sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Portugal e Espanha (parte 2/3)

...continuação
Ele me confidenciou detalhes apavorantes sobre a família dela. Uma delas denunciava que o pai dela, então proprietário e senhor de escravos de fazendas em Angola, em terras doadas pela ditadura portuguesa, costumava punir os negros escravos jogando-os em águas coalhadas de crocodilos. Após o restante da família ter fugido do país durante a guerra da independência do povo angolano, o mesmo permaneceu em Angola para resgatar o máximo possível das riquezas usurpadas. E, durante a fuga em aeronave particular, correu na pista de pouso para não ser capturado e julgado pelos rebeldes.
Em Peniche, cidade de pescadores aos pés de escarpa íngreme e em frente a conjunto de pequenas enseadas, estava frio, cinzento, ventando forte.
Apesar das grosserias, broncas, maluquices, arrotos altos, gritarias, meus anfitriões se desdobravam para me tratar bem. Não economizavam generosidade e bondade. E embora eu tentasse recusar, fiquei com o quarto principal do casal no apartamento de Caldas da Rainha, enquanto eles dormiram em sofás improvisados na sala. Mas, para não perder o costume, os arrotos escandalosos, as brigas, as gritarias, prosseguiam. E assistiam à televisão em volumes altíssimos, mandando calar a boca de quem sussurrasse.
Obcecado pela ideia de nunca mais pagar impostos, ele tentou duas vezes conversar ao telefone com o primeiro ministro de Portugal. Ninguém atendeu as ligações e a irritação dele ultrapassou os limites.
À tarde, me despedi deles e embarquei em trem ao subúrbio do Cacém.
Subi na composição no Cais do Sodré a Cascais. Em estação intermediária, a Torre de Belém, construída no século XVI, envolvia pela simetria, simplicidade e reduzidas dimensões. Perto dali, o Mosteiro dos Jerônimos, alongado e bem conservado.
Dessa vez aberto, visita ao palácio da Pena em Sintra, pelos interiores da moradia da monarquia até princípios do século XX. Quartos e mais quartos, corredores, atmosfera e mobília pesada, cores sóbrias, falta de gosto. O destaque ficou por conta do banheiro. A latrina imensa sustentada por pesados blocos de madeira, a bacia menor, apontavam para a despreocupação pela higiene. Nenhuma novidade diante das inúmeras doenças transmitidas aos índios brasileiros durante as invasões portuguesas e as doenças entre os próprios invasores.
O tempo sombrio impedia incursões pelas noites lisboetas. Permaneci no apartamento deles me submetendo ao martírio diante da televisão. Volume alto para acompanhar bingos e outras fábricas de ilusões. Os demais programas também não animavam.
Em Malveiras da Serra, próximo a Cascais, em casa decorada à moda do campo, encaramos o cozido a portuguesa, comida saborosa e pesada. Várias pipas guardavam vinhos de diversos tipos. Bastava levar o copo, abrir as torneirinhas e se servir à vontade.
Perambulamos pelas vilas de Anábida e Sesimbra. Localizada em praia junto à escarpa alta, Sesimbra seduzia pelo conjunto pitoresco, a despeito da infraestrutura demasiadamente turística.
Considerados ilegais pelo sistema, os vendedores ambulantes do centro de Lisboa e arredores recolhiam rapidamente as mercadorias e saíam em disparada ao avistarem a polícia. Nada diferente do que acontecia nas grandes cidades brasileiras. Mas, também proibida, a venda de drogas ocorria a céu aberto nas imediações da praça do Comércio.
Na região de Cascais e Estoril, ao longo calçadão na beira da praia, nem o mau tempo impediu o prazer por horas. Os passageiros dos trens de subúrbio de Lisboa raramente liam livros, preferindo deitar os olhos em revistas fúteis e tabloides esportivos.
No cinema em complexo com cinco salas, lanterninhas conduziam os espectadores na esperança de receber gorjetas. Vendedores com bandeja de comes e bebes pendurada no pescoço circulavam enquanto não apagavam as luzes.
No filme estadunidense sobre conflitos na máfia o destaque ficou por conta das legendas em português de Portugal. Originalmente sérios e tensos naquele tipo de filme, os diálogos tornavam-se bizarros e engraçados nas traduções. Enquanto o personagem do submundo do crime mandava o outro calar a boca, usando e abusando de gírias e palavrões em inglês, a legenda exibia a frase “basta de parvoíces!”. Ou quando dois personagens saíam do banheiro e um deles, procurando desqualificar o oponente, debochou afirmando em inglês algo como “você usa o banheiro e nem puxa a descarga”, surgiu legenda “tu usas a casa de banho e não pressionas o autoclismo”. Os presentes na sala se espantaram com meus risos.
E o principal motivo de eu estar em Portugal ia de mal a pior. Tentei por vários caminhos, sugeridos ou não, entrevistas para possíveis empregos na área na qual eu tinha bastante experiência. E durante vários dias, nos mais diversos lugares, sob as mais diferentes formas. A discriminação velada se escancarava em cada visita ou comentário recebido.
