...continuação
Doces versos ouvidos pelas ruas dos interiores
brasileiros, vindos daquelas duplas que vivem à custa do dinheiro público como
garotos-propaganda do capital agrário:
Essa mulher merece
um tiro...
Mas ela não vale o
preço da bala...
Ou então:
A gente briga
muito...
Mas se dá bem
pelado...pelado...peladuuuuu...
Após café da manhã reforçado subi em micro até o ponto
final, na pracinha do vilarejo de Coqueiro, município de Luís Correia, na beira
do mar, de frente à igreja e ao bucolismo local.
Andei bastante pela praia. Passei por concentrações de
bares, alguns simples, outros nem tanto, mas todos com frequência maciça de
domingo. Ao final da praia, nas imediações da ponta cheia de pedras, se encontravam
chalés convidativos de pousada isolada e cara. Avancei depois da ponta e atingi
a praia do Itaqui, reservando ao fundo da areia o farol de mesmo nome.
Nem precisei avançar tanto mais. Já não havia sinal de
seres humanos de quaisquer lados. Tirei tudo e fiquei peladinho da silva, do
jeito que vim ao mundo. Entrei naquele mar de ondas fracas e águas cristalinas.
Delícia das delícias. Voltava à areia, fazia flexões de braço, tomava sol. Meia
hora depois, já saciado da nudez, dentro e fora da água, apareceram dois
pescadores que se postaram na ponta da praia, junto às pedras. Me viram sem
esboçar qualquer reação. Por via das dúvidas pus a sunga e prossegui meus
banhos de mar, as flexões, a exposição ao sol, agora vestido como banhista padrão.
Saciado, peguei o caminho e descansei o esqueleto em bar e
restaurante de bom aspecto no meio da praia do Coqueiro.
Encontrei mesa livre e bem posicionada, da qual eu podia
ver os frequentadores. Maioria de grupos e famílias, raros casais isolados. Tomei
duas caipirinhas. Comi camarão ensopado no abacaxi e porção de farofa. Apreciei
o vaivém das banhistas. O céu azul, o calor bem-vindo, o vento suave, o bom
humor geral, mais a música ao vivo, em volume e repertório aceitáveis, me faziam
sentir bem, muito bem.
De volta à cidade, jantei bem, proteínas e vitaminas, em
frente à estupenda lua cheia, à brisa refrescante, ao vaivém discreto e
agradável das parnaibanas.
A zona urbana de Parnaíba e dos arredores contavam com
espaços vazios, no centro, nos bairros, nas praias, nas partes intermediárias.
E também havia as regiões abandonadas, em ruínas, ou simplesmente decrépitas,
embora ainda em funcionamento. Os exemplos vinham do Porto das Barcas, Pedra do
Sal, Lagoa do Portinho, praia de Atalaia. Eu também não notava construções em
andamento. A região estava com estabilidade populacional ou com decréscimo e
êxodo de moradores?
Tomei os dois tradicionais ônibus à praia da Pedra do Sal.
Desembarquei a tempo de acessar a baía mansa ao sul do farol.
Caminhei pelas areias no sentido da foz do rio Parnaíba. A
maré baixa permitia escolher em qual faixa da areia eu andaria. Caminhei muito.
Caminhei demais. Esparsos pescadores de rede na linha da água, em especial nos
trechos de areia escura. Esse tom era da madeira decomposta, escurecida e
enegrecida pela ação do tempo, da água salgada e doce. Os peixes para ali
afluíam a fim de se alimentarem. Vindos de moto pela areia da praia, os pescadores
estendiam nessas zonas as redes de arrasto. Rebanhos de jegues pastavam na
parte traseira da praia, onde crescia vegetação rasteira. Avistei conjunto de
cabanas cobertas de palha, afastadas da praia, indecifráveis. Dunas ao fundo,
bem ao fundo, provavelmente a borda leste das dunas atrás do porto de Tatus. Pela
areia, concentrado, o lixo vindo do mar, sobretudo os plastificados e mais
resistentes ao tempo. Por cerca de duas horas e meia caminhei pelas areia da
praia, a fim de atingir o trecho do encontro do rio com o mar, mesmo sabendo
que não pisaria no vértice, no ponto exato daquele acidente geográfico. Aterrissei
em extensa faixa de areia, guardando troncos de árvores ressecados, vegetação
rasteira logo atrás, a água do mar mais escura, acastanhada em alguns locais,
quase negra em outros. Eu alcançara ponto muito próximo da foz do rio. Era cerca
de meio-dia e eu estava um bagaço de tão cansado.
