quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Escandinávia (parte 2/4)

...continuação
A campanha eleitoral sueca se animava. Cartazes nos muros, discretos e localizados comícios despontavam pelo centro da cidade. Construções pré-fabricadas em madeira nas calçadas centralizavam a distribuição de material publicitário dos candidatos. Como em qualquer país capitalista, era visível a ostentação de partidos mais poderosos economicamente, com mais estrutura, dinheiro, material, tecnologia de campanha. Vez ou outra, os sorridentes candidatos cediam o microfone aos passantes, que desabafavam e exerciam minutos de cidadania. E assim como em qualquer outro país capitalista, os pobres coitados seriam solenemente ignorados depois da posse dos nobres parlamentares. O grau das mentiras e promessas não cumpridas poderia variar, mas a demagogia burguesa era a mesma aqui e lá.
No final da tarde embarquei no Silja Line rumo a Helsinque na Finlândia. O branco e imenso navio oferecia camarotes, assentos individuais, beliches, diversos restaurantes, bares, lojas, auditórios, casas noturnas, distribuídos em nove confortáveis andares.
Incluída no passe de trem que adquirira no Brasil, minha passagem permitia usar o beliche numerado, que mais parecia buraco em extenso pombal. Tratava-se de cavidade retangular na parede mal cabendo uma pessoa, sem porta ou cortina. Apenas um fino colchão emborrachado e nada mais. Outras vagas iguais existiam acima, embaixo, à esquerda, à direita, em três andares. Com as leves oscilações do navio ficava impossível relaxar. O receio de despencar dali era bem real. Sem citar a bagagem que ia espremida comigo no mesmo espaço.
A maioria dos passageiros, escandinavos, vestia-se de modo sofisticado para os jantares e demais opções noturnas do navio, inacessíveis para os mochileiros como eu. Os preços afixados doíam aos olhos e aos bolsos. Ainda bem que eu trouxera comida suficiente.
Me aproximei de uma mexicana residente em Paris e de uma japonesa legítima do Japão. A alegria e descontração da mexicana contrastavam com a retração e o excesso de formalidades da japonesa. Conversamos, circulamos, exploramos todos os andares da embarcação. Abrimos as sacolas de comida, engolimos tudo enquanto observávamos o movimento. Enrolamos e rimos bastante até bater o sono.
O navio atracou de manhãzinha no porto de Helsinque depois de quinze agradáveis horas pelo mar báltico.
O controle de imigração finlandês deu espetáculos de racismo e prepotência. Os funcionários parecendo carcereiros separavam os passageiros da fila pela cor da pele, tipo físico, fachada de endinheirado ou não. E com frases secas, militares, acenos de mão bruscos, como se dividissem as maçãs podres das frescas. Eu, a mexicana e a japonesa fomos atirados para o lado das maçãs podres. Nos obrigaram a abrir as bagagens, fizeram perguntas constrangedoras, insistiram para que mostrássemos todo o dinheiro em mãos. Com ar de repugnância, rispidamente, nos liberaram. Bem-vindos à Finlândia?!
Seguimos a pé à estação ferroviária, de onde pegamos bonde para o distante albergue da juventude. Localizado no estádio usado nas olimpíadas de 1952, contava com instalações velhas, mas limpas e razoáveis.
Acompanhei minhas colegas ao restaurante universitário, onde serviam comida boa e barata, embora pouca, me deixando com fome. Frutas e chocolates comprados na rua a saciaram de vez. Encontramos supermercado muito barato, coisa raríssima na Escandinávia, nos subsolos da estação ferroviária. Com a quantidade adquirida, eu não passaria fome tão cedo. Congelada e escura na maior parte do ano, Helsinque se escondia em sucessões de galerias subterrâneas, oferecendo lojas, restaurantes, bares, cinemas, áreas de serviços, lazer.

