sexta-feira, 2 de setembro de 2011

da Inglaterra à Suiça (parte 2/4)

...continuação
Cruzamos a fronteira entre Inglaterra e Escócia. Imediatamente o guia pediu os passaportes de todos, jogou-os na grama do acostamento e os pisoteou com gosto. Os passaportes voltaram inteiros, apenas com restos de grama grudada.
Parada em trecho alto da estrada, de onde se tinha visão panorâmica de extenso lago. Eram as primeiras imagens da Escócia. Contemplávamos o cenário quando, subitamente, ouvimos a brecada aguda de um carro. De dentro pulou escocês vestido a caráter, de kilt e tudo, com a gaita de fole nas mãos. Disfarçou a pressa, se dispôs bem o meu lado, abriu a caixa do instrumento para receber doações, lançou sorriso amarelo e, antes de tocar as melodias típicas escocesas, me sussurrou:
“Desculpe, eu me atrasei hoje”.  
Em seguida Moffat, vilarejo escocês, repleto de lojas de artigos de lã de carneiro. Fazia frio, mesmo sob o sol. O número de barbudos e de rostos avermelhados começava a aumentar no sentido norte.
Depois de passar batido pela industrial e cinzenta cidade de Glasgow, o lock Lommond para explorar a cidade e o lago no pé das montanhas. O lago mais parecia água retida como a represa de Guarapiranga em São Paulo. Os castelos e palácios que o margeavam, contudo, se destacavam, ainda que todos transformados em hotéis. O guia inglês afirmou que o lago Lommond se assemelhava aos fiordes escandinavos. Coitado dos fiordes e dos escandinavos.
As margens da estrada no rumo norte revelavam rios encachoeirados e mais lagos entre montanhas cobertas por vegetação rasteira.
Chegada a Fort Willian, na beira de mais um lago. Outro impressionante pôr-do-sol insistia em desmentir a fama de constante mau tempo da região. Simpática e acolhedora como as demais, a cidade estendia-se nas margens do Lock Linney.

Na manhã seguinte partida ao extremo noroeste escocês. A paisagem tornava-se mais impressionante. Trechos montanhosos, picos ligeiramente nevados abrigavam estradas muito estreitas, sinuosas, sem acostamento. O tempo piorara, nublara, esfriara mais, chovia de vez em quando. Os lagos surgiam um após o outro. Subitamente apareciam castelos, em ruínas ou não, próximos ao leito da estrada, alguns com poço e ponte levadiça. O céu cinzento caía como luva para compor atmosfera adequada à paisagem.
Durante a balsa à ilha de Skie, choveu fino e o frio pegou nos ossos. Tempo apenas para voltas curtas pelo vilarejo.
De volta ao continente, passando por Portree, percorremos toda a margem oeste do famoso Lock Ness. Nenhum sinal do monstro. Era lago como os anteriores, com água cinza-azulada e vegetação nas margens. Lojas, homens vestidos em trajes típicos, inclusive tocando gaitas de fole, matilhas de turistas para todos os lados, vendedores de fotos, bonecos e adesivos do monstro, se espalhavam por ali. O guia colou pequena figura do tal monstro no vidro do ônibus e sugeriu fotos de dentro com o lago ao fundo. Assim, segundo ele, registraríamos a prova da existência do dito cujo. Os estadunidenses e australianos logo obedeceram. Eu e mais outros apenas sorrimos e nem tocamos nas câmeras fotográficas. Abaixo da encosta do lago, próximo à linha da água, encontrava-se impressionante castelo em ruínas.   
Eu me dava melhor, entre os turistas do grupo, com o casal de meia idade de Cingapura e com a australiana divorciada que também viajava sozinha. Com os demais passageiros, eu apenas trocava sorrisos educados e frases soltas. Nenhum assunto rendia frutos. A maioria revelava mentes estreitas e ignorantes. Não sabiam nada além da ponta do nariz.
E cada ocupante do ônibus foi intimado a sentar no banco dianteiro e, ao microfone, cantar canção representativa do respectivo país. Na minha vez, cantarolei parte do samba Para Ver As Meninas do Paulinho da Viola. A maioria gostou e até aplaudiu.
Entrada em Inverness no meio da tarde. A cidade atraía pela harmonia da arquitetura, cortada pelo rio Ness. Castelos e igrejas antigas se dispunham ao lado de construções típicas do norte da Escócia.
Após o jantar, circulei pelas ruas geladas e vazias. Entrei em pub, sentei no balcão e consultei o cardápio pintado na parede em frente. Comecei com o malte, nacional. Continuei com mais duas doses de uísques diferentes, todas nacionais. Nada de gelo no copo. Queria saborear a bebida e não estragá-la dissolvendo na água. Gritarias e ameaças de brigas no fundo do pub me fizeram interromper a degustação. Despedi-me do escocês legítimo do balcão e dei o fora.
A manhã se deu na direção do sudeste escocês, cruzando as terras altas da Escócia, de onde saíam caminhos vicinais rumo às famosas destilarias de uísque. Pontes estreitas e em arco mal permitiam a passagem de veículos. Precisávamos desembarcar a fim de que o ônibus a atravessasse com menos peso.
Parada no pequeno vilarejo fantasma de Tomintoul. Não havia ninguém nas ruelas. Ventava muito e, mesmo sob o sol e céu azul, o frio não dava tréguas. Enfiei as mãos no casaco, sempre pulando para tentar esquentar o sangue. O homem de Cingapura logo se aproximou sorrindo e se solidarizou com a minha desconfortável sensação térmica.

