleférico que cobrava uma fortuna pela
subida. Várias trilhas levavam ao topo em meio a bosques de pinheiros cortados
por pequenos córregos gelados. Chalés vendendo comes e bebes, banheiros com
água encanada, apareciam periodicamente. Sentamos, comemos o lanche adquirido
na cidade, conversamos sobre viagens e destinos.
Lucerna também contava com centro antigo, marcado por
várias torres e ruas estreitas. Patos e cisnes flutuavam nas águas esverdeadas
do lago. Não era raro observar pequenos gramados inclinados e ocupados por
vacas e bois, formando imagens das embalagens de chocolate. Lojas, bares,
restaurantes, cafés com mesinhas ao ar livre, alegravam as margens do lago com frequência
variada, principalmente de suíços jovens. Mas não dava para sentar em nenhum
deles. Os preços assustavam e afastavam viajantes independentes. Na Suíça tudo era
caro, inclusive os chocolates, os queijos, os canivetes vermelhos.
Idosos circulavam sempre lançando olhares de censura aos jovens
e estrangeiros. Aliás, os suíços, de qualquer idade, empinavam os narizes, se mostravam
arrogantes, racistas, em clara demonstração de ódio e discriminação a
estrangeiros. E contrariando a fama de país pacífico e neutro, militares
patrulhavam por todos os lados, sempre fardados, em grupos, fortemente armados.
Estavam no interior dos trens, estações, praças, ruas, observando tudo e todos.
Os simpáticos colegas australianos, morenos e descendentes
de aborígines, me apresentaram a outros australianos, esses anglo-saxões. Mas esses
loiros não eram agradáveis ou acolhedores. Adoravam contar lorotas sobre as
conquistas sexuais na Tailândia, país famigerado pelo turismo sexual, inclusive
de menores. Um deles abusou da ignorância e cometeu o atentado de dizer que
nunca estivera na África ao ouvir minhas descrições entusiasmadas de Cuba.
Retornei a Zurique que, com cerca de quatrocentos mil
habitantes, tinha movimento de cidade grande, trânsito de cidade grande, comércio
de cidade grande. Também possuía centro antigo com becos e vielas, calçamento
de pedra e dezenas de lojas, restaurantes e bares com mesinhas na calçada. A
maioria dos moradores exagerava na arrogância do andar, olhar, falar. Propaganda
de cigarros e bebidas poluía a paisagem nas paredes, muros e prédios. Quase
todos os filmes em cartaz eram estadunidenses, legendados em três línguas,
alemão, francês e italiano. O terço inferior da tela ficava coberto com as
frases das legendas. Pelo menos não eram dublados como acontecia em países europeus
vizinhos.
Em Zurique, novamente a presença ostensiva de militares
fardados e fortemente armados perturbava os ambientes, parecendo praças de
guerra. Assustador e inexplicável.
Depois de enrolar pela cidade, salas de cinema, me dirigi de
trem ao aeroporto de Zurique.
Embarquei de volta a São Paulo em voo noturno em meados de
outubro.
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