segunda-feira, 25 de julho de 2011

do Pará a Alagoas (parte 6/6)

...continuação
Caminhei lentamente pelas ruas vazias até os altos da cidade. Lá o casario do final do século XIX e início do século XX se alinhava em ambas as calçadas, valorizando o silêncio da noite. Dei volta grande até atravessar a praça com o canhão, descer à margem do rio sob o rochedo do antigo forte, cruzar o beco e, de volta à ladeira principal, atingir a praça da igreja de Nossa Senhora da Corrente. Tudo ficava mais charmoso sob a iluminação e a calma da noite do centro de Penedo.
A lotação lotou de verdade com muitos passageiros irregularmente em pé. As vítimas precisavam se inclinar devido ao teto baixo. Depois de passar por Piaçabuçu, desci no vilarejo do Peba, diante da praia extensa.
Veículos de todos os tipos, carros, motos, caminhonetes, ônibus, circulavam impunemente pela areia da praia, transformada em pista de trânsito urbano. Os banhistas tinham que atentar aos motoristas, sofrendo ainda com as buzinadas. O peso e a velocidade dos veículos marcavam a areia, que também recebia manchas de óleo e outros danos provocados pelo tráfego constante.
Praia entupida de veículos não é praia.
E traziam consigo o famigerado som de carro. Som ensurdecedor tocando o lixo comercial da ocasião. E não vinha de um ou dois carros espaçados. Eram dezenas deles, lado a lado, todos vomitando poluição sonora no último volume. Obrigavam os demais a ouvirem também, por bem ou por mal, quisessem ou não. Nem se ouvia o som do mar, do vento, da natureza. E, com os carros indo e vindo por toda a praia, ninguém caminhava na beira da água. Deslocamentos, mesmo curtos, só de carro. Creio que me consideraram um extraterrestre andando a pé, chapinhando os pés na água do mar, sentindo o calor do sol, a brisa refrescante. Com os veículos vinham mil tranqueiras, comida, bebida, embalagens plásticas, e lixo, muito lixo.

Tive que caminhar muito, mas muito mesmo, para me livrar da poluição geral. Mas não me livrava dos carros que iam e vinham de todas as direções. Coitada da praia do Peba, sobretudo dos moradores originais do Peba, e das demais praias que permitiam aquele crime. Praia que libera o acesso de veículos jamais será uma praia. 
Matei a sede, belisquei peixe frito e fugi daquela tragédia.
Em Penedo, depois de cruzar de barco o São Francisco, visitei a cidadezinha sergipana de Santana do São Francisco, a antiga Carrapicho.
Pequena, discreta, erguida na encosta inclinada da margem do rio, a cidade tornou-se pólo de produção de arte figurativa em barro, usando temática regional. Em dezenas de pontos espalhados, trabalhadores em condições precárias moldavam, secavam, queimavam e, finalmente, pintavam os utensílios de casa, imagens de santo, cenas folclóricas. A produção em série comprometia a qualidade das obras. O aspecto de barro cozido, atraente por si só, recebia camadas de algo como verniz, nas cores laranja, verde abacate, rosa, tirando o encanto do artesanato. De qualquer maneira, agradava assistir aos processos de produção, totalmente artesanais.
De Carrapicho peguei moto-táxi à vizinha Neópolis, ainda em Sergipe. As ruas e calçadas, a apresentação do comércio e das residências, superavam as mazelas das cidades alagoanas. Claro, Neópolis estava longe de um paraíso, mas tornava ainda mais evidente o quão miserável, abandonado e mal tratado tem sido o estado de Alagoas por séculos de coronelismo e neocoronelismo. Qualquer semelhança com a catástrofe social do Maranhão não era mera coincidência, nem nas causas, nem nos efeitos.
 Tomei outro barco, cruzei o rio e retornei a Penedo, pobre e abandonada, mas extremamente atraente.

Repeti a peixada no restaurante no alto do rochedo. Ao passar determinada cena de novela, em reprise, no televisor no fundo do salão do restaurante, atrás do balcão e do caixa, todos, mas absolutamente todos os funcionários da casa, interrompiam os afazeres do momento, exibiam o olhar bovino e não o desgrudavam da telinha. Os garçons, cozinheiros, auxiliares, dono, esqueciam os clientes, inclusive os recém-chegados e ainda não atendidos, assimilando o embrutecimento pela televisão, esquecendo o mundo real. Bizarro e engraçado. Me dirigi ao balcão, bem perto da televisão, a fim de pagar a conta. Todos os funcionários estavam de costas, para mim e para o resto do restaurante. Minutos depois, um garçom, por um milagre, se virou e me notou. Lentamente gritou ao dono, no caixa, que também não desgrudava os olhos do televisor:
-- o cliente, o cliente!
Ele me olhou depois de muita insistência e me encarou, mudo, cheio de dúvidas.
-- Eu queria a conta.
-- Ah, sim... Mas se virou novamente e deixou cair o queixo diante da televisão.
-- ...
-- O que foi mesmo?
O garçom o ajudou a pegar no tranco:
-- Mesa 9, cliente da mesa 9!
-- ...
-- O senhor quer a conta?
-- Isso...
Anotava um item, olhava para a televisão, anotava outro item, olhava novamente para a televisão. No meio da soma, voltava a olhar para a televisão. Entregou-me a conta e imediatamente se virou para a televisão. Entreguei o meu cartão de crédito e, antes de ele pegar a máquina, olhou para a televisão. E assim foi, demoradamente, até completar o processo.
-- Muito obrigado, volte sempre.
E voltou a olhar, embasbacado, junto com os demais funcionários, para o televisor. Era reprise de um capítulo de uma novela qualquer. Era o início da tarde de um restaurante com várias mesas ocupadas.

Embarquei à tarde para Maceió. O confortável ônibus de linha usava o método antigo e funcional da ventilação natural vinda das janelas abertas. Perfeito. O ar sempre se renovava. A temperatura amenizava com a brisa. Ninguém sentia falta de ar ou enjoos decorrentes das janelas fechadas e do ar condicionado. Tudo mais simples, eficaz, eficiente. 
No hotel em Maceió recebi desconto generoso pela semana anterior ao carnaval. O calçadão da praia da Ponta Verde rapidamente se esvaziou naquela noite, assim como os bares, restaurantes, barracas e afins. Restaram gatos pingados para manter a noite acesa. A orla se apresentava bonita, iluminada, ventilada, perfumada pelo tradicional sargaço da areia da praia. Comi excelente tapioca recheada com coco, queijo e banana, andei, dei olhadelas na parte esquerda da praia de Sete Coqueiros, ao final da rua, no sentido oposto da Ponta Verde. Estava ainda mais vazia e tranquila.
Bem cedinho, pelo calçadão, tomei a praia da Ponta Verde, quase deserta naquele horário, até o fim da praia de Cruz das Almas, pouco antes de Jacarecica. As praias de Maceió continuavam bonitas apesar de urbanizadas e de muita sujeira. Não do sargaço, característico da região, mas do lixo lançado pelos usuários. Sem falar nas tubulações sanitárias despejando esgoto fétido diretamente nas areias.
Os banhistas, sobretudo os turistas, se aglomeravam nos trechos em frente aos grandes hotéis, deixando extensos vazios na areia. Bares, restaurantes, quiosques de tapioca, coco, lanches, sucos, bem cuidados, se estendiam regularmente ao longo das praias da Ponta Verde e Jatiúca. Após a Lagoa da Anta, caía bastante o movimento e as ofertas de comes e bebes. O que não significava melhores praias. O trecho da praia de Cruz das Almas encontrava-se degradado, sujo, com calçadas arrebentadas, construções inacabadas atrás da avenida. Aquele pedaço fora abandonado à própria sorte.
Mais ao norte aumentavam os coqueirais, remetendo, aparentemente, a praias mais desertas e preservadas. Ledo engano. No patamar dos morros chapados, tão tradicionais em Maceió, ocupando extensa faixa atrás dos coqueirais, bem próximo da praia, havia um enorme lixão. E ativo. Ativíssimo. Caminhões de lixo despejavam toneladas de resíduos sólidos, disputados a tapa pelos urubus e pelos catadores miseráveis. Tudo isso próximo e perfeitamente visível de vários pontos da praia, uma das principais fontes de renda do município. Mais que isso, o lixão expunha a miséria e o descaso socioambiental a que foi jogada a população da cidade. Enquanto os turistas permaneciam no máximo uma semana na cidade e arredores, os moradores de Maceió conviviam com aquela catástrofe social todos os dias do ano.
Por outro lado, cartazes instalados nos bairros nobres de Ponta Verde, Jatiúca e Pajuçara alardeavam o número recorde de turistas na cidade durante o ano anterior. Tudo ia muito bem, obrigado!
Retornei caminhando pela praia, ali no final das ondas, refrescando os pés na água do mar. Parei em bar e restaurante aberto do trecho mais movimentado da praia da Ponta Verde e me instalei em mesa sombreada e com boa visão da paisagem natural e humana. Deixei o tempo passar vagarosamente. Comi sururu ensopado com leite de coco. Detonei duas caipirinhas, encerrando com suco de pitanga.