Os finlandeses possuíam pele muito clara, cabelos loiros quase brancos. Os olhares e as expressões selvagens, nada amistosas, me faziam sentir longe, muito longe de casa. As mulheres raramente atraíam. A maioria deles e delas agia de modo rude e assustado, desacostumados da simpatia e da cordialidade. Em nenhum local se notavam sorrisos e bom atendimento. E na estação ferroviária recebi o legítimo tratamento finlandês. A loirinha do guichê não sabia ou não queria falar inglês. Lançou-me cara feia, levantou a mão espalmada e saiu sem me dar satisfações. Foi substituída por outro funcionário, impaciente, mal humorado, mas ligeiramente fluente em inglês. A comunicação enfim se fez, não sem antes sofrer novamente com a doçura cativante dos finlandeses.
Então chamada de Leningrado, cidade do norte da União Soviética, a apenas seis horas de trem, era o destino favorito de finlandeses na busca de diversão e alegria. Queriam a todo custo fugir da tristeza e depressão de Helsinque, gastar pouco, beber muito, viver intensamente. A ironia é que eles deixavam país capitalista considerado desenvolvido rumo a segunda maior cidade do maior país comunista do mundo, a União Soviética. Aquele enorme fluxo de pessoas contrariava a propaganda burguesa, tão martelada diariamente, de que os países chamados de comunistas eram tristes e cujos habitantes não podiam ou não sabiam se divertir.
Eu e a mexicana deixamos a japonesa à vontade para fazer turismo e, sem almoçar, pegamos ônibus rumo à periferia da cidade. A mexicana planejava fazer visita surpresa à amiga finlandesa, com quem estudara francês e dividira apartamento durante meses em Paris naquele mesmo ano. A finlandesa residia sozinha em bairro afastado, ocupado por conjuntos residenciais padronizados de até cinco andares e separados por áreas verdes.
Subimos as escadas do prédio, encontramos o apartamento, tocamos a campainha. A finlandesa abriu a porta e exibiu expressão de intensa contrariedade. Sem sorrir ou nos convidar a entrar, disparou a pergunta para a mexicana:
“O que você quer?”.
A mexicana manteve o sorriso latino e amistoso e respondeu: “Eu vim visitá-la, amiga”.
Não adiantou. A pedra gelada finlandesa insistiu furiosa:
“Por que veio me visitar?”.
A mexicana sorriu mais ainda. Tentou descontrair a situação. Disse que viera pelos bons tempos, gostaria de conversar, saber como estava a colega. Afinal, brincou, não era sempre que uma mexicana passaria pela Finlândia.
Impotente diante da alegria contagiante da mexicana, mas inteiramente contra a vontade, a finlandesa finalmente liberou a entrada. Sentei no sofá ao lado da mexicana, com a finlandesa à frente exibindo expressão que mais parecia de interrogadora da polícia. A mexicana iniciou a conversa, em inglês para eu participar também, mas foi logo interrompida pela finlandesa que, visivelmente irritada, atirava frases do tipo:
“eu não sei como alguém tem a coragem de visitar Helsinque e a Finlândia. Esse país é uma merda e não tem nada para ver ou fazer. O que vocês vieram fazer aqui?”
Eu entrei no diálogo e aleguei que a Escandinávia era fascinante e diferente para quem vinha da América. A mexicana seguiu por essa trilha e a coisa andou de maneira menos traumática.
O tempo passava e o ambiente tornou-se mais leve. Pelo menos até o limite suportável de alegria da finlandesa. Dela escapavam sorrisos tímidos e, em certo momento, parecia que não desejava mais nos expulsar dali. O papo fluía. Entre outras novidades esclarecedoras, a finlandesa nos salientou que, no verão, os finlandeses costumavam tirar férias, não somente da cidade, mas também de toda a família. Cada membro da casa, o marido, a mulher, os filhos, seguia para direções diferentes a fim de viver momentos livres e privativos. Assim cada um aproveitaria as férias para se libertar da convivência familiar sufocante do resto do ano.
Sentimos cheiro de comida. A fome bateu. A imprevisível finlandesa nos ofereceu comida. Nem podíamos acreditar naquela súbita mudança de comportamento. Sem titubear, aceitamos na hora. Cada um recebeu o prato razoavelmente preenchido.
Ainda permanecemos ali após o almoço. Mas nos despedimos no momento em que a dona da casa fechava a cara novamente. Deixamos o prédio, satisfeitos por quebrarmos, ainda que parcialmente, o gelo finlandês, mas intrigados e confusos com tanta frieza e hostilidade.
Andei ao belo parque nas imediações do centro de Helsinque. Contava nos dedos as pessoas por ali. Sentado em um banco próximo, um senhor quarentão, sozinho, com terno e gravata, largou a pasta de executivo de lado e abriu o embrulho de supermercado. Dali saiu garrafa grande de bebida alcoólica destilada. Tirou o lacre, virou e deu longos e vigorosos goles. Repetiu o movimento dezenas de vezes, sozinho, olhando para o nada. A garrafa ficou bem abaixo da metade. E era quinta-feira útil, faltando bastante para as 16h.
A arquitetura de Helsinque pesava aos olhos, predominando as cores cinza, castanho, marrom escuro. Sempre os mesmos e monótonos edifícios de cinco ou seis andares. Visitei o chato e dispensável Museu Nacional.
Como nas demais cidades escandinavas, os finlandeses adoravam sorvete. No horário de pico da saída do trabalho formavam-se longas filas nas sorveterias, padarias e cafés. Ainda era verão, apesar da temperatura nunca ultrapassar 18 graus durante o dia. Para eles, o verão ardia e o calor exigia refrescos.
Embarquei à noite no trem rumo à cidade de Rovaniemi, localizada no círculo polar ártico, Lapônia finlandesa. O vagão lotado contava com assentos semelhantes a ônibus e conforto suficiente. A paisagem da janela revelava relevo plano, com bosques, plantações, dezenas de lagos. Mais ao norte os bosques predominavam largamente. Raras casas de madeira surgiam no meio das árvores.
Desembarquei na manhã seguinte e me hospedei em albergue da juventude limpo, aconchegante, caseiro. Sob o sol a temperatura beirava os 20 graus, mas bastava nublar para despencar para menos de 10 graus. Destruída quase que inteiramente durante a segunda guerra mundial, a moderna Rovaniemi nada tinha a oferecer de beleza ou detalhes arquitetônicos.
Peguei ônibus à cidade de Kemijarvi, localizada exatamente onde passava a linha imaginária do círculo polar ártico, e também o escritório sede do Papai Noel, personagem original do folclore finlandês. Nada de interessante em local extremamente turístico. Lojas ofereciam presentes de mau gosto, postais e selos da Lapônia. Quatro renas cercadas pastavam ao lado do centro de visitantes. Em sala ampla, lá estava ele, o Papai Noel, vestido a caráter, sentado defronte à mesa grande, forrada de cartas e pilhas de papéis. Funcionário público comum, o dito cujo cumpria horários e, ao final do turno, seria substituído por outro funcionário público.
No quarto do albergue hospedavam-se um japonês legítimo e um húngaro, ambos jovens e viajantes de longa duração. Barbudo, de aspecto de explorador do século XIX, o japonês não sabia ou não queria falar inglês. Balbuciava poucas palavras mal pronunciadas. Mais acolhedor, o húngaro se mostrou curioso sobre o Brasil. Andamos bastante pelas ruas da cidade e arredores sob o sol brilhante e temperatura agradável.
Naquele mês de setembro, às 22:00h, o sol ainda não se pusera completamente, o céu brilhava e se tingia de azul escuro. Mas antes desse horário, muito antes, o comércio fechara as portas e não havia alma viva pelas ruas de Rovaniemi. Apenas eu circulava sem rumo na busca de sinais de vida humana. Em vão. Retornei sem sono ao albergue e puxei assunto com a primeira pessoa que me apareceu pela frente.
Acordei cedo para encarar a viagem com destino a Narvik no litoral norte da Noruega. Conforme eu me informara previamente, o percurso total seria recheado de conexões, de longas esperas em estações ferroviárias e rodoviárias. Requereria muita paciência. A compensação era que todas as passagens, de trens e ônibus, estavam incluídas no passe de trem adquirido no Brasil.
continua...

