sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Inglaterra (parte 2/2)

...continuação
Por conta própria, sem excursões escolares, pegamos trem rumo a Oxford. A antiga e histórica cidade sobrava em charme, beleza, personalidade. Encantava pelos becos, universidades com jardins perfeitamente conservados, construções pesadas e imponentes, catedrais, torres. Tirando as lotadas ruas comerciais, as demais partes da cidade exalavam calma, sossego, silêncio. Nem mesmo as pencas de turistas afetavam a atmosfera envolvente. Eram dezenas de universidades cujos prédios impunham respeito pela beleza da arquitetura, gramados impecáveis, parques floridos, atmosferas seculares. E tivemos a sorte de presenciar cerimônias de formatura, nas quais estudantes vestiam togas solenes e pretas, chapéus também pretos, fornecendo ao ambiente muita pompa e emoção.
Em Londres, demos uma olhada rápida pela região de Camdem Town no início da manhã. Ainda montavam o mercado, feira de roupas, objetos usados em geral. Havia de tudo um pouco, maluquices, ousadias, outras nem tanto. Os preços variavam de exorbitantes a boas pechinchas.
Caminhamos da praça Leicester até a Torre de Londres, passando pela catedral de São Paulo, pelo centro financeiro. Foi uma longa pernada, mas agradável e pedagógica. Não fazia calor e as ruas estavam vazias naquela manhã de domingo. Mas permanecemos somente do lado de fora da Torre. Não estávamos a fim de encarar a fila quilométrica. Encaramos cinema e assistimos a filme deplorável. Circulamos pelo Hyde Park sob um vento frio.
Exceto as aulas dispensáveis, o dia se resumiu a outro gostoso lanche na base de muita comida e vinho no parque Waterlow.

À noite, a escola promoveu concursos de cultura geral. E o grupo do qual participamos saiu vencedor. Ganhamos uma garrafa de vinho, detonada ali mesmo, camisetas da escola e um dicionário Oxford. As perguntas se restringiam a conhecimentos simples e não exigiam tanta cultura ou raciocínio. Com honrosas e raras exceções, a maioria dos alunos impressionava pela ignorância e alienação sobre tudo. Embora compreendessem o inglês necessário, nada sabiam sobre dados e fatos ao redor do próprio nariz. Um aluno suíço pós-adolescente se destacou pelo desequilíbrio mental. Gritava, interrompia, atrapalhava. De nada adiantou as sutis repreensões do inglês que coordenava e lia as questões. Após abrirmos e secarmos a garrafa de vinho conquistada, o jardineiro da escola sentou-se à nossa mesa. Abriu outra garrafa e nos ofereceu. Então auxiliamos o gentil colega a enxugá-la em minutos.
O clima sombrio incomodou durante o dia e não fizemos grandes coisas ao ar livre. Algumas linhas de metrô estavam paralisadas ou em funcionamento precário.
Como se fosse possível, o dia na escola conseguiu a proeza de ser ainda pior que os anteriores. Em tudo, conteúdo das aulas, comportamento dos professores, vexame dos alunos. O cardápio das bobagens incluía jogos de ludo, de adivinhação e outras idiotices para enrolar o tempo. De ensino da língua inglesa, praticamente nada. Nos últimos cinquenta minutos da tal “aula”, dois alienados da Suíça pediram e o professor os atendeu. Ignorando a programação do curso e o interesse da maioria dos alunos, trouxe folhas contendo lista dos principais palavrões da Inglaterra, com exemplos e tudo o mais. Os dois suíços, que adoravam cochichar em alemão feito duas comadres fofoqueiras, aplaudiram a inovação e se excitaram com o nobre aprendizado. De nada adiantou eu e outros alunos reclamarem daquela perda de tempo. O professor justificou que oferecia a oportunidade de aprendermos a linguagem das ruas. Somente palavrões por longos cinquenta minutos.
Aproveitamos as aberturas de sol e passeamos na região de Richmond, afastada do centro de Londres, na margem do rio Tâmisa, em meio a extensas áreas verdes, como sempre impecáveis no arranjo e conservação.
Embarcamos em nova excursão da escola, rumo à cidade litorânea de Brighton.
Muito frequentada pelos londrinos no verão, a praia só podia ser piada de mau gosto. Não havia sequer um grão de areia, somente seixos de cerca de cinco a dez centímetros de diâmetro. Era impossível caminhar descalço sem tropeçar, cair ou cortar as solas dos pés. Para completar a desgraça, o píer que avançava no mar se entupia de fliperamas, máquinas de jogos eletrônicos, caça-níqueis.
A área central da cidade oferecia becos estreitos e sinuosos, formando labirintos com lojas, restaurantes, confeitarias. Pelo menos ali valia a pena circular e apreciar o conjunto arquitetônico. Entramos em restaurante italiano no meio do labirinto que servia boa comida, bom vinho, bom café. Sem pressa, passamos boas horas naquele ambiente aconchegante.
Acordamos bem cedo para pegarmos trem rumo a Canterbury na estação ferroviária de Victória. Aquela linha não estava em nenhuma tabela de horários, o que não seria novidade. A maioria das tabelas não passava de pura ficção. Linhas de trens presentes nas programações não corriam mais. Outros em funcionamento não constavam das listas. A Inglaterra depois da privatização de inúmeros serviços essenciais não inspirava confiança. E nem havia banheiros no vagão que viajamos.
Canterbury era bem arranjada, simpática, com lindos jardins, para não perder a mania inglesa, casas e ruas charmosas, a impressionante catedral gótica. O tempo chegou a abrir, mas o frio apertou. E na volta, mais aventuras pelos transportes ingleses privatizados. Foi preciso pegar um trem, um ônibus para superar o trecho interrompido da ferrovia, e outro trem até a capital. E o percurso total era curto. Muito mais complicado e desgastante do que nos interiores da Índia, onde estivéramos meses antes.
E mais problemas no metrô em Londres. Ramais e linhas interrompidas. Desviamos e tivemos que trocar duas vezes de linha.
Em dado momento da aula no outro dia, o professor pediu que cada aluno conversasse com o aluno ao lado e perguntasse sobre o comportamento usual durante as refeições nos respectivos países. Eu fiz dupla com uma japonesa de vinte e poucos anos. Descrevi a alegria e descontração que acompanhavam a maioria das refeições brasileiras. Na vez dela, muito sóbria, comunicou que durante as refeições nas casas japonesas todos se calavam completamente enquanto comiam. Seria tremenda falta de educação alguém falar.