Na manhã seguinte caminhei no sentido das praias de Sete Coqueiros e Pajuçara, esta animada pelas vendas de artesanato, pelo ponto de partida dos passeios de jangada às piscinas de corais. A Pajuçara ainda guardava casas, térreas ou em sobrados, mas predominavam os edifícios de luxo, envidraçados, de poucos andares.
Típico, muito típico de Maceió, eram os carrinhos dos vendedores de picolé. Os pequenos alto-falantes repetiam gravações de ofertas dos produtos, o mais famoso e marcante era “picolé caseiro Caicó”. Não era alto, mas o suficiente para todos ouvirem e não esquecerem aquela marca registrada da cidade.
Voltei à praia da Ponta Verde para repetir o local e os pedidos do dia anterior. Foi tão bom. Porque mudar? E enrolei tudo o que tinha direito na véspera de retorno a São Paulo.
À noite, o vento refrescante e constante vindo do mar garantia temperaturas agradáveis para andar na orla ou simplesmente sentar e observar o vaivém de turistas e alagoanos. Repeti a grande e deliciosa tapioca recheada com coco, queijo e banana.
Peguei ônibus urbano ao aeroporto, economizando a facada do táxi. O voo causou susto ao pousar no destino, quando chovia forte, aliado a raios, relâmpagos e trovoadas. O avião balançou bastante, ameaçou arremeter com ruídos estranhos das turbinas, além de muita trepidação. Finalmente, pousou são e salvo em São Paulo, em meados de fevereiro. Os passageiros, aliviados de estarem vivos, aplaudiram fervorosamente as manobras do piloto.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

do Pará a Alagoas (parte 5/6)

...continuação
Após deixar a rua do último bairro, peguei a estradinha de pedras irregulares. Ali, só de botas firmes, com solado duro e grosso, para amenizar os impactos nas solas dos pés. Cercas de pedra, pequenas propriedades com terraços cultivados, goiaba, manga, jaca, coco, mamão, maracujá. Relevo acidentado, entre sobes e desces, colinas rochosas, vales profundos, olhos d’água, pequenas criações de animais, casinhas de pedra ou alvenaria. Duas jararacas e uma coral cruzaram o caminho calçado. Ao me atrapalhar nas encruzilhadas, tive que aguardar passar alguém para confirmar a direção correta e prosear aqui e ali com os lavradores locais.
Atingi o topo do Pico do Papagaio, onde grupo de crianças e duas professoras se divertiam antes de iniciarem o retorno por caminho diferente do meu. Construção em cimento no formato do Careta, a figura símbolo do carnaval de Triunfo, vestida a caráter, com o chicote nas mãos e tudo mais, marcava o ponto culminante. Do alto se viam cadeias de serras, serrotes, vales profundos e verdejantes, casinhas esparsas, lajedos, parte das cidades pernambucanas de Triunfo e Flores, além da cidade paraibana de Princesa Isabel. O vento refrescante secou o suor e me manteve em ambiente cheio de paz e tranquilidade, garantidas após a descida dos escolares.
Pouco parei na volta. Entrei nas ruas de Triunfo com a sede acumulada de mais de quatro horas. Detonei duas garrafas grandes do mesmo refrigerante pernambucano fabricado em Garanhuns.
Almocei e me deixei levar pela preguiça gostosa da tarde.
À noite repeti os pedidos durante o jantar. A conta, porém, veio com valor menor do que a da outra noite. Acho que o dono nem calculava item a item. Chutava um valor equivalente ao consumido e ponto final. Encerrei com giro pelo centro antigo de Triunfo depois de margear todo o lago pelo calçadão. As ruas, praças e ladeiras, como sempre, combinando com o lugar tão pitoresco, se mantinham escuras, vazias, silenciosas.

Em outro dia, dei breves voltas pelo centro da cidade, visitei o precário e simpático museu regional. Jantei no bar de sempre, bebendo as de sempre, comendo o de sempre. E estava longe de enjoar daquela deliciosa rotina.
Embarquei à noite. Nem vesti a malha separada previamente contra possíveis frios decorrentes do desnecessário ar condicionado. A ventilação natural pelas janelas, que sempre funcionou tão bem, agiu bem melhor.
Logo após a saída de Triunfo a estrada se tornou sinuosa, em descida de serra. O veículo parou em diversas cidadezinhas para embarques esparsos, até o momento que adormeci e não acompanhei mais nada. Eu acordava assustado de vez em quando e voltava a dormir. Foi assim a noite inteira até notar que o ônibus trafegava pelas avenidas de Recife. A estação rodoviária da cidade ficava bem afastada do centro, devido à correta intenção de afastar o fluxo dos ônibus intermunicipais.
Mesmo assim o ônibus passou por vários bairros de Recife, arrebanhando passageiros em pontos de ônibus comum, seguindo pela repugnante BR-101, com o intenso movimento de veículos leves e pesados. A rodovia passava por obras de duplicação, emperrando o já emperrado fluxo geral. Se todo esse tempo, dinheiro, mão de obra, esforços gastos, fossem direcionados para a construção ou modernização de ferrovias, de passageiros e cargas, o povo brasileiro se beneficiaria de verdade. Mas não. As duplicações e os repetidos asfaltamentos das rodovias são vendidos ao público como a salvação da pátria. Na verdade, apenas se tratam de mais lucros para as construtoras, as transnacionais de veículos, autopeças, combustíveis e demais benfeitores da humanidade. É a famigerada opção rodoviária imposta pelas corporações aos brasileiros desde meados do século XX.
E o massacre prosseguia na BR-101 com mãos únicas de direção, desvios, trechos esburacados, automóveis e mais automóveis, caminhões e mais caminhões. Nas margens da rodovia, canaviais sem fim, cidadezinhas miseráveis, feias, sujas, desumanizadas, sem cara de nada. Ambulantes maltrapilhos expunham jaca e manga para vender. Ninguém parava para comprar. No posto fiscal, na divisa entre Pernambuco e Alagoas, um emaranhado de caminhões e carretas transformava o local no fim do mundo. 
 Todo o cenário social desolador se acentuou após a entrada em território alagoano. Aumentou a miséria, a sujeira, o abandono de tudo. E os canaviais prosseguiam como reis absolutos na paisagem, intercalados com vastas áreas improdutivas. Acampamentos de trabalhadores rurais sem terra, lutando por espaço para plantar alimentos, se erguiam na beira da estrada em condições desesperadoras.
O outro ônibus partiu de Maceió percorrendo pedaços belíssimos, as lagoas de Mundaú e Manguaba, as praias de Barra de São Miguel, a praia do Gunga, parte do litoral de Coruripe. Anoiteceu e a estrada se afastou do mar para passar por Piaçabuçu e chegar a Penedo. A ressalva ficou por conta dos canaviais e arrozais muito próximos ao mar entre Barra de São Miguel e Coruripe. O contraste entre a beleza da paisagem natural e o jeito sombrio da monocultura gerava apreensões quanto ao futuro da região.

Em Penedo, a pousada instalada em sobrado colonial se destacava pela imponência, interna e externa. O quarto era amplo, em estilo rústico e antigo. O assoalho feito de longas ripas de madeira rangia ao caminhar.
Encontrei restaurante de madeira na beira do rio São Francisco, charmoso, caro, oferecendo comidas e bebidas saborosas. Enquanto matava a sede e a fome, pude apreciar a calmaria das águas do rio, o esparso movimento de barcos, as luzes de Sergipe na margem oposta. Casais, grupos de amigos e dois gringos petiscavam nas outras mesas.  
Tomei dois grandes copos de suco de jenipapo durante o café da manhã. Nem lembrara a última vez que experimentara aquela delícia, antes de se transformar no famoso licor, tão apreciado nas festas juninas do nordeste.
Caminhei lentamente pela calçada da margem do São Francisco, retornando pelas ruazinhas de dentro, até atingir o centro histórico de Penedo. Misturado ao comércio popular e ao mercado, provisoriamente ao ar livre, o casario antigo, as igrejas, as ladeiras, os becos, os sobrados, aquele trecho central da cidade encantava de vários ângulos que se apreciasse. Sem falar na presença marcante das águas verde-azuladas do rio e das cidadezinhas de Sergipe na outra margem. O horrendo edifício do hotel São Francisco e os dois prédios cinzentos ao lado destoavam da harmonia arquitetônica e chamavam a atenção pelo mau gosto.
Visitei igrejas, conventos, museus, todos memoráveis. Mas o melhor mesmo era andar sem compromisso pela cidade, sobretudo pela pitoresca margem do São Francisco, situada abaixo do paredão do antigo forte. Em local íngreme e arborizado, o beco sinuoso ladeava as águas e atraía pescadores, banhistas ou meros observadores. O sol torrava a cuca e eu tinha que me esgueirar sob as marquises ou parar sob as sombras das árvores para tomar fôlego. Ainda bem que a brisa constante mantinha o ar respirável.
Após delicioso almoço, no qual me esbaldei com peixada à brasileira de dourado, com direito à vista panorâmica do São Francisco, decidi fugir do sol e me refugiar no quarto da pousada, alto, claro, bem ventilado. Nas esquinas próximas, inúmeras lotações chamavam passageiros com destino às cidadezinhas próximas.
A pousada, a igreja de Nossa Senhora da Corrente, exatamente ao lado, e o atual paço municipal, atravessando a rua, pertenceram à família que fez história na cidade. O casal espalhou a fama por ser contra a escravidão, inclusive escondendo negros cativos nas dependências da igreja particular, oferecendo-lhes a carta de alforria em seguida.
À noite apenas perambulei pela orla fluvial, circulei pelo melhor do centro histórico de Penedo, sob a iluminação noturna. A maioria dos moradores se concentrava nos bairros altos e alinhados na saída para Piaçabuçu. O centro, comercial, administrativo e turístico, se esvaziava à noite, oferecendo silêncio e tranquilidade.

