segunda-feira, 25 de julho de 2011

do Pará a Alagoas (parte 6/6)

...continuação
Caminhei lentamente pelas ruas vazias até os altos da cidade. Lá o casario do final do século XIX e início do século XX se alinhava em ambas as calçadas, valorizando o silêncio da noite. Dei volta grande até atravessar a praça com o canhão, descer à margem do rio sob o rochedo do antigo forte, cruzar o beco e, de volta à ladeira principal, atingir a praça da igreja de Nossa Senhora da Corrente. Tudo ficava mais charmoso sob a iluminação e a calma da noite do centro de Penedo.
A lotação lotou de verdade com muitos passageiros irregularmente em pé. As vítimas precisavam se inclinar devido ao teto baixo. Depois de passar por Piaçabuçu, desci no vilarejo do Peba, diante da praia extensa.
Veículos de todos os tipos, carros, motos, caminhonetes, ônibus, circulavam impunemente pela areia da praia, transformada em pista de trânsito urbano. Os banhistas tinham que atentar aos motoristas, sofrendo ainda com as buzinadas. O peso e a velocidade dos veículos marcavam a areia, que também recebia manchas de óleo e outros danos provocados pelo tráfego constante.
Praia entupida de veículos não é praia.
E traziam consigo o famigerado som de carro. Som ensurdecedor tocando o lixo comercial da ocasião. E não vinha de um ou dois carros espaçados. Eram dezenas deles, lado a lado, todos vomitando poluição sonora no último volume. Obrigavam os demais a ouvirem também, por bem ou por mal, quisessem ou não. Nem se ouvia o som do mar, do vento, da natureza. E, com os carros indo e vindo por toda a praia, ninguém caminhava na beira da água. Deslocamentos, mesmo curtos, só de carro. Creio que me consideraram um extraterrestre andando a pé, chapinhando os pés na água do mar, sentindo o calor do sol, a brisa refrescante. Com os veículos vinham mil tranqueiras, comida, bebida, embalagens plásticas, e lixo, muito lixo.

Tive que caminhar muito, mas muito mesmo, para me livrar da poluição geral. Mas não me livrava dos carros que iam e vinham de todas as direções. Coitada da praia do Peba, sobretudo dos moradores originais do Peba, e das demais praias que permitiam aquele crime. Praia que libera o acesso de veículos jamais será uma praia. 
Matei a sede, belisquei peixe frito e fugi daquela tragédia.
Em Penedo, depois de cruzar de barco o São Francisco, visitei a cidadezinha sergipana de Santana do São Francisco, a antiga Carrapicho.
Pequena, discreta, erguida na encosta inclinada da margem do rio, a cidade tornou-se pólo de produção de arte figurativa em barro, usando temática regional. Em dezenas de pontos espalhados, trabalhadores em condições precárias moldavam, secavam, queimavam e, finalmente, pintavam os utensílios de casa, imagens de santo, cenas folclóricas. A produção em série comprometia a qualidade das obras. O aspecto de barro cozido, atraente por si só, recebia camadas de algo como verniz, nas cores laranja, verde abacate, rosa, tirando o encanto do artesanato. De qualquer maneira, agradava assistir aos processos de produção, totalmente artesanais.
De Carrapicho peguei moto-táxi à vizinha Neópolis, ainda em Sergipe. As ruas e calçadas, a apresentação do comércio e das residências, superavam as mazelas das cidades alagoanas. Claro, Neópolis estava longe de um paraíso, mas tornava ainda mais evidente o quão miserável, abandonado e mal tratado tem sido o estado de Alagoas por séculos de coronelismo e neocoronelismo. Qualquer semelhança com a catástrofe social do Maranhão não era mera coincidência, nem nas causas, nem nos efeitos.
 Tomei outro barco, cruzei o rio e retornei a Penedo, pobre e abandonada, mas extremamente atraente.

