...continuação
Depois do desembarque na suja e desorganizada estação
rodoviária de Granada, em meio a pedintes, caminhei pela avenida principal e me
hospedei no albergue da juventude.
A vida noturna da cidade se agitava naquela noite de
sábado, nas dezenas de bares, cafés, restaurantes, pubs, em cuja frequência
predominava os adolescentes. As meninas se pintavam e se produziam de maneira
tão exagerada que mais pareciam vedetes de cabaré, rindo e falando
escandalosamente alto.
A cidadela de Alhambra, construída pelos árabes no
século IX, complexo de castelos, palácios, igrejas, jardins, fontes, bosques,
se erguia próximo às montanhas. Durante séculos, Granada tornou-se a principal
cidade árabe da península ibérica. A cidadela encantava pelas salas, pátios,
fontes de água, arabescos, detalhes instigantes, colunas, água corrente em
canais e valetas, madeira e pedra talhadas com desenhos e escrita árabe. Mais
jardins, em formato de labirinto, e muito verde surgiam no caminho ao palácio
de Generalife.
Albaicin, o antigo bairro árabe e invariavelmente pintado
de branco, com becos e ladeiras sinuosas e estreitas, abrigava as camadas
pobres e médias da população. Dali, o Alhambra e a Sierra Nevada coberta
de neve mais ao fundo.
Os espanhóis jogavam lixo nas ruas, ignorando as lixeiras
disponíveis. O mesmo acontecia nos vagões de trem, onde fumavam mesmo com os
avisos de não fumar afixados nas paredes do trem e nos bilhetes de viagem.
Desembarquei debaixo de chuva na estação ferroviária San
Bernardo em Sevilha. Diversas pessoas assediavam com propostas de pensões e
hospedarias baratas, lembrando a Bolívia e o Peru. Cruzei o bairro antigo de
Santa Cruz e me perdi feio. À medida que tentava sair dos labirintos, mais eu
me perdia nos becos, vielas. Mas me deliciei com toda aquela história ao meu
lado.
As linhas de trem entre Sevilla, Ayamonte e o sul de
Portugal tinham sido canceladas. A estação rodoviária de Damas em Sevilha
conseguia a triste proeza de ser pior que a de San Bernardo. Ainda mais suja,
apertada, desorganizada. Não havia plataformas de indicação, nada. Qualquer
terminal rodoviário dos interiores distantes do Brasil poderia ganhar fortunas vendendo
consultoria à Espanha de como construir, organizar e administrar uma estação
rodoviária decente.
Não havia locais fixos das partidas dos ônibus. Os
veículos surgiam do nada e quase atropelavam os passageiros, envenenando-os com
os escapamentos desregulados. O setor de informações daquele hospício
desinformava. Mal encarados e mal humorados, os balconistas nada informavam,
nada sabiam. Mas acabei encontrando a explicação para tanta incompetência. Aquele
local fedido, as linhas, os ônibus, motoristas e funcionários em geral,
pertenciam a empresas privadas. Se os trens estatais, mais eficientes e mais
baratos, estivessem em funcionamento, os passageiros não sofreriam para
garantir o lucro fácil às empresas privadas.
O trajeto durou cerca de três horas, e passou por Huelva,
cidade espanhola na beira de praia plana, suja e sem atrativos. O relevo
aplainado contava com plantações de oliveiras e laranjeiras. A pobreza estava em
todos os lugares. Desembarquei na imunda cidade espanhola de Ayamonte. Cruzei
de barco a fronteira internacional e botei os pés na cidade portuguesa de Vila
Real de Santo Antônio, dando impressão que eu tinha entrado na civilização.
Plana, mais organizada e mais limpa que a rival espanhola
do outro lado do rio, Vila Real contava com traçado quadriculado das ruas,
quase todas iguais e sem praças ou áreas verdes, somente o longo calçadão na
beira do rio. O conjunto arquitetônico, no qual as paredes e as entradas das
casas ficavam na beira da calçada, lembrava cidadezinhas dos interiores do
Brasil.
Anoiteceu e a cidade fantasma mergulhou em silêncio.
Ninguém nas ruas. Todos deitavam os olhos nos televisores, inclusive nos raros
bares e restaurantes abertos. Comi algo parecido com enguias ensopadas em
restaurante fúnebre, onde os garçons e os poucos clientes se hipnotizavam com
olhares fixos voltados para o televisor.