Peguei lotação até Piaçabuçu, também na margem do São Francisco. Andei pela orla fluvial, ao longo da qual uns bêbados jovens ainda entornavam copos e garrafas, meninas vomitavam atrás das barracas, pairando certo ar de fim de festa, só contrastado pelo ir e vir dos barcos de pesca. Piaçabuçu era completamente plana, com ruas estreitas e parecidas.
Lotações chegaram de Maceió trazendo os turistas para o passeio de barco. Nem bem desciam dos veículos, começavam a disparar a câmera fotográfica, principalmente fotos deles mesmos, passo a passo, até o convés do barco. Praticamente só havia casais jovens, a maioria da região sudeste do país. Conversavam apenas entre si, jamais se dirigindo a outros, muito menos a mim, que não viera nas lotações da capital. Nunca sorriam ou se mostravam receptivos.
O barco partiu do cais fluvial de Piaçabuçu e atingiu as dunas bem próximas à foz propriamente dita do São Francisco.
Nem me lembrava em quantos pontos e em quantas oportunidades eu estivera nesse rio maravilhoso. Das nascentes nos altos da Serra da Canastra, dos tantos sítios em Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, eu agora visitava a foz dos quase três mil quilômetros do chamado rio de integração nacional. Rio judiado pelo capitalismo, especialmente pelo desmatamento das cabeceiras e margens, da poluição industrial e residencial, do descaso na aplicação das políticas sociais e ambientais. É certo que havia pequenas e aguerridas resistências dos ribeirinhos, em diversos estados, pela revitalização das águas e do curso do rio. Esses importantes focos de consciência socioambiental eram esmagados pela repressão, ignorados, perseguidos ou distorcidos pela justiça e pelos oligopólios privados dos meios de comunicação.
A tripulação marcou o horário de volta e cada casal tomou o rumo desejado. Preferi subir as dunas, apreciar a vista, antes de caminhar até o ponto exato da foz, onde as águas doces do São Francisco encontram o mar na margem alagoana. A praia oceânica, plana e de mar bravo, o farol abandonado próximo ao lado sergipano, o novo farol movido à energia solar, as águas refrescantes do Velho Chico. Caminhei bastante pelas dunas e margem, me refresquei nas águas esverdeadas do rio, contemplei a paisagem única.

Troquei boas frases com a tripulação do barco. Essa gente sofrida e trabalhadora não era reconhecida e muito mal remunerada pelos patrões que insistiam no estilo de coronéis regionais.
Ao retornar ao cais de Piaçabuçu, belisquei qualquer coisa na cidadezinha e peguei lotação de volta a Penedo.
O camarão ao alho e óleo regado a duas caipirinhas, o visual noturno do São Francisco, sempre ele, no bar e restaurante de Penedo só não foi perfeito em razão de dois gringos na mesa atrás. Conversavam em francês, em volume alto, bem alto, exigindo que todos ouvissem o discurso. E ainda fumavam um cigarro atrás do outro. Outros clientes também se incomodaram com aquela arrogância. Clientes e garçons suspiraram aliviados quando pagaram a conta e sumiram do mapa. O ambiente voltou à leveza costumeira. Fiquei ainda um tempão degustando os comes, os bebes, o suave som das águas do rio.
continua...

quarta-feira, 20 de julho de 2011

do Pará a Alagoas (parte 4/6)

...continuação
Subi cedo na garupa da moto para mais um dia de exploração na Serra da Capivara. A bunda e os quadris ainda sentiam a excesso de moto do dia anterior.
Entramos pela guarita principal, cruzando o povoado de Sítio do Mocó. Visita aos sítios arqueológicos e os altos dos morros nas imediações da famosa Pedra Furada, cartão postal do parque. Revi, depois de dez anos, as tocas com centenas e espetaculares pinturas rupestres, muito bem estruturadas para visitação. Em outro trecho, gravuras em alto relevo, em estilo abstrato. Como crônicas de costumes da antiguidade, a forma de expressão anterior à escrita dos povos que viveram ali há milhares de anos se tornava registro histórico da mais alta qualidade e importância cientifica.
As abelhas e marimbondos, em enxames ou em buracos nos paredões rochosos, zuniam assustadoramente perto das pinturas, obrigando a evitar ruídos ou movimentos abruptos. Avistados também saguis, veados, aves, pássaros variados, perambulando pelas trilhas, sem falar nos onipresentes lagartos de todos os tamanhos e colorações.
Fora dos limites do parque nacional, conhecemos os processos de fabricação de cerâmicas artesanais com motivos da Serra da Capivara. Eram, entre outros, copos, xícaras, pratos, potes, vasos, enfeites, travessas, vasilhas de formatos, tamanhos, cores e estampas variadas. Tudo de excelente qualidade, credenciando-os com fornecedores de importantes lojas de decoração do Brasil e do exterior.
Retorno a São Raimundo Nonato quando minha coluna, quadris e bunda davam sinais de esgotamento. A mente, por outro lado, mantinha-se empolgada e satisfeita com as explorações aos sítios arqueológicos que comprovam a existência, na Serra da Capivara, dos povos mais antigos das Américas.

Nem bem anoiteceu e lá fui eu, a pé, ao bairro do Gavião, a fim de saborear a tão falada galinha caipira. A caminhada não foi das maiores, porém o calor abafado provocou suor pelo corpo, e nos últimos quarteirões não tinha iluminação pública. Minutos depois eu mergulhava de cabeça em maravilhosa galinha ao molho pardo, com arroz, pirão da galinha e salada. Lambi os beiços. Realmente, divinamente saborosa. Valeria ter caminhado o triplo da distância, por ruas piores e mais escuras, para tamanho banquete. Imperdível. Retornei lentamente ao hotel, em estado de graça, ainda sentindo na boca o sabor estupendo da galinha ao molho pardo.
São Raimundo Nonato crescera, se movimentara, mas se mantinha a mesma de dez anos antes. Feia, suja, sem qualquer urbanização, com esgoto fétido correndo a céu aberto na guia da calçada. O povo, porém, conquistava pelo acolhimento, simpatia, descontração. Além de base para explorar a Serra da Capivara, valia a pena passar uns dias a mais na cidade. Perambulei pelas ruas, pelo menos nos horários em que o sol massacrava menos. E dá-lhe a legítima e insuperável cajuína do Piauí para matar a sede.
Bem cedo o ônibus partiu por estrada boa e sem buracos, cortando a caatinga do sudeste do Piauí. Logo de cara subiu acentuadamente a Serra da Capivara e cruzou a borda leste do parque nacional, passando em frente a uma das guaritas. Aproveitei para contemplar os últimos instantes daquela maravilha. Paradas para embarque e desembarque em Coronel José Dias, São João do Piauí, Simplício Mendes e Colônia do Piauí.
Desci no coração do centro histórico de Oeiras, onde me hospedei em pousada instalada em casarão colonial com quartos dispostos ao redor de pátio central. A atmosfera era de volta no tempo. A cidade guardava casario antigo bem preservado, urbanismo charmoso, praças e largos, tranquilidade.
À noite belisquei e bebi umas e outras durante horas no Café bem no miolo do centro histórico. Mesas ao ar livre, pouco movimento, casais de namorados na ampla praça em frente, tudo depois da missa da Matriz. Circulei sem pretensões pelas ruas que chegavam e saíam da praça. Ambiente silencioso e calmo, perfeito.
O centro histórico de Oeiras, amplo e arejado, era um museu a céu aberto, com a suntuosidade de antiga capital do Piauí. Diversos prédios públicos, antigos e atuais, se erguiam ao redor ou nas imediações da espaçosa praça da Vitória. Somavam-se a eles o Cine Teatro Oeiras, o Café Oeiras, o Museu de Arte Sacra, o casario abrigando famílias tradicionais. Saindo dessa concentração ainda existiam construções antigas, posteriores e anteriores ao século XIX, em meados do qual a cidade perdeu o posto de capital para Teresina. Era delicioso me perder pelas ruelas, me sentar em bancos das praças à noite, observar o lento movimento local. A parte mais nova de Oeiras nada oferecia de atraente, concentrando a economia ativa da cidade, a maioria das escolas, hospitais, clubes, oficinas e, claro, a estação rodoviária. Discretos e retraídos, os oeirenses costumavam aguardar minha iniciativa para cumprimentar ou acenar.

