...continuação
Ele me confidenciou detalhes apavorantes sobre a família dela. Uma delas denunciava que o pai dela, então
proprietário e senhor de escravos de fazendas em Angola, em terras doadas pela
ditadura portuguesa, costumava punir os negros escravos jogando-os em águas
coalhadas de crocodilos. Após o restante da família ter fugido do país durante
a guerra da independência do povo angolano, o mesmo permaneceu em Angola para
resgatar o máximo possível das riquezas usurpadas. E, durante a fuga em
aeronave particular, correu na pista de pouso para não ser capturado e julgado pelos
rebeldes.
Em Peniche, cidade de pescadores aos pés de escarpa
íngreme e em frente a conjunto de pequenas enseadas, estava frio, cinzento,
ventando forte.
Apesar das grosserias, broncas, maluquices, arrotos altos,
gritarias, meus anfitriões se desdobravam para me tratar bem. Não economizavam
generosidade e bondade. E embora eu tentasse recusar, fiquei com o quarto
principal do casal no apartamento de Caldas da Rainha, enquanto eles dormiram
em sofás improvisados na sala. Mas, para não perder o costume, os arrotos
escandalosos, as brigas, as gritarias, prosseguiam. E assistiam à televisão em
volumes altíssimos, mandando calar a boca de quem sussurrasse.
Obcecado pela ideia de nunca mais pagar impostos, ele tentou
duas vezes conversar ao telefone com o primeiro ministro de Portugal. Ninguém
atendeu as ligações e a irritação dele ultrapassou os limites.
À tarde, me despedi deles e embarquei em trem ao subúrbio
do Cacém.
Subi na composição no Cais do Sodré a Cascais. Em estação
intermediária, a Torre de Belém, construída no século XVI, envolvia pela
simetria, simplicidade e reduzidas dimensões. Perto dali, o Mosteiro dos
Jerônimos, alongado e bem conservado.
Dessa vez aberto, visita ao palácio da Pena em Sintra,
pelos interiores da moradia da monarquia até princípios do século XX. Quartos e
mais quartos, corredores, atmosfera e mobília pesada, cores sóbrias, falta de gosto.
O destaque ficou por conta do banheiro. A latrina imensa sustentada por pesados
blocos de madeira, a bacia menor, apontavam para a despreocupação pela higiene.
Nenhuma novidade diante das inúmeras doenças transmitidas aos índios
brasileiros durante as invasões portuguesas e as doenças entre os próprios
invasores.
O tempo sombrio impedia incursões pelas noites lisboetas.
Permaneci no apartamento deles me submetendo ao martírio diante da televisão.
Volume alto para acompanhar bingos e outras fábricas de ilusões. Os demais
programas também não animavam.
Em Malveiras da Serra, próximo a Cascais, em casa decorada
à moda do campo, encaramos o cozido a portuguesa, comida saborosa e pesada.
Várias pipas guardavam vinhos de diversos tipos. Bastava levar o copo, abrir as
torneirinhas e se servir à vontade.
Perambulamos pelas vilas de Anábida e Sesimbra. Localizada
em praia junto à escarpa alta, Sesimbra seduzia pelo conjunto pitoresco, a
despeito da infraestrutura demasiadamente turística.
Considerados ilegais pelo sistema, os vendedores
ambulantes do centro de Lisboa e arredores recolhiam rapidamente as mercadorias
e saíam em disparada ao avistarem a polícia. Nada diferente do que acontecia
nas grandes cidades brasileiras. Mas, também proibida, a venda de drogas
ocorria a céu aberto nas imediações da praça do Comércio.
Na região de Cascais e Estoril, ao longo calçadão na beira
da praia, nem o mau tempo impediu o prazer por horas. Os passageiros dos trens
de subúrbio de Lisboa raramente liam livros, preferindo deitar os olhos em revistas
fúteis e tabloides esportivos.
