sexta-feira, 9 de setembro de 2011

da Inglaterra à Suiça (parte 4/4)

...continuação
O quarto alugado se localizava nos morros residenciais de Buda, lado oeste do rio Danúbio. As ruas curvas e acidentadas se cobriam de árvores. Sobrados e conjuntos de quatro andares predominavam. Peste, a parte plana e mais agitada da cidade, com o comércio instalado em enormes e antigas construções, prédios públicos, pontos de lazer, ficava na margem oposta do rio. A maioria das construções de Peste remetia à virada do século XIX para o XX. Palácios, museus, monumentos, autarquias, grandes e imponentes, forneciam ar antigo e pesado à cidade. Bares e restaurantes com cadeiras ao ar livre se espalhavam pelas calçadas e serviam café, chá, bebidas, comidas, doces. Linhas de bonde corriam paralelas às águas do rio.
Com mais de dois milhões de habitantes, Budapeste era bonita e com personalidade, arborizada, saudável. O transporte público cobria todas as regiões, seja ônibus, bonde ou metrô. Alguns deles eram conduzidos por mulheres. E tudo era muito barato na Hungria.
Os moradores vestiam-se de maneira variada, com roupas jovens, sóbrias ou até ousadas. Apesar da impossibilidade da comunicação, os húngaros mostravam boa vontade em me auxiliar. Muitas mulheres encantavam pela beleza, olhos amendoados, insinuantes. Predominavam as morenas claras, e não as loiras. Olhavam, sorriam, queriam conversar.
O distrito do Castelo, elevado, na parte sul de Buda, reservava visão privilegiada de Peste, em especial do imponente parlamento. O castelo possuía um grande palácio, vários museus, e nada cobravam para entrar. Mais adiante ficava a igreja de Mathias e, ao lado, o Templo do Pescador com muralhas medievais e torres pontiagudas. Todo o conjunto formava complexo em estilo similar ao barroco, cercado por ruas e becos sinuosos.
Entretanto, nas proximidades daquela região histórica, incrustado nas ruínas do antigo castelo, fora construído hotel moderno com dez andares envidraçados, pertencente à rede transnacional de hotelaria. Destoava dos arredores pelo mau gosto e pela agressão à cultura húngara.
Modernas e eficientes, as três linhas do metrô cobriam boa parte de Peste. A sinalização, contudo, deixava a desejar, seja nos trens ou fora deles. Eu nunca sabia o nome e nem qual linha pegar nas estações. Dentro dos vagões a situação não melhorava, pois nas paradas não se via o nome das estações escritas nas paredes da plataforma. Eu apenas ouvia a voz, em húngaro, dos alto-falantes. A saída era contar as paradas e desembarcar.
As pessoas em geral demonstravam felicidade e alegria nas ruas. Riam, falavam e cantavam muito. Presenciei grupos de amigos cantando e dançando canções ciganas até alta madrugada na região central da cidade. Curiosos se aproximavam e os mais atirados se juntavam à cantoria. Tudo livre, descontraído, sem excesso de álcool ou estimulantes afins.

Não existiam cartazes nas ruas com propaganda comercial ou política. Não se percebia sob qual forma de governo se vivia. Muito diferente da caricatura divulgada pelos países capitalistas sobre aquele país rotulado de comunista. Jamais vi a polícia circulando pelas ruas.
Segui por larga, extensa e arborizada avenida. Nos dois lados da avenida se prolongava uma sucessão de conjuntos arquitetônicos históricos que davam ao ambiente a impressão de se caminhar na virada do século XIX. Neles se encontravam cinemas, teatros, museus, embaixadas. A avenida se encerrava no portal do parque da cidade. Os moradores afluíam ao local naquele domingo ensolarado. De vez em quando eu conseguia tirar sorrisos das mulheres, me fazendo bem depois de tanto tempo cercado pelas frias europeias dos outros países.