Subi o morro do Cruzeiro, no topo do qual as obras de urbanização construíam área de lazer e descanso. Tentei pegar trilhas que me levariam às colinas circundantes, mas bandos de onipresentes mutucas não me permitiam andar um metro adentro da caatinga.
O ambiente do salão do café da manhã da pousada era triste, sem conversas, com a insuportável televisão ligada em programas horrorosos dos oligopólios da mídia, atraindo os olhares bovinos dos poucos hóspedes. Eu procurava escolher mesa de costas para aquela praga, de modo que todos ficavam de frente para mim. Até os garçons, sentados e bestificados, assistiam as inutilidades de sempre da telinha.
Caminhei a fim de cruzar a Oeiras nova e subir no morro acima do qual se encontrava estátua de Nossa Senhora da Vitória. O mormaço provocava efeito térmico de fervura. O suor escorria pelo corpo todo, a camiseta encharcava e tudo ficava pegajoso naquele ar viscoso. As escadarias de andares altos levavam ao alto do morro, de onde se tinha ampla visão da cidade. Trilhas circundavam o topo alongado em meio a campos e arbustos do semiárido.
Observei a saída de ônibus clandestino rumo a São Paulo. O veículo estava lotado até o gargalo. A carroceria, pneus, faróis, lanternas, o aspecto e o comportamento do motorista não poderiam ser piores. A placa era de Orlândia, São Paulo. O painel frontal indicava a fantasiosa linha de Natal a Osasco. Do outro lado da rodovia, outro ônibus da mesma empresa, seguindo no sentido contrário, trocava o pneu furado na borracharia do posto. Também entupido de pobres coitados tratados como gado.
O céu estrelou. A lua quase cheia brilhou forte. Cruzei diagonalmente a praça da Vitória e me sentei em mesa ao ar livre do Café. Bebi, comi, bati longos papos com o garçom. Apreciei o movimento ao redor, contemplei o cenário belíssimo e tranquilo do centro histórico de Oeiras.
O ônibus da empresa Princesa do Agreste tentou compensar o atraso e demais desserviços com o desnecessário vídeo interno. E colocaram DVD de músicas do fundamentalismo religioso, de alguma facção evangélica do comércio da fé. Depois que embarquei, a tortura durou mais de meia hora. Uns passageiros assistiam bestificados, outros olhavam a paisagem pela janela. E a próxima atração foi a apresentação musical de galã adolescente, o tal de Luan Santana. A paisagem da caatinga esverdeada oferecia serrotes e morros, especialmente nas imediações de Picos, cidade encravada lá embaixo logo após a descida de imponente serra.

A poluição visual e sonora dos vídeos prosseguia com festival de piadas sem graça, gravado de um canal comercial qualquer. O pôr-do-sol ocorreu na divisa entre Piauí e Pernambuco, nascendo enorme e brilhante lua cheia. Anoiteceu em Pernambuco com a caatinga nos acompanhando na beira da rodovia. Ao meu lado, típico escravo do comércio da fé, de roupa social, bíblia na mão, expressão de otário.
Em Pernambuco, o ônibus parou em Araripina, Trindade, Ouricuri, Parnamirim. Desembarquei no meio da noite em Salgueiro. Avistei hotel nas proximidades da rodoviária, bem instalado em construção moderna e funcional.
Comi bem no café da manhã enquanto assistia ovelhas evangélicas, com a estrela de Davi e a palavra Judah impressas nas camisetas, se dirigindo ao auditório de convenções do hotel. Retornei ao quarto e me entreguei à preguiça. Não tinha e não queria ter planos para aquele dia. Do hotel se viam serrotes pedregosos e a paisagem que não escondia a aridez do sertão central de Pernambuco.
Nem bem anoiteceu e saí à procura de jantar decente. Encontrei o que pareceu a principal churrascaria de Salgueiro, frequentada por faixa etária acima dos trinta anos, música ao vivo somente para mais tarde. Escolhi mesa bem posicionada em ambiente que prometia caso eu desejasse. Os moradores saíam à noite, invadiam as calçadas, ruas, praças, bares, restaurantes, lanchonetes, sorveterias. Bastava o sol se pôr e a temperatura cair nem que fosse o mínimo, para a cidade se alegrar e ganhar vida nova.
O ônibus partiu quase vazio no meio da manhã. Como o ar condicionado do ônibus novíssimo não funcionava e as janelas não podiam abrir, a sauna no interior do veículo se fez sem piedade. O calor era mais ameno fora que dentro do ônibus. E estávamos no miolo do semiárido pernambucano, cercado da mais pura caatinga. As empresas fabricantes de ônibus, todas transnacionais, insistem em construir ônibus com o quase sempre supérfluo ar condicionado e com as janelas de vidro fixo, impossíveis de serem abertas e receberem a agradável ventilação natural.
Desembarquei em Serra Talhada, terra natal de Lampião e capital brasileira do xaxado, ao pé da enorme e imponente serra com paredões rochosos. Subi em veraneio do tempo do onça rumo à subida da serra até Triunfo, ao som de Silvano Sales, entre letras com muito romantismo, tragédias e mágoas.
Fiquei em pousada vazia nos altos de Triunfo. Almocei no restaurante já conhecido de quatro anos antes. Do outro lado da rua, sob as árvores, trio de forró autêntico, proveniente da Paraíba, mandava ver clássicos, velhos e novos, todos de qualidade ausente nos lixos comerciais que se escondem atrás do rótulo de forró eletrônico. Casais dançavam entre as mesas. Outros sentados acompanhavam a boa música, cantarolando ou sorrindo.
Triunfo, com o lago e o centro antigo sobre a colina, continuava charmosa. O silêncio da tarde indicava que aquela noite encerraria cedo. Me antecipei, tomei duas doses da cachaça local, comi carne de sol e macaxeira. Bati papos com o dono do bar, colecionador de garrafas de aguardente, e me senti em casa. Ainda apreciei e registrei a bela cena noturna composta pelo lago rodeado pelo calçadão, o centro antigo com destaque para a igreja Matriz no alto.
O silêncio e a temperatura amena durante a madrugada garantiram as condições para relaxar e descansar como se deve.
Circulei sem compromisso pelo centro da cidade, de ruas estreitas, ladeiras e casario da virada do século XIX para o XX. Cores fortes de pinturas recentes realçavam as fachadas. Rodeei a igreja e segui rumo às partes altas, optando pela estradinha que me levaria aos povoados de Macaco, Baixa Grande e Apolinário.

O calçamento irregular de pedras, as cercas construídas a partir do mesmo tipo de pedra, assim como algumas casas também de paredes de pedras, se destacavam sobre o solo fértil e cultivado. O traçado acidentado e sinuoso dos caminhos, os lajedos extensos, as plantações variadas em pequenas propriedades, a terra escura e úmida, diferenciavam os altos da região de Triunfo da aridez do vale sertanejo ao longo do qual se localizavam Salgueiro, Serra Talhada, Arcoverde.
Caminhei bastante apreciando o cenário quase tropical. Avistei o povoado de Apolinário ao fundo, tendo pequena capela postada sobre lajedo, de frente para o vale do sertão central. As pessoas trabalhavam duro na lavoura. Como o povoado se situava no início da descida da serra, mandacarus, xiquexiques e palmas, ainda que esparsas, começavam a aparecer. A temperatura também aumentara e o ar perdera o frescor da cidade, evidenciando a aproximação do calor seco e tórrido da caatinga.
Retornei ao centro de Triunfo, encostando o esqueleto em barzinho e detonando refrigerante de fabricação pernambucana, entre conversas com a balconista comunicativa.
Em noite estrelada, a margem iluminada do lago e as ruas do centro da cidade encantavam ainda mais. O pequeno movimento noturno de moradores caía bem. Sentei-me no bar e restaurante de sempre, tomei duas doses generosas da cachaça artesanal e repeti a carne de sol com macaxeira cozida e salada. Encerrei a noite com sopa de carne e legumes. Entre goles e garfadas conversei bastante com os simpáticos colegas da noite.
Saí cedo para caminhada rumo ao Pico do Papagaio, considerado o ponto mais alto de Pernambuco. Ninguém da pousada ou do bar acreditou que eu conseguiria a façanha. Sugeriram até que eu fretasse uma moto ou algo assim. Caso não chegasse ao topo, o trajeto percorrido certamente compensaria por si.
continua...

segunda-feira, 18 de julho de 2011

do Pará a Alagoas (parte 3/6)

...continuação
Consegui embarcar somente no meio do dia, cruzando paisagens de mais chapadas em ambos os lados. No sul do Piauí rodavam dezenas de carros, motos, ônibus, caminhonetes, caminhões, sem placa ou com a extinta placa amarela. Nenhum motoqueiro ou carona usava capacete. Ônibus clandestinos circulavam lotados, em direção ao sudeste do Brasil. Após várias paradas em cidadezinhas do vale do Gurguéia, desci na rodoviária de Canto do Buriti no final da tarde. A melhor opção para São Raimundo Nonato partiria somente na manhã seguinte. Peguei carona no próprio ônibus até o hotel na saída da cidade.
Boa churrascaria se localizava a cinquenta metros do hotel. Fui bem atendido pelos piauienses, com quem conversei sobre as culturas de caju e melão da região, sobre as saborosas cajuínas. Mandei ver prato generoso de carne de sol, arroz, feijão tropeiro, salada, duas caipirinhas, duas cajuínas, duas águas. Finalmente, quarenta e oito horas depois, eu consegui comer comida de verdade. E como caiu bem!
Encerrei a noite. Cama e muito sono.
Perdi o café da manhã. O vigia da noite me deu carona de moto, sem capacete novamente, até a rodoviária, onde teria que esperar o ônibus da mesma linha que não peguei em Gilbués pelo inconveniente do horário. O ônibus custou a ultrapassar os buracos e mais buracos da rodovia. Desembarquei em São Raimundo Nonato e imediatamente comprei passagem para Caracol. Nem acreditei que aguardaria apenas uma hora e meia, contrastando com as esperas anteriores de horas e horas, noites em hotéis e tudo mais. Comi lanches e suco de goiaba na própria rodoviária, construção recém-inaugurada, novíssima, tinindo, porém sem água nos banheiros e lanchonete.