Desisti de esticar por terra até a Ásia e decidi retornar ao Brasil após o final do curso. Ela permaneceria mais tempo, mas em outra escola de inglês.
E a escola mantinha a embromação. Os dois suíços continuavam a manifestar atitudes racistas e preconceituosas. Os demais alunos não os suportavam. Os professores nada faziam e eles não cediam um milímetro sequer.
À noite tivemos jantar agradável com os alunos e professores da minha turma. Ainda mais porque os dois suíços racistas, “as duas comadres”, não compareceram, deixando o ambiente mais leve e prazeroso. Foi um alívio. Ninguém sentiu a falta deles.

Último dia de aula, finalmente, entre trocas de fotos, de endereços, despedidas. O professor, apesar das péssimas aulas, era boa pessoa, adorava culinária, planejava no curto prazo sair da escola, vender alguns bens e partir para a China a fim de estudar a culinária chinesa. Exceto “as duas comadres” da Suíça, a turma agradou e proporcionou bons momentos sociais. Mas o tal curso de inglês, nunca existiu de verdade.
Passamos quatro horas memoráveis na Torre de Londres. Exploramos as muralhas, masmorras, escadarias, exposição de joias, peças de ouro. O brilho das riquezas impressionava, mas se ofuscava pela origem de tudo a partir de saques e roubos do império britânico pelo mundo afora.
À tarde, após almoço italiano saboroso e caro, entramos em cinema para assistir a filme inglês rodado no norte do país. Era comédia crítica à decadência econômica e social da Inglaterra, sobretudo daquela região, outrora rica em indústrias metalúrgicas. Os atores usavam sotaque regional de difícil compreensão. Perdemos inúmeros diálogos, mas nos divertimos com as cenas cômicas e as risadas da plateia inglesa.
No início da manhã, espessa neblina, associada à umidade, molhava as ruas e os carros estacionados. A água escorria da lataria de alguns deles. E nenhuma gota de chuva caíra durante a noite ou madrugada. Seguimos de trem rumo à cidade universitária de Cambridge.
O ponto alto de Cambridge ficava por conta do King’s College, faculdade somente para homens, com capela estupenda, cheia de vitrais, os jardins gramados na parte da frente, o rio bucólico nos fundos do prédio. Estudantes ganhavam trocados conduzindo turistas de barco pelas águas calmas. Não usavam remos, mas estacas profundas que impulsionavam os barcos lentamente.
Um saboroso kebab recheado de frango ricamente temperado encerrou a noite nas imediações da praça Leicester em Londres. Era minha última noite na cidade.
Ela matriculara-se em escola bem mais barata nas imediações do centro da cidade. Também conseguira permanecer na mesma casa depois das renegociações de preços e condições. Tivemos muita sorte com a casa, a higiene, o café da manhã farto e variado, a boa recepção. Mas parecia exceção. Ouvíamos histórias escabrosas de outras casas, onde os donos trancavam a porta a partir de certas horas, serviam comidas vencidas ou de má qualidade, cortavam a água quente, destratavam os hóspedes. E todas elas faziam convênio com a escola privada, a tal que cobrava fortunas dos alunos, nada ensinava e só embromava.
No voo da volta, com conexão em Zurique, a mesma viagem chata, cansativa, com comida medíocre da empresa aérea da Suíça. E novamente as desnecessárias e torturantes informações técnicas nos televisores.
Aproveitei para refletir sobre o desejo de parar momentaneamente com as viagens ao exterior. Depois de tantas e gratificantes viagens pelo continente americano, europeu e asiático, me dei por satisfeito. E também um pouco enfadado de gringos. Eu sentia muita falta das paisagens e dos povos brasileiros. Pronto! Em breve voltaria a percorrer os interiores do Brasil, destinos bem mais fascinantes, que certamente brilhariam nas minhas próximas explorações.
Desembarquei em São Paulo em fins de outubro. Depois de pegar o ônibus comum no aeroporto de Cumbica, tive que esperar bastante na estação Bresser do metrô por um vagão que não estivesse transbordante naquela manhã de terça-feira.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Inglaterra (parte 1/2)

Quatro meses após o retorno da viagem de mais de sete meses pela Ásia, partimos para outra aventura. Ela desejava aperfeiçoar os conhecimentos na língua inglesa na Inglaterra. E tínhamos a expectativa de, após o curso, seguirmos por terra até a Índia, através da Turquia, Síria, Irã, Paquistão.
Em agência de intercâmbios e cursos de línguas no exterior nos matriculamos em escola de Londres, incluindo estadia em residência familiar.
Em meados de setembro embarcamos em voo para Londres, com conexão em Zurique na Suíça.
Televisores espalhados em todos os cantos da aeronave torturavam os passageiros com repetidas e monótonas imagens da posição evolutiva do avião no oceano atlântico. A empresa aérea suíça exibia, nos mesmos televisores, detalhes da velocidade do avião, temperatura externa, altitude, distância percorrida, distância a percorrer, tempo decorrido, tempo restante, em três línguas, em três unidades de medida. Nada de filmes ou documentários, somente aquela tortura inútil.
Enfrentamos longa fila no setor de migrações do aeroporto internacional de Londres. Apresentei o formulário de matrícula da escola de inglês, a passagem de volta, respondi às diversas perguntas. E o funcionário insatisfeito queria saber quem eu conhecia na cidade e onde trabalharia para me sustentar. E eu repetia tudo novamente. E ele fazia novamente as perguntas racistas de sempre. O impasse ridículo resolveu-se subitamente quando a apontei no balcão ao lado como se fosse minha mulher. A coisa mudou radicalmente. O dito cujo até sorriu, forneceu o visto de três meses e me liberou.
Pegamos o metrô no aeroporto e, depois da conexão de linhas, descemos na estação Highgate. Alcançamos a rua residencial e tranquila de nosso lar inglês.

Dentro do sobrado revestido de tijolinho, como não poderia deixar de ser na Inglaterra, a advogada de trinta e poucos anos nos levou ao quarto, nos explicando como tudo funcionava. Em gravidez avançada, tinha um filho pré-adolescente e recebia a ajuda de uma discreta empregada trintona. Os quatro pisos do sobrado acomodavam, com conforto, vários quartos, banheiros com água quente e abundante, limpeza, organização, sossego. Uma espanhola arrogante, a trabalho na Inglaterra, se hospedava em quarto privativo.
Deixamos as coisas no quarto amplo e, a fim de evitar o sono que nos cercava, fomos dar voltas no centro de Londres. Comemos bem, reconhecemos os arredores meio por cima e voltamos para casa.