Segui de metrô a um bairro no extremo leste da cidade. De um lado, conjuntos habitacionais de até dez andares, separados por pátios e jardins. No lado oposto, antigos e grandes sobrados cortados por alamedas sombreadas e charmosas. Árvores de diversos tipos enfeitavam as calçadas cobertas de folhas caídas do outono. Hortas, galinheiros, jardins ou gramados razoavelmente bem cuidados ocupavam os quintais dos sobrados. As alamedas desenhavam um cenário aconchegante de passear e se morar. Tudo parecia bem silencioso e tranquilo, apesar da proximidade da estação do metrô, terminal de ônibus urbano e linhas de bonde.
Eu queria visitar uma cidade pequena do interior da Hungria que não fosse turística ou visitada por estrangeiros. Analisei o mapa e escolhi Békéscsaba, situada no sudeste do país, a vinte quilômetros da fronteira com a Romênia. E nem constava dos guias turísticos.
Escrevi o nome da cidade num pedaço de papel. A funcionária do guichê da estação ferroviária escreveu o preço no mesmo papel. O trem percorreu duzentos quilômetros de infinitas planícies cultivadas de milho e outros grãos, cortadas por vilarejos, e Szolnok, cidade de porte médio. Pequenos bosques e raras ovelhas quebravam a uniformidade do extenso puszta húngaro.
Cidade agrícola, planejada, com avenidas largas, Békéscsaba contava com centro antigo, ocupado por igrejas barrocas e casarões. A maioria das habitações era de conjunto de apartamentos distribuídos em superquadras. Cartazes e convocações indicavam grande variedade de opções culturais nos inúmeros teatros, cinemas e videotecas existentes. Também não faltavam creches e lavanderias públicas para desafogar as tarefas caseiras, sobretudo das mulheres.
Békéscsaba contava com comércio bem desenvolvido, lojas que ofereciam de tudo, restaurantes de boa aparência e convidativos. Obras de canalização de água e esgoto nos conjuntos habitacionais, calçamento de ruas, surgiam nas periferias. Em todas havia calçadas arborizadas na forma de alamedas com árvores que ofereciam frutos avermelhados, semelhantes à cereja. Na periferia sul da cidade, caminho da estrada à Romênia e próximo a fábricas, canais de água corriam a céu aberto entre as casas ao longo das ruas não pavimentadas, geralmente em mal estado e cobertas de poeira.
Crianças das escolas primárias atravessavam as ruas em grupos e sempre acompanhadas pelas professoras. Jovens roqueiros se postavam na frente das videotecas. Não se viam vadios, mendigos ou favelas. Barracas fixas com venda de produtos nas ruas substituíam os incômodos ambulantes.
Como não podia deixar de ser em cidade não visitada por turistas, eu era observado com curiosidade em Békéscsaba. Alguns riam entre si e faziam comentários incompreensíveis. Escolhi restaurante simples para almoçar. Os demais clientes me olharam na hora. O garçom assustado me entregou o cardápio em húngaro. Apontei um prato qualquer da lista. Desconfiado, ele encaminhou o pedido à cozinha. E veio mais uma opção barata e boa da culinária húngara.
Voltei à noite para Budapeste.

À cerca de vinte minutos de trem do centro da capital, a bucólica Szentendre se assentava na margem de braço do rio Danúbio. A cidade erguida em estilo barroco lembrava as similares brasileiras, como Embu das Artes. Tamanho reduzido, cheia de becos e vielas sinuosas, muitas em ladeiras, com calçamento de pedra, por entre casarões pintados e com janelas envernizadas, igrejas antigas, lojas de artesanato. Diversos turistas circulavam pelas ruas da cidadezinha bem conservada. Ali o Danúbio era realmente azul, limpo e bom para a pesca. Havia pequenas praias, mas a baixa temperatura das águas devia humilhar até as cachoeiras dos altos da serra da Mantiqueira no sudeste do Brasil.
De volta a Budapeste, músicos se apresentavam em praças do centro em busca de trocados. Os húngaros consumiam muito sorvete, de todos os tipos, em inúmeras sorveterias espalhadas pela cidade. Dentro das passagens subterrâneas e estações do metrô, ambulantes vendiam correntes, blusas, batons, relógios. Nada de barracas ou esteiras, mas oferecendo os produtos nas próprias mãos e braços.