Lentamente o movimento da maré anunciava o começo da
cheia. E eu teria que enfrentar as mesmas duas horas e meia, para caminhar de
volta, a favor da luz do sol e contra o vento nordeste.
Entrei no mar e me refresquei, recuperando pequena parte
da energia dispendida. As solas dos pés ardiam ao pisar na areia. As pernas
bambeavam. A ponta do farol da Pedra do Sal parecia cada vez mais distante.
Sonhava acordado com bebida e comida. E nada de chegar.
A tarde avançava ao entrar na única barraca em
funcionamento naquele dia na baía mansa. Na parte coberta, sobre a areia, mesa ocupada
por dois casais bêbados acompanhando porcamente a música alta das caixas de som
do estabelecimento. Suguei um litro de refrigerante, bem doce, bem líquido. Não
me animei a pedir nada sólido. O local, como os demais que ainda sobreviviam na
Pedra do Sal, era sujo, semiabandonado, quase em ruínas. E diante daquela
natureza tão linda. Bem ali em frente. Limpa e vazia. Inadmissível!
Mais dois ônibus ao hotel.
Eu me precavera e à minha disposição no frigobar havia pão,
queijo, salame, chocolate, espumante seco diretamente do vale do São Francisco.
Comi e bebi tudo e muito bem. E água, muita água.
Na manhã seguinte repeti a ida à praia do Coqueiro, em
Luís Correia. Desci no ponto final, no larguinho do Coqueiro.
Havia menos banhistas que no domingo anterior. Na praia do
Coqueiro a maré muito baixa expunha pedras, sargaço aos montes, barcos sobre a
areia, as águas distantes e rasas. Pela areia alcancei a praia do Itaqui, vazia,
e me instalei em frente ao farol. Somente eu e a natureza preservada. Fiquei
peladão e entrei deliciosamente no mar. Saía apenas para as costumeiras flexões
de braço. Uma hora depois de nadar, flutuar, me refrescar, me exercitar, duas
mulheres apareceram nas pedras da ponta que separava a praia do Itaqui da do
Coqueiro. Permaneceram por ali. Obviamente notaram que eu não vestia sunga ou roupa
alguma. Mesmo se apurassem os olhares por curiosidade, valeria a máxima “quem nunca
viu não sabe o que é, quem já viu está acostumada”. E entrei novamente no mar.
Nadei, flutuei. Contemplei o entorno de todas as maneiras.
Me considerei saciado com a praia, a água do mar, a
tranquilidade, a privacidade, o nudismo extemporâneo. Me vesti e andei na
direção das barracas de comes e bebes da praia do Coqueiro.
Suguei duas caipirinhas bem preparadas com a cachaça
piauiense. Devorei dois espetos de camarão, suculentos e saborosos.
O sol começava a baixar ao pegar o micro de volta à
Parnaíba.
Amanheceu mais um dia. Peguei dois ônibus ao porto de
Tatus, no município de Ilha Grande, na margem direita do braço do Parnaíba.
De frente às águas observei a pequena movimentação de
turistas no embarque aos passeios de barco, ao Delta do Parnaíba, à revoada dos
guarás, entre outros roteiros fluviais. Um barqueiro me abordou educadamente
oferecendo passeios de barco e educadamente aceitou minhas negativas.
Eu desejava repetir a exploração às dunas de areia de
Tatus que realizara três anos antes. Me dei com entrada diferente e avancei
pela trilha. Eu tinha que obter fortes pontos de referência para me orientar no
sentido contrário. Antes de entrar nas dunas propriamente ditas contornei
touceira alta, verde e cerrada. Ali seria o marco que eu não deveria perder de
vista a fim de voltar pela mesma trilha.