Caímos no gostoso banho quente de um dos banheiros coletivos e desabamos na cama. Nem precisamos ligar o aquecedor. Apenas fechamos a janela de vidro duplo, que dava para o quintal arborizado da casa, para mais árvores, para o conjunto de quadras de tênis mais ao fundo.
Dormimos bem e bastante. O café da manhã na cozinha da casa era livre e podíamos comer o quanto quiséssemos. Arregaçamos as mangas e nos servimos de cereais, leite, torradas, manteiga, suco de laranja industrializado, chá.
De bate pronto seguimos à escola de inglês instalada em casarão nos altos do bairro de Highgate. Após leve preleção e teste escrito, chamaram cada aluno individualmente para entrevista e teste oral. E nada mais. Somente no dia seguinte seríamos distribuídos nos níveis e salas específicos. A esmagadora maioria de orientais entre os alunos era espantosa. Simpáticos e educados, apenas arranhavam, e mal, a língua inglesa.
O surpreendente tempo claro e ensolarado continuava. Aproveitamos para passear mais pelo centro da cidade.
Na manhã seguinte, o primeiro dia de aula decepcionou a mais não poder. Caí em sala com doze alunos, onde o professor falava demais, seguia militarmente o livro, não permitia aos alunos praticarem. E, em quatro horas brutas de aula, a escola desperdiçava quarenta minutos em intervalos desnecessários.
Além de informações de pequenos furtos e batedores de carteira, os vagões do metrô de Londres revelavam sujeira acumulada nos bancos e cantos do piso, entre garrafas, latas, jornais, plásticos, comida. Vez ou outra, víamos passageiros lendo tabloides e comendo sanduíches. Ao chegar a estação do desembarque, eles simplesmente largavam o jornal sobre o assento do lado direito, o resto da comida sobre o assento do lado esquerdo, e saíam do vagão impunemente. Não eram imigrantes ou turistas, mas britânicos legítimos.
No entanto, apesar da absurda lotação nos horários de pico, o metrô londrino funcionava com eficiência e cobria a maior parte da cidade. Nos eventuais enguiços ou suspensões temporárias de linhas, os funcionários escreviam a mão e às pressas a comunicação dos problemas e as sugestões de alternativas em quadros negros afixados nas paredes ou armados no chão das estações.
À noite na escola tivemos sessão opcional de filme falado em inglês e sem legendas. Lamentando que os filmes fossem dublados nos cinemas da Itália, o italiano da minha turma comentou que era a primeira que ouvia as vozes originais dos atores.  
Caminhamos ao cemitério de Highgate, ao lado do parque do bairro, no qual se situava o túmulo e o busto de Karl Marx. Em outros trechos, o cemitério apresentava lápides e tampas de túmulos deslocadas, tortas, quebradas, brotando mato por entre as rachaduras. O cenário não poderia ser mais apavorante e típico de estórias de terror.
O curso prosseguia entre momentos altos e baixos. Mais baixos que altos.
Compramos salame, queijo, pão italiano, vinho, frutas e seguimos ao parque Waterlow. O tempo abriu e o sol brilhou. Escolhemos banco em frente a extenso gramado e nos deliciamos com o banquete.
Partimos em ônibus da escola rumo a Bath, cidade que pertencia aos roteiros opcionais de fim de semana. Os japoneses, obviamente, eram maioria entre os passageiros, seguidos de suíços e brasileiros.
Entupida de turistas, Bath guardava arquitetura antiga, ruas estreitas, catedrais e, claro, os famosos banhos romanos. Apesar de pouca coisa remanescente, pudemos apreciar o eficiente uso das águas naturalmente termais por entre canais, piscinas, tanques. Restos de colunas originais, entalhes em pedras e objetos pessoais antigos completavam o conjunto. Entramos em padaria e comemos sanduíche de atum e salada, servido em pão baguete quente e fresco.

Retornamos ao nosso lar londrino à noite.
Fomos assistir ao que eu nunca vira e sempre evitara em todas minhas passagens por Londres, a internacionalmente famosa troca da guarda no palácio de Buckingham. E eu fizera bem em não assistir antes a espetáculo tão deprimente, insípido, monótono, sem graça, sem brilho. Ingleses e turistas do mundo inteiro entupiam as redondezas, disputavam febrilmente os melhores lugares para ver e fotografar aquelas cenas de realeza em pleno final de século XX.
Subimos em barco na estação de Westminster e descemos o rio Tâmisa até Greenwich. Após a Torre de Londres, o que dez anos antes se resumia a áreas degradadas com armazéns e fábricas abandonadas, passou a região nobre ocupada por edifícios residenciais voltados às camadas mais ricas da cidade.
Greenwich tratava-se de local dos mais belos e agradáveis dos arredores de Londres. Tranquilo, pitoresco, muito verde no parque deslumbrante decorado com jardins floridos, rosas, esquilos, a vista privilegiada da cidade.
Em Londres contemplamos o pôr-do-sol no parque St James e, em seguida, sorvemos o burburinho contagiante nas imediações da praça Leicester.
Dois franceses de meia idade inscreveram-se para o curso de inglês e se hospedaram na mesma casa onde ficamos. Sabedores de que a dona da casa morara na França, o casal passou a conversar com ela em francês, perdendo a oportunidade rara de praticar o inglês. Impressionante a piada pronta! Fiquei perplexo com tamanha esperteza e inteligência do casal francês.
A cada aula que assistia na escola, mais eu tinha certeza que tudo não passava de grande enrolação para tirar dinheiro de estrangeiros deslumbrados com o exterior. A escola dividia os estudantes em níveis somente na aparência. Quanto mais alunos por sala, mais barato para a escola. No final das contas, o lucro era o critério essencial dos proprietários daquele estabelecimento privado.
E as horas passadas na sala transformavam-se em divertidos momentos de lazer. Os professores, ou melhor, os animadores, mantinham o astral. O tempo corria velozmente, mas pouco ou nada aprendíamos. Não davam oportunidade para tal. Os alunos praticamente não falavam. E isso em salas com mais de doze alunos e a preços exorbitantes. Em qualidade educacional, a escola perdia feio para as similares brasileiras.