Mais largo que o Tâmisa em Londres, o Danúbio contava com águas castanhas a acinzentadas, limpas, cheias de peixes. Dezenas de pescadores nas margens não tinham do que reclamar. Nem os pássaros com voos rasantes em busca de alimentos. Poucas embarcações subiam e desciam o rio. Em razão das altas latitudes, o sol nunca ficava a pino, as sombras se alongavam e as cores brilhavam com mais intensidade.
Embarquei no trem para a Áustria, com a cabine ocupada por um casal chinês, uma senhora húngara e um francês que fora visitar parentes, companhias que empolgaram pelas conversas, troca de ideias, bons momentos de interação cultural.
Após conexão fulminante em Viena, o novo trem contava com mais conforto nas cadeiras, mas preços proibitivos nos lanches oferecidos. De volta à Europa ocidental.
A partir de Salzburgo a paisagem começou a dar espetáculos entre altas e escarpadas montanhas, cortadas por riachos encachoeirados, bosques de pinheiros e afins. Infelizmente logo anoiteceu.
Nova troca de trens. Alternavam-se passageiros de língua germânica, me maltratando os ouvidos com sons ásperos. A cabeça latejava de ouvir incessantemente pessoas que mais discursavam, ou anunciavam a próxima invasão bárbara, do que conversavam em volume civilizado. Me sentia aliviado quando desembarcavam e a cabine mergulhava na tranquilidade. Acabou por sobrar eu e uma senhora russa que não entendia nada de inglês. Mas ganhava dos demais pela simpatia e calor humano. Nos comunicamos mais por mímica. Descobrimos as respectivas nacionalidades somente depois de mostrarmos os passaportes. Porém a dificuldade de comunicação logo interrompia a ameaça de diálogo. E ela se recostava no banco de frente ao meu, colava o rosto na janela da cabine, mirava a escuridão, apontava e dizia:
“cosmos”, “cosmos”.
Desembarquei no meio da noite em Innsbruck. O balcão de informações turísticas já se fechara. Pedi informações ao guarda e soube qual ônibus urbano pegar ao albergue da juventude. O albergue estava lotado. A mulher da recepção parecia inflexível. Me sugeriu hotel nas redondezas, mas o preço doía nos bolsos. Com ares de vítima, lhe transferi a responsabilidade de me conseguir hospedagem naquela noite. Talvez por arrependimento, ela reviu a lista dos quartos e “descobriu” que existiam vagas. Lançou-me olhar falso de quem salvara alguém da forca. Mantive a farsa e a agradeci repetidamente. Fiz o menor barulho possível no quarto já com luzes apagadas e com duas pessoas adormecidas.
Típica cidade encravada entre as montanhas, destino de turismo local e internacional, Innsbruck primava pela organização, limpeza e zelo em cada centímetro. O centro histórico não decepcionava, mas o destaque ficou por conta dos picos alpinos que circundam a cidade. Poucos edifícios altos se isolavam em meio a casarões com arquitetura rebuscada e as onipresentes flores nas janelas. Bares, restaurantes, cafés com mesinhas, se estendiam por ruas e becos bloqueados ao trânsito. Passagens em arco apareciam para aumentar o charme do local. Estreito córrego de águas esverdeadas cortava a cidade tirolesa.
A subida até o cume do pico Hafelekar, em três etapas, foi em bondinhos coletivos. Cada uma das paradas contava com bares, restaurantes, de qualidade e preços razoáveis. O visual do alto deslumbrava, apesar de raríssimos pontos de neve. Dezenas de pássaros de penas pretas revoavam por ali. Do alto, Innsbruck não parecia tão pequena como sugeria a primeira impressão.
Vez ou outra eu me deparava com moradores, principalmente os idosos, vestidos à moda tirolesa. Calças de tecido xadrez até a canela, meia soquete, paletó curto, chapéu decorado com pena de pássaro.
Tomei trem para a Suíça. Muitas montanhas, vales profundos cortados por rios de águas esverdeadas, pequenas casas esparsas em plantações ou bosques de pinheiros predominavam naquele pedaço da Áustria. A ferrovia cortava elevados paredões rochosos escarpados ou via extensos túneis. O trem cruzou a fronteira da Suíça, seguida de rápida verificação de passaportes dentro da cabine. Vales amplos guardavam vilarejos. Despontavam lagos de tamanhos variados e com águas esverdeadas.
