...continuação
Cruzamos a fronteira entre Inglaterra e Escócia. Imediatamente
o guia pediu os passaportes de todos, jogou-os na grama do acostamento e os
pisoteou com gosto. Os passaportes voltaram inteiros, apenas com restos de
grama grudada.
Parada em trecho alto da estrada, de onde se tinha visão
panorâmica de extenso lago. Eram as primeiras imagens da Escócia.
Contemplávamos o cenário quando, subitamente, ouvimos a brecada aguda de um
carro. De dentro pulou escocês vestido a caráter, de kilt e tudo, com a gaita de fole nas mãos. Disfarçou a pressa, se
dispôs bem o meu lado, abriu a caixa do instrumento para receber doações,
lançou sorriso amarelo e, antes de tocar as melodias típicas escocesas, me sussurrou:
“Desculpe, eu me atrasei hoje”.
Em seguida Moffat, vilarejo escocês, repleto de lojas de
artigos de lã de carneiro. Fazia frio, mesmo sob o sol. O número de barbudos e
de rostos avermelhados começava a aumentar no sentido norte.
Depois de passar batido pela industrial e cinzenta cidade
de Glasgow, o lock Lommond para explorar a cidade e o lago no pé das montanhas.
O lago mais parecia água retida como a represa de Guarapiranga em São Paulo. Os
castelos e palácios que o margeavam, contudo, se destacavam, ainda que todos
transformados em hotéis. O guia inglês afirmou que o lago Lommond se
assemelhava aos fiordes escandinavos. Coitado dos fiordes e dos escandinavos.
As margens da estrada no rumo norte revelavam rios
encachoeirados e mais lagos entre montanhas cobertas por vegetação rasteira.
Chegada a Fort Willian, na beira de mais um lago. Outro
impressionante pôr-do-sol insistia em desmentir a fama de constante mau tempo
da região. Simpática e acolhedora como as demais, a cidade estendia-se nas
margens do Lock Linney.
Na manhã seguinte partida ao extremo noroeste escocês. A
paisagem tornava-se mais impressionante. Trechos montanhosos, picos
ligeiramente nevados abrigavam estradas muito estreitas, sinuosas, sem
acostamento. O tempo piorara, nublara, esfriara mais, chovia de vez em quando. Os
lagos surgiam um após o outro. Subitamente apareciam castelos, em ruínas ou
não, próximos ao leito da estrada, alguns com poço e ponte levadiça. O céu
cinzento caía como luva para compor atmosfera adequada à paisagem.
Durante a balsa à ilha de Skie, choveu fino e o frio pegou
nos ossos. Tempo apenas para voltas curtas pelo vilarejo.
De volta ao continente, passando por Portree, percorremos
toda a margem oeste do famoso Lock Ness. Nenhum sinal do monstro. Era lago como
os anteriores, com água cinza-azulada e vegetação nas margens. Lojas, homens
vestidos em trajes típicos, inclusive tocando gaitas de fole, matilhas de
turistas para todos os lados, vendedores de fotos, bonecos e adesivos do
monstro, se espalhavam por ali. O guia colou pequena figura do tal monstro no
vidro do ônibus e sugeriu fotos de dentro com o lago ao fundo. Assim, segundo
ele, registraríamos a prova da existência do dito cujo. Os estadunidenses e
australianos logo obedeceram. Eu e mais outros apenas sorrimos e nem tocamos
nas câmeras fotográficas. Abaixo da encosta do lago, próximo à linha da água,
encontrava-se impressionante castelo em ruínas.
Eu me dava melhor, entre os turistas do grupo, com o casal
de meia idade de Cingapura e com a australiana divorciada que também viajava
sozinha. Com os demais passageiros, eu apenas trocava sorrisos educados e
frases soltas. Nenhum assunto rendia frutos. A maioria revelava mentes
estreitas e ignorantes. Não sabiam nada além da ponta do nariz.
E cada ocupante do ônibus foi intimado a sentar no banco
dianteiro e, ao microfone, cantar canção representativa do respectivo país. Na
minha vez, cantarolei parte do samba Para
Ver As Meninas do Paulinho da Viola. A maioria gostou e até aplaudiu.
Entrada em Inverness no meio da tarde. A cidade atraía
pela harmonia da arquitetura, cortada pelo rio Ness. Castelos e igrejas antigas
se dispunham ao lado de construções típicas do norte da Escócia.
Após o jantar, circulei pelas ruas geladas e vazias.
Entrei em pub, sentei no balcão e consultei o cardápio pintado na parede em
frente. Comecei com o malte, nacional. Continuei com mais duas doses de uísques
diferentes, todas nacionais. Nada de gelo no copo. Queria saborear a bebida e
não estragá-la dissolvendo na água. Gritarias e ameaças de brigas no fundo do
pub me fizeram interromper a degustação. Despedi-me do escocês legítimo do
balcão e dei o fora.
A manhã se deu na direção do sudeste escocês, cruzando as
terras altas da Escócia, de onde saíam caminhos vicinais rumo às famosas destilarias
de uísque. Pontes estreitas e em arco mal permitiam a passagem de veículos.
