quinta-feira, 1 de setembro de 2011

da Inglaterra à Suiça (parte 1/4)

Em 1986, o regime de José Sarney, não eleito pelo povo, mas parido do colégio eleitoral da ditadura, lançou pacote que, entre outras tantas arbitrariedades, impunha compulsório de 25% sobre as viagens ao exterior, tanto na passagem aérea como na aquisição de moeda estrangeira no câmbio oficial. E sem direito a devoluções posteriores. 
Embarquei em voo noturno no início de setembro. Desembarquei em Londres e passei pela imigração sem problemas.
Ao pegar as bagagens nas esteiras me dei conta que estava em país estranho, onde não conhecia ninguém. Eu não fizera nenhuma reserva de hospedagem. Nem contava com guias impressos. Procurei o balcão de informações turísticas. A loirinha inglesa me atendeu pacientemente, me passando alternativas baratas em quartos coletivos.
Peguei o metrô na estação sob o aeroporto. A linha e as estações próximas ao aeroporto eram de superfície. As composições balançavam mais que os trens de subúrbio de São Paulo. Entre os demais passageiros, havia amarelos, negros, indianos, paquistaneses, árabes, muitos vestidos a caráter. Tinha ingleses também, quase todos idosos vestindo casacos longos e cinzas de gabardine. A paisagem externa revelava bairros de classe média baixa e também de mais abonadas. Os campos esverdeados se prolongavam entre gramados, campos de futebol, quadras de tênis, parques. Desembarquei na estação de metrô Gloucester Road, após troca de linha com direito a elevador e ascensorista.
Bati em hotel simples, em rua residencial e calma. Peguei quarto coletivo com cinco camas e um banheiro. O quarto não lotava, dois israelenses e um irlandês me faziam companhia. O irlandês do interior, vestindo sempre terno e gravada, procurava emprego de professor de matemática. Os israelenses possuíam semblante triste e cansado. Tinham acabado o serviço militar obrigatório de três anos e se ressentiam de terem perdido tanto tempo da vida na opressão e repressão aos povos palestinos e árabes.

Caminhei pelos estupendos parques ingleses, o popular Hyde Park, e o Kesington Park, mais fascinante e diversificado. Nele, além dos infindáveis e charmosos gramados, prolongavam trechos mais sombreados e misteriosos, onde o verde e a vegetação densa prevaleciam.
Na maioria, as inglesas exibiam rostos atraentes. Pinturas exageradas, penteados de festa de gala e roupas muito alinhadas, no entanto, tiravam-lhes a espontaneidade e ofuscavam os dotes naturais. Longas capas, casacos, roupas largas impediam uma observação mais detalhada. Ninguém parecia notar a presença de ninguém nos espaços públicos. Eu me sentia invisível em todos os lugares. E não entendia como tanta gente se evitava, ignorando as pessoas próximas. Sociedade fria, cheia de regras e etiquetas, resultava nessa geladeira desumana. Não surgiam à toa as rebeldias, radicais e ingênuas, de parte da juventude britânica no comportamento, vestimentas, adornos, músicas, linguajar.
No início da noite, eu e os colegas do quarto, seguimos ao pub próximo ao hotel. O local se encheu rapidamente de ingleses e estrangeiros. A frieza e solidão dos ingleses nos primeiros momentos chamaram a atenção. Horas e copos de cerveja depois a situação mudava visivelmente. Riam e conversavam alto, aceitavam falar com estrangeiros, bebiam mais e mais. No fundo do pub um grupo jogava dardos, outro ia de sinuca. Havia mesas e bancos, mas a maioria permanecia de pé com copos na mão. Enxuguei três doses de uísque nacional. Pouco antes da meia noite, a sineta avisava o fechamento do estabelecimento. Fizeram-se os últimos pedidos. Saímos junto com os demais quando o pub fechou. As cenas eram deprimentes. Havia os que cambaleavam, os que vomitavam apoiados nos postes, até o que despencou na calçada lambuzando o terno. A partir dali os ingleses voltavam a ser solitários. Ninguém os acompanhava.
E não era raro ver nas escadas rolantes do metrô, declarações de amor entre desconhecidos. Pelo menos um dos lados, geralmente o masculino, estava para lá de bêbado. Só assim, pateticamente, para eles notarem as pessoas nas proximidades, se rebelarem, romperem os jurássicos códigos de conduta.
Reservei a manhã para visitar o imponente e bem conservado castelo de Windsor. Era usado pela família real aos finais de semana e feriados. Percorri os interiores, os extensos jardins primorosamente cuidados, os muros, as ameias. Aproveitei o visual sem entender absolutamente nada do que o guia local explicava. O sotaque ininteligível mal parecia ser da língua inglesa.