No cinema em complexo com cinco salas, lanterninhas
conduziam os espectadores na esperança de receber gorjetas. Vendedores com
bandeja de comes e bebes pendurada no pescoço circulavam enquanto não apagavam
as luzes.
No filme estadunidense sobre conflitos na máfia o destaque
ficou por conta das legendas em português de Portugal. Originalmente sérios e
tensos naquele tipo de filme, os diálogos tornavam-se bizarros e engraçados nas
traduções. Enquanto o personagem do submundo do crime mandava o outro calar a
boca, usando e abusando de gírias e palavrões em inglês, a legenda exibia a
frase “basta de parvoíces!”. Ou quando dois personagens saíam do banheiro e um
deles, procurando desqualificar o oponente, debochou afirmando em inglês algo
como “você usa o banheiro e nem puxa a descarga”, surgiu legenda “tu usas a
casa de banho e não pressionas o autoclismo”. Os presentes na sala se espantaram
com meus risos.
E o principal motivo de eu estar em Portugal ia de mal a
pior. Tentei por vários caminhos, sugeridos ou não, entrevistas para possíveis
empregos na área na qual eu tinha bastante experiência. E durante vários dias,
nos mais diversos lugares, sob as mais diferentes formas. A discriminação
velada se escancarava em cada visita ou comentário recebido.
Decidi viajar sozinho para me descontrair. Seriam umas
férias dentro das férias. Sem muito tempo disponível, optei pela Andaluzia espanhola,
retornando pelo sul de Portugal.
À noite embarquei na estação ferroviária de Santa Apolônia.
Consultava o mapa para me localizar de acordo com o nome da estação nas paredes
da plataforma. Ocupei o penúltimo vagão que parava longe da zona principal de
embarque e desembarque. Na primeira parada, a placa bem grande e clara: Retrete.
Tentei em vão localizar aquela cidade no mapa. Na parada seguinte, novamente o
nome Retrete escrito em placa metálica. E na estação seguinte, o mesmo
nome novamente. Dias depois vim saber que a palavra Retrete, em Portugal,
era simplesmente o mictório.
Após cruzar a fronteira da Espanha, desembarquei ao
amanhecer na cidade de Badajoz. Sob o frio terrível e neblina assustadora,
permaneci horas na estação ferroviária vazia, aguardando o segundo trem. Quase
congelei no minúsculo saguão.
Na nova composição pude apreciar as terras intensamente
cultivadas, com exceção das serras entre Mérida e Sevilha. Antes das montanhas
predominavam olivais de diversos tamanhos, frutas cítricas. Mas não se via alma
viva.
Em Sevilha no meio da tarde busquei o setor de informações
turísticas na rua, pois não havia nada na estação ferroviária. Mas se recusaram
a me ajudar alegando que não podiam recomendar nenhuma hospedagem
especificamente.
Caminhei até as imediações do centro onde encarei pensão
simples, sem banheiro no quarto. Não havia água quente nas torneiras ou nos chuveiros
do banheiro coletivo, apesar da recepção garantir que sim. O quarto era gelado
e pobremente iluminado.
Os espanhóis fumavam mais que os portugueses. Não havia pessoas
negras pelas ruas. Em vários bares e cafés, o aviso em letras enormes: “É
proibido cantar”.
No Alcázar conjunto de palácios e jardins
construído pelos árabes, a distribuição dos espaços, profusão de detalhes,
arabescos, água corrente para todos os lados, seduziam os visitantes, entre inúmeros
jardins extremamente bem arranjados.
Cidade grande, Sevilha contava com largas e longas
avenidas, amplo centro comercial, calçadões lotados de gente, sem falar na
envolvente parte antiga. Imensa e escura, a catedral Giralda impressionou pela
imponência, beleza, capelas internas.
As ruas do centro eram arborizadas de laranjeiras, repletas
de frutos naquele final de novembro, convidando a entrar nos bares e cafés para
tomar o suco natural deliciosamente azedo. Mas a preços salgados para a pouca
quantidade oferecida.