2 comentários:

  1. Campanhas eleitorais em países capitalista são baseadas em investimentos, mentiras, promessas...depois dos políticos eleitos o povo que se dane. Política é deturpação. Poder aliada a corrupção.
    Nunca imaginei que o povo finlandês fosse discriminatório, triste e frio. Quem sabe, hoje século XXI, com os Direitos Humanos a todo vapor, esteja mais acessível. Helsinque, já me deu monotonia, gosto de cores vibrantes e se a pintura da arquitetura é cores escuras, imagino tudo cinza, até os habitantes. Risos...Guardo um pouco de criança, imaginava a Lapônia um local mágico, com bastante neve, povo feliz, a fábrica do Papai Noel, ele gorducho, bondoso, sorridente, Pinóquio, brinquedos, doces, trenó, muitas renas, florestas de pinheiros...Hoje cresci. Abraços e continuo.

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  2. Eles continuam frios sim, Ivete. Encontrei recentemente duas finlandesas descendo o trem da Serra da Graciosa no Paraná e se comportaram feito pedras de gelo rsss.
    Talvez a Lapônia tenha perdido parte do encanto porque viajei durante o verão. Debaixo das nevascas e de muuuuuiiiiito frio do inverno escuro de lá, talvez a sensação fosse outra. Mas quem teria coragem de ir nessa época rssss?
    Abraços e comente sempre!

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