Em Sargais troquei para trem com corredor central e desconfortável. Desembarquei na estação ferroviária de Zurique, confusa, lotada, suja. Desocupados loiros e de olhos azuis esperavam o cochilo de viajantes para roubá-los. Nem os copos dos bares escapavam. Os garçons bobeavam e objetos sumiam para dentro de bolsas e sacolas. Gente e mais gente se amontoava pelo saguão principal, cafés, bares, restaurantes e plataformas.
Após nova conexão para outro trem desconfortável, desembarquei finalmente em Lucerna. Segui a manada de mochileiros até o ponto de ônibus que nos levaria ao albergue da juventude. Foi o de diária mais cara naquela viagem, além de entupido de crianças e muito barulho pelos corredores.
Lucerna, nas margens do lago de mesmo nome, cercava-se de altas montanhas. Ao lado de colegas australianos do albergue, subi a pé o pico Pilatus. Recusamos, é claro, o caro teleférico que cobrava uma fortuna pela subida. Várias trilhas levavam ao topo em meio a bosques de pinheiros cortados por pequenos córregos gelados. Chalés vendendo comes e bebes, banheiros com água encanada, apareciam periodicamente. Sentamos, comemos o lanche adquirido na cidade, conversamos sobre viagens e destinos. 
Lucerna também contava com centro antigo, marcado por várias torres e ruas estreitas. Patos e cisnes flutuavam nas águas esverdeadas do lago. Não era raro observar pequenos gramados inclinados e ocupados por vacas e bois, formando imagens das embalagens de chocolate. Lojas, bares, restaurantes, cafés com mesinhas ao ar livre, alegravam as margens do lago com frequência variada, principalmente de suíços jovens. Mas não dava para sentar em nenhum deles. Os preços assustavam e afastavam viajantes independentes. Na Suíça tudo era caro, inclusive os chocolates, os queijos, os canivetes vermelhos.
Idosos circulavam sempre lançando olhares de censura aos jovens e estrangeiros. Aliás, os suíços, de qualquer idade, empinavam os narizes, se mostravam arrogantes, racistas, em clara demonstração de ódio e discriminação a estrangeiros. E contrariando a fama de país pacífico e neutro, militares patrulhavam por todos os lados, sempre fardados, em grupos, fortemente armados. Estavam no interior dos trens, estações, praças, ruas, observando tudo e todos.
Os simpáticos colegas australianos, morenos e descendentes de aborígines, me apresentaram a outros australianos, esses anglo-saxões. Mas esses loiros não eram agradáveis ou acolhedores. Adoravam contar lorotas sobre as conquistas sexuais na Tailândia, país famigerado pelo turismo sexual, inclusive de menores. Um deles abusou da ignorância e cometeu o atentado de dizer que nunca estivera na África ao ouvir minhas descrições entusiasmadas de Cuba.
Retornei a Zurique que, com cerca de quatrocentos mil habitantes, tinha movimento de cidade grande, trânsito de cidade grande, comércio de cidade grande. Também possuía centro antigo com becos e vielas, calçamento de pedra e dezenas de lojas, restaurantes e bares com mesinhas na calçada. A maioria dos moradores exagerava na arrogância do andar, olhar, falar. Propaganda de cigarros e bebidas poluía a paisagem nas paredes, muros e prédios. Quase todos os filmes em cartaz eram estadunidenses, legendados em três línguas, alemão, francês e italiano. O terço inferior da tela ficava coberto com as frases das legendas. Pelo menos não eram dublados como acontecia em países europeus vizinhos.
Em Zurique, novamente a presença ostensiva de militares fardados e fortemente armados perturbava os ambientes, parecendo praças de guerra. Assustador e inexplicável.
Depois de enrolar pela cidade, salas de cinema, me dirigi de trem ao aeroporto de Zurique.
Embarquei de volta a São Paulo em voo noturno em meados de outubro.

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