quinta-feira, 27 de outubro de 2022

de Goiás ao Piauí (via GO, MT, TO, BA, PE, CE, PI) (parte 7/7)

 ...continuação

Doces versos ouvidos pelas ruas dos interiores brasileiros, vindos daquelas duplas que vivem à custa do dinheiro público como garotos-propaganda do capital agrário:

Essa mulher merece um tiro...

Mas ela não vale o preço da bala...

Ou então:

A gente briga muito...

Mas se dá bem pelado...pelado...peladuuuuu...

Após café da manhã reforçado subi em micro até o ponto final, na pracinha do vilarejo de Coqueiro, município de Luís Correia, na beira do mar, de frente à igreja e ao bucolismo local.

Andei bastante pela praia. Passei por concentrações de bares, alguns simples, outros nem tanto, mas todos com frequência maciça de domingo. Ao final da praia, nas imediações da ponta cheia de pedras, se encontravam chalés convidativos de pousada isolada e cara. Avancei depois da ponta e atingi a praia do Itaqui, reservando ao fundo da areia o farol de mesmo nome.



Nem precisei avançar tanto mais. Já não havia sinal de seres humanos de quaisquer lados. Tirei tudo e fiquei peladinho da silva, do jeito que vim ao mundo. Entrei naquele mar de ondas fracas e águas cristalinas. Delícia das delícias. Voltava à areia, fazia flexões de braço, tomava sol. Meia hora depois, já saciado da nudez, dentro e fora da água, apareceram dois pescadores que se postaram na ponta da praia, junto às pedras. Me viram sem esboçar qualquer reação. Por via das dúvidas pus a sunga e prossegui meus banhos de mar, as flexões, a exposição ao sol, agora vestido como banhista padrão.

Saciado, peguei o caminho e descansei o esqueleto em bar e restaurante de bom aspecto no meio da praia do Coqueiro.

Encontrei mesa livre e bem posicionada, da qual eu podia ver os frequentadores. Maioria de grupos e famílias, raros casais isolados. Tomei duas caipirinhas. Comi camarão ensopado no abacaxi e porção de farofa. Apreciei o vaivém das banhistas. O céu azul, o calor bem-vindo, o vento suave, o bom humor geral, mais a música ao vivo, em volume e repertório aceitáveis, me faziam sentir bem, muito bem.

De volta à cidade, jantei bem, proteínas e vitaminas, em frente à estupenda lua cheia, à brisa refrescante, ao vaivém discreto e agradável das parnaibanas.

A zona urbana de Parnaíba e dos arredores contavam com espaços vazios, no centro, nos bairros, nas praias, nas partes intermediárias. E também havia as regiões abandonadas, em ruínas, ou simplesmente decrépitas, embora ainda em funcionamento. Os exemplos vinham do Porto das Barcas, Pedra do Sal, Lagoa do Portinho, praia de Atalaia. Eu também não notava construções em andamento. A região estava com estabilidade populacional ou com decréscimo e êxodo de moradores?

Tomei os dois tradicionais ônibus à praia da Pedra do Sal. Desembarquei a tempo de acessar a baía mansa ao sul do farol.

Caminhei pelas areias no sentido da foz do rio Parnaíba. A maré baixa permitia escolher em qual faixa da areia eu andaria. Caminhei muito. Caminhei demais. Esparsos pescadores de rede na linha da água, em especial nos trechos de areia escura. Esse tom era da madeira decomposta, escurecida e enegrecida pela ação do tempo, da água salgada e doce. Os peixes para ali afluíam a fim de se alimentarem. Vindos de moto pela areia da praia, os pescadores estendiam nessas zonas as redes de arrasto. Rebanhos de jegues pastavam na parte traseira da praia, onde crescia vegetação rasteira. Avistei conjunto de cabanas cobertas de palha, afastadas da praia, indecifráveis. Dunas ao fundo, bem ao fundo, provavelmente a borda leste das dunas atrás do porto de Tatus. Pela areia, concentrado, o lixo vindo do mar, sobretudo os plastificados e mais resistentes ao tempo. Por cerca de duas horas e meia caminhei pelas areia da praia, a fim de atingir o trecho do encontro do rio com o mar, mesmo sabendo que não pisaria no vértice, no ponto exato daquele acidente geográfico. Aterrissei em extensa faixa de areia, guardando troncos de árvores ressecados, vegetação rasteira logo atrás, a água do mar mais escura, acastanhada em alguns locais, quase negra em outros. Eu alcançara ponto muito próximo da foz do rio. Era cerca de meio-dia e eu estava um bagaço de tão cansado.