Durante o café da manhã, respondendo às sugestões da dona da casa de assistirmos aos famosos musicais britânicos no teatro, agradeci respondendo que não gostava desse gênero. Minha opinião soou como terremoto, como agressão brutal à honra nacional. Sentindo-se ofendida em nome de todos os ingleses, a advogada rosnou que aquilo era absurdo e saiu da cozinha batendo os saltos. A espanhola arrogante fez coro às indignações britânicas, me olhando como se eu fosse alienígena. Talvez elas não estivessem acostumadas a conviver com outras opiniões e gostos. E dei vivas à diversidade cultural e à tolerância diante das diferenças!
Na parte da tarde, pegamos os livros e fomos ler sob o sol morno no parque Waterlow.
À noite, minha turma e mais três dos professores saímos para jantar em restaurante de comida da Malásia, localizado no próprio bairro de Highgate. Noite agradável, entre bons papos e comida saborosa.
O curso completava a primeira metade. Conversei com diversos alunos e a conclusão era que ali estava mais para centro de diversões e contatos sociais do que para autêntica escola de inglês. Crescia o número de insatisfeitos, porém a maioria preferia deixar como estava. Outros se contentavam em estar entre pessoas, pelo ambiente divertido e agradável, em fazer novas amizades.
continua...

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Portugal e Espanha (parte 3/3)

...continuação
Depois do desembarque na suja e desorganizada estação rodoviária de Granada, em meio a pedintes, caminhei pela avenida principal e me hospedei no albergue da juventude.
A vida noturna da cidade se agitava naquela noite de sábado, nas dezenas de bares, cafés, restaurantes, pubs, em cuja frequência predominava os adolescentes. As meninas se pintavam e se produziam de maneira tão exagerada que mais pareciam vedetes de cabaré, rindo e falando escandalosamente alto.
A cidadela de Alhambra, construída pelos árabes no século IX, complexo de castelos, palácios, igrejas, jardins, fontes, bosques, se erguia próximo às montanhas. Durante séculos, Granada tornou-se a principal cidade árabe da península ibérica. A cidadela encantava pelas salas, pátios, fontes de água, arabescos, detalhes instigantes, colunas, água corrente em canais e valetas, madeira e pedra talhadas com desenhos e escrita árabe. Mais jardins, em formato de labirinto, e muito verde surgiam no caminho ao palácio de Generalife.
Albaicin, o antigo bairro árabe e invariavelmente pintado de branco, com becos e ladeiras sinuosas e estreitas, abrigava as camadas pobres e médias da população. Dali, o Alhambra e a Sierra Nevada coberta de neve mais ao fundo.
Os espanhóis jogavam lixo nas ruas, ignorando as lixeiras disponíveis. O mesmo acontecia nos vagões de trem, onde fumavam mesmo com os avisos de não fumar afixados nas paredes do trem e nos bilhetes de viagem.
Desembarquei debaixo de chuva na estação ferroviária San Bernardo em Sevilha. Diversas pessoas assediavam com propostas de pensões e hospedarias baratas, lembrando a Bolívia e o Peru. Cruzei o bairro antigo de Santa Cruz e me perdi feio. À medida que tentava sair dos labirintos, mais eu me perdia nos becos, vielas. Mas me deliciei com toda aquela história ao meu lado.
As linhas de trem entre Sevilla, Ayamonte e o sul de Portugal tinham sido canceladas. A estação rodoviária de Damas em Sevilha conseguia a triste proeza de ser pior que a de San Bernardo. Ainda mais suja, apertada, desorganizada. Não havia plataformas de indicação, nada. Qualquer terminal rodoviário dos interiores distantes do Brasil poderia ganhar fortunas vendendo consultoria à Espanha de como construir, organizar e administrar uma estação rodoviária decente.
Não havia locais fixos das partidas dos ônibus. Os veículos surgiam do nada e quase atropelavam os passageiros, envenenando-os com os escapamentos desregulados. O setor de informações daquele hospício desinformava. Mal encarados e mal humorados, os balconistas nada informavam, nada sabiam. Mas acabei encontrando a explicação para tanta incompetência. Aquele local fedido, as linhas, os ônibus, motoristas e funcionários em geral, pertenciam a empresas privadas. Se os trens estatais, mais eficientes e mais baratos, estivessem em funcionamento, os passageiros não sofreriam para garantir o lucro fácil às empresas privadas.
O trajeto durou cerca de três horas, e passou por Huelva, cidade espanhola na beira de praia plana, suja e sem atrativos. O relevo aplainado contava com plantações de oliveiras e laranjeiras. A pobreza estava em todos os lugares. Desembarquei na imunda cidade espanhola de Ayamonte. Cruzei de barco a fronteira internacional e botei os pés na cidade portuguesa de Vila Real de Santo Antônio, dando impressão que eu tinha entrado na civilização.
Plana, mais organizada e mais limpa que a rival espanhola do outro lado do rio, Vila Real contava com traçado quadriculado das ruas, quase todas iguais e sem praças ou áreas verdes, somente o longo calçadão na beira do rio. O conjunto arquitetônico, no qual as paredes e as entradas das casas ficavam na beira da calçada, lembrava cidadezinhas dos interiores do Brasil.
Anoiteceu e a cidade fantasma mergulhou em silêncio. Ninguém nas ruas. Todos deitavam os olhos nos televisores, inclusive nos raros bares e restaurantes abertos. Comi algo parecido com enguias ensopadas em restaurante fúnebre, onde os garçons e os poucos clientes se hipnotizavam com olhares fixos voltados para o televisor.
Os espanhóis invadiam a cidade portuguesa diariamente para comprar produtos isentos de impostos. Eram lojas ou ambulantes que expunham produtos dos mais variados tipos, couros legítimos ou não, roupas, bugigangas inúteis, sobre pedaços de pano estendidos no chão. O flexível comércio da fronteira aceitava escudos portugueses e pesetas espanholas.
Porta de entrada para o Algarve, a praia de Monte Gordo, a cinco quilômetros do centro, naquela baixa temporada com frio e céu cinzento, era procurada por turistas do norte da Europa, que, de bermudas e camisetas, se deliciavam com o tórrido calor diurno de 10 graus.
No posto de informações turísticas, entre um e outro atendimento aos turistas estrangeiros, aproveitei para conversar com o português e a assistente. Mas logo me cobriram de perguntas sobre o tema predileto de Portugal, as telenovelas brasileiras. Não lhes interessava saber sobre o Brasil, os brasileiros, a cultura, a geografia. Estavam obcecados pelas telenovelas, apenas pelas telenovelas já exibidas no Brasil. Queriam a todo custo saber o que aconteceria no final de cada uma delas ou, pelo menos, nos próximos capítulos. De nada adiantou eu declarar que nunca assistia às telenovelas. Os olhos de ambos brilhavam na ansiedade das respostas que eu não trazia. Por fim, resignados, desistiram de implorar sobre as telenovelas. E desistiram também da minha presença. Eu não possuía mais nada que lhes interessasse.