Paradas nas montanhas Grampian. Caminhei pelas encostas do vale por entre a grama, flores roxas e vegetação rasteira, dura e resistente. Pisei e senti o contato da famosa urze escocesa que crescia no relevo acidentado. Diversos castelos se espalhavam nas redondezas.
Diversos castelos se espalhavam nas redondezas da região de Braemar, procurada pela monarquia nos períodos de veraneio.
Chegada a Edimburgo, às margens da foz do rio Forth. Construções góticas escurecidas pela poluição dos séculos se destacavam. O cinzento castelo de Edimburgo se erguia no alto do morro de rocha negra. A topografia dos arredores, no entanto, se aplainava pela proximidade do litoral.
Aproveitei a tarde ensolarada para circular pela cidade, sem rumo específico, apenas andar e observar com calma. O verde intenso das árvores, jardins e gramados impecáveis do parque central se estendia ao longo do vale da ferrovia. Em ambos os lados, após as avenidas, erguiam-se construções antigas, imponentes, escurecidas. Praças com torres, esculturas e construções cheias de colunas enriqueciam o cenário. O centro de Edimburgo era um museu arquitetônico a céu aberto.
Escolhi pizzaria para o jantar. Sentei em mesa com vista para todo o ambiente. Quase à minha frente sentou um turista barbudo, quarentão, levando a enorme câmera fotográfica a tiracolo. Largou tudo na cadeira ao lado, analisou o cardápio e fez o pedido. Em dado momento, enfiou o dedo indicador na narina direita, quase até o fim. Sobrou pouco dedo do lado de fora. Girou, cutucou com firmeza, lentamente retirou o dedo, agora coberto de enorme quantidade de meleca. Despreocupadamente, impunemente, enfiou novamente o dedo, o mesmo dedo, só que não dentro do nariz, mas na própria boca. Enfiou até o fim e fechou os lábios em torno do dedo. Chupou e lambeu com gosto, até não sobrar nada. Engoliu tudo. Nem sequer se alterou ou levantou os olhos. Foi preciso muita concentração e equilíbrio psicológico para eu não vomitar imediatamente. E veio a minha pizza, coberta de cebolas, pimentões, queijo derretido. Só havia a opção de me desligar do que acabara de testemunhar. Então eu trouxe de volta à mente as paisagens escocesas, as terras altas, as montanhas, os vales profundos, os castelos, os lagos, as pitorescas cidadezinhas. Foi quase uma meditação. Olhando fixamente para o meu prato, comi e até saboreei. Mas depois de pagar e me levantar, antes de seguir para a porta do restaurante, não resisti e dei mais uma olhada. O dito cujo comia tranquilamente a refeição. Reforçada pelo tempero único e pessoal, sem dúvidas.
Pela manhã visitei sem pressa o castelo de Edimburgo. Localizado no alto de um rochedo sobre a cidade, o castelo contava com interiores desinteressantes. Valia pela posição em destaque sobre todo o vale. A visão da cidade e das paisagens ao redor impressionava. Como de praxe, os guardas vestiam o kilt, ali com desenhos em xadrez verde. Mais abaixo, avistei o palácio de Hollyrood. Depois circulei pelas ruas cinzentas e charmosas de Edimburgo, enquanto a chuva fina acentuava o frio cortante.
Já na estrada na manhã seguinte, após parada fulminante no palácio de Galashiels, o esquema comercial da excursão se fez presente na desnecessária e intencional parada para compras de supérfluos. Permanecemos ali quase uma hora. Nada para fazer naquela beira de estrada. Preferi ficar do lado de fora e conversar com os passageiros que também não entraram. Depois, a abadia de Jedburg, construída no século XII. Crua, pesada, de coloração ocre, evidenciava a idade que tinha.
Cruzamos a fronteira entre a Escócia e a Inglaterra. E o guia comunicou ao grupo que finalmente voltávamos à civilização. Poucos riram. Passada ao lado da cidade industrial de Newcastle, com cerca de duzentos mil habitantes amontoados em construções padronizadas e precárias. E índice de desemprego perto de 70%! Segundo o guia, o mesmo porcentual ocorria entre os dois milhões de habitantes da cidade de Birmingham. A situação comprovava os desastrosos resultados sociais do capitalismo, após os ajustes neoliberais conduzidos pelos organismos multilaterais do imperialismo através dos regimes da senhora Margareth Thatcher.
À medida que as estradas desciam para sul, o relevo tornava-se mais aplainado, as montanhas ficavam para trás, as planícies e suaves colinas dominavam a paisagem.
Nas imediações da cidade de York, pequenas propriedades plantadas, casas e sobrados de tijolinho, muitos animais, verde intenso, jardins floridos. Apesar do trânsito pesado e congestionado, York era simpática, com diversas vielas que conduziam ao robusto mosteiro de York. Muradas altas com ameias de observação protegiam a parte central da cidade, cujas entradas se afunilavam pelos portões em arco. O centro comercial, com becos estreitos e bloqueados para os veículos, lotava de pedestres.
Chegada à ajardinada cidade de Harrogate, impecavelmente limpa, organizada, coberta de parques. O parque Gardens Valley se destacava pela infinidade de canteiros floridos, coloridos, caprichosamente dispostos, perfeitamente mantidos. Nela morava a fina flor da elite inglesa que desfrutava do patrimônio adquirido em séculos de domínio britânico pelo mundo afora.