Após viagem calma, desci na praça central da pequena Caracol no meio da tarde. Entrei na pousada administrada pelo casal idoso. Maravilhoso era o terraço na frente, sombreado à tarde, ideal para encontrar outros hóspedes, o próprio casal, vizinhos que por ali passavam, entre conversas animadas sobre assuntos diversos. E eu estava à cerca de cinquenta quilômetros de Guaribas, a cidade brasileira de pior índice de desenvolvimento humano segundo o IBGE.
Jantei galinha caipira, arroz, feijão preto, salada, farofa. Caiu bem depois de um dia sem café da manhã e almoço dignos do nome. Para encerrar a noite, mais papos descontraídos nas cadeiras da calçada em frente à pousada. Do outro lado da rua, no meio da praça, rolava a missa na pequena Matriz de Caracol.
Comi bem e bastante no café da manhã. Estava pronto para encarar a Serra das Confusões, de moto e a pé, conforme conversa prévia na tarde anterior.
Lá fomos eu e o motoqueiro, com comes e um litro e meio de água, explorar a parte sul do parque nacional de mais de quinhentos mil hectares. Foram vinte quilômetros até a primeira guarita, já dentro dos limites do parque nacional. Dali, caminhamos pela trilha do Sobrado, do alto da qual tinha visão panorâmica da Serra das Confusões, das formações rochosas arredondadas pelo tempo, vales, escarpas e da caatinga a perder de vista. A vegetação oferecia suculentos e saborosos umbus pegados no próprio pé.
Tomamos a estrada principal do parque, ainda usada pelos moradores de povoado distante, pelo menos enquanto não se abria rota alternativa por fora da área de preservação. A estradinha impressionou profundamente nos trechos de descida da serra. Trabalhadores braçais escavaram a rocha na década de 1930, a mando da paróquia de São Raimundo Nonato, a fim de obter acesso ao vale do Gurguéia. O leito sobre a rocha maciça exibia paredões verticais, artificiais, obra de milhares de braços humanos, depois de muitos golpes de picaretas. Fizemos toda a descida da serra a pé, em condições de apreciar aquela obra absurda e fascinante. Entramos no desvio e atingimos o fundo da garganta estreita, por onde costumava fluir águas pluviais.
Do leito do Riacho dos Bois acessamos a gruta de mesmo nome. Árvores de mais de trinta metros de altura, espessas, copadas, evidenciavam redutos de floresta tropical, mantidas graças a gotejamentos constantes de água infiltrada nos paredões de arenito. Caminhamos pelo leito do riacho seco em ambiente úmido, fresco, estreito, escuro, em função dos paredões se fecharem acima. Bandos de andorinhas faziam gritaria e defecavam sem parar. Tivemos que nos esgueirar pelo paredão oposto para não ser atingido pelo bombardeio. Seguimos até onde a segurança permitiu e retornamos ouvindo o som da água pingando aqui e ali. Enxames de abelhas e riscos de desmoronamentos nos obrigaram a evitar ruídos. As eventuais aberturas dos paredões acima garantiam iluminação necessária e efeitos luminosos sensacionais.

Refizemos a pé toda a subida da serra naquele momento mais quente do dia, com claridade excessiva refletindo da rocha. Parecia que a cabeça iria explodir de tanto sol, pelo calor, pela claridade, pela sede. De volta à guarita, detonamos toda a água e descansamos sob a sombra entre papos com o segurança do turno.
No meio da tarde estava de volta a Caracol, satisfeitíssimo pelo dia bem aproveitado. Corri para o restaurante mais próximo a fim de forrar o bucho e recuperar as energias. Senti dificuldades de obter veículo com tração nas quatro rodas para explorar os locais mais distantes da Serra das Confusões, inclusive os sítios arqueológicos.
Caminhei pelas ruas da singela Caracol rumo ao serrote chapado, no topo do qual se erguia o cruzeiro. Por trilhas, não foi difícil atingir o patamar superior e andar até a ponta com a enorme cruz de madeira sustentada por cabos de aço. Sentei-me nos degraus da pedra para observar a cidadezinha lá embaixo, os paredões da rocha que afloravam da vegetação, o sertão no sentido da Serra das Confusões. Ventava bastante. Liberei a mente diante do belo cenário. Na descida desviei a rota e voltei por parte da estrada que vinha de Guaribas. Encontrei pequeno açude de águas sujas de onde moradores do bairro retiravam água em vasilhames e baldes, mas apenas para banhos e faxinas. A água potável vinha da chuva e era recolhida em cisternas individuais construídas pelo governo federal em parceria com movimentos sociais.
Apenas eu, dentre os hóspedes, pedia o café da manhã opcional. Os demais engoliam uma xícara de café sempre disponível na garrafa térmica sobre a mesa da copa, e olhe lá. Eu comia todos os pães, fatias de queijo, manteiga, tapiocas, ovos fritos ou mexidos. Detonava a jarra de suco, o cuscuz, o café, o leite. Tudo. Não deixava pedra sobre pedra.
Peguei a estradinha no sentido dos distritos próximos a Lagoinha. Tudo muito verde, em pequenas propriedades, algumas cultivadas ou em fase de preparo para o plantio. Região tipicamente rural com vários e pequenos agrupamentos de casas simples, mas sem miséria ostensiva. Não seria possível imaginar cenas de penúria, tal a oferta de terra fértil, estações chuvosas definidas, pequenas propriedades, possibilidade de cultura de grãos, verduras, frutas, criação de gado, porcos, galinhas, ovinos. Os moradores e passantes me acenavam com alegria espontânea.
Entrei no restaurante ao lado do que costumava comer em Caracol. Os dois irmãos proprietários comentaram o desgosto de ficar no meio de fogo cruzado das correntes políticas da cidade, a favor ou contra o prefeito. Os proprietários de ambos os restaurantes e também os moradores da cidade estigmatizavam que um dos estabelecimentos era contra e o outro a favor da administração vigente. Quem frequentava um bar não entrava no outro. Os clientes de um antipatizavam com os clientes do outro. O mesmo acontecia com os respectivos proprietários. O clima esquentava nos momentos de maior tensão política. Ou apoiava uma corrente ou apoiava outra, provocando cisão social, pessoal, afetiva. A disputa não se concentrava em projetos econômicos, sociais, culturais, administrativos, para a população, mas apenas em joguetes da pior espécie. A classe dominante local, independente da facção no governo municipal, sempre ganhava. A maioria pobre e miserável, qualquer que fosse a corrente vencedora, sempre ficaria mais pobre e ignorada. Uma miniatura da situação geral do Brasil.