A viagem de ônibus a Lisboa foi regada a serviço de bar, música ambiente e filmes do tipo Rambo III, ilustre representante do lixo oficial estadunidense. As janelas permaneciam trancadas e o ambiente abafado. Os passageiros portugueses fumavam apesar da proibição, enevoando de nicotina o ambiente.
Na paisagem do lado de fora, o destaque ficou por conta de pitoresca cidadezinha de Tavira, margeada pelo rio, as pontes de pedra, o casario antigo formando conjunto harmônico e pitoresco. Senti vontade de sair pela janela, ficar na cidade, fugir do ambiente asfixiante e cancerígeno do interior do ônibus da empresa privada.
Grande parte do centro antigo de Lisboa carecia de restauração. Comentários diversos garantiam que grandes empresários da especulação imobiliária apostavam no agravamento do estado das construções, torciam por desmoronamentos “naturais”, criavam fatos consumados. Depois bastava limpar a área e construir novos prédios. E, nos bairros, os mesmos empresários construíam edifícios padronizados e tristes.
Almoço tardio com amigos em restaurante típico português. Pediram Sapateiras, caranguejos imensos dos mares profundos da costa africana. Somente o corpo central do dito cujo ocupava todo um prato normal. Sem falar nas patas grandes e pequenas. O miolo foi servido ricamente temperado e, por mais que eu tentasse esvaziá-lo, a saborosa carne não acabava nunca. Delicioso! Para acompanhar, nada melhor que garrafas de vinho verde branco.
Em sala de cinema em Lisboa, minutos antes do intervalo, uma espectadora começou a esbravejar contra o homem sentado próximo. Alegava, aos gritos que o indivíduo lhe passara a mão na perna. A sala inteira lançou os olhares e os ouvidos naquela direção. O tal tarado se levantou e se retirou.
Permanecemos bastante na Feira Popular, ambiente antigo e agradável, cheio de atrações, brincadeiras, parques de diversão, comes e bebes. Passamos boas horas em barraca simples que servia gigantescas porções de sardinhas assadas e fatias de porco frito.
Nas estradas ao norte de Portugal, passamos pelas já conhecidas Fátima e Boleiros. O diferencial ficou por conta de finas camadas de neve acumulada. O inverno se aproximava oficialmente nas imediações da serra da Eira. Mergulhando novamente na maravilhosa culinária portuguesa, me empanturrei do Leitão à Bairrada, prato típico da região.
Entramos muito tarde na fascinante cidade de Coimbra, quase sem luz natural, para apreciar o centro antigo, repleto de ladeiras. Depois, as bucólicas estâncias de Cúria e Luso, mais voltadas a tratamentos hidrominerais.
O voo me trouxe a São Paulo em meados de dezembro.
Aquela viagem, mais de levantamentos do que de turismo, chegava ao fim. E sem registros fotográficos. Os slides foram inteiramente danificados durante a revelação. As imagens ficariam apenas na mente, o quanto minha memória as conservasse.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Portugal e Espanha (parte 2/3)

...continuação
Ele me confidenciou detalhes apavorantes sobre a família dela. Uma delas denunciava que o pai dela, então proprietário e senhor de escravos de fazendas em Angola, em terras doadas pela ditadura portuguesa, costumava punir os negros escravos jogando-os em águas coalhadas de crocodilos. Após o restante da família ter fugido do país durante a guerra da independência do povo angolano, o mesmo permaneceu em Angola para resgatar o máximo possível das riquezas usurpadas. E, durante a fuga em aeronave particular, correu na pista de pouso para não ser capturado e julgado pelos rebeldes.
Em Peniche, cidade de pescadores aos pés de escarpa íngreme e em frente a conjunto de pequenas enseadas, estava frio, cinzento, ventando forte.
Apesar das grosserias, broncas, maluquices, arrotos altos, gritarias, meus anfitriões se desdobravam para me tratar bem. Não economizavam generosidade e bondade. E embora eu tentasse recusar, fiquei com o quarto principal do casal no apartamento de Caldas da Rainha, enquanto eles dormiram em sofás improvisados na sala. Mas, para não perder o costume, os arrotos escandalosos, as brigas, as gritarias, prosseguiam. E assistiam à televisão em volumes altíssimos, mandando calar a boca de quem sussurrasse.
Obcecado pela ideia de nunca mais pagar impostos, ele tentou duas vezes conversar ao telefone com o primeiro ministro de Portugal. Ninguém atendeu as ligações e a irritação dele ultrapassou os limites.
À tarde, me despedi deles e embarquei em trem ao subúrbio do Cacém.
Subi na composição no Cais do Sodré a Cascais. Em estação intermediária, a Torre de Belém, construída no século XVI, envolvia pela simetria, simplicidade e reduzidas dimensões. Perto dali, o Mosteiro dos Jerônimos, alongado e bem conservado.
Dessa vez aberto, visita ao palácio da Pena em Sintra, pelos interiores da moradia da monarquia até princípios do século XX. Quartos e mais quartos, corredores, atmosfera e mobília pesada, cores sóbrias, falta de gosto. O destaque ficou por conta do banheiro. A latrina imensa sustentada por pesados blocos de madeira, a bacia menor, apontavam para a despreocupação pela higiene. Nenhuma novidade diante das inúmeras doenças transmitidas aos índios brasileiros durante as invasões portuguesas e as doenças entre os próprios invasores.
O tempo sombrio impedia incursões pelas noites lisboetas. Permaneci no apartamento deles me submetendo ao martírio diante da televisão. Volume alto para acompanhar bingos e outras fábricas de ilusões. Os demais programas também não animavam.
Em Malveiras da Serra, próximo a Cascais, em casa decorada à moda do campo, encaramos o cozido a portuguesa, comida saborosa e pesada. Várias pipas guardavam vinhos de diversos tipos. Bastava levar o copo, abrir as torneirinhas e se servir à vontade.
Perambulamos pelas vilas de Anábida e Sesimbra. Localizada em praia junto à escarpa alta, Sesimbra seduzia pelo conjunto pitoresco, a despeito da infraestrutura demasiadamente turística.
