quinta-feira, 26 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 7/7)

...continuação
O hotel, ruim, velho e decadente, lembrava hospital velho ou reformatório para menores. Larguei as coisas sobre a mesa quebrada do quarto e desabei na cama de cansaço, sem ao menos tomar banho ou escovar os dentes.
Levantei para o café da manhã. Em local sujo, escuro e triste, me deparei com duas funcionárias do hotel, ambas de aspecto mofado e sombrio. O que serviam era simplesmente deplorável. Pão azedo, mamão duro, suco colorido de açúcar com água. Empurrei goela abaixo o que deu para empurrar e saí às ruas para procurar desesperadamente outro lugar.
Em poucos minutos encontrei um hotel melhor aparentado, com empregados sorridentes, mesa do café da manhã animadora, quarto com cama de casal e muita claridade. Sem hesitação, voltei ao reformatório, peguei minhas coisas, paguei a diária ao funcionário morto vivo e me transferi. Finalmente tomei banho, belisquei o café da manhã e pude descansar.
Explorei Altamira na procura da área de lazer e restaurantes. Caminhei por longas e intermináveis avenidas sem atingir a margem do rio. Altamira é plana, moderna, sem prédios altos, com muito movimento em oficinas, lojas de autopeças e manutenção de maquinários em geral. Embora formada originalmente na beira do rio, cresceu distanciando-se dele, através de extensas artérias e bairros novos.  Ela vivia de serviços e como base de apoio regional, daí a grande quantidade de caminhões em circulação.
Mais de uma hora depois e após voltas e mais voltas, tentativas e erros, enfim entrei na parte mais antiga da cidade, a orla e o rio. Desci até a margem, na beira da água e, com muita emoção, molhei as mãos e o rosto nas águas escuras e azuladas do famoso rio Xingu.
As águas do rio Xingu mantinham a tonalidade azulada, mesmo em dia nublado. Em frente à cidade, e ao longo de imensa curva, havia uma grande ilha coberta de vegetação espessa, em cujo lado oposto apareciam praias na estação seca. Atrás da ilha, bem ao fundo, podia ser vista a margem direita do rio.

Assim como em outras partes da cidade, a orla também estava sendo reformulada. Sem ser muito extensa, era mais antiga e simpática que nas outras cidades. Havia o despretensioso e bonito gramado, que corria paralelo ao rio, ornado de árvores entre as duas pistas de pedestres. Do outro lado da rua, casas, poucos bares e restaurantes. Entre a murada e o rio, ainda restavam vegetação, barcos pequenos, palafitas, bares de madeira, pontos de prostituição decadente.
Subi na balsa que atravessava o rio Xingu até a margem direita. Vários caminhões transportavam seres humanos, amontoados na carroceria junto de outros objetos, como se fossem bois. Trabalho escravo? O motorista se incomodou quando os fotografei.
Na margem direita, praias submersas pelas águas do rio Xingu, faixas de pedras e corredeiras também praticamente cobertas pelas águas. Botecos de madeira com mesas de sinuca, o início de estrada empoeirada e nada mais. Com o corpo parcialmente dentro das águas do rio e utilizando-se da bancada de lavagem de roupas, uma jovem abria e limpava diversos peixes frescos. As sandálias estavam sobre a bancada e protegida das águas.
Em importante avenida do centro de Altamira, meia dúzia de caminhões armou bloqueio em frente às sedes regionais do INCRA e IBAMA. Eram madeireiros, indignados com a fiscalização daqueles órgãos que impediam que destruíssem a floresta para ganhar dinheiro. E os madeireiros ainda ousavam afirmar que aquela situação gerava desemprego. De quem? Dos trabalhadores em regime de escravidão?
Esses madeireiros bloquearam todos os acessos rodoviários de entrada e saída de Altamira. E o crime desfrutava do apoio da mídia burguesa. Como sempre. A televisão e jornais mostravam a cidade bloqueada, os latifundiários e empresários locais apoiando o movimento. A maioria da cidade não concordava, mas nenhuma opinião contrária era exibida, assim como nada a respeito do desabastecimento da cidade, sobretudo de gêneros de primeira necessidade, como alimentos e remédios.
Havia também a ameaça de protestos de empresários do comércio, do agronegócio, latifundiários, aliados aos madeireiros, em Redenção e São Félix do Xingu, sudeste do Pará. O nobre motivo? O governo federal movia campanha contra o trabalho escravo na região. E os modernos donos do capital eram contra.