Circulei pelas belíssimas, imensas e extensas dunas,
contando com lagoas de águas cristalinas e azuladas. Escalei rampas de quarenta
e cinco graus de inclinação, ao longo da qual era preciso dar três passos para
render um. Avancei pelas cristas sinuosas das dunas. Me voltava de vez em
quando para conferir a posição da touceira de referência. O céu azul liberava o
sol quente para massacrar. O mormaço repetia o efeito de baixo para cima. E
virava o pescoço para rever a tal touceira alta, verde e cerrada. Estava sempre
lá, mais distante, mas impassível. Pelas areias, de vez em quando, rastos de
patas e fezes ressecadas de equinos. Nenhum sinal de ser humano. A única coisa
que destoava de tanta beleza eram as gigantescas hélices dos coletores de
energia eólica, postadas mais a leste.
Em meio às maravilhas da natureza a mente devaneava. Perambulei
com imenso prazer por horas sobre as dunas de Tatus, entre cristas sinuosas,
sobe e desces em rampas de areia, margeando e me refrescando em lagoas
azuladas. Dei meia volta e tomei o rumo da estática e salvadora touceira de
referência.
Ao atingir a dita touceira, percebi decepcionado que não
era a touceira original, mas outra, parecidíssima e em local semelhante. Girei
trezentos e sessenta graus na procura da minha salvadora e nada de encontrá-la.
Andei feito camelo para lá e para cá na tentativa de corrigir o rumo. Finalmente
encontrei o meio da trilha original da ida, mas não a touceira de referencia que
ficou distante, mais perto das grandes dunas.
Pelas ruas do vilarejo de Tatus, ignorei o ônibus que
manobrava para partir de volta à Parnaíba. A sede estratosférica me obrigava a
matá-la antes de qualquer coisa.
No mercadinho mergulhei de cabeça em meio litro de
cajuína. Não bastou. Saquei da geladeira garrafa de um litro e meio de água
mineral. Em minutos eu a secava completando a ingestão de dois litros de
líquidos para repor o que perdera nas dunas.
Entre os goles conversei animadamente com a dona do
comércio e com turista maranhense a caminho de passeio de barco com familiares à
revoada dos guarás.
Jantei no canteiro central da acolhedora avenida São Sebastião, em Parnaíba. Não era a minha primeira e nem a última vez naquele bar e restaurante. Comida ótima. Atendimento eficiente e descontraído. O responsável pela grelha me presenteou com cebola inteira grelhada. Além de ser ao ar livre, diante do movimento do calçadão e da avenida, entre poucos pedestres e espaçados veículos, as mesas recebiam frequência variada de moradores de Parnaíba.
Em meio a reflexões aleatórias e espontâneas, do nada, sem mais, chegava a determinadas conclusões. Por exemplo, para além dos clichês turísticos, o nordeste sempre iria me lembrar de duas coisas. As árvores mutiladas geometricamente nas ruas e praças, eliminando as tão desejadas sombras. E a obsessão pela música, alta, altíssima, em todos os lugares, em todos os momentos, vinda de várias caixas de som, ao mesmo tempo.
Li capítulos de Romance
d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, volume extenso que eu demoraria a
atingir o final.
Almocei no centro da cidade e voltei de micro ao hotel. O
veículo deu baita volta urbana, verdadeiro giro turístico pelas zonas oeste e
sul de Parnaíba. Trafegou por ruas calçadas de pedras irregulares, quase regra
na cidade, aliás, regra sustentável e muito bem-vinda, à exceção daquelas vias desgraçadamente
impermeabilizadas e aquecidas pelo asfalto negro. Nos bairros, casario
discreto, de bom aspecto, nada de miséria aparente. Espaços vazios aos montes,
como não poderia deixar de existir em Parnaíba, e pouco movimento.
Eram raríssimos os debates políticos ouvidos pelas ruas da
cidade. Mais sobre a realidade local e raros os sobre o país. Nas poucas menções
ao presidente proto-fascista, críticas, deboches, indignações.
À noite, na rodoviária de Parnaíba, vesti a camiseta de
mangas longas já prevendo a temperatura glacial costumeira naquela empresa de
ônibus.
Desembarquei na rodoviária de Fortaleza de manhãzinha. Imediatamente
segui ao aeroporto.
No voo lotado, tendo ao lado rapaz agitado e nervoso,
ignorei o sono e li bastante Ariano Suassuna.
A tarde começava ao desembarcar no aeroporto de Cumbica,
em São Paulo.
E, naquele final de junho, encerrava mais uma livre, descontraída
e pedagógica viagem.