...continuação
Exceto nos momentos de embriagues avançada, ninguém notava
a presença de ninguém. Frieza total. Praticamente todos liam nos metrôs, livros,
revistas, jornais sensacionalistas, bulas de remédio. Era como se cada pessoa
estivesse sozinha no vagão. Mesmo nos horários de pico quando os trens lotavam
de verdade. Quem não lia, fixava o olhar num ponto neutro nas paredes, teto ou
piso. Mesmo nos locais de vida noturna, não se notavam olhares com segundas ou
terceiras intenções.
Covent Garden oferecia artesanato fraco e apresentações
artísticas livres pelas ruas, entre música, mímica, teatro, mágica. E parecia
que todos os moradores saíram para aproveitar o sábado ensolarado nos parques.
Locais ideais para relaxar e degustar a tranquilidade no meio de paisagem tão
verde e vistosa.
Escolhi o parque Regent para o final da tarde e o
pôr-do-sol. O céu não possuía nuvens. O sol radiante iluminava os jardins e
gramados. A temperatura agradava. O sol se pôs divinamente às 19h e fechou com
chave-de-ouro aquelas semanas passadas na Inglaterra.
E lá fui eu pegar o ônibus noturno para Amsterdã. A
estação rodoviária de Victoria oferecia muita sujeira, poluição do ar e sonora,
desorganização, ausência de espaço para sentar ou esperar os ônibus. A pior
rodoviária do Brasil seria modelo de organização, limpeza e conforto perto
daquele horror. Não havia plataformas, tampouco indicações do local da partida
dos ônibus. E o tal ônibus surgiu subitamente, do nada, com o motorista berrando
o destino da porta de entrada. E embarquei com destino à Europa continental,
primeiro parando em Dover para subir na balsa que cruzaria o canal da Mancha.
A verificação apenas visual do passaporte foi rápida e sem
problemas. Dover revelava escarpas rochosas, altas e esbranquiçadas, atrás das
docas. O ônibus estacionou nos porões e os passageiros seguiram para as áreas
sociais da balsa. Bares não faltavam, assim como os europeus bêbados despencando
pelas escadarias. Gritavam, mal enxergavam um metro à frente, queriam criar
confusões, prontamente impedidas pelos seguranças.
Desembarque ao amanhecer em Ostende, Bélgica. Meu
passaporte nem sequer foi verificado, pois o país não exigia visto prévio de
entrada para brasileiros. Novo embarque no ônibus para seguir viagem.
O veículo cruzou a fronteira entre Bélgica e Holanda
depois de passar rapidamente pela cidade de Antuérpia. Nenhum documento foi
verificado na fronteira. Paisagens completamente planas dominavam pela janela
do ônibus. Infindáveis planícies esverdeadas, plantadas, com gado e pequenas
casas de campo. Grandes indústrias apareciam próximas à rodovia. O ônibus
entrou em Roterdã, com o porto, guindastes, pontes gigantescas, bondes em
circulação.
O ônibus estacionou e largou os passageiros em uma rua
qualquer de Amsterdã, sem estação, sem nada. Peguei a bagagem e comecei a
andar. Optei pelo albergue da juventude situado no centro. A localização
compensava a má qualidade dos quartos, grandes e cheios, para até vinte
hóspedes empoleirados em beliches, dos banheiros mal cuidados, das instalações
antigas e caindo aos pedaços. O banheiro comportava até quarenta pessoas, e
jamais lotava, já que os europeus nunca foram chegados a banhos ou higienes
diárias.
A belíssima Amsterdã era bem diferente das cidades
inglesas. Cortada por dezenas de canais, arquitetura antiga, sem edifícios
altos, atmosfera mais descontraída. As poucas e escuras folhas das árvores
apontavam a chegada antecipada do outono.
O centro da cidade fascinava pela fauna variada. Centenas
de jovens perambulavam pelas ruas e bares ao som de rock pesado. Abundavam lojas
de artigos eróticos anexas a cubículos exibindo filmes de sexo explícito.
Puteiros, ambientes com apresentações de sexo ao vivo, se espalhavam pelos
canais, becos e travessas. Tudo funcionava 24 horas por dia. Drogas dos mais
variados tipos eram vendidas nas esquinas sob os olhares indiferentes dos
policiais. A maioria das prostitutas exibidas nas vitrines como produtos de
supermercado era de negras e mulatas. Muitas conversavam em espanhol. A zona de
prostituição tornava-se também zona turística à noite, quando as vitrines se
iluminavam e as mulheres ou travestis ficavam ainda mais expostas aos olhos dos
clientes e turistas. As negociações de preços e características dos programas
se faziam pelo interfone localizado do lado de fora das amplas janelas de
vidro. E os turistas, em casais, idosos, crianças, se deliciavam com as cenas.
