...continuação
A campanha eleitoral sueca se animava. Cartazes nos muros,
discretos e localizados comícios despontavam pelo centro da cidade. Construções
pré-fabricadas em madeira nas calçadas centralizavam a distribuição de material
publicitário dos candidatos. Como em qualquer país capitalista, era visível a ostentação
de partidos mais poderosos economicamente, com mais estrutura, dinheiro,
material, tecnologia de campanha. Vez ou outra, os sorridentes candidatos
cediam o microfone aos passantes, que desabafavam e exerciam minutos de
cidadania. E assim como em qualquer outro país capitalista, os pobres coitados
seriam solenemente ignorados depois da posse dos nobres parlamentares. O grau
das mentiras e promessas não cumpridas poderia variar, mas a demagogia burguesa
era a mesma aqui e lá.
No final da tarde embarquei no Silja Line rumo a
Helsinque na Finlândia. O branco e imenso navio oferecia camarotes, assentos
individuais, beliches, diversos restaurantes, bares, lojas, auditórios, casas
noturnas, distribuídos em nove confortáveis andares.
Incluída no passe de trem que adquirira no Brasil, minha
passagem permitia usar o beliche numerado, que mais parecia buraco em extenso
pombal. Tratava-se de cavidade retangular na parede mal cabendo uma pessoa, sem
porta ou cortina. Apenas um fino colchão emborrachado e nada mais. Outras vagas
iguais existiam acima, embaixo, à esquerda, à direita, em três andares. Com as
leves oscilações do navio ficava impossível relaxar. O receio de despencar dali
era bem real. Sem citar a bagagem que ia espremida comigo no mesmo espaço.
A maioria dos passageiros, escandinavos, vestia-se de modo
sofisticado para os jantares e demais opções noturnas do navio, inacessíveis
para os mochileiros como eu. Os preços afixados doíam aos olhos e aos bolsos.
Ainda bem que eu trouxera comida suficiente.
Me aproximei de uma mexicana residente em Paris e de uma
japonesa legítima do Japão. A alegria e descontração da mexicana contrastavam
com a retração e o excesso de formalidades da japonesa. Conversamos,
circulamos, exploramos todos os andares da embarcação. Abrimos as sacolas de
comida, engolimos tudo enquanto observávamos o movimento. Enrolamos e rimos
bastante até bater o sono.
O navio atracou de manhãzinha no porto de Helsinque depois
de quinze agradáveis horas pelo mar báltico.
O controle de imigração finlandês deu espetáculos de
racismo e prepotência. Os funcionários parecendo carcereiros separavam os
passageiros da fila pela cor da pele, tipo físico, fachada de endinheirado ou
não. E com frases secas, militares, acenos de mão bruscos, como se dividissem
as maçãs podres das frescas. Eu, a mexicana e a japonesa fomos atirados para o
lado das maçãs podres. Nos obrigaram a abrir as bagagens, fizeram perguntas
constrangedoras, insistiram para que mostrássemos todo o dinheiro em mãos. Com
ar de repugnância, rispidamente, nos liberaram. Bem-vindos à Finlândia?!
Seguimos a pé à estação ferroviária, de onde pegamos bonde
para o distante albergue da juventude. Localizado no estádio usado nas
olimpíadas de 1952, contava com instalações velhas, mas limpas e razoáveis.
Acompanhei minhas colegas ao restaurante universitário,
onde serviam comida boa e barata, embora pouca, me deixando com fome. Frutas e
chocolates comprados na rua a saciaram de vez. Encontramos supermercado muito
barato, coisa raríssima na Escandinávia, nos subsolos da estação ferroviária.
Com a quantidade adquirida, eu não passaria fome tão cedo. Congelada e escura
na maior parte do ano, Helsinque se escondia em sucessões de galerias
subterrâneas, oferecendo lojas, restaurantes, bares, cinemas, áreas de
serviços, lazer.
Os finlandeses possuíam pele muito clara, cabelos loiros
quase brancos. Os olhares e as expressões selvagens, nada amistosas, me faziam
sentir longe, muito longe de casa. As mulheres raramente atraíam. A maioria deles
e delas agia de modo rude e assustado, desacostumados da simpatia e da
cordialidade. Em nenhum local se notavam sorrisos e bom atendimento. E na
estação ferroviária recebi o legítimo tratamento finlandês. A loirinha do
guichê não sabia ou não queria falar inglês. Lançou-me cara feia, levantou a
mão espalmada e saiu sem me dar satisfações. Foi substituída por outro
funcionário, impaciente, mal humorado, mas ligeiramente fluente em inglês. A
comunicação enfim se fez, não sem antes sofrer novamente com a doçura cativante
dos finlandeses.