Lentamente o movimento da maré anunciava o começo da cheia. E eu teria que enfrentar as mesmas duas horas e meia, para caminhar de volta, a favor da luz do sol e contra o vento nordeste.

Entrei no mar e me refresquei, recuperando pequena parte da energia dispendida. As solas dos pés ardiam ao pisar na areia. As pernas bambeavam. A ponta do farol da Pedra do Sal parecia cada vez mais distante. Sonhava acordado com bebida e comida. E nada de chegar.

A tarde avançava ao entrar na única barraca em funcionamento naquele dia na baía mansa. Na parte coberta, sobre a areia, mesa ocupada por dois casais bêbados acompanhando porcamente a música alta das caixas de som do estabelecimento. Suguei um litro de refrigerante, bem doce, bem líquido. Não me animei a pedir nada sólido. O local, como os demais que ainda sobreviviam na Pedra do Sal, era sujo, semiabandonado, quase em ruínas. E diante daquela natureza tão linda. Bem ali em frente. Limpa e vazia. Inadmissível!

Mais dois ônibus ao hotel.

Eu me precavera e à minha disposição no frigobar havia pão, queijo, salame, chocolate, espumante seco diretamente do vale do São Francisco. Comi e bebi tudo e muito bem. E água, muita água.

Na manhã seguinte repeti a ida à praia do Coqueiro, em Luís Correia. Desci no ponto final, no larguinho do Coqueiro.

Havia menos banhistas que no domingo anterior. Na praia do Coqueiro a maré muito baixa expunha pedras, sargaço aos montes, barcos sobre a areia, as águas distantes e rasas. Pela areia alcancei a praia do Itaqui, vazia, e me instalei em frente ao farol. Somente eu e a natureza preservada. Fiquei peladão e entrei deliciosamente no mar. Saía apenas para as costumeiras flexões de braço. Uma hora depois de nadar, flutuar, me refrescar, me exercitar, duas mulheres apareceram nas pedras da ponta que separava a praia do Itaqui da do Coqueiro. Permaneceram por ali. Obviamente notaram que eu não vestia sunga ou roupa alguma. Mesmo se apurassem os olhares por curiosidade, valeria a máxima “quem nunca viu não sabe o que é, quem já viu está acostumada”. E entrei novamente no mar. Nadei, flutuei. Contemplei o entorno de todas as maneiras.

Me considerei saciado com a praia, a água do mar, a tranquilidade, a privacidade, o nudismo extemporâneo. Me vesti e andei na direção das barracas de comes e bebes da praia do Coqueiro.

Suguei duas caipirinhas bem preparadas com a cachaça piauiense. Devorei dois espetos de camarão, suculentos e saborosos.

O sol começava a baixar ao pegar o micro de volta à Parnaíba.

Amanheceu mais um dia. Peguei dois ônibus ao porto de Tatus, no município de Ilha Grande, na margem direita do braço do Parnaíba.

De frente às águas observei a pequena movimentação de turistas no embarque aos passeios de barco, ao Delta do Parnaíba, à revoada dos guarás, entre outros roteiros fluviais. Um barqueiro me abordou educadamente oferecendo passeios de barco e educadamente aceitou minhas negativas.

Eu desejava repetir a exploração às dunas de areia de Tatus que realizara três anos antes. Me dei com entrada diferente e avancei pela trilha. Eu tinha que obter fortes pontos de referência para me orientar no sentido contrário. Antes de entrar nas dunas propriamente ditas contornei touceira alta, verde e cerrada. Ali seria o marco que eu não deveria perder de vista a fim de voltar pela mesma trilha.