De maneira geral o movimento nas ruas em Amsterdã era
pequeno, sobretudo de bicicletas, bondes, e poucos carros. E a pé ou de barco cheguei
aos principais pontos de interesse. Barcos dos mais variados tamanhos e formas,
atracados nos muros dos canais, serviam de residência a famílias inteiras.
A cidade e moradores ganhavam em descontração e informalidade
em comparação aos ingleses. Circulava-se mais à vontade pelas ruas. A região da
Leidseplein se agitava à noite com muita gente espalhada nas centenas de bares.
Mesmo durante a semana a animação não diminuía. Nas ruas onde se localizavam
teatros sofisticados, entravam e saíam holandeses vestidos de modo conservador,
a caráter, ostentando expressões carrancudas.
Um mundo de bicicletas inundava o estacionamento da
estação ferroviária central de Amsterdã. Todas postadas lado a lado, quase
grudadas, do mesmo modelo e da mesma cor cinza escura. Comprei guloseimas para
me abastecer durante a viagem e também me livrar do dinheiro holandês. Me
atrapalhei com as microscópicas moedas holandesas, onde mal se enxergavam os
valores. A balconista da lojinha, loira, magrela, feia e racista, se
impacientou com a demora e gritou para os clientes atrás fazerem os pedidos. Continuei
a contagem das moedas. Entreguei o valor exato, sem nenhum centavo a mais.
A paisagem em direção à Alemanha, impecavelmente plana,
compunha-se de plantações, criações de gado, pequenos vilarejos, bosques.
A vistoria de passaporte fez-se pela polícia alemã dentro
do próprio trem perto da fronteira. Apenas deram olhadelas nos documentos e devolveram
em seguida. A entrada na Alemanha aconteceu em regiões industriais, mais
povoadas. O relevo permanecia aplainado, porém menos plantado. Os
ininteligíveis anúncios nos alto-falantes do vagão se restringiam à língua
alemã.
A coloração cinza dominava na cidade de Dusseldorf. Poucos
prédios altos, construções germânicas de cinco andares e infinidade de chaminés
por todos os lados. Mais ao sul, também na margem do Reno, a moderna Colônia
ganhava em beleza. Os bombardeios durante a segunda guerra mundial destruíram o
que havia de antigo e histórico da cidade. Mas a imponente catedral, apesar de
cinza escura, insistia em preservar algo do passado em meio a prédios de traços
frios e retos. Capital federal na época, Bonn guardava atmosfera pitoresca,
pelo menos vista da estação ferroviária.
Sem abandonar o vale do Reno, começaram a aparecer
elevações no terreno em ambos os lados da ferrovia. À medida que o relevo se
acentuava, despontavam pequenos castelos em ruínas nos altos dos morros. O rio corria a leste da ferrovia e cortava
região bastante verde, com minúsculas aldeias, parreiras, florestas nos altos. Destaques
para os convidativos vilarejos de Bogarh, St Goar, Obbereswell. O vale tornou-se
ainda mais profundo e escarpado. Túneis cortavam as montanhas, sobre as quais
apontavam castelos e sob as quais vilarejos seduziam pela tranquilidade.
Infelizmente a ferrovia abandonou o vale do Reno e passou
pela feia, cinzenta, industrial e entupida de viadutos cidade de Mainz. E o
relevo voltou a se aplainar. Troquei de trem na estação de Manheim. Tive que
andar bastante para encontrar vaga nas cabines. Finalmente entrei em uma recheada
de alemães mal encarados.
Os trens alemães serviam sanduíches, salgados, bebidas,
doces em carrinhos que subiam e desciam os corredores. Mas os preços beiravam o
absurdo e quase ninguém consumia. Os vendedores nem insistiam.
Desembarquei em Heidelberg no meio do dia sob um céu
bastante azul. Peguei ônibus até o albergue da juventude.
O funcionário da recepção do albergue me comunicou laconicamente
que o local estava lotado. Insisti. Talvez ele tenha se arrependido da mentira
deslavada. Lembrou-se que ainda restava uma vaga, mas apenas para aquela noite.
Preenchi o formulário, paguei adiantado e subi ao quarto para deixar a bagagem.
Os hóspedes das demais camas me cumprimentaram. Perguntaram de onde eu era e
batemos papos descontraídos. A maioria dos outros quartos se ocupava de
adolescentes alemães barulhentos. A desorganizada administração local não
conseguia manter a ordem nem durante a noite.
O centro de Heidelberg mantinha aspecto de vilarejo de
montanha, bastante antigo, com ladeiras e becos de paralelepípedos, imenso
castelo no alto, o caudaloso rio Neckar em frente. Diversos prédios históricos bem
conservados ocupavam-se de escritórios.