Refrescou bem à noite na calçada em frente ao hotel, entre papos agradáveis.         
O filho caçula do casal proprietário da pousada caíra nas garras do comercio da fé. E, como legítimo fundamentalista, era coagido a cooptar mais e mais trouxas para aumentar a fortuna dos donos das empresas evangélicas. Vira e mexe se sentava na frente da pousada, ao lado de todos, hóspedes e amigos do casal idoso, que queriam conversar e trocar informações sobre a vida. E nessas horas o servo dizia de maneira sonsa: “vamos ouvir umas músicas boas”. Ligava o aparelho celular e descarregava o lixo, em ritmo de forró, rock, axé, samba, sertanejo, tudo com aquelas letras para embrutecer corações e mentes, alienadas e alienantes, repetindo refrões a todo instante sobre a adoração a Je$u$$. Diante daquilo, tinha quem permanecia sentado, disfarçando e continuando a conversa normal. Outros se levantavam e escapavam da armadilha.
Tirei o dia de folga. Nada de longas caminhadas debaixo do sol de torrar a cuca. Apenas voltas leves com o morador que me passou informações históricas da cidade e da família. Ele fabricava vassouras a partir de garrafas pet, reciclando-as, evitando o acúmulo de lixo plástico. Enquanto isso, mais ovelhas dóceis do comercio evangélico da fé batiam de porta em porta, entregando panfletos, tentando arrebanhar mais trouxas para a escravidão fundamentalista.
Tomei banho frio para me refrescar e acordar de vez. Ainda deu tempo para um pedaço de bolo seco e suco de goiaba em lanchonete, pois não poderia esperar o substancioso café da manhã da pousada. O ônibus logo apareceu e pouco depois me hospedava na cidade de São Raimundo Nonato.
Aproveitei o período da tarde para visitar o Museu do Homem Americano. O calor superava, e muito, o de Caracol, assim como a quantidade e agressividade das muriçocas. Comprei várias garrafas da deliciosa cajuína disponível nos supermercados. Acertei com o guia e motoqueiro os dias de passeio a Serra da Capivara, a preço bem salgado, a despeito de eu pechinchar.
Consegui jantar bem em churrascaria em frente à avenida. As calçadas, o canteiro, o interior das dezenas de bares, restaurantes, pastelarias, lanchonetes, enchiam de mesas. Desfilavam nas ruas caminhonetes de cabines duplas, aqueles monstrengos de ostentação. De todas escarrava o lixo comercial de sempre em alto volume.
Bem cedo pela manhã, o guia apareceu com a moto e dois capacetes. Estávamos prontos para explorar o circuito Serra Branca, o mais distante da cidade dentro da Serra da Capivara.
Logo no início da estrada asfaltada, com a moto a setenta quilômetros por hora, senti uma pontada acima da barriga e imaginei ter sido uma pedra. Mas a queimação, o ardor, a dor mesmo, cresceu, parecendo que não pararia de aumentar. Só podia ter sido uma abelha ou marimbondo que, por cima da camiseta, fez todo o estrago. E como ardeu, como doeu, como queimou! Ainda em movimento, eu esfregava a mão na região dolorida, sobretudo na camiseta, para esmagar o que quer que fosse, e me livrar de mais complicações. Por pouco não gritei e pedi para o motoqueiro parar no acostamento. Doeu e ardeu durante todo o dia.
Após o registro na portaria do parque nacional começamos a exploração propriamente dita. A maioria dos sítios arqueológicos se localizava distante uns dos outros e próximos às estradinhas de acesso, mas compensaram e muito o sofrimento na garupa da moto. Em diferentes estados de conservação, as pinturas rupestres encantaram pela qualidade, conteúdo narrativo, grafismo puro. Através delas pude analisar cenas do cotidiano das populações que habitaram a região há no mínimo cem mil anos. Esta idade fora obtida a partir de novas datações, comprovadas internacionalmente, de fogueiras, instrumentos de trabalho, ossadas e das próprias pinturas. Destaque para a pintura “Conflito” no alto da serra, acessada através de subida extenuante com o auxílio de cordas e sob o sol do meio-dia. Nela se via nitidamente homens em combate com lanças. Em outros, homens, mulheres e animais isolados, cenas de festa, guerra, sexo, caça, rituais, apareciam nos paredões inclinados das tocas naturais sob os morros e serras.

O sol e o calor castigavam sem tirar a empolgação de estar diante de tantos documentos históricos. Garrafas grandes de água congelada, envoltas em tecido grosso para evitar maiores perdas de temperatura garantiram a sobrevivência dos dois, somadas a castanhas, barras de cereais e frutas secas.
No caminho de volta, paramos no Baixão das Andorinhas, uma garganta extensa e profunda, com escarpas rochosas penetrando na mata densa. Do alto, além da vista deslumbrante, assistimos ao espetáculo das andorinhas no fim da tarde. As aves mergulhavam em velocidade estonteante rumo às grutas das cabeceiras do vale para o repouso noturno.
Na estrada de volta, eu sentia as pancadas dos mosquitos e besouros, como se fossem pedrinhas, se chocando contra o capacete. Já era noite quando entrei no hotel.
Optei por restaurante bem melhor que o da noite anterior, na qualidade da comida, atendimento, preço, frequência. Durante o jantar, servido em pátio ao ar livre e sob o céu estrelado, onde se espalhavam aleatoriamente dezenas de mesas, apareceu carro de som a fim de enviar mensagem de parabéns à aniversariante da mesa próxima à calçada. Além do som na retaguarda, o locutor leu mensagem escrita por uma das colegas da mesa. Mas lia muito devagar, gaguejava, voltava o texto e corrigia frases já lidas, em ato mal preparado, mas singelo e bem intencionado. A aniversariante adorou e agradeceu com beijos e abraços cada integrante da mesa.
Caminhei a esmo pelas ruas escuras dos arredores do centro de São Raimundo Nonato a fim de colaborar na digestão, antes de me afundar no quarto e dormir cedo.
continua...

sexta-feira, 15 de julho de 2011

do Pará a Alagoas (parte 2/6)

...continuação
Pessoas de pele escura predominavam entre os maranhenses da região de Santa Inês. Cafuzos e cafuzas exibiam corpos esguios. Recebi desde olhares espantados e temerosos a curiosos e receptivos, entre sorrisos e intenções de trocar palavras. A retração e a cara fechada dos maranhenses logo se desfaziam quando eu tomava a iniciativa de puxar assunto, pedir informações ou simplesmente cumprimentá-los sorrindo. A cidade praticava o salutar costume de colocar as cadeiras na calçada, durante as noites, e conversar com a família e vizinhos, observar o movimento, passar agradavelmente o tempo, sem pressa ou ansiedade. Em bares, restaurantes, até em ambulantes que preparavam sanduíches e salgados nas calçadas, a onipresente televisão lá estava para atrair como imã os olhares bovinos dos frequentadores. Em vez de conversar entre si, observar o movimento, trocar olhares, a maioria se embrutecia diante de tamanho lixo audiovisual.
O percurso de ônibus até Peritoró revelou paisagem aplainada com extensos campos de babaçus, algumas fazendas de gado, baixios alagados, rios e riachos caudalosos. As sedes das fazendas ostentavam mansões enormes em estilo moderno, currais bem construídos e bem conservados. O gado recebia do bom e do melhor. A população que servia como subempregada ou escrava nas mesmas fazendas, por outro lado, vegetava na mais absoluta miséria. O mesmo ocorria para a maioria que se amontoava nos vilarejos e cidadezinhas. Predominavam barracos de pau-a-pique ou taipa, cujos interiores se apresentavam ainda em piores condições. Os animais dos fazendeiros viviam melhor que aqueles seres humanos.
Me refugiei na lanchonete atrás da rodoviária de Peritoró para passar as mais de cinco horas até a saída do segundo ônibus. Mas a lanchonete fechou e me restaram as sujas dependências da rodoviária. O ônibus chegou quase à meia noite. Faltou pouco para o supérfluo ar condicionado congelar os passageiros, a maioria escondida debaixo de cobertores e mantas. Contrastes estapafúrdios do miserável Maranhão. E a empresa Transbrasiliana transportou passageiros em pé em plena madrugada, pratica ilegal e desumana.

Amanheceu na BR-230 sob um céu azul e sem nuvens, em meio ao cerrado do sul do Maranhão, a campos de babaçus e outras oleaginosas. Serrotes e o relevo levemente acidentado empolgaram nas imediações de Buritirama. À medida que se aproximava de Balsas, a devastação do cerrado se acentuava com presença das monoculturas envenenadas de agrotóxicos. Voltadas unicamente para exportação, as monoculturas de soja, além de arrasarem a natureza, envenenavam o solo, empregavam pouco e não investiam socialmente na região. Sotaques e rostos sulinos dos senhores da terra despontavam na paisagem humana.
Desembarquei na podre rodoviária de Balsas.  A minoria milionária que mandava e desmandava por ali só andava em caminhonetes cabines duplas. Os pobres e miseráveis que se esmagassem nas rodoviárias e ônibus lotados. Só o banheiro feminino funcionava para homens e mulheres na rodoviária, imundo e sem papel. Eu teria que aguardar horas o terceiro transporte. Qualquer coisa seria melhor que me hospedar em Balsas, o centro do agronegócio exportador e encravado na miséria do sul do Maranhão. Empurrei sanduíche com ovo e vitamina de goiaba na padaria do outro lado da rodovia que cortava a cidade. Pelas ruas da cidade, publicidade das transnacionais de sementes, agrotóxicos, equipamentos agrícolas, alimentos impostos pelos oligopólios.
As quase quatro horas de percurso da lotação ilustraram sobre o que tem se tornado o sul do Maranhão. Pela rodovia estadual asfaltada, o belíssimo cerrado natural era devastado por fazendas de gado e, sobretudo, pela monocultura extensiva de soja para exportação, geralmente tendo à frente latifundiários e capitalistas do sul do Brasil, os “laranjas” das grandes transnacionais de alimentos. Em mais de um ponto avistei a marca Bunge Alimentos. Em propriedades a se perderem de vista no horizonte, peões borrifavam agrotóxicos sem as mínimas condições de segurança para eles e pessoas próximas. Minúsculos e paupérrimos vilarejos situados ao lado de enormes silos e armazéns forneciam a mão de obra barata ou escrava ao grande capital.
Ao norte de Tasso Fragoso, pequena, simpática, com o rio Parnaíba ao lado, o relevo passou a se acidentar repentinamente. Serrotes, morros, elevações chapadas, alongadas ou não, de inúmeros formatos e tamanhos, surgiram em áreas preservadas do cerrado, em cujos vales estupendos buritizais se impunham na paisagem. Ao sul da cidadezinha o relevo ameaçou se suavizar, mas as chapadas reapareceram pouco antes de Alto Parnaíba, com a maioria das ruas não pavimentadas, a nada menos que 1.250 quilômetros da capital São Luís.