Na parte da tarde apreciei o palácio de Hampton Court, menos impressionante que o castelo, mas com jardins deslumbrantes na parte de trás.  A grama impecavelmente cortada mais parecia tapete felpudo. As árvores mutiladas geometricamente quebravam o encanto e retiravam a naturalidade do ambiente.
Voltei de barco pelo rio Tâmisa até o cais de Kingston. O sol da tarde valorizou a paisagem de campos, jardins, bosques, mansões de veraneio.
Sempre que chegava ao hotel, eu encontrava o irlandês deitado na cama, lendo ou fazendo palavras cruzadas. Ele sentia dificuldades para se empregar como professor, mas não perdia a esperança. Conversávamos bastante sobre profissões e países. Ele jamais saíra da Grã-Bretanha. Vinha de cidade pequena do interior da república da Irlanda e demonstrava muita ingenuidade. Mas oferecia companhia agradável e as opções de assuntos nunca terminavam.
Perambulei pelo centro financeiro de Londres, a City, com os bancos, a bolsa de valores, a rua Fleet, outrora famosa por contar com as sedes dos grandes jornais. Os destaques arquitetônicos ficaram por conta do prédio do banco da Inglaterra e a suntuosa catedral de São Paulo. No mais, poluição sonora, tráfego congestionado, multidões em calçadas entupidas.
Andei mais e atingi a estonteante Torre de Londres, uma das atrações mais interessantes da cidade. Enorme, imponente, fascinante e diversificada internamente, com castelos, palácios, museus, porões, masmorras, antigas e aterrorizantes salas de tortura, peças de artilharia, muralhas de pedra altíssimas. Guias vestidos à moda antiga acompanhavam pequenos grupos e descreviam a história do local, sempre ressaltando os trechos mais cruéis, sangrentos e apavorantes. Impostavam a voz e carregavam na dramaticidade nos detalhes dos crimes de famílias inteiras que morreram a golpes de pá, machado ou foram enterradas vivas nos charcos. Estupendas jóias da realeza expunham-se em salas rodeadas de guardas e de dispositivos de segurança. Diamantes, rubis e esmeraldas, muito ouro e prata, se ofereciam a olhos tentadores em país com a reputação de contar com os mais engenhosos ladrões do planeta.
As estações de metrô de Londres eram geralmente sujas e feias. Muitas estavam em conserto ou com paredes e pisos quebrados. À noite abundavam tocadores de violão, flauta, guitarra, percussão, que cantavam ou tocavam em troca de moedas. Eram loiros, negros, asiáticos, na tentativa árdua para sobreviverem.
Embarquei em barco no cais de Westminster à cidade de Greenwich, pelo rio Tâmisa. O trajeto permitiu apreciar Londres de perfil, sobretudo as margens do rio, às vezes abandonadas, com construções velhas ou em ruínas.
A cidadezinha de Greenwich envolvia instantaneamente pelo charme e arrumação. O parque impressionava pelos imensos gramados, canteiros de flores, bosques sombreados. Idosos com casacos acinzentados predominavam por ali, sentados em bancos, caminhando ou cuidando dos jardins, inclusive com tesouras para aparar o que estava fora das dimensões previstas. Esquilos soltos pela grama quebravam o silêncio.
O famoso barco Cutty Sark levava banhos contínuos de água a fim de preservar a madeira do casco. O Museu Marítimo e o Observatório Real, ambos demasiadamente técnicos, exibiam centenas de aparelhos de precisão. Ali perto, a linha imaginária do meridiano de Greenwich, acompanhada de mais mapas e gráficos.
A fim de evitar mais atrações turísticas, peguei o metrô e desci na última estação da zona leste, no subúrbio de Barking. Padronizado, triste e cinzento, com bom centro comercial, reservava sobrados geminados e estreitos, apartamentos subdivididos, todos iguais e com acabamentos em tijolinhos. Pouco antes das últimas estações erguiam-se sobrados mal conservados, sempre geminados, estreitos e de tijolinho. Um parecia cópia do outro. A monotonia do cenário deprimia logo à primeira vista.
À tarde liberei a preguiça no parque Regent. Verde abundante, primorosamente cuidado, entre gramados e jardins impecáveis, amplidão, tranquilidade, silêncio. Me sentei num dos tantos bancos disponíveis e me deixei ficar apreciando aquele paraíso.
Decidi me incluir em excursão aos interiores da Inglaterra e Escócia. O grupo compunha-se de turistas da Austrália, Canadá, África do Sul, Estados Unidos, Israel, Cingapura.