Centenas de degraus encostados no morro levavam à entrada
principal do castelo de Heidelberg. De coloração avermelhada e parcialmente em
ruínas, o castelo ainda mantinha imponência com galerias, masmorras, torres. Do
alto se tinha visão privilegiada da cidade e do vale do rio Neckar. Nas
redondezas, um parque bem arborizado dava acesso a bosque fechado no alto do
morro. A maioria dos visitantes era de jovens alemães, e loiros.
O atendimento em praticamente todos os lugares primava
pela frieza, grosseria e má educação. Os alemães se irritavam em atender
estrangeiros e resistiam em se comunicar em outras línguas. A melhor maneira de
evitar esses contratempos era perguntar antes se a conversa poderia ser em
inglês. E o som da língua alemã agredia aos ouvidos. Muito gutural e fortemente
pronunciada, incomodava mais que a língua holandesa.
Graças à palavra Brasil escrita na bolsa que eu carregava,
um brasileiro me chamou na rua. Ele cursava pós-graduação em matemática na
quase milenar universidade de Heidelberg. Conversamos animadamente ali no meio
do movimento antes de entrarmos em restaurante italiano. Obviamente nos
tornamos os mais alegres do local. O restante das mesas mergulhava na seriedade
e tristeza germânicas. O garçom que nos atendia logo notou e se contagiou.
Napolitano, bigodudo e engraçado, se animou quando soube que vínhamos do
Brasil. Pena que não entendia quase nada de inglês. Eu e o matemático, nada de
italiano, menos ainda de dialeto napolitano. Mas valeu pelos sorrisos, empatia,
calor humano latino.
E apesar da má vontade e comportamento racista da
recepção, consegui mais uma noite no albergue da juventude. Muitos dos
barulhentos adolescentes alemães partiram e não haveria motivos para eu ser
barrado.
O sistema ferroviário europeu continuava a me despertar
inveja e admiração, enquanto residente em um Brasil criminosamente rodoviário.
Rápido e rasteiro peguei meu bilhete para Budapeste, com conexão em Frankfurt.
Grande, barulhenta, moderna, Frankfurt era todo contraste
com a pitoresca Heidelberg. As supostas atrações turísticas se resumiam a resquícios
minúsculos de construções antigas no centro da cidade. Até as cidades
catarinenses do vale do Itajaí guardavam mais riquezas arquitetônicas germânicas
do gênero.
O que valia a pena, não só na Alemanha, mas nas cidades
européias em geral, era o urbanismo dos rios e margens. Sempre com extensos e
belos jardins, bancos de sobra para descansar e apreciar o fluxo das águas com
barcos de pequeno e médio porte. De metal, cimento ou tijolinho, as pontes
também agradavam.
Passei o resto da tarde em banco na margem do rio em
Frankfurt, observando o movimento do público. Gansos e cisnes flutuavam nas
águas do rio. O céu azul impecável e o visual superavam o incômodo do vento
frio. Antes de anoitecer, os vendedores ambulantes de flores, frutas e doces
abaixavam os preços para venderem todo o estoque. Todos berravam e a atmosfera
lembrava feira livre. Os doces, as tortas, os bolos vendidos nas ruas, eram
irresistíveis. Aos olhos e ao estômago. O frio me obrigou a experimentar de
vários tipos, todos para lá de saborosos.
A estação ferroviária de Frankfurt primava pelo
desconforto. Muita tecnologia, computadores, mas nenhum banco para sentar e
esperar as partidas dos trens. Ou aguardava de pé, no frio, entre os carregadores
de malas, ou consumia algo nas lanchonetes para poder sentar. Em quase todas as
estações da Alemanha havia locais reservados para as tropas de ocupação do
exército estadunidense. E lá estavam os benfeitores da humanidade, uniformizados
para a guerra e fortemente armados. Não devia ser nada fácil para a autoestima
do povo alemão engolir tais cenas.
Passava da meia noite quando estacionou o trem na
plataforma. Havia vagão exclusivo para os passageiros rumo a Budapeste. A
composição partiu com a cabine vazia e pude me esticar para tentar dormir na
viagem que prometia demorar. Fui acordado próximo à fronteira austríaca para
fiscalização do passaporte.
O dia amanheceu quando o trem percorria o interior da
Áustria. O relevo levemente ondulado comportava plantações de milho, verduras,
pequenos vilarejos isolados. Pouco antes de Viena, morros muito verdes, bosques
de pinheiros, casas e cabanas de montanha, lembravam a serra da Mantiqueira.
O trem atingiu a fronteira entre a Áustria e a Hungria, então
sob o regime chamado erroneamente de comunista. A fiscalização severa, sem ser
ostensiva ou desrespeitosa, conduziu os funcionários húngaros para dentro dos
vagões, olhando os passaportes. Outros se postavam na plataforma e fiscalizavam
a fiscalização.