Jantei peixe frito com farofa e salada, acrescido de arroz e ovo frito. Agora sim eu me sentia em Alto Parnaíba, extremo sudeste do Maranhão.
Formigas grandes e assanhadas perambulavam pelo quarto do hotel básico. Matei várias até me cansar e desabar de sono na cama de colchão macio disposto sobre o concreto.
Sendo o único hospede do hotel, a funcionária vinha de casa apenas para me presentear com farto e delicioso café da manhã. Destaque para a jarra de suco de goiaba e a jarra de suco de manga. Devorei gota por gota de cada uma delas.
Depois da praça principal de Alto Parnaíba, a cidade descia suavemente em direção ao rio Parnaíba. Nas imediações da margem do rio erguiam-se construções antigas do núcleo original da fundação da cidade. Cheias ou ameaças de cheias do rio deslocaram o centro e os novos bairros para longe dali. Atravessei as águas barrentas das últimas chuvas no Parnaíba, até o outro lado, Santa Filomena, já no estado do Piauí. A travessia era realizada por pequenas balsas manuais. Apenas um sistema de cabos de aço e polias guiava a embarcação frente à correnteza das águas.
Santa Filomena era menor que Alto Parnaíba. Sob o sol de rachar mamona circulei pelas ruas da cidade, quase todas não pavimentadas. Assisti parte da sessão extraordinária da câmara de vereadores, com a presença do prefeito, transmitida por alto-falantes para toda a cidade e pela emissora de rádio municipal. A pauta seria as constantes faltas de água e energia elétrica em Santa Filomena e o não repasse à prefeitura do valor recolhido das tarifas pela companhia estadual de energia.
Dos altos de Santa Filomena avistei as serras e morros chapados além de Alto Parnaíba. Mais distantes ainda, as chapadas concentradas na direção de Tasso Fragoso.
Para meu alívio, a despeito da presença de sujeitos do sul do país em monstruosas caminhonetes, dos armazéns e silos na entrada de Alto Parnaíba, da região cada vez mais devastada social e ambientalmente pelas monoculturas para exportação, não notei sinais em ambas as cidades de plantações daquilo. Que assim continuasse. As populações necessitavam de investimentos sociais e não de destruição, envenenamento do ar, águas e solos, subempregos, trabalho escravo. Os moradores nas cercanias dessas ações criminosas sentiam os efeitos do uso intensivo de agrotóxicos junto à derrubada do cerrado original. Eram riachos ressecados, poluídos, aumento das temperaturas.
Caminhei pela a estrada de chão para Lizarda, estado do Tocantins, com a intenção de me aproximar dos morros e serras chapadas de Alto Parnaíba. A estrada revelava movimento esparso de motos, veículos pequenos e, mais raramente, carretas imensas transportando os produtos de exportação das monoculturas quilômetros adiante. Acessei estradinha vicinal, estreita, pouco ou nunca usada, me levando exatamente ao pé de um conjunto de morros. Em meio ao cerrado maranhense, me embrenhei para apreciar os paredões irregulares, erguidos em diferentes formatos e tamanhos. De tonalidade ocre, aquelas formações impressionavam pelas escarpas, escavadas em grutas incertas, ou maciças e uniformes. Cerrado mais ralo e menos desenvolvido aparecia nas encostas graduais e na plataforma dos topos. Mutucas não davam sossego um segundo sequer. Surgiam do nada e atacavam às dezenas, centenas, milhares, com picadas para lá de ardidas, das quais brotava sangue na certa. Avancei mais pela estrada de chão e tomei o ramal sem movimentação alguma de veículos. Os morros, de outros formatos, desenhavam mais cenários interessantes.

Retornei horas depois a Alto Parnaíba por outro acesso, passando por bairros miseráveis, cheios de barracos e casas em condições desumanas. Parei na praça principal e matei minha sede com litros de água.
E à noite a cidade se agitava, sobretudo ao redor da praça principal. Futebol de salão na quadra, turminhas circulando, bares e lanchonetes com bom movimento. Motos passando a toda velocidade, sem falar naqueles monstrengos das caminhonetes cabines duplas, todas muito parecidas, funcionando como uniformes de ostentação do agronegócio. 
Explorei o sentido sul da cidade, via a estrada de chão que iria até o distrito de Curupá, com relevo ondulado cortado por pequenos vales de córregos que desembocavam no Parnaíba. Peguei trilha estreita sobre o solo empedrado e ferruginoso. Bem depois dei de frente com o vale alargado e, mais adiante, o imponente serrote chapado, com a escarpa rochosa exposta de coloração ocre. No fundo do vale, mais lajedos e pequenas paredes avermelhadas. A trilha prosseguia em direção à base do serrote. O sol parecia explodir a cabeça que, mesmo com o chapéu, pedia trégua.
Retornei à praça principal da cidade após muitas horas, cansado, com o corpo pegando fogo e ensopado de suor, morto de sede, porém realizado por mais uma exploração pelas quebradas locais.
Placas de veículos do Paraná, Rio Grande do Sul, Tocantins, Goiás, prevaleciam sobre as de Alto Parnaíba, evidenciando polo de turbulências e incertezas no curto prazo. Os integrantes desses veículos se comportavam de maneira selvagem, caindo em cima das meninas locais, quase sempre menores de idade, como predadores das cavernas. Certamente praticavam a pedofilia impunemente e incentivavam a prostituição infantil. Porém, tudo por uma nobre causa, a devastação do bioma cerrado, o aprofundamento da miséria e, claro, o crescimento do agronegócio no sul do Maranhão.
Atravessei o rio Parnaíba e permaneci em Santa Filomena à espera do ônibus na pracinha da beira do rio. A lata velha, sem os para-choques, apareceu e, assim que estacionou, foi um tumulto para entrar e sentar em meio a empurrões. Depois de colocar minha mochila no bagageiro inferior, não havia mais nenhum assento livre. Ou tinha gente sentada neles, ou havia sacolas ou crianças guardando lugares para passageiros que embarcariam na saída de Santa Filomena. Me sentei em banco do corredor após afastar a sacola de alguém. Funcionou. Havia reserva para apenas um senhor que embarcou mais adiante. Exceto dois rapazes que se sentaram sobre bagagens no fundo do ônibus, todos acabaram por conseguir a vaga tão desejada.

Foram cinco horas para percorrer os cerca de 130 quilômetros de estrada de chão, bastante danificada, sobretudo na segunda metade. A paisagem encantou pela beleza, tanto pelo cerrado, como por mais e mais morros chapados. A estrada cruzou transversalmente a serra, sendo a maior parte do percurso em relevo acidentado, entre moderados sobes e desces. O deprimente ficou por conta dos trechos do planalto ocupados pelas monoculturas de arroz e soja, em imensas propriedades griladas, a perder de vista no horizonte, devastando o cerrado original, atacando o solo com quantidades absurdas de agrotóxicos borrifados de avião. Daí os riachos condenados ou secos definitivamente, a expulsão da flora e fauna nativas.
Depois de passar por Monte Alegre, desembarquei em Gilbués no começo da noite. O segundo ônibus passaria depois da meia-noite, sem saber se haveria ou não lugares disponíveis, não parando na rodoviária e sim na praça de frente para a BR-135 que cortava a cidade. O vendedor da empresa que operava a linha sugeriu que eu pegasse ônibus na manhã seguinte. Acabei por aceitar a indicação de hotel, caríssimo para um quarto minúsculo e sem banheiro privativo.
Após o café da manhã, o rapaz da pousada me levou de moto, sem capacete, até a rodoviária. E me cobrou, é claro. Na rodoviária encontrei muitos dos que viajaram comigo no ônibus desde Santa Filomena no dia anterior, aguardando para seguir a Brasília. Não encontraram vagas em nenhum dos ônibus que passaram durante a noite e madrugada. Uns ainda conseguiram dormir num hotel qualquer, mas a maioria passou todo o tempo ali mesmo nas dependências espartanas da rodoviária.
continua...

quarta-feira, 13 de julho de 2011

do Pará a Alagoas (parte 1/6)

Juntei desejos de explorar e repetir lugares visitados do norte e nordeste do Brasil. Voltar ao exterior ainda não me animava o suficiente. De posse das milhas do programa de fidelidade marquei as passagens aéreas para o início de janeiro.
Desembarquei à noite no aeroporto de Marabá sob o calor pegajoso e céu estrelado. Os carapanãs, fortalecidos pelo abafamento do quarto do hotel, me recepcionaram com dezenas de picadas.
Amanheceu abafado. Nenhuma brisa entrava pela janela telada. Sete baratas mortas secavam na sacada com vista para quintais sujos de entulhos.
Marabá fora forçadamente dividida em três partes, Marabá Pioneira, Cidade Nova e Nova Marabá, após as enchentes dos rios Itacaiúnas e Tocantins em 1979. Havia significativo intervalo entre as partes, que não se juntavam. Ninguém se dirigia a pé de uma para outra. O calor, a ausência de sombras, o vazio, a insegurança, impediam tais ousadias. Os moradores só se locomoviam de transporte individual, ônibus, táxi-lotação, moto-táxi.
Das três partes, apenas a Velha Marabá, ou Marabá Pioneira, se salvava, exibindo cara de cidade comum, cidade normal. Contava com orla urbanizada na margem esquerda do rio Tocantins, ao longo da qual a vida noturna agitava entre bares, restaurantes e baladas. O sol castigava, mas as coberturas da orla fluvial garantiam a sombra e a possibilidade de contemplar o visual. O rio Tocantins, já bem alto, impedia o aparecimento de praias. O velho flutuante abria para apenas uma mesa ocupada entre os dois níveis de lazer.