Quando os trabalhadores sem terra reivindicam a reforma agrária, protestam ou ocupam terras improdutivas para plantar alimentos, a mídia burguesa os trata como baderneiros e contra a modernidade, além de apoiar ou se omitir diante da brutal repressão dos latifundiários e policiais.
Na tarde de deixar Altamira rumo a Marabá, o ônibus provisório levou até o bloqueio dos ricos madeireiros. Cada passageiro foi obrigado a carregar as próprias bagagens e caminhar por entre caminhões e máquinas dos criminosos, sorridentes com a situação. Cerca de cem metros depois, ao anoitecer, embarque no ônibus definitivo para enfrentar mais um trecho da transamazônica.
Quase na entrada de Marabá, o ônibus cruzou o rio Tocantins através de obra megalomaníaca. Ponte exageradamente imensa e alta. As dimensões chocavam os olhos e dava a impressão de se entrar em outro planeta.
Marabá é estranhamente dividida em três pedaços separados, não contíguos. A Marabá pioneira ou velha Marabá, a Nova Marabá construída depois da enchente da década de 1970, e a Cidade Nova. Essa separação forçada e mal feita dificultava a circulação. Era praticamente impossível, e até perigoso, caminhar entre elas pelos matagais ou avenidas sem acostamento. O comércio maior e o lazer se concentravam na Cidade Nova. A orla fluvial, o encontro das águas dos rios Itacaiúnas e Tocantins, bancos e parte do comércio estavam na Marabá Pioneira. A rodoviária, cercada de pequenos hotéis, raros botecos, avenidas e o vazio pertencem à Nova Marabá, cujos endereços compõem-se de Folha XX, Quadra YY, Lote ZZ e mais alguma coisa. Eram cerca de três a quatro quilômetros de pontes e avenidas sem acostamentos. Desolador. Em diversos estabelecimentos comerciais estavam afixados cartazes de campanha contra a prostituição, sobretudo a infantil.
Subi em ônibus urbano e desci na Velha Marabá, ou Marabá Pioneira. Cidade com cara de cidade. Pequena, com ruas estreitas, casas antigas, avenida principal simpática com canteiro central arborizado, inúmeros estabelecimentos comerciais em ambos os lados. Havia movimento, vida, sorrisos. À medida que se avançava dentro da cidade, ela se estreitava, as ruas paralelas gradualmente desapareciam, restando apenas a avenida central que se transforma em rua estreita, até o fim, local de encontro das águas dos rios Itacaiúnas e Tocantins em ponta alongada de areia, lixo e abandono.
Comprei a passagem para Conceição do Araguaia em meio à disputa entre os vendedores das empresas de ônibus. A primeira parada do ônibus foi em Eldorado dos Carajás, zona do massacre de 19 trabalhadores rurais sem terra em 1996. O crime foi cometido pela polícia militar paraense a mando de latifundiários e empresários do agronegócio. Os culpados permaneciam soltos e impunes. A paisagem das imediações era desoladora, desmatada, vazia, improdutiva, sem nada plantado. Eram enormes latifúndios usados apenas para especulação e poder. As cidades, pobres, feias, sujas e mal cuidadas. A miséria e o desemprego explodiam em cenas constantes de violência e assassinatos.

A estrada entre Xinguara e Redenção estava em péssimas condições, com muitos buracos e irregularidades. Neste trecho, e no ramal para São Félix do Xingu, ocorrem frequentemente assaltos, diurnos e noturnos, a ônibus e demais veículos. Os assaltantes, após interditarem a pista, entram armados no ônibus, obrigam aos gritos todos a se despirem para evitar que escondam valores sob as roupas, recolhem tudo e, eventualmente, os agridem. A violência desorganizada dos pobres sempre nasce da violência organizada dos capitalistas.
Chegada à noite em Conceição do Araguaia. Precisei acordar o único taxista disponível naquela hora para me levar ao distante centro da cidade. Pedi para ele me sugerir um hotel qualquer situado perto do rio Araguaia. Desembarquei em frente ao hotel escuro, fechado e completamente vazio. Sentada no sofá, a dona demonstrava contrariedade pela minha chegada. Ela nem desgrudou do sofá. Instalei-me em quarto simples, barato, caindo aos pedaços, com janela quebrada, vazamento na pia. Segundo as palavras da moribunda, o café da manhã era pequeno e não vinha quase nada.
Saí para dar uma volta, beber e comer alguma coisa. Logo encontrei local praticamente vazio e na beira do rio. O atendimento era simpático e eficiente, a comida razoável e a brisa vinda do rio Araguaia refrescante. Situação ideal para refletir sobre os perigos pelos quais passei durante esses dias e noites. A possibilidade de eu retornar ao sudeste do Pará era praticamente zero.
Não à toa eu era o único hóspede do lastimável hotel. O sifão da pia do banheiro era uma avenida. A água da torneira entrava pelo ralo, caia diretamente no chão e espirrava nos pés. A janela quebrada do quarto dava para os fundos do lava-rápido e alguns bares. Os mosquitos, livres para invadir o quarto, me trucidaram durante a noite. As paredes estavam rachadas e com a pintura descascando. O café da manhã correspondeu às expectativas tenebrosas dadas pela dona. De bom mesmo, somente a atraente cozinheira que, sorrindo e com lindos olhos brilhantes, me passou a bandeja pela escotilha da cozinha. Encontrei logo outro hotel, mais confortável e bem conservado.
A cidade estava vazia e parada. Até crescia mato nas calçadas. Os habitantes eram sorridentes e simpáticos. Descobri gostoso restaurante típico, simples e barato. A fome era grande e detonei vatapá com camarão, arroz e jambu, suco de cupuaçu com leite e, para arrematar, açaí na tigela com tapioca.
O entardecer na beira do rio Araguaia foi belíssimo. A luz alaranjada iluminava fracamente o grupo de amigos jogando vôlei de praia. Havia duas ilhas em frente à cidade e, mais ao fundo, na margem direita, o estado de Tocantins.

No dia da partida de Conceição do Araguaia rumo a Palmas, logo ao chegar na estação rodoviária, notei a aglomeração em frente ao ônibus vindo de Belém. Pessoas conversavam com os passageiros. Um senhor ligava do orelhão e pedia que