Decidi viajar sozinho para me descontrair. Seriam umas férias dentro das férias. Sem muito tempo disponível, optei pela Andaluzia espanhola, retornando pelo sul de Portugal.
À noite embarquei na estação ferroviária de Santa Apolônia. Consultava o mapa para me localizar de acordo com o nome da estação nas paredes da plataforma. Ocupei o penúltimo vagão que parava longe da zona principal de embarque e desembarque. Na primeira parada, a placa bem grande e clara: Retrete. Tentei em vão localizar aquela cidade no mapa. Na parada seguinte, novamente o nome Retrete escrito em placa metálica. E na estação seguinte, o mesmo nome novamente. Dias depois vim saber que a palavra Retrete, em Portugal, era simplesmente o mictório.
Após cruzar a fronteira da Espanha, desembarquei ao amanhecer na cidade de Badajoz. Sob o frio terrível e neblina assustadora, permaneci horas na estação ferroviária vazia, aguardando o segundo trem. Quase congelei no minúsculo saguão.
Na nova composição pude apreciar as terras intensamente cultivadas, com exceção das serras entre Mérida e Sevilha. Antes das montanhas predominavam olivais de diversos tamanhos, frutas cítricas. Mas não se via alma viva.
Em Sevilha no meio da tarde busquei o setor de informações turísticas na rua, pois não havia nada na estação ferroviária. Mas se recusaram a me ajudar alegando que não podiam recomendar nenhuma hospedagem especificamente.
Caminhei até as imediações do centro onde encarei pensão simples, sem banheiro no quarto. Não havia água quente nas torneiras ou nos chuveiros do banheiro coletivo, apesar da recepção garantir que sim. O quarto era gelado e pobremente iluminado.
Os espanhóis fumavam mais que os portugueses. Não havia pessoas negras pelas ruas. Em vários bares e cafés, o aviso em letras enormes: “É proibido cantar”.
No Alcázar conjunto de palácios e jardins construído pelos árabes, a distribuição dos espaços, profusão de detalhes, arabescos, água corrente para todos os lados, seduziam os visitantes, entre inúmeros jardins extremamente bem arranjados.
Cidade grande, Sevilha contava com largas e longas avenidas, amplo centro comercial, calçadões lotados de gente, sem falar na envolvente parte antiga. Imensa e escura, a catedral Giralda impressionou pela imponência, beleza, capelas internas.
As ruas do centro eram arborizadas de laranjeiras, repletas de frutos naquele final de novembro, convidando a entrar nos bares e cafés para tomar o suco natural deliciosamente azedo. Mas a preços salgados para a pouca quantidade oferecida.
O bairro de Santa Cruz, com becos estreitos e sinuosos, bodegas, construções antigas, representava o típico do sul da Espanha que recebeu profundas influências árabes durante a ocupação moura de séculos atrás.
Comia o café da manhã nas proximidades da catedral, em mesas ao ar livre, enquanto observava o vaivém dos espanhóis em direção ao trabalho. Os adultos se vestiam de modo exageradamente produzidos, sobretudo as mulheres. Abusavam tanto da maquiagem, penteados requintados, roupas extravagantes, que chegavam a mudar as feições originais, parecendo que compareceriam a cerimônias da monarquia.
O trânsito de Sevilha era pior e mais desorganizado que o de Portugal. Não respeitavam nem mesmo as faixas de pedestres. Mas, felizmente, assim como os portugueses, os espanhóis estavam livres, até então, das repugnantes redes estadunidenses de comida rápida e sanduíches de carne de minhoca. Predominavam bares, cafés e restaurantes tradicionais, que serviam boas comidas e bebidas.
No final da tarde e começo da noite, os espanhóis entupiam os bares e cafés para beber, petiscar, conversar. Barulhenta e animada, a cena avançava pela noite. E só jantavam bem tarde. Mas minha fome chegava antes. Eu entrava em restaurantes vazios de clientes e cheios de garçons encostados nas paredes. Escolhia a melhor mesa, comia bem, era bem atendido.
O ônibus a Granada era mais apertado que os brasileiros e mais desconfortável que os trens. A partir da cidade de Osuna a vegetação tornou-se escassa. Havia mais areia nos solos. O relevo se acentuou. Pouco a pouco surgiam vilarejos com casas brancas, aos pés de escarpas rochosas.
As duas estadunidenses antipáticas e racistas que viajavam no ônibus fecharam a cara aos demais passageiros, só conversando entre elas. Enquanto o motorista punha músicas flamengas para o deleite da maioria dos passageiros, as duas se isolavam nos fones de ouvido para ouvir o previsível lixo estadunidense.
E, após Loja e a pitoresca Archidona, surgiu Granada, cidade aos pés da Sierra Nevada, a cadeia de altas montanhas com os topos nevados.
continua...