Nova Marabá, onde me hospedei sete anos antes, o pedaço mais horroroso e caoticamente espalhado dos três, comportava o principal terminal rodoviário da cidade, entre avenidas desoladas com cara de estradas, espaços vazios, galpões, bairros repugnantes, hotéis e restaurantes isolados e deprimentes.
A Cidade Nova, onde fiquei dessa vez, fora construída na margem esquerda do rio Itacaiúnas, mais ou menos na altura de Nova Marabá. De urbanismo nitidamente artificial, carecia de humanidade e bom gosto. O traçado quadriculado comportava poucas áreas verdes e nenhum charme. Mas conseguia a óbvia proeza de ser mais suportável que a assustadora Nova Marabá.
Terra de imigrantes, Marabá guardava um mosaico de aspectos físicos, extremamente diversificados, para todos os gostos, circulando para lá e para cá, sem falar na influência dos funcionários do complexo mineiro de Carajás, não muito distante dali.
Como na maioria das cidades brasileiras do norte e nordeste, Marabá fervia de gente à noite, mesmo num meio de semana. Pelo menos na Cidade Nova, a concentração era ao redor da praça, com bares e restaurantes, mas principalmente ambulantes vendendo comes e bebes. Ampla variedade de idades, tipos, roupas, comportamentos e objetivos entre os frequentadores. Quente e abafada, aquela noite da praça não encerraria tão cedo tal o intenso vaivém.
Fui ao ponto onde o rio Itacaiúnas desemboca no Tocantins, exatamente no vértice da Velha Marabá. O nível das águas naquele janeiro estava bem alto e subindo. Os barracos de madeira mais baixos sentiam a invasão das águas no meio da pobreza, miséria e abandono. Almocei caldeirada de pirarucu, preterindo, com dor no coração, a sempre estupenda galinha ao molho pardo. Seis xavantes puríssimos almoçavam na mesa ao lado. Conversavam na língua própria entre garfadas volumosas.
Baixei na estação ferroviária de Marabá no meio da tarde. Troquei papos e ideias com os que também aguardavam, enquanto a estação permanecia fechada, inclusive os acessos a banheiros, lanchonete e bancos para descansar. Extensos trens de carga passavam pela linha levando ao exterior, a preço de banana, as riquezas minerais de Carajás. Mais tarde o Brasil importaria, a preços altíssimos e impostos pelos oligopólios, produtos que utilizavam os minérios brasileiros, escancarando a divisão mundial de trabalho estabelecida pelo capital. Ao Brasil restava a posição de exportador de matérias primas a preços baixos.
Com os sistemas ligados, os funcionários da bilheteria liberaram a entrada, estourando a boiada, para aí, somente aí, se formar a fila. Empurra-empurras, princípios de bate-bocas, dispersados rapidamente em função do objetivo maior, a compra das passagens. Apenas um funcionário atendia na bilheteria. A fila quase não andava, enfurecendo cada vez mais os já mal tratados usuários. Todos bufavam impacientes. Uma hora e meia de espera depois, e somente vinte pessoas atendidas, chegou minha vez. Tortura típica da Transnacional Vale, privatizada na década de 1990 a preço muito abaixo do real, em processo questionado judicialmente por inúmeros movimentos sociais.
No dia do embarque, centenas de passageiros se aglomeravam nas vias de acesso à plataforma.
A classe executiva oferecia dois assentos confortáveis de cada lado do corredor. O assento ao meu lado não foi ocupado, me permitindo relaxar à vontade. Ar condicionado no limite de tolerância, televisores espalhados transmitindo documentários da TV Futura, um longa-metragem infantil, outro lixo comercial para adultos, ambos de origem estadunidense. A programação era periodicamente interrompida para avisos gerais. Havia quatro vagões da classe executiva e quase vinte da classe econômica, esta completamente lotada. As janelas da classe executiva não abriam e contavam com papel filme nos vidros, dificultando a visão da paisagem. O jeito era se postar na extremidade do vagão e contemplar a paisagem entre bons papos com os demais passageiros. Aliás, o local aberto e ao lado dos banheiros, tornou-se ponto de encontro e de lazer descontraído. Enganei o estômago com castanhas, bolachas, maçãs, barras de cereais. Não precisei comprar nada no trem.

A paisagem, aplainada a levemente ondulada, incluindo serrotes no trecho maranhense, evoluiu de floresta, praticamente toda destruída e transformada em áreas improdutivas, a campos de babaçus e outras palmeiras. Raríssimas plantações de subsistência ou então as deploráveis monoculturas de eucalipto, envenenando o solo, secando os lençóis freáticos, expulsando a fauna e flora nativas. Vilarejos minúsculos, invariavelmente de casas de taipa, miseráveis, apareciam esparsamente, exceção feita às cidades de porte médio, como Açailândia e Santa Inês.
As plataformas da maioria das estações mediam menos que o comprimento de um vagão, possuindo nada mais que a cobertura de referência no meio do nada. Caminhonetes ou furgões esperavam ao lado das estações os que desembarcavam para transportá-los feito animais sei lá para onde.
Nove estações e nove horas depois de deixar Marabá, o trem parou na estação de Santa Inês, bem distante da cidade e sem transporte público urbano.
Em frente à estação, logo após o trem parar, taxistas, motoristas de ônibus de linhas clandestinas, condutores de moto-táxi, caminhonetes, veículos em geral, começaram a gritar na disputa por passageiros rumo a variados destinos, próximos ou distantes, como Timom na divisa com o Piauí e Maracaçumé na divisa com o Pará. Eram ônibus podres, caindo aos pedaços, sem as mínimas condições de conforto e segurança. Logo lotaram de pobres coitados. Havia gente sentada nos bancos duros, mais passageiros em pé, esmagados, sufocados, se preparando, por bem ou por mal, para enfrentar as horas de horror nesse Maranhão do século XXI.
Subi em táxi-lotação, rateando o valor da corrida e amenizando a facada.
Sob a chuva fina, à procura de algo substancioso para comer na região central de Santa Inês, avistei uma pizzaria precária. Tentei esclarecer o tamanho das pizzas com o rapaz que me atendeu:
-- Qual a diferença entre a pizza pequena e média?
-- ... Nenhuma... A pizza é a mesma... Só o preço que é diferente.
-- Mas qual a diferença de tamanho entre elas?
-- ... Uma é maior que a outra... Tem a brotinho que é bem pequena, a pequena que é um pouco maior, e a média que é maior que a pequena.
E quanto mais eu observava o ambiente, as mesas, os garçons, partes da cozinha, mais eu concluía que devia relaxar, olhar para rua, não analisar nada e esperar acontecer. A pizza veio com aspecto e gosto de papelão, mas saciou minha fome atrasada.
Dei breve giro pelo centro da cidade, entre bares e ambulantes que vendiam comes e bebes. Em tudo se evidenciava que eu estava realmente no Maranhão, tal o desleixo, a pobreza do geral e dos detalhes. O maranhense sempre emigrou e continuava emigrando para outros estados, em grandes quantidades, não por um suposto espírito aventureiro ou empreendedor, mas porque em qualquer lugar fora do Maranhão eram melhores as condições sociais. E vivas ao cinquentenário do poder formado pela família Sarney, o agronegócio e as transnacionais, se enriquecendo a custa da miséria dos maranhenses, massacrando o povo sem dó nem piedade.

Típica cidade comum do Maranhão, de porte médio, Santa Inês nada oferecia de atraente, exceto o povo hospitaleiro e prestativo, a despeito da rudeza inicial.
Ao tentar comprar passagem de ônibus para o sul do estado, via cidade de Grajaú, o sujeito da bilheteria me desencorajou:
-- Por ali não passa nada não. Os índios e os ladrões não deixam.
-- Mas nem de dia?
-- Nenhum horário. Nem linha de ônibus existe por ali. Somente caminhonetes e, mesmo assim, escoltados e bem armados.
A feira semanal em frente à Matriz de Santa Inês dava dó. Os poucos produtos oferecidos e a baixa qualidade deles refletiam a situação social desesperadora do povo da região. E isso em cidade de quase cem mil habitantes. Com certeza, os indígenas que supostamente bloqueavam o tráfego de veículos na rodovia para Grajaú viviam infinitamente em melhores condições humanas, sociais e materiais antes da invasão do homem branco, especialmente os latifundiários do agronegócio, aliados do grande capital e da família Sarney.
Na vizinha cidade de Pindaré Mirim, às margens do sinuoso rio Pindaré, o ponto de referência era a enorme chaminé de antigo engenho de açúcar, com tijolos à vista, desativado e abandonado. Outras construções, em ruínas, apareciam nas proximidades. Atmosfera relaxante na beira do rio, com bares e um restaurante flutuante. Canoas transportavam passageiros e cargas de uma margem à outra. Pequena feira de aspecto miserável oferecia peixes frescos. Nas sombras das árvores próximas ao rio, jogadores de baralho ou dominó e grupos de bêbados passavam o tempo da única maneira que podiam. Cabanas de palha ou taipa se espalhavam por ali. Jegues puxavam carroças carregadas de troncos e galhos de árvore, ou com mudanças residenciais completas.
continua...