Então chamada de Leningrado, cidade do norte da União
Soviética, a apenas seis horas de trem, era o destino favorito de finlandeses
na busca de diversão e alegria. Queriam a todo custo fugir da tristeza e
depressão de Helsinque, gastar pouco, beber muito, viver intensamente. A ironia
é que eles deixavam país capitalista considerado desenvolvido rumo a segunda
maior cidade do maior país comunista do mundo, a União Soviética. Aquele enorme
fluxo de pessoas contrariava a propaganda burguesa, tão martelada diariamente,
de que os países chamados de comunistas eram tristes e cujos habitantes não podiam
ou não sabiam se divertir.
Eu e a mexicana deixamos a japonesa à vontade para fazer
turismo e, sem almoçar, pegamos ônibus rumo à periferia da cidade. A mexicana
planejava fazer visita surpresa à amiga finlandesa, com quem estudara francês e
dividira apartamento durante meses em Paris naquele mesmo ano. A finlandesa
residia sozinha em bairro afastado, ocupado por conjuntos residenciais
padronizados de até cinco andares e separados por áreas verdes.
Subimos as escadas do prédio, encontramos o apartamento,
tocamos a campainha. A finlandesa abriu a porta e exibiu expressão de intensa
contrariedade. Sem sorrir ou nos convidar a entrar, disparou a pergunta para a mexicana:
“O que você quer?”.
A mexicana manteve o sorriso latino e amistoso e
respondeu: “Eu vim visitá-la, amiga”.
Não adiantou. A pedra gelada finlandesa insistiu furiosa:
“Por que veio me visitar?”.
A mexicana sorriu mais ainda. Tentou descontrair a situação.
Disse que viera pelos bons tempos, gostaria de conversar, saber como estava a
colega. Afinal, brincou, não era sempre que uma mexicana passaria pela
Finlândia.
Impotente diante da alegria contagiante da mexicana, mas
inteiramente contra a vontade, a finlandesa finalmente liberou a entrada.
Sentei no sofá ao lado da mexicana, com a finlandesa à frente exibindo
expressão que mais parecia de interrogadora da polícia. A mexicana iniciou a
conversa, em inglês para eu participar também, mas foi logo interrompida pela
finlandesa que, visivelmente irritada, atirava frases do tipo:
“eu não sei como alguém tem a coragem de visitar Helsinque
e a Finlândia. Esse país é uma merda e não tem nada para ver ou fazer. O que
vocês vieram fazer aqui?”
Eu entrei no diálogo e aleguei que a Escandinávia era
fascinante e diferente para quem vinha da América. A mexicana seguiu por essa
trilha e a coisa andou de maneira menos traumática.
O tempo passava e o ambiente tornou-se mais leve. Pelo
menos até o limite suportável de alegria da finlandesa. Dela escapavam sorrisos
tímidos e, em certo momento, parecia que não desejava mais nos expulsar dali. O
papo fluía. Entre outras novidades esclarecedoras, a finlandesa nos salientou
que, no verão, os finlandeses costumavam tirar férias, não somente da cidade,
mas também de toda a família. Cada membro da casa, o marido, a mulher, os
filhos, seguia para direções diferentes a fim de viver momentos livres e
privativos. Assim cada um aproveitaria as férias para se libertar da
convivência familiar sufocante do resto do ano.
Sentimos cheiro de comida. A fome bateu. A imprevisível
finlandesa nos ofereceu comida. Nem podíamos acreditar naquela súbita mudança
de comportamento. Sem titubear, aceitamos na hora. Cada um recebeu o prato
razoavelmente preenchido.
Ainda permanecemos ali após o almoço. Mas nos despedimos
no momento em que a dona da casa fechava a cara novamente. Deixamos o prédio,
satisfeitos por quebrarmos, ainda que parcialmente, o gelo finlandês, mas
intrigados e confusos com tanta frieza e hostilidade.
Andei ao belo parque nas imediações do centro de Helsinque.
Contava nos dedos as pessoas por ali. Sentado em um banco próximo, um senhor quarentão,
sozinho, com terno e gravata, largou a pasta de executivo de lado e abriu o embrulho
de supermercado. Dali saiu garrafa grande de bebida alcoólica destilada. Tirou
o lacre, virou e deu longos e vigorosos goles. Repetiu o movimento dezenas de
vezes, sozinho, olhando para o nada. A garrafa ficou bem abaixo da metade. E era
quinta-feira útil, faltando bastante para as 16h.