Depois do pequeno e pitoresco vilarejo de Stamford, houve tempo suficiente para conhecer a cidade universitária de Cambridge, com universidades em estilo gótico, jardins, gramados, córrego bucólico. Alugavam-se barcos a remo no rio que corria atrás dos prédios universitários. Esdrúxulos critérios dividiam a educação entre universidade exclusiva para homens no King´s College e exclusiva para mulheres no Queen´s College. Igrejas e abadias postavam-se ao lado com vitrais trabalhados e iluminados naturalmente. A cidade dispunha de vários calçadões comerciais, culturais, de lazer. Apinhada de estudantes, não faltava animação por todos os cantos.
Chegada de volta a Londres em hotel incluído no preço da excursão. A operadora de turismo Cosmos abandonou completamente os passageiros após o desembarque do ônibus. O guia e os ajudantes fugiram num passe de mágica. Ninguém sabia qual quarto ocupar. A indignação de todos beirou à revolta. E ali era a capital do império britânico, coração do assim chamado primeiro mundo.
Após o jantar, liguei a televisão no horário nobre dos “noticiários”. Todos os canais mostravam as notícias exatamente iguais, com imagens iguais, manchetes e conteúdos iguais, posições e opiniões iguais. Pareciam cópias uns dos outros. Predominavam temas de desastres naturais, acidentes aéreos, declarações oficiais do governo e de agentes da classe dominante, as encomendadas crises nos países do leste europeu. Mas nada sobre os assustadores índices de desemprego britânicos e dos demais paises da Europa ocidental, nem sobre as privatizações e o desmonte social impostos pelo regime direitista inglês. A tão cantada e falsa liberdade de imprensa inglesa em nada se diferenciava da dos países da América. Era a ditadura do pensamento único fazendo escola pelo mundo afora.
O hotel se localizava em King´s Cross, região simplesmente medonha de Londres. Sujeira aos montes, inóspita, entupida de mendigos e tipos perigosos. A estação de metrô mais parecia depósito de lixo. Mas nada disso aparecia nos telejornais exibidos em série no horário nobre.
O centro fervia em Leicester Square e arredores durante a noite. Muita gente dos mais variados estilos perambulava pelos bares, pubs, bancos de praça, casas noturnas, teatros, restaurantes, puteiros, ou simplesmente ficava parada no meio da praça para conversar, ver, ser visto. Eram músicos, punks, seres da noite, engravatados, indefinidos, até membros do exército da salvação. Bastava andar cinquenta metros para deixar a esquina de teatros e restaurantes e entrar em rua de puteiros, casas de shows eróticos, com mulheres do mundo encostadas nas paredes e oferecendo serviços. Os porteiros das casas chamavam os homens da rua para entrar e se “deliciar com as mais belas mulheres”. Mas, ao contrário de São Paulo, onde os mesmos apenas convidavam com palavras, os porteiros de Londres agarravam nos braços e tentavam atirar as vítimas porta adentro.
Em letras grandes, cartazes espalhados pelas praças insistiam para que não se jogasse lixo nas ruas e calçadas. Mas ninguém parecia se incomodar. A sujeira se acumulava em todos os lugares, simples ou sofisticados.
continua...

7 comentários:

  1. Oi Alvicilene,
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Tem muita coisa no blog para você ler, se deliciar e comentar.
    Conto com você.
    Abraços!

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  2. Viajei no relato da tuas viagem..

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  3. Olá!!!
    Que bom que passei a mensagem. Além desse relato, você encontrará diversos outros de distinos lugares.
    Comente sempre...

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  4. Só pulei uma parte meu estômago e fraco , kkk mas tudo maravilhoso um dia vou conhecer esses lugares. .

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  5. Oi,
    Até sei a parte que pulou. O jantar no restaurante em Edimburgo... Não é para qualquer um. Nem eu acredito que resisti bravamente. Mas, enfim, flagrantes do cotidiano. Acontece....
    Espero que conheça mesmo esse e tantos outros fascinantes que o Brasil e mundo oferecem.
    Abraços...comente sempre...

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