Circulei pelas belíssimas, imensas e extensas dunas, contando com lagoas de águas cristalinas e azuladas. Escalei rampas de quarenta e cinco graus de inclinação, ao longo da qual era preciso dar três passos para render um. Avancei pelas cristas sinuosas das dunas. Me voltava de vez em quando para conferir a posição da touceira de referência. O céu azul liberava o sol quente para massacrar. O mormaço repetia o efeito de baixo para cima. E virava o pescoço para rever a tal touceira alta, verde e cerrada. Estava sempre lá, mais distante, mas impassível. Pelas areias, de vez em quando, rastos de patas e fezes ressecadas de equinos. Nenhum sinal de ser humano. A única coisa que destoava de tanta beleza eram as gigantescas hélices dos coletores de energia eólica, postadas mais a leste.

Em meio às maravilhas da natureza a mente devaneava. Perambulei com imenso prazer por horas sobre as dunas de Tatus, entre cristas sinuosas, sobe e desces em rampas de areia, margeando e me refrescando em lagoas azuladas. Dei meia volta e tomei o rumo da estática e salvadora touceira de referência.

Ao atingir a dita touceira, percebi decepcionado que não era a touceira original, mas outra, parecidíssima e em local semelhante. Girei trezentos e sessenta graus na procura da minha salvadora e nada de encontrá-la. Andei feito camelo para lá e para cá na tentativa de corrigir o rumo. Finalmente encontrei o meio da trilha original da ida, mas não a touceira de referencia que ficou distante, mais perto das grandes dunas.

Pelas ruas do vilarejo de Tatus, ignorei o ônibus que manobrava para partir de volta à Parnaíba. A sede estratosférica me obrigava a matá-la antes de qualquer coisa.

No mercadinho mergulhei de cabeça em meio litro de cajuína. Não bastou. Saquei da geladeira garrafa de um litro e meio de água mineral. Em minutos eu a secava completando a ingestão de dois litros de líquidos para repor o que perdera nas dunas.

Entre os goles conversei animadamente com a dona do comércio e com turista maranhense a caminho de passeio de barco com familiares à revoada dos guarás.

Jantei no canteiro central da acolhedora avenida São Sebastião, em Parnaíba. Não era a minha primeira e nem a última vez naquele bar e restaurante. Comida ótima. Atendimento eficiente e descontraído. O responsável pela grelha me presenteou com cebola inteira grelhada. Além de ser ao ar livre, diante do movimento do calçadão e da avenida, entre poucos pedestres e espaçados veículos, as mesas recebiam frequência variada de moradores de Parnaíba.

Em meio a reflexões aleatórias e espontâneas, do nada, sem mais, chegava a determinadas conclusões. Por exemplo, para além dos clichês turísticos, o nordeste sempre iria me lembrar de duas coisas. As árvores mutiladas geometricamente nas ruas e praças, eliminando as tão desejadas sombras. E a obsessão pela música, alta, altíssima, em todos os lugares, em todos os momentos, vinda de várias caixas de som, ao mesmo tempo.



Li capítulos de Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, volume extenso que eu demoraria a atingir o final.

Almocei no centro da cidade e voltei de micro ao hotel. O veículo deu baita volta urbana, verdadeiro giro turístico pelas zonas oeste e sul de Parnaíba. Trafegou por ruas calçadas de pedras irregulares, quase regra na cidade, aliás, regra sustentável e muito bem-vinda, à exceção daquelas vias desgraçadamente impermeabilizadas e aquecidas pelo asfalto negro. Nos bairros, casario discreto, de bom aspecto, nada de miséria aparente. Espaços vazios aos montes, como não poderia deixar de existir em Parnaíba, e pouco movimento.

Eram raríssimos os debates políticos ouvidos pelas ruas da cidade. Mais sobre a realidade local e raros os sobre o país. Nas poucas menções ao presidente proto-fascista, críticas, deboches, indignações.

À noite, na rodoviária de Parnaíba, vesti a camiseta de mangas longas já prevendo a temperatura glacial costumeira naquela empresa de ônibus.

Desembarquei na rodoviária de Fortaleza de manhãzinha. Imediatamente segui ao aeroporto.

No voo lotado, tendo ao lado rapaz agitado e nervoso, ignorei o sono e li bastante Ariano Suassuna.

A tarde começava ao desembarcar no aeroporto de Cumbica, em São Paulo.

E, naquele final de junho, encerrava mais uma livre, descontraída e pedagógica viagem.