A arquitetura de Helsinque pesava aos olhos, predominando
as cores cinza, castanho, marrom escuro. Sempre os mesmos e monótonos edifícios
de cinco ou seis andares. Visitei o chato e dispensável Museu Nacional.
Como nas demais cidades escandinavas, os finlandeses
adoravam sorvete. No horário de pico da saída do trabalho formavam-se longas
filas nas sorveterias, padarias e cafés. Ainda era verão, apesar da temperatura
nunca ultrapassar 18 graus durante o dia. Para eles, o verão ardia e o calor
exigia refrescos.
Embarquei à noite no trem rumo à cidade de Rovaniemi,
localizada no círculo polar ártico, Lapônia finlandesa. O vagão lotado contava com
assentos semelhantes a ônibus e conforto suficiente. A paisagem da janela
revelava relevo plano, com bosques, plantações, dezenas de lagos. Mais ao norte
os bosques predominavam largamente. Raras casas de madeira surgiam no meio das
árvores.
Desembarquei na manhã seguinte e me hospedei em albergue
da juventude limpo, aconchegante, caseiro. Sob o sol a temperatura beirava os
20 graus, mas bastava nublar para despencar para menos de 10 graus. Destruída
quase que inteiramente durante a segunda guerra mundial, a moderna Rovaniemi
nada tinha a oferecer de beleza ou detalhes arquitetônicos.
Peguei ônibus à cidade de Kemijarvi, localizada exatamente
onde passava a linha imaginária do círculo polar ártico, e também o escritório
sede do Papai Noel, personagem original do folclore finlandês. Nada de
interessante em local extremamente turístico. Lojas ofereciam presentes de mau
gosto, postais e selos da Lapônia. Quatro renas cercadas pastavam ao lado do
centro de visitantes. Em sala ampla, lá estava ele, o Papai Noel, vestido a
caráter, sentado defronte à mesa grande, forrada de cartas e pilhas de papéis. Funcionário
público comum, o dito cujo cumpria horários e, ao final do turno, seria
substituído por outro funcionário público.
No quarto do albergue hospedavam-se um japonês legítimo e
um húngaro, ambos jovens e viajantes de longa duração. Barbudo, de aspecto de
explorador do século XIX, o japonês não sabia ou não queria falar inglês.
Balbuciava poucas palavras mal pronunciadas. Mais acolhedor, o húngaro se
mostrou curioso sobre o Brasil. Andamos bastante pelas ruas da cidade e
arredores sob o sol brilhante e temperatura agradável.
Naquele mês de setembro, às 22:00h, o sol ainda não se
pusera completamente, o céu brilhava e se tingia de azul escuro. Mas antes
desse horário, muito antes, o comércio fechara as portas e não havia alma viva
pelas ruas de Rovaniemi. Apenas eu circulava sem rumo na busca de sinais de
vida humana. Em vão. Retornei sem sono ao albergue e puxei assunto com a
primeira pessoa que me apareceu pela frente.
Acordei cedo para encarar a viagem com destino a Narvik no
litoral norte da Noruega. Conforme eu me informara previamente, o percurso
total seria recheado de conexões, de longas esperas em estações ferroviárias e
rodoviárias. Requereria muita paciência. A compensação era que todas as
passagens, de trens e ônibus, estavam incluídas no passe de trem adquirido no
Brasil.
continua...
Campanhas eleitorais em países capitalista são baseadas em investimentos, mentiras, promessas...depois dos políticos eleitos o povo que se dane. Política é deturpação. Poder aliada a corrupção.
ResponderExcluirNunca imaginei que o povo finlandês fosse discriminatório, triste e frio. Quem sabe, hoje século XXI, com os Direitos Humanos a todo vapor, esteja mais acessível. Helsinque, já me deu monotonia, gosto de cores vibrantes e se a pintura da arquitetura é cores escuras, imagino tudo cinza, até os habitantes. Risos...Guardo um pouco de criança, imaginava a Lapônia um local mágico, com bastante neve, povo feliz, a fábrica do Papai Noel, ele gorducho, bondoso, sorridente, Pinóquio, brinquedos, doces, trenó, muitas renas, florestas de pinheiros...Hoje cresci. Abraços e continuo.
Eles continuam frios sim, Ivete. Encontrei recentemente duas finlandesas descendo o trem da Serra da Graciosa no Paraná e se comportaram feito pedras de gelo rsss.
ResponderExcluirTalvez a Lapônia tenha perdido parte do encanto porque viajei durante o verão. Debaixo das nevascas e de muuuuuiiiiito frio do inverno escuro de lá, talvez a sensação fosse outra. Mas quem teria coragem de ir nessa época rssss?
Abraços e comente sempre!