Precisávamos desembarcar a fim de que o ônibus a atravessasse com menos peso.
Parada no pequeno vilarejo fantasma de Tomintoul. Não
havia ninguém nas ruelas. Ventava muito e, mesmo sob o sol e céu azul, o frio
não dava tréguas. Enfiei as mãos no casaco, sempre pulando para tentar
esquentar o sangue. O homem de Cingapura logo se aproximou sorrindo e se
solidarizou com a minha desconfortável sensação térmica.
Paradas nas montanhas Grampian. Caminhei pelas encostas do
vale por entre a grama, flores roxas e vegetação rasteira, dura e resistente.
Pisei e senti o contato da famosa urze escocesa que crescia no relevo
acidentado. Diversos castelos se espalhavam nas redondezas.
Diversos castelos se espalhavam nas redondezas da região
de Braemar, procurada pela monarquia nos períodos de veraneio.
Chegada a Edimburgo, às margens da foz do rio Forth.
Construções góticas escurecidas pela poluição dos séculos se destacavam. O
cinzento castelo de Edimburgo se erguia no alto do morro de rocha negra. A
topografia dos arredores, no entanto, se aplainava pela proximidade do litoral.
Aproveitei a tarde ensolarada para circular pela cidade,
sem rumo específico, apenas andar e observar com calma. O verde intenso das
árvores, jardins e gramados impecáveis do parque central se estendia ao longo
do vale da ferrovia. Em ambos os lados, após as avenidas, erguiam-se
construções antigas, imponentes, escurecidas. Praças com torres, esculturas e
construções cheias de colunas enriqueciam o cenário. O centro de Edimburgo era
um museu arquitetônico a céu aberto.
Escolhi pizzaria para o jantar. Sentei em mesa com vista
para todo o ambiente. Quase à minha frente sentou um turista barbudo,
quarentão, levando a enorme câmera fotográfica a tiracolo. Largou tudo na
cadeira ao lado, analisou o cardápio e fez o pedido. Em dado momento, enfiou o
dedo indicador na narina direita, quase até o fim. Sobrou pouco dedo do lado de
fora. Girou, cutucou com firmeza, lentamente retirou o dedo, agora coberto de enorme
quantidade de meleca. Despreocupadamente, impunemente, enfiou novamente o dedo,
o mesmo dedo, só que não dentro do nariz, mas na própria boca. Enfiou até o fim
e fechou os lábios em torno do dedo. Chupou e lambeu com gosto, até não sobrar
nada. Engoliu tudo. Nem sequer se alterou ou levantou os olhos. Foi preciso
muita concentração e equilíbrio psicológico para eu não vomitar imediatamente.
E veio a minha pizza, coberta de cebolas, pimentões, queijo derretido. Só havia
a opção de me desligar do que acabara de testemunhar. Então eu trouxe de volta
à mente as paisagens escocesas, as terras altas, as montanhas, os vales
profundos, os castelos, os lagos, as pitorescas cidadezinhas. Foi quase uma
meditação. Olhando fixamente para o meu prato, comi e até saboreei. Mas depois
de pagar e me levantar, antes de seguir para a porta do restaurante, não
resisti e dei mais uma olhada. O dito cujo comia tranquilamente a refeição.
Reforçada pelo tempero único e pessoal, sem dúvidas.
Pela manhã visitei sem pressa o castelo de Edimburgo.
Localizado no alto de um rochedo sobre a cidade, o castelo contava com interiores
desinteressantes. Valia pela posição em destaque sobre todo o vale. A visão da
cidade e das paisagens ao redor impressionava. Como de praxe, os guardas vestiam
o kilt, ali com desenhos em xadrez
verde. Mais abaixo, avistei o palácio de Hollyrood. Depois circulei pelas ruas
cinzentas e charmosas de Edimburgo, enquanto a chuva fina acentuava o frio
cortante.
Já na estrada na manhã seguinte, após parada fulminante no
palácio de Galashiels, o esquema comercial da excursão se fez presente na
desnecessária e intencional parada para compras de supérfluos. Permanecemos ali
quase uma hora. Nada para fazer naquela beira de estrada. Preferi ficar do lado
de fora e conversar com os passageiros que também não entraram. Depois, a
abadia de Jedburg, construída no século XII. Crua, pesada, de coloração ocre, evidenciava
a idade que tinha.
Cruzamos a fronteira entre a Escócia e a Inglaterra. E o
guia comunicou ao grupo que finalmente voltávamos à civilização. Poucos riram. Passada
ao lado da cidade industrial de Newcastle, com cerca de duzentos mil habitantes
amontoados em construções padronizadas e precárias. E índice de desemprego
perto de 70%! Segundo o guia, o mesmo porcentual ocorria entre os dois milhões
de habitantes da cidade de Birmingham. A situação comprovava os desastrosos
resultados sociais do capitalismo, após os ajustes neoliberais conduzidos pelos
organismos multilaterais do imperialismo através dos regimes da senhora
Margareth Thatcher.
À medida que as estradas desciam para sul, o relevo
tornava-se mais aplainado, as montanhas ficavam para trás, as planícies e
suaves colinas dominavam a paisagem.