5 comentários:

  1. Faz muito tempo que estive na Andaluzia.Mas a arte mourisca me deixou fascinada.

    E por incrível que paraça, comi o pior bacalhau de minha vida em Lisboa.

    ResponderExcluir
  2. A culinária europeia, tão modernizada e desfigurada nessas décadas de Europa, se manteve íntegra e saborosa no Brasil.
    Os imigrantes mantiveram os ingredientes e modo de fazer de quando chegaram aqui.
    As massas, os molhos, as pizzas, e o bacalhau, são alguns dos exemplos emblemáticos.

    ResponderExcluir
  3. Não apenas porque mantiveram, mas também pela mistura de ingredientes e sabores nativos.

    ResponderExcluir
  4. Desculpem discordar. Em Portugal come-se muito bem. Aliás, é um dos melhores destinos gastronómicos do mundo. Se calhar tiveram azar nos locais que escolheram.
    O mesmo aconteceu comigo algumas vezes, durante o ano em que morei no Brasil. Mas não vou extrapolar e dizer que a cozinha brasileira não presta. Há de tudo (e eu tenho saudades de muitos dos vossos pratos).
    Se voltarem a Portugal, terei o maior prazer em vos dar melhores indicações.
    Um abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    ResponderExcluir
  5. Oi Ruthia, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Apesar de alguns dissabores, sobretudo na casa dos ex-sogros, onde se cozinhava muito mal, me empolguei com a culinária em Portugal. Tanto que elogiei os comes e bebes em vários momentos desses relatos.
    Essa viagem ocorreu há muito tempo e foi menos de turismo e mais de reconhecimento de terreno.
    Se um dia a Europa voltar ao meus planos de viagem, certamente Portugal estará incluído no roteiro.
    Abraços e comente sempre!

    ResponderExcluir