O bairro de Santa Cruz, com becos estreitos e sinuosos,
bodegas, construções antigas, representava o típico do sul da Espanha que
recebeu profundas influências árabes durante a ocupação moura de séculos atrás.
Comia o café da manhã nas proximidades da catedral, em
mesas ao ar livre, enquanto observava o vaivém dos espanhóis em direção ao
trabalho. Os adultos se vestiam de modo exageradamente produzidos, sobretudo as
mulheres. Abusavam tanto da maquiagem, penteados requintados, roupas
extravagantes, que chegavam a mudar as feições originais, parecendo que compareceriam
a cerimônias da monarquia.
O trânsito de Sevilha era pior e mais desorganizado que o
de Portugal. Não respeitavam nem mesmo as faixas de pedestres. Mas, felizmente,
assim como os portugueses, os espanhóis estavam livres, até então, das
repugnantes redes estadunidenses de comida rápida e sanduíches de carne de
minhoca. Predominavam bares, cafés e restaurantes tradicionais, que serviam
boas comidas e bebidas.
No final da tarde e começo da noite, os espanhóis entupiam
os bares e cafés para beber, petiscar, conversar. Barulhenta e animada, a cena
avançava pela noite. E só jantavam bem tarde. Mas minha fome chegava antes. Eu
entrava em restaurantes vazios de clientes e cheios de garçons encostados nas
paredes. Escolhia a melhor mesa, comia bem, era bem atendido.
O ônibus a Granada era mais apertado que os brasileiros e
mais desconfortável que os trens. A partir da cidade de Osuna a vegetação
tornou-se escassa. Havia mais areia nos solos. O relevo se acentuou. Pouco a
pouco surgiam vilarejos com casas brancas, aos pés de escarpas rochosas.
As duas estadunidenses antipáticas e racistas que viajavam
no ônibus fecharam a cara aos demais passageiros, só conversando entre elas.
Enquanto o motorista punha músicas flamengas para o deleite da maioria dos
passageiros, as duas se isolavam nos fones de ouvido para ouvir o previsível
lixo estadunidense.
E, após Loja e a pitoresca Archidona, surgiu Granada,
cidade aos pés da Sierra Nevada, a cadeia de altas montanhas com os
topos nevados.
continua...
Faz muito tempo que estive na Andaluzia.Mas a arte mourisca me deixou fascinada.
ResponderExcluirE por incrível que paraça, comi o pior bacalhau de minha vida em Lisboa.
A culinária europeia, tão modernizada e desfigurada nessas décadas de Europa, se manteve íntegra e saborosa no Brasil.
ResponderExcluirOs imigrantes mantiveram os ingredientes e modo de fazer de quando chegaram aqui.
As massas, os molhos, as pizzas, e o bacalhau, são alguns dos exemplos emblemáticos.
Não apenas porque mantiveram, mas também pela mistura de ingredientes e sabores nativos.
ResponderExcluirDesculpem discordar. Em Portugal come-se muito bem. Aliás, é um dos melhores destinos gastronómicos do mundo. Se calhar tiveram azar nos locais que escolheram.
ResponderExcluirO mesmo aconteceu comigo algumas vezes, durante o ano em que morei no Brasil. Mas não vou extrapolar e dizer que a cozinha brasileira não presta. Há de tudo (e eu tenho saudades de muitos dos vossos pratos).
Se voltarem a Portugal, terei o maior prazer em vos dar melhores indicações.
Um abraço
Ruthia d'O Berço do Mundo
Oi Ruthia, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirApesar de alguns dissabores, sobretudo na casa dos ex-sogros, onde se cozinhava muito mal, me empolguei com a culinária em Portugal. Tanto que elogiei os comes e bebes em vários momentos desses relatos.
Essa viagem ocorreu há muito tempo e foi menos de turismo e mais de reconhecimento de terreno.
Se um dia a Europa voltar ao meus planos de viagem, certamente Portugal estará incluído no roteiro.
Abraços e comente sempre!