Repeti a peixada no restaurante no alto do rochedo. Ao passar determinada cena de novela, em reprise, no televisor no fundo do salão do restaurante, atrás do balcão e do caixa, todos, mas absolutamente todos os funcionários da casa, interrompiam os afazeres do momento, exibiam o olhar bovino e não o desgrudavam da telinha. Os garçons, cozinheiros, auxiliares, dono, esqueciam os clientes, inclusive os recém-chegados e ainda não atendidos, assimilando o embrutecimento pela televisão, esquecendo o mundo real. Bizarro e engraçado. Me dirigi ao balcão, bem perto da televisão, a fim de pagar a conta. Todos os funcionários estavam de costas, para mim e para o resto do restaurante. Minutos depois, um garçom, por um milagre, se virou e me notou. Lentamente gritou ao dono, no caixa, que também não desgrudava os olhos do televisor:
-- o cliente, o cliente!
Ele me olhou depois de muita insistência e me encarou, mudo, cheio de dúvidas.
-- Eu queria a conta.
-- Ah, sim... Mas se virou novamente e deixou cair o queixo diante da televisão.
-- ...
-- O que foi mesmo?
O garçom o ajudou a pegar no tranco:
-- Mesa 9, cliente da mesa 9!
-- ...
-- O senhor quer a conta?
-- Isso...
Anotava um item, olhava para a televisão, anotava outro item, olhava novamente para a televisão. No meio da soma, voltava a olhar para a televisão. Entregou-me a conta e imediatamente se virou para a televisão. Entreguei o meu cartão de crédito e, antes de ele pegar a máquina, olhou para a televisão. E assim foi, demoradamente, até completar o processo.
-- Muito obrigado, volte sempre.
E voltou a olhar, embasbacado, junto com os demais funcionários, para o televisor. Era reprise de um capítulo de uma novela qualquer. Era o início da tarde de um restaurante com várias mesas ocupadas.

Embarquei à tarde para Maceió. O confortável ônibus de linha usava o método antigo e funcional da ventilação natural vinda das janelas abertas. Perfeito. O ar sempre se renovava. A temperatura amenizava com a brisa. Ninguém sentia falta de ar ou enjoos decorrentes das janelas fechadas e do ar condicionado. Tudo mais simples, eficaz, eficiente. 
No hotel em Maceió recebi desconto generoso pela semana anterior ao carnaval. O calçadão da praia da Ponta Verde rapidamente se esvaziou naquela noite, assim como os bares, restaurantes, barracas e afins. Restaram gatos pingados para manter a noite acesa. A orla se apresentava bonita, iluminada, ventilada, perfumada pelo tradicional sargaço da areia da praia. Comi excelente tapioca recheada com coco, queijo e banana, andei, dei olhadelas na parte esquerda da praia de Sete Coqueiros, ao final da rua, no sentido oposto da Ponta Verde. Estava ainda mais vazia e tranquila.
Bem cedinho, pelo calçadão, tomei a praia da Ponta Verde, quase deserta naquele horário, até o fim da praia de Cruz das Almas, pouco antes de Jacarecica. As praias de Maceió continuavam bonitas apesar de urbanizadas e de muita sujeira. Não do sargaço, característico da região, mas do lixo lançado pelos usuários. Sem falar nas tubulações sanitárias despejando esgoto fétido diretamente nas areias.
Os banhistas, sobretudo os turistas, se aglomeravam nos trechos em frente aos grandes hotéis, deixando extensos vazios na areia. Bares, restaurantes, quiosques de tapioca, coco, lanches, sucos, bem cuidados, se estendiam regularmente ao longo das praias da Ponta Verde e Jatiúca. Após a Lagoa da Anta, caía bastante o movimento e as ofertas de comes e bebes. O que não significava melhores praias. O trecho da praia de Cruz das Almas encontrava-se degradado, sujo, com calçadas arrebentadas, construções inacabadas atrás da avenida. Aquele pedaço fora abandonado à própria sorte.
Mais ao norte aumentavam os coqueirais, remetendo, aparentemente, a praias mais desertas e preservadas. Ledo engano. No patamar dos morros chapados, tão tradicionais em Maceió, ocupando extensa faixa atrás dos coqueirais, bem próximo da praia, havia um enorme lixão. E ativo. Ativíssimo. Caminhões de lixo despejavam toneladas de resíduos sólidos, disputados a tapa pelos urubus e pelos catadores miseráveis. Tudo isso próximo e perfeitamente visível de vários pontos da praia, uma das principais fontes de renda do município. Mais que isso, o lixão expunha a miséria e o descaso socioambiental a que foi jogada a população da cidade. Enquanto os turistas permaneciam no máximo uma semana na cidade e arredores, os moradores de Maceió conviviam com aquela catástrofe social todos os dias do ano.
Por outro lado, cartazes instalados nos bairros nobres de Ponta Verde, Jatiúca e Pajuçara alardeavam o número recorde de turistas na cidade durante o ano anterior. Tudo ia muito bem, obrigado!
Retornei caminhando pela praia, ali no final das ondas, refrescando os pés na água do mar. Parei em bar e restaurante aberto do trecho mais movimentado da praia da Ponta Verde e me instalei em mesa sombreada e com boa visão da paisagem natural e humana. Deixei o tempo passar vagarosamente. Comi sururu ensopado com leite de coco. Detonei duas caipirinhas, encerrando com suco de pitanga.