Considerados ilegais pelo sistema, os vendedores ambulantes do centro de Lisboa e arredores recolhiam rapidamente as mercadorias e saíam em disparada ao avistarem a polícia. Nada diferente do que acontecia nas grandes cidades brasileiras. Mas, também proibida, a venda de drogas ocorria a céu aberto nas imediações da praça do Comércio.
Na região de Cascais e Estoril, ao longo calçadão na beira da praia, nem o mau tempo impediu o prazer por horas. Os passageiros dos trens de subúrbio de Lisboa raramente liam livros, preferindo deitar os olhos em revistas fúteis e tabloides esportivos.
No cinema em complexo com cinco salas, lanterninhas conduziam os espectadores na esperança de receber gorjetas. Vendedores com bandeja de comes e bebes pendurada no pescoço circulavam enquanto não apagavam as luzes.
No filme estadunidense sobre conflitos na máfia o destaque ficou por conta das legendas em português de Portugal. Originalmente sérios e tensos naquele tipo de filme, os diálogos tornavam-se bizarros e engraçados nas traduções. Enquanto o personagem do submundo do crime mandava o outro calar a boca, usando e abusando de gírias e palavrões em inglês, a legenda exibia a frase “basta de parvoíces!”. Ou quando dois personagens saíam do banheiro e um deles, procurando desqualificar o oponente, debochou afirmando em inglês algo como “você usa o banheiro e nem puxa a descarga”, surgiu legenda “tu usas a casa de banho e não pressionas o autoclismo”. Os presentes na sala se espantaram com meus risos.
E o principal motivo de eu estar em Portugal ia de mal a pior. Tentei por vários caminhos, sugeridos ou não, entrevistas para possíveis empregos na área na qual eu tinha bastante experiência. E durante vários dias, nos mais diversos lugares, sob as mais diferentes formas. A discriminação velada se escancarava em cada visita ou comentário recebido.
Decidi viajar sozinho para me descontrair. Seriam umas férias dentro das férias. Sem muito tempo disponível, optei pela Andaluzia espanhola, retornando pelo sul de Portugal.
À noite embarquei na estação ferroviária de Santa Apolônia. Consultava o mapa para me localizar de acordo com o nome da estação nas paredes da plataforma. Ocupei o penúltimo vagão que parava longe da zona principal de embarque e desembarque. Na primeira parada, a placa bem grande e clara: Retrete. Tentei em vão localizar aquela cidade no mapa. Na parada seguinte, novamente o nome Retrete escrito em placa metálica. E na estação seguinte, o mesmo nome novamente. Dias depois vim saber que a palavra Retrete, em Portugal, era simplesmente o mictório.
Após cruzar a fronteira da Espanha, desembarquei ao amanhecer na cidade de Badajoz. Sob o frio terrível e neblina assustadora, permaneci horas na estação ferroviária vazia, aguardando o segundo trem. Quase congelei no minúsculo saguão.
Na nova composição pude apreciar as terras intensamente cultivadas, com exceção das serras entre Mérida e Sevilha. Antes das montanhas predominavam olivais de diversos tamanhos, frutas cítricas. Mas não se via alma viva.
Em Sevilha no meio da tarde busquei o setor de informações turísticas na rua, pois não havia nada na estação ferroviária. Mas se recusaram a me ajudar alegando que não podiam recomendar nenhuma hospedagem especificamente.
Caminhei até as imediações do centro onde encarei pensão simples, sem banheiro no quarto. Não havia água quente nas torneiras ou nos chuveiros do banheiro coletivo, apesar da recepção garantir que sim. O quarto era gelado e pobremente iluminado.
Os espanhóis fumavam mais que os portugueses. Não havia pessoas negras pelas ruas. Em vários bares e cafés, o aviso em letras enormes: “É proibido cantar”.
No Alcázar conjunto de palácios e jardins construído pelos árabes, a distribuição dos espaços, profusão de detalhes, arabescos, água corrente para todos os lados, seduziam os visitantes, entre inúmeros jardins extremamente bem arranjados.
Cidade grande, Sevilha contava com largas e longas avenidas, amplo centro comercial, calçadões lotados de gente, sem falar na envolvente parte antiga. Imensa e escura, a catedral Giralda impressionou pela imponência, beleza, capelas internas.
As ruas do centro eram arborizadas de laranjeiras, repletas de frutos naquele final de novembro, convidando a entrar nos bares e cafés para tomar o suco natural deliciosamente azedo. Mas a preços salgados para a pouca quantidade oferecida.
O bairro de Santa Cruz, com becos estreitos e sinuosos, bodegas, construções antigas, representava o típico do sul da Espanha que recebeu profundas influências árabes durante a ocupação moura de séculos atrás.
Comia o café da manhã nas proximidades da catedral, em mesas ao ar livre, enquanto observava o vaivém dos espanhóis em direção ao trabalho. Os adultos se vestiam de modo exageradamente produzidos, sobretudo as mulheres. Abusavam tanto da maquiagem, penteados requintados, roupas extravagantes, que chegavam a mudar as feições originais, parecendo que compareceriam a cerimônias da monarquia.
O trânsito de Sevilha era pior e mais desorganizado que o de Portugal. Não respeitavam nem mesmo as faixas de pedestres. Mas, felizmente, assim como os portugueses, os espanhóis estavam livres, até então, das repugnantes redes estadunidenses de comida rápida e sanduíches de carne de minhoca. Predominavam bares, cafés e restaurantes tradicionais, que serviam boas comidas e bebidas.
No final da tarde e começo da noite, os espanhóis entupiam os bares e cafés para beber, petiscar, conversar. Barulhenta e animada, a cena avançava pela noite. E só jantavam bem tarde. Mas minha fome chegava antes. Eu entrava em restaurantes vazios de clientes e cheios de garçons encostados nas paredes. Escolhia a melhor mesa, comia bem, era bem atendido.
O ônibus a Granada era mais apertado que os brasileiros e mais desconfortável que os trens. A partir da cidade de Osuna a vegetação tornou-se escassa. Havia mais areia nos solos. O relevo se acentuou. Pouco a pouco surgiam vilarejos com casas brancas, aos pés de escarpas rochosas.
As duas estadunidenses antipáticas e racistas que viajavam no ônibus fecharam a cara aos demais passageiros, só conversando entre elas. Enquanto o motorista punha músicas flamengas para o deleite da maioria dos passageiros, as duas se isolavam nos fones de ouvido para ouvir o previsível lixo estadunidense.
E, após Loja e a pitoresca Archidona, surgiu Granada, cidade aos pés da Sierra Nevada, a cadeia de altas montanhas com os topos nevados.
continua...