O ônibus saiu bem cedo. Depois de Bladon, parada perto de Woodstock, vilarejo onde nasceu e viveu boa parte da vida o antigo primeiro ministro britânico Winston Churchil. Parada imbecil e desnecessária servindo apenas para cultuar a personalidade de um dos testas-de-ferro da segunda guerra mundial. O frio e o vento castigaram em local tão inóspito.
Mais tarde permanecemos horas na estupenda Stratfford Upon Avon, cidade natal de Shakespeare, com ruas estreitas, construções de madeira com listas grossas claras e escuras. Pontes medievais cortavam o rio Avon, margeado por gramados extensos, parques, igrejas góticas. Nem a manada de turistas conseguia tirar o brilho da cidade. Tive tempo suficiente para perambular pela cidade, observar cada detalhe e almoçar com calma.
De volta à estrada, vilarejos, chácaras com casas de pedra. Grama, muita grama e verde se prolongavam para todos os lados.
Atingimos Chester sob a tarde ensolarada. A arquitetura se assemelhava a de Stratfford, mas enriquecida pelos portões em arco, simbolizando as entradas oficiais. No meio da zona urbana, aquedutos e muradas altas testemunhavam as invasões romanas. Os moradores entupiam as ruas comerciais. Faixas estendidas nas ruas chamavam a atenção para as iguarias inglesas servidas nos restaurantes e pubs, entre elas a “saborosa” torta de rim ou a “apetitosa” torta de fígado. Não era difícil explicar porque as culinárias estrangeiras se popularizaram tanto na Grã-Bretanha.
Em seguida, paisagem com pequenas casas instaladas em gramados extensos. O sol inclinado produzia efeito luminoso único. Chegada em Windermere no final da tarde. E o aguardado pôr-do-sol não decepcionou, dourando as árvores, construções, os interiores do hotel, tudo.
Saída pela manhã e logo o fotogênico vilarejo de Grasmere, encravada entre montanhas abauladas. Casas construídas inteiramente em ardósia se estendiam cortadas por becos sinuosos e margeadas pelo lago. Poucas pessoas saíam às ruas naquela manhã de domingo, ensolarada e fria. Pequenos barcos estavam atracados no ancoradouro. Cortávamos região conhecida como Distrito dos Lagos, cercada por relevo mais acidentado, estradas estreitas e sinuosas e, obviamente, dezenas de lagos de águas calmas. As propriedades rurais também utilizavam a ardósia para demarcarem os limites do terreno.
continua...

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