Com o trem novamente em movimento, a paisagem húngara revelou-se
plana, com imensas plantações que se perdiam de vista, pequenos bosques
isolados. Vilarejos espaçados surgiam na planície cultivada. As habitações
guardavam aspecto modesto, algumas mal conservadas. As hortas familiares
lembravam as brasileiras do interior do sudeste. De longe tudo parecia mais
simples que nos vizinhos europeus, mas infinitamente superior aos lares latino-americanos.
Da cidade de Komáron, na margem do rio Danúbio,
avistava-se a Tchecoslováquia no outro lado. Casas, dragas, depósitos de areia,
argila e guindastes marcavam o cenário. Mais à frente surgiram conjuntos
habitacionais padronizados, cercados por infindáveis plantações, sobretudo de
milho. Muitas residências, escolas, supermercados, em fase de acabamento.
O trem chegou a Budapeste no começo da tarde. Usuários
vestiam roupas simples e não muito novas, mas nada padronizadas e iguais como
berravam os meios de comunicações ocidentais. A moda estava presente por ali,
sem o doentio consumismo dos países ocidentais. Filas enormes se formavam nos
guichês de informações.
A prestativa funcionária da estação esforçou-se em péssimo
inglês, mas conseguimos nos comunicar. Acertei hospedagem em casa de família
situada em zona residencial. O quarto individual era amplo e confortável. A
simpática proprietária, porém, não falava nada de inglês, apenas húngaro e
alemão. Me entregou o mapa da cidade, sorriu, sussurrou algo em alemão, me
observou de alto a baixo, sorriu novamente e nada mais. Sem possibilidades de
qualquer diálogo. Pena.
Depois de café da manhã saboroso na confeitaria, saí para
dar uma volta e procurar lavanderia. Era sábado e quase tudo estava fechado.
Caminhei muito, segui diversas informações e nada. Mas aprendi que lavanderia em
húngaro é patiolat, e fechado zarva. Aliás, zarva era a
palavra que mais encontrei afixada nas portas dos estabelecimentos comerciais.
Com a sacola de roupas sujas, muito sujas, de vários dias, eu circulava a esmo
pelas ruas de Budapeste. Eu teria que esperar a segunda-feira.
Estava mais que evidente que seria difícil, muito difícil,
me comunicar na Hungria. Praticamente nenhuma palavra da língua húngara possuía
radicais latinos, gregos ou anglo-saxônicos. Nada soava familiar, nem as
internacionalmente conhecidas como hotel, hospital, polícia, restaurante. A
segunda língua mais falada no país era a alemã, seguida da russa. O inglês se
restringia a hotéis de luxo ou em outros pontos exclusivamente turísticos. Pedir
informações, ser atendido em restaurantes, lojas, tornava-se uma luta.
Mas as coisas ficaram divertidas. Assim que eu entrava nos
restaurantes, logo vinha a garçonete, geralmente atraente, sorridente e de
olhos amendoados, me entregando o cardápio, em húngaro. Eu sinalizava que não
entendia o que estava escrito. Ela sorria ainda mais e o substituía, quando
existia, por outro. Em alemão. Em nada me ajudaria, mas eu agradecia com
sorrisos ou em português mesmo. Eu corria os olhos pelo cardápio, verificava os
preços e escolhia qualquer coisa sem saber do que se tratava. Chamava a
garçonete, apontava no cardápio minha opção e falava em português. Ela anotava,
sorria e corria para a cozinha.
Jamais comi algo que não fosse saboroso. No geral, os
pratos vinham bem temperados e a contas saíam baratas, mesmo com uma garrafa de
vinho. Em diversos restaurantes havia música ao vivo. Quartetos, duetos de
cordas ou pequenas orquestras de câmara interpretavam peças eruditas ou do
folclore húngaro.
continua...
Amigo Viajante,
ResponderExcluirAdorei conhecer seu Blog.
Achei muito interessante e foi muito diferente de como imaginei.
Sua escrita é muito convidativa e viajamos junto com você.
Parabéns!
Vou visitá-lo sempre.
Um grande abraço.
Oi Naomy!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Que bom que gostou. Escrevo o que vejo e sinto.
Comente sempre.
Abraços!
👏👏👏 vc podia transformar esses relatos em um livro... Ps: não gostei de saber que os germânicos são chatos☹️
ResponderExcluirOi Lucia!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
A ideia de um ou mais livros contendo os relatos nunca saiu da mira, mas até agora nada fiz para viabilizar. Um dia, quem sabe...
Os alemães e a maioria dos europeus carregam bastante racismo e discriminação contra os não europeus. O mau atendimento segue nessa linha. Mas nada que impedisse de aproveitar a viagem.
Comente sempre!