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Portugal e Espanha (parte 1/3)

Diferentemente das demais já realizadas, essa não seria apenas uma viagem de lazer.
O Brasil vivia o primeiro ano do capitalismo neoliberal do governo Collor que confiscara o dinheiro dos correntistas. O patrimônio e os lucros dos ricos da classe dominante, como de praxe nos governos burgueses, permaneceram protegidos. A recessão bateu em cheio no país e o desemprego foi às alturas. Os salários dos que se mantinham empregados foram congelados por baixo, enquanto que os preços foram controlados por cima, para alegria dos capitalistas brasileiros e estrangeiros que sustentavam o governo Collor.
A ideia de viajar a Portugal e depois para lá mudar com ela brotou com força. Recentemente ingressado na comunidade econômica europeia, o país recebia toneladas de investimentos dos países ricos. Investimentos que, obviamente, seriam cobrados com juros e correções mais tarde.
Embarquei sozinho rumo à capital portuguesa no início de novembro.
Me esperavam em Lisboa, de onde seguimos para o Cacém, subúrbio da capital. Nem bem cheguei, comecei a levantar, perguntar e anotar os preços e condições de tudo.
Cacém contava com construções novas e parecidas, não ultrapassando os dez andares. A maioria dos apartamentos não tinha área de serviço, restando aos moradores pendurarem as roupas do lado de fora das janelas. Com comércio autossuficiente, o trânsito local se agitava. Era preciso ter cuidado para não tropeçar ou cair nos buracos das ruas e calçadas. O destaque dos comes e bebes ficava por conta das pastelarias, uma mistura de café, lanchonete e confeitaria, servindo doces, salgados, bebidas, almoços.
Dentro do circuito Oeiras, Cascais, Estoril, praia das Maçãs, Sintra, arredores de Cacém, o trecho entre Oeiras a Cascais lembrou o sofisticado litoral mediterrâneo voltado ao turismo dos ricos. A sinuosa costa contava com praias de mar bravo, dezenas de hotéis, restaurantes, cassinos. Ruas em curva, colinas, becos, palácios, predominavam em Sintra. O palácio da Pena erguia-se no alto da colina, rodeada de bosque muito verde e frio. Mas estava fechado.
Ganhei alforria para passear livremente pelo centro de Lisboa. Peguei o velho, limpo e eficiente trem até a estação ferroviária do Rossio. Ainda se viam pessoas mais velhas vestidas inteiramente de preto. Os homens cobriam as cabeças com boinas, as mulheres usavam panos, invariavelmente pretos. Favelas e barracos de madeira surgiam em terrenos desocupados.
O Bairro Alto guardava becos, ladeiras, vista panorâmica de Lisboa, casas antigas com pequenas sacadas, roupas penduradas ao sol. Idosos muito velhos conversavam nas esquinas. Até os produtos comercializados por ali eram velhos. Bondes circulavam para lá e para cá.
Caminhei pela rua Augusta, cruzei os arcos rumo à praça do Comércio, na margem do rio Tejo, em cujo pequeno cais os barcos levavam passageiros para Almada e arredores. Em número reduzido lá estavam mendigos, bêbados, vagabundos perambulando pelas ruas do centro. Era evidente a pobreza e a carência de recursos de parte da população.
A novela brasileira Tieta reinava absoluta no horário nobre da televisão portuguesa. O país parava para assisti-la e tudo mergulhava em profundo silêncio. Os noticiários pareciam produzidos em série para todos os canais, tamanha era a semelhança entre eles, nos temas abordados, comentários, posições. E apontavam para o rígido controle sobre as mentes e para a ausência de liberdade de imprensa. Não adiantava mudar de canal. As “notícias” se restringiam à rebelião de presos em Alicante, renúncia do presidente do partido conservador inglês, visita de Mário Soares ao Japão, problemas internos no Partido Comunista Português, subornos a juízes de futebol, furacão nas Filipinas. Era o oligopólio dos meios de comunicação em carne viva. Como no Brasil. Os telespectadores mergulhavam em sepulcral silêncio na sala, entre olhares e expressões bovinas. Nada de questionamentos ou comentários críticos.
Erguido na colina do lado oposto ao Bairro Alto, misturada às árvores, o castelo de São Jorge proporcionava vista privilegiada de Lisboa. Entre os muros cobertos de ameias, escondiam-se jardins internos, muito verdes e pitorescos. Além da exploração dos meandros do castelo, os bancos sob a sombra permitiam descansar, ler, observar o movimento dos transeuntes no centro da cidade, lá embaixo.
Segui ao bairro da Alfama, bem mais atraente que o Bairro Alto. Becos mais estreitos, sinuosos e íngremes, casarões antigos distribuídos em ambiente instigante. Como verdadeira viagem no tempo, tudo na Alfama era velho, moradias, pessoas, lojas, adegas, casas de fado, restaurantes.
O número excessivo de carros não encontrava vagas suficientes para estacionar. Sobravam para as calçadas entupidas de veículos e para os coitados dos pedestres, ou peões, como se chamavam em Portugal, que faziam malabarismos para vencer os obstáculos sem serem atropelados nas ruas.
Ao contrário dos demais países europeus que eu tinha visitado em outras oportunidades, em Portugal as pessoas se notavam, se olhavam, conversavam.
Passamos pelo parque Eduardo VII, cujo excesso de simetria e a ausência de verde me deram vontade de sair logo dali. Almoçamos e jantamos no restaurante favorito do casal, nos deliciando com caldeirada de cabrito e arroz de mariscos. Entre as sobremesas, a maçã assada e o pudim de clara, lá batizado de pudim molotov.
Com um colega mais jovem saí pela noite de Lisboa. Percorremos o Bairro Alto, São Bento, Alfama, Chiado, onde ocorrera incêndio criminoso havia poucos anos. A noite fervia no Bairro Alto, valorizado pela fraca iluminação, pela disposição dos bares e restaurantes em becos estreitos e curvos. Poucos olhares, muito desfile e exibição.
O clima quente e seco ameaçava mudar. Seria o fim do veranico, ou do verão de São Martinho como denominavam os portugueses, retornando ao outono propriamente dito. Almoçamos na casa de parentes deles.