Na manhã seguinte caminhei no sentido das praias de Sete Coqueiros e Pajuçara, esta animada pelas vendas de artesanato, pelo ponto de partida dos passeios de jangada às piscinas de corais. A Pajuçara ainda guardava casas, térreas ou em sobrados, mas predominavam os edifícios de luxo, envidraçados, de poucos andares.
Típico, muito típico de Maceió, eram os carrinhos dos vendedores de picolé. Os pequenos alto-falantes repetiam gravações de ofertas dos produtos, o mais famoso e marcante era “picolé caseiro Caicó”. Não era alto, mas o suficiente para todos ouvirem e não esquecerem aquela marca registrada da cidade.
Voltei à praia da Ponta Verde para repetir o local e os pedidos do dia anterior. Foi tão bom. Porque mudar? E enrolei tudo o que tinha direito na véspera de retorno a São Paulo.
À noite, o vento refrescante e constante vindo do mar garantia temperaturas agradáveis para andar na orla ou simplesmente sentar e observar o vaivém de turistas e alagoanos. Repeti a grande e deliciosa tapioca recheada com coco, queijo e banana.
Peguei ônibus urbano ao aeroporto, economizando a facada do táxi. O voo causou susto ao pousar no destino, quando chovia forte, aliado a raios, relâmpagos e trovoadas. O avião balançou bastante, ameaçou arremeter com ruídos estranhos das turbinas, além de muita trepidação. Finalmente, pousou são e salvo em São Paulo, em meados de fevereiro. Os passageiros, aliviados de estarem vivos, aplaudiram fervorosamente as manobras do piloto.

6 comentários:

  1. Tô achando bem legal seus depoimentos.
    Graças a deus essa mania de botar carros nas praias está perto do fim. Como você escreveu a praia com carro deixa de ser praia. Em Araçagi no Maranhão é a mesma aberração. Vamos denunciar para acabar logo com isso.
    Obrigada.

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  2. Oi, obrigado por comentar minhas publicações.
    É verdade, pensamos da mesma maneira no que diz respeito à natureza, ao combate à poluição sonora, das águas e do ar nas nossas praias.
    Já estive em Araçagi e senti o mesmo problema. Tive que sair rápido dali.
    Em Salinas, no litoral paraense, onde estive em 1977, também era liberado a entrada de carros e afins. Um horror! Nem quis voltar lá para conferir se corrigiram essa aberração.
    Aproveite para ler outros relatos e reflexõs que publiquei sobre outros interiores do Brasil e do exterior. E ainda publicarei muito mais.
    Abraços.

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  3. Era-se o tempo em que em vez de carros tinham barracas na beira da praia.Como era gostoso acampar assim com a minha familia.Era tudo muito limpo e a natureza a nossa frente parecia agradecer a nossa presença.Hoje parece que ela chora, com tanto desrespeito e humilhação.
    O povo também se acomodou de mais como se usassem tapas olho, tipo guias de cavalos, e assim caminha. Agora minhas viajens também veêm mais os defeitos e a falta de educação, do que a beleza que fui buscar.
    Abraços.

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  4. Oi Sherol. Obrigado por escrever.
    Triste verdade o que escreveu. Se bem que é exceção a presença de carros nas praias brasileiras.
    A indústria predatória do turismo, não só no Brasil, mas em todo o mundo, agride profundamente a natureza e as comunidades originais, pausteuriza as culturas locais, transformando-as em coisas muito parecidas pelo mundo afora. Por isso tento, dentro do possível, optar por roteiros menos ou nada turísticos.
    Continue com sua visão crítica dos lugares visitados. Talvez daí, algum dia, boa parte da população do mundo entenda e reaja a isso tudo.
    Abraços!

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  5. Suas viagens sendo mostradas em texto são um jeito gostoso de ler, tira o comodismo de ver as fotos e não perceber os detalhes.
    Pode contar que sempre que possível estarei por aqui.
    Passe no meu blog também, será muito bem vindo. Abraços e obrigada.

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  6. Concordo. Sempre pretendi dar ênfase ao texto e não às fotos. Estas serviriam apenas para modestas ilustrações.
    Contarei sim com suas leituras críticas e comentários.
    Passarei no seu blog e comentarei, tá?
    Abraços!

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