Nas imediações da cidade de York, pequenas propriedades
plantadas, casas e sobrados de tijolinho, muitos animais, verde intenso,
jardins floridos. Apesar do trânsito pesado e congestionado, York era
simpática, com diversas vielas que conduziam ao robusto mosteiro de York. Muradas
altas com ameias de observação protegiam a parte central da cidade, cujas entradas
se afunilavam pelos portões em arco. O centro comercial, com becos estreitos e
bloqueados para os veículos, lotava de pedestres.
Chegada à ajardinada cidade de Harrogate, impecavelmente limpa,
organizada, coberta de parques. O parque Gardens Valley se destacava pela
infinidade de canteiros floridos, coloridos, caprichosamente dispostos,
perfeitamente mantidos. Nela morava a fina flor da elite inglesa que desfrutava
do patrimônio adquirido em séculos de domínio britânico pelo mundo afora.
Depois do pequeno e pitoresco vilarejo de Stamford, houve tempo
suficiente para conhecer a cidade universitária de Cambridge, com universidades
em estilo gótico, jardins, gramados, córrego bucólico. Alugavam-se barcos a
remo no rio que corria atrás dos prédios universitários. Esdrúxulos critérios
dividiam a educação entre universidade exclusiva para homens no King´s College
e exclusiva para mulheres no Queen´s College. Igrejas e abadias postavam-se ao
lado com vitrais trabalhados e iluminados naturalmente. A cidade dispunha de
vários calçadões comerciais, culturais, de lazer. Apinhada de estudantes, não
faltava animação por todos os cantos.
Chegada de volta a Londres em hotel incluído no preço da
excursão. A operadora de turismo Cosmos abandonou completamente os passageiros após
o desembarque do ônibus. O guia e os ajudantes fugiram num passe de mágica. Ninguém
sabia qual quarto ocupar. A indignação de todos beirou à revolta. E ali era a
capital do império britânico, coração do assim chamado primeiro mundo.
Após o jantar, liguei a televisão no horário nobre dos “noticiários”.
Todos os canais mostravam as notícias exatamente iguais, com imagens iguais,
manchetes e conteúdos iguais, posições e opiniões iguais. Pareciam cópias uns
dos outros. Predominavam temas de desastres naturais, acidentes aéreos,
declarações oficiais do governo e de agentes da classe dominante, as
encomendadas crises nos países do leste europeu. Mas nada sobre os assustadores
índices de desemprego britânicos e dos demais paises da Europa ocidental, nem
sobre as privatizações e o desmonte social impostos pelo regime direitista
inglês. A tão cantada e falsa liberdade de imprensa inglesa em nada se
diferenciava da dos países da América. Era a ditadura do pensamento único fazendo
escola pelo mundo afora.
O hotel se localizava em King´s Cross, região simplesmente
medonha de Londres. Sujeira aos montes, inóspita, entupida de mendigos e tipos
perigosos. A estação de metrô mais parecia depósito de lixo. Mas nada disso
aparecia nos telejornais exibidos em série no horário nobre.
O centro fervia em Leicester Square e arredores durante a
noite. Muita gente dos mais variados estilos perambulava pelos bares, pubs,
bancos de praça, casas noturnas, teatros, restaurantes, puteiros, ou
simplesmente ficava parada no meio da praça para conversar, ver, ser visto.
Eram músicos, punks, seres da noite, engravatados, indefinidos, até membros do
exército da salvação. Bastava andar cinquenta metros para deixar a esquina de
teatros e restaurantes e entrar em rua de puteiros, casas de shows eróticos,
com mulheres do mundo encostadas nas paredes e oferecendo serviços. Os
porteiros das casas chamavam os homens da rua para entrar e se “deliciar com as
mais belas mulheres”. Mas, ao contrário de São Paulo, onde os mesmos apenas
convidavam com palavras, os porteiros de Londres agarravam nos braços e
tentavam atirar as vítimas porta adentro.
Em letras grandes, cartazes espalhados pelas praças
insistiam para que não se jogasse lixo nas ruas e calçadas. Mas ninguém parecia
se incomodar. A sujeira se acumulava em todos os lugares, simples ou
sofisticados.
continua...
amigo seus relatos de viagem são o maximo!
ResponderExcluirachei o máximo seus relatos de viagem amigo!
ResponderExcluirOi Alvicilene,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Tem muita coisa no blog para você ler, se deliciar e comentar.
Conto com você.
Abraços!
Viajei no relato da tuas viagem..
ResponderExcluirOlá!!!
ResponderExcluirQue bom que passei a mensagem. Além desse relato, você encontrará diversos outros de distinos lugares.
Comente sempre...
Só pulei uma parte meu estômago e fraco , kkk mas tudo maravilhoso um dia vou conhecer esses lugares. .
ResponderExcluirOi,
ResponderExcluirAté sei a parte que pulou. O jantar no restaurante em Edimburgo... Não é para qualquer um. Nem eu acredito que resisti bravamente. Mas, enfim, flagrantes do cotidiano. Acontece....
Espero que conheça mesmo esse e tantos outros fascinantes que o Brasil e mundo oferecem.
Abraços...comente sempre...