...continuação
Após deixar a rua do último bairro, peguei a estradinha de
pedras irregulares. Ali, só de botas firmes, com solado duro e grosso, para
amenizar os impactos nas solas dos pés. Cercas de pedra, pequenas propriedades
com terraços cultivados, goiaba, manga, jaca, coco, mamão, maracujá. Relevo
acidentado, entre sobes e desces, colinas rochosas, vales profundos, olhos
d’água, pequenas criações de animais, casinhas de pedra ou alvenaria. Duas
jararacas e uma coral cruzaram o caminho calçado. Ao me atrapalhar nas
encruzilhadas, tive que aguardar passar alguém para confirmar a direção correta
e prosear aqui e ali com os lavradores locais.
Atingi o topo do Pico do Papagaio, onde grupo de crianças
e duas professoras se divertiam antes de iniciarem o retorno por caminho
diferente do meu. Construção em cimento no formato do Careta, a figura símbolo
do carnaval de Triunfo, vestida a caráter, com o chicote nas mãos e tudo mais,
marcava o ponto culminante. Do alto se viam cadeias de serras, serrotes, vales
profundos e verdejantes, casinhas esparsas, lajedos, parte das cidades
pernambucanas de Triunfo e Flores, além da cidade paraibana de Princesa Isabel.
O vento refrescante secou o suor e me manteve em ambiente cheio de paz e tranquilidade,
garantidas após a descida dos escolares.
Pouco parei na volta. Entrei nas ruas de Triunfo com a
sede acumulada de mais de quatro horas. Detonei duas garrafas grandes do mesmo refrigerante
pernambucano fabricado em Garanhuns.
Almocei e me deixei levar pela preguiça gostosa da tarde.
À noite repeti os pedidos durante o jantar. A conta,
porém, veio com valor menor do que a da outra noite. Acho que o dono nem
calculava item a item. Chutava um valor equivalente ao consumido e ponto final.
Encerrei com giro pelo centro antigo de Triunfo depois de margear todo o lago
pelo calçadão. As ruas, praças e ladeiras, como sempre, combinando com o lugar tão
pitoresco, se mantinham escuras, vazias, silenciosas.
Em outro dia, dei breves voltas pelo centro da cidade,
visitei o precário e simpático museu regional. Jantei no bar de sempre, bebendo
as de sempre, comendo o de sempre. E estava longe de enjoar daquela deliciosa
rotina.
Embarquei à noite. Nem vesti a malha separada previamente
contra possíveis frios decorrentes do desnecessário ar condicionado. A
ventilação natural pelas janelas, que sempre funcionou tão bem, agiu bem
melhor.
Logo após a saída de Triunfo a estrada se tornou sinuosa,
em descida de serra. O veículo parou em diversas cidadezinhas para embarques
esparsos, até o momento que adormeci e não acompanhei mais nada. Eu acordava assustado
de vez em quando e voltava a dormir. Foi assim a noite inteira até notar que o
ônibus trafegava pelas avenidas de Recife. A estação rodoviária da cidade
ficava bem afastada do centro, devido à correta intenção de afastar o fluxo dos
ônibus intermunicipais.
Mesmo assim o ônibus passou por vários bairros de Recife,
arrebanhando passageiros em pontos de ônibus comum, seguindo pela repugnante
BR-101, com o intenso movimento de veículos leves e pesados. A rodovia passava
por obras de duplicação, emperrando o já emperrado fluxo geral. Se todo esse
tempo, dinheiro, mão de obra, esforços gastos, fossem direcionados para a
construção ou modernização de ferrovias, de passageiros e cargas, o povo
brasileiro se beneficiaria de verdade. Mas não. As duplicações e os repetidos
asfaltamentos das rodovias são vendidos ao público como a salvação da pátria.
Na verdade, apenas se tratam de mais lucros para as construtoras, as
transnacionais de veículos, autopeças, combustíveis e demais benfeitores da
humanidade. É a famigerada opção rodoviária imposta pelas corporações aos
brasileiros desde meados do século XX.