Sentado na ponta da mesa lotada, o mais idoso estava em fase adiantada de cegueira decorrente de diabete mal cuidada. Nem por isso deixava de cantar louvores à ditadura de Salazar, que mergulhou o povo português nas trevas da idade média durante várias décadas do século XX. Segundo ele, e com a concordância da maioria dos presentes, foi um erro o fim daquele regime após a revolução dos Cravos em abril de 1974. E também condenou a “entrega”, pelo governo português, das colônias africanas aos “negros selvagens”. Em voz sempre alta e pausada, aquele senhor insistia que os portugueses e africanos viviam na maior felicidade e prosperidade antes daqueles “equívocos políticos”.
Enquanto ele discursava, e a maioria ouvia e concordava, eu aproveitava para mergulhar de cabeça na deliciosa comida portuguesa servida em várias travessas sobre a mesa. E jamais deixava minha taça se esvaziar do primoroso vinho tinto.
Mas as doces opiniões do saudoso da ditadura não duraram para sempre. Alguém ligou a televisão da sala. Pronto, todos se calaram, todos pararam de comer, viraram os rostos, deitaram olhares para a telinha. Pareciam hipnotizados. Não importava o que era transmitido. Ninguém piscava ou balbuciava nada. Os portugueses se calavam e se irritavam quando alguém ousava abrir a boca.
À tarde comparecemos a festa de aniversário em casa situada no bairro de São Francisco. Muitos me cercaram e me encheram de perguntas, a maioria sobre as telenovelas brasileiras, expressões citadas pelos personagens, quem ficaria com quem no final da trama e outras dúvidas vitais para o destino da humanidade.
Acabei por dormir ali mesmo. A dona da casa me indicou quarto coletivo, acessado por escada estreita e íngreme de madeira. Colchões se espalhavam pelo chão. Deitei no que me foi reservado. Os adolescentes continuavam a festa lá embaixo, regados a muita bebida e música alta. Só sossegaram no meio da madrugada e despencaram nos colchões completamente bêbados.
Meus futuros companheiros de viagem me acordaram cedo. Encarei o único banheiro da casa, escuro, sujo, com paredes semiacabadas, fedendo a esgoto. O casal se sentou na frente do carro na viagem. Fiquei atrás ao lado de uma senhora idosa que jamais abriu a boca.
O relevo mantinha-se ondulado, em terreno pedregoso, abrigando esparsas plantações, oliveiras, parreirais, raras árvores frutíferas. Mesmo as localidades próximas de Lisboa apresentavam-se pobres. O local do almoço, na beira da estrada e tão elogiado pelo casal, não passava de espelunca suja, desconfortável, com comida insípida. Até o vinho desagradou.
Embora simpático e hospitaleiro, o casal criava clima pesado no carro, restaurantes, visitações. Para lá de histérica, ela só falava aos gritos e se dirigia a todos como se fosse brigar. Extremamente nervoso e cheio de tiques, ele fingia aceitar as loucuras da esposa. E arrotava alto, em qualquer lugar.
Visitamos o enorme e impressionante mosteiro de Santa Maria da Vitória, datado do século XIV. E passamos pelo deprimente santuário de Fátima. Em amplo local de concreto, inundado de estacionamentos e vendedores ambulantes de bugigangas religiosas, aquele cenário cinza com a estátua moderna da santa no meio do nada doía aos olhos.
Seguimos, então, à casa de campo do casal. Localizada na vila de Boleiros, a construção com rachaduras nas paredes caía aos pedaços de tão velha. Por fora e por dentro acumulava-se sujeira e abandono, somada ao frio cortante. Aquecimento de água, nem pensar.
Para espantar o frio mesmo dentro da casa, ele resolveu acender o fogão à lenha. Verde ou úmida, a madeira queimada provocou muita fumaça cobrindo tudo. Não se via mais nada dentro da casa. Então começaram as tosses. As janelas e portas permaneciam fechadas. Até esquentou ligeiramente. Porém, com os olhos ardidos e dificuldades de respirarmos, eles abriram as janelas e portas, sempre aos gritos, desesperados. O vento dissipou a fumaceira, mas trouxe novamente o frio que tanto queríamos evitar. A casa manteve-se aberta e o fogão à lenha aceso. E, como resultado, o pior dos mundos, vento, frio, fumaça. Sem falar no festival de gritos, agressões verbais, acusações mútuas do casal pela desgraça alcançada.
O casal tinha dois filhos que passavam por dificuldades financeiras. Com as respectivas esposas, ambos vieram jantar. Um calibrava pneus em posto de beira de estrada. O outro se vangloriava de ter comprado um carro velho por uma fortuna. A mulher de um deles ganhava misérias como caixa de supermercado.
Embora de maneira alguma mal tratado ou desrespeitado, o ambiente e o comportamento explosivo de todos, no entanto, me impediam de relaxar.
À noite, ela serviu deliciosa costeleta de porco e purê de batatas, regada a vinho tinto soberbo, adquirido por ele junto a antigos colegas de seminário. O desconforto das gritarias, discussões enfurecidas, fumaça, frio, se evaporaram diante daquele autêntico banquete interiorano.
Não demorou muito a ligarem a televisão. Acabaram-se os gritos e brigas, mas também as conversas. Todos prenderam a respiração. Não pronunciaram nenhuma palavra. Não importava o programa em exibição. Quem cometesse o crime hediondo de falar algo seria logo repreendido com gritos e acenos nervosos.
Os gêmeos e as respectivas se retiraram, as luzes se apagaram, a casa mergulhou no silêncio. A vila não produzia um som sequer. Depois daquele dia repleto de emoções, adormeci instantaneamente. Nem notei se a fumaça ainda persistiu por muito tempo.
Passamos por Alcobaça, sede de imponente monastério construído no século XII. Ele lembrou os tempos de seminarista e, enquanto percorríamos os interiores da maravilhosa construção, discorreu sobre fatos da história de Portugal.
Depois, Nazaré, na beira do mar e de altos paredões rochosos. O tempo cinzento não ofuscava o charme das praias, dos barcos de pescadores ancorados na areia. No cume dos rochedos ainda se viam raras viúvas, inteiramente de preto, insensíveis ao vento frio, de cabeças cobertas, com os olhos esbugalhados voltados para o alto mar. Esperavam os maridos desaparecidos há anos, ou décadas, sob as águas.
O castelo de Óbidos abrigava cidadezinha entre as altas muralhas de proteção erguidas contra invasores de outros tempos. Construída em estilo barroco, a vila parecia de brinquedo, toda certinha, bem conservada, bem cuidada. Escolas, comércio, posto de saúde, bancos, serviços em geral, garantiam a relativa autossuficiência dos moradores. Caminhei por sobre as ameias da fortificação, observando o movimento da população nas casas e ruas estreitas.
continua...