Os espanhóis invadiam a cidade portuguesa diariamente para
comprar produtos isentos de impostos. Eram lojas ou ambulantes que expunham
produtos dos mais variados tipos, couros legítimos ou não, roupas, bugigangas
inúteis, sobre pedaços de pano estendidos no chão. O flexível comércio da
fronteira aceitava escudos portugueses e pesetas espanholas.
Porta de entrada para o Algarve, a praia de Monte Gordo, a
cinco quilômetros do centro, naquela baixa temporada com frio e céu cinzento,
era procurada por turistas do norte da Europa, que, de bermudas e camisetas, se
deliciavam com o tórrido calor diurno de 10 graus.
No posto de informações turísticas, entre um e outro atendimento
aos turistas estrangeiros, aproveitei para conversar com o português e a assistente.
Mas logo me cobriram de perguntas sobre o tema predileto de Portugal, as
telenovelas brasileiras. Não lhes interessava saber sobre o Brasil, os
brasileiros, a cultura, a geografia. Estavam obcecados pelas telenovelas,
apenas pelas telenovelas já exibidas no Brasil. Queriam a todo custo saber o
que aconteceria no final de cada uma delas ou, pelo menos, nos próximos
capítulos. De nada adiantou eu declarar que nunca assistia às telenovelas. Os
olhos de ambos brilhavam na ansiedade das respostas que eu não trazia. Por fim,
resignados, desistiram de implorar sobre as telenovelas. E desistiram também da
minha presença. Eu não possuía mais nada que lhes interessasse.
A viagem de ônibus a Lisboa foi regada a serviço de bar,
música ambiente e filmes do tipo Rambo III, ilustre representante do
lixo oficial estadunidense. As janelas permaneciam trancadas e o ambiente
abafado. Os passageiros portugueses fumavam apesar da proibição, enevoando de
nicotina o ambiente.
Na paisagem do lado de fora, o destaque ficou por conta de
pitoresca cidadezinha de Tavira, margeada pelo rio, as pontes de pedra, o
casario antigo formando conjunto harmônico e pitoresco. Senti vontade de sair
pela janela, ficar na cidade, fugir do ambiente asfixiante e cancerígeno do
interior do ônibus da empresa privada.
Grande parte do centro antigo de Lisboa carecia de
restauração. Comentários diversos garantiam que grandes empresários da
especulação imobiliária apostavam no agravamento do estado das construções,
torciam por desmoronamentos “naturais”, criavam fatos consumados. Depois
bastava limpar a área e construir novos prédios. E, nos bairros, os mesmos
empresários construíam edifícios padronizados e tristes.
Almoço tardio com amigos em restaurante típico
português. Pediram Sapateiras,
caranguejos imensos dos mares profundos da costa africana. Somente o corpo
central do dito cujo ocupava todo um prato normal. Sem falar nas patas grandes
e pequenas. O miolo foi servido ricamente temperado e, por mais que eu tentasse
esvaziá-lo, a saborosa carne não acabava nunca. Delicioso! Para acompanhar,
nada melhor que garrafas de vinho verde branco.
Em sala de cinema em Lisboa, minutos antes do intervalo,
uma espectadora começou a esbravejar contra o homem sentado próximo. Alegava,
aos gritos que o indivíduo lhe passara a mão na perna. A sala inteira lançou os
olhares e os ouvidos naquela direção. O tal tarado se levantou e se retirou.
Permanecemos bastante na Feira Popular, ambiente antigo e
agradável, cheio de atrações, brincadeiras, parques de diversão, comes e bebes.
Passamos boas horas em barraca simples que servia gigantescas porções de
sardinhas assadas e fatias de porco frito.
Nas estradas ao norte de Portugal, passamos pelas já
conhecidas Fátima e Boleiros. O diferencial ficou por conta de finas camadas de
neve acumulada. O inverno se aproximava oficialmente nas imediações da serra da
Eira. Mergulhando novamente na maravilhosa culinária portuguesa, me empanturrei
do Leitão à Bairrada, prato típico da região.
Entramos muito tarde na fascinante cidade de Coimbra, quase
sem luz natural, para apreciar o centro antigo, repleto de ladeiras. Depois, as
bucólicas estâncias de Cúria e Luso, mais voltadas a tratamentos hidrominerais.
O voo me trouxe a São Paulo em meados de dezembro.
Aquela viagem, mais de levantamentos do que de turismo,
chegava ao fim. E sem registros fotográficos. Os slides foram inteiramente danificados durante a revelação. As
imagens ficariam apenas na mente, o quanto minha memória as conservasse.
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