E o massacre prosseguia na BR-101 com mãos únicas de
direção, desvios, trechos esburacados, automóveis e mais automóveis, caminhões
e mais caminhões. Nas margens da rodovia, canaviais sem fim, cidadezinhas
miseráveis, feias, sujas, desumanizadas, sem cara de nada. Ambulantes
maltrapilhos expunham jaca e manga para vender. Ninguém parava para comprar. No
posto fiscal, na divisa entre Pernambuco e Alagoas, um emaranhado de caminhões
e carretas transformava o local no fim do mundo.
Todo o cenário
social desolador se acentuou após a entrada em território alagoano. Aumentou a miséria,
a sujeira, o abandono de tudo. E os canaviais prosseguiam como reis absolutos
na paisagem, intercalados com vastas áreas improdutivas. Acampamentos de trabalhadores
rurais sem terra, lutando por espaço para plantar alimentos, se erguiam na
beira da estrada em condições desesperadoras.
O outro ônibus partiu de Maceió percorrendo pedaços
belíssimos, as lagoas de Mundaú e Manguaba, as praias de Barra de São Miguel, a
praia do Gunga, parte do litoral de Coruripe. Anoiteceu e a estrada se afastou
do mar para passar por Piaçabuçu e chegar a Penedo. A ressalva ficou por conta
dos canaviais e arrozais muito próximos ao mar entre Barra de São Miguel e
Coruripe. O contraste entre a beleza da paisagem natural e o jeito sombrio da
monocultura gerava apreensões quanto ao futuro da região.
Em Penedo, a pousada instalada em sobrado colonial se
destacava pela imponência, interna e externa. O quarto era amplo, em estilo
rústico e antigo. O assoalho feito de longas ripas de madeira rangia ao
caminhar.
Encontrei restaurante de madeira na beira do rio São
Francisco, charmoso, caro, oferecendo comidas e bebidas saborosas. Enquanto
matava a sede e a fome, pude apreciar a calmaria das águas do rio, o esparso
movimento de barcos, as luzes de Sergipe na margem oposta. Casais, grupos de
amigos e dois gringos petiscavam nas outras mesas.
Tomei dois grandes copos de suco de jenipapo durante o
café da manhã. Nem lembrara a última vez que experimentara aquela delícia,
antes de se transformar no famoso licor, tão apreciado nas festas juninas do
nordeste.
Caminhei lentamente pela calçada da margem do São
Francisco, retornando pelas ruazinhas de dentro, até atingir o centro histórico
de Penedo. Misturado ao comércio popular e ao mercado, provisoriamente ao ar
livre, o casario antigo, as igrejas, as ladeiras, os becos, os sobrados, aquele
trecho central da cidade encantava de vários ângulos que se apreciasse. Sem
falar na presença marcante das águas verde-azuladas do rio e das cidadezinhas
de Sergipe na outra margem. O horrendo edifício do hotel São Francisco e os dois
prédios cinzentos ao lado destoavam da harmonia arquitetônica e chamavam a
atenção pelo mau gosto.
Visitei igrejas, conventos, museus, todos memoráveis. Mas
o melhor mesmo era andar sem compromisso pela cidade, sobretudo pela pitoresca
margem do São Francisco, situada abaixo do paredão do antigo forte. Em local
íngreme e arborizado, o beco sinuoso ladeava as águas e atraía pescadores,
banhistas ou meros observadores. O sol torrava a cuca e eu tinha que me
esgueirar sob as marquises ou parar sob as sombras das árvores para tomar
fôlego. Ainda bem que a brisa constante mantinha o ar respirável.
Após delicioso almoço, no qual me esbaldei com peixada à
brasileira de dourado, com direito à vista panorâmica do São Francisco, decidi
fugir do sol e me refugiar no quarto da pousada, alto, claro, bem ventilado.
Nas esquinas próximas, inúmeras lotações chamavam passageiros com destino às
cidadezinhas próximas.
A pousada, a igreja de Nossa Senhora da Corrente,
exatamente ao lado, e o atual paço municipal, atravessando a rua, pertenceram à
família que fez história na cidade. O casal espalhou a fama por ser contra a
escravidão, inclusive escondendo negros cativos nas dependências da igreja
particular, oferecendo-lhes a carta de alforria em seguida.
À noite apenas perambulei pela orla fluvial, circulei pelo
melhor do centro histórico de Penedo, sob a iluminação noturna. A maioria dos
moradores se concentrava nos bairros altos e alinhados na saída para Piaçabuçu.
O centro, comercial, administrativo e turístico, se esvaziava à noite,
oferecendo silêncio e tranquilidade.
Peguei lotação até Piaçabuçu, também na margem do São
Francisco. Andei pela orla fluvial, ao longo da qual uns bêbados jovens ainda
entornavam copos e garrafas, meninas vomitavam atrás das barracas, pairando
certo ar de fim de festa, só contrastado pelo ir e vir dos barcos de pesca.
Piaçabuçu era completamente plana, com ruas estreitas e parecidas.
Lotações chegaram de Maceió trazendo os turistas para o
passeio de barco. Nem bem desciam dos veículos, começavam a disparar a câmera
fotográfica, principalmente fotos deles mesmos, passo a passo, até o convés do
barco. Praticamente só havia casais jovens, a maioria da região sudeste do
país. Conversavam apenas entre si, jamais se dirigindo a outros, muito menos a
mim, que não viera nas lotações da capital. Nunca sorriam ou se mostravam
receptivos.
O barco partiu do cais fluvial de Piaçabuçu e atingiu as
dunas bem próximas à foz propriamente dita do São Francisco.
Nem me lembrava em quantos pontos e em quantas
oportunidades eu estivera nesse rio maravilhoso. Das nascentes nos altos da
Serra da Canastra, dos tantos sítios em Minas Gerais, Bahia, Pernambuco,
Sergipe e Alagoas, eu agora visitava a foz dos quase três mil quilômetros do
chamado rio de integração nacional. Rio judiado pelo capitalismo, especialmente
pelo desmatamento das cabeceiras e margens, da poluição industrial e
residencial, do descaso na aplicação das políticas sociais e ambientais. É
certo que havia pequenas e aguerridas resistências dos ribeirinhos, em diversos
estados, pela revitalização das águas e do curso do rio. Esses importantes
focos de consciência socioambiental eram esmagados pela repressão, ignorados,
perseguidos ou distorcidos pela justiça e pelos oligopólios privados dos meios
de comunicação.
A tripulação marcou o horário de volta e cada casal tomou
o rumo desejado. Preferi subir as dunas, apreciar a vista, antes de caminhar
até o ponto exato da foz, onde as águas doces do São Francisco encontram o mar
na margem alagoana. A praia oceânica, plana e de mar bravo, o farol abandonado
próximo ao lado sergipano, o novo farol movido à energia solar, as águas
refrescantes do Velho Chico. Caminhei bastante pelas dunas e margem, me
refresquei nas águas esverdeadas do rio, contemplei a paisagem única.
Troquei boas frases com a tripulação do barco. Essa gente
sofrida e trabalhadora não era reconhecida e muito mal remunerada pelos patrões
que insistiam no estilo de coronéis regionais.
Ao retornar ao cais de Piaçabuçu, belisquei qualquer coisa
na cidadezinha e peguei lotação de volta a Penedo.
O camarão ao alho e óleo regado a duas caipirinhas, o
visual noturno do São Francisco, sempre ele, no bar e restaurante de Penedo só
não foi perfeito em razão de dois gringos na mesa atrás. Conversavam em
francês, em volume alto, bem alto, exigindo que todos ouvissem o discurso. E
ainda fumavam um cigarro atrás do outro. Outros clientes também se incomodaram com
aquela arrogância. Clientes e garçons suspiraram aliviados quando pagaram a
conta e sumiram do mapa. O ambiente voltou à leveza costumeira. Fiquei ainda um
tempão degustando os comes, os bebes, o suave som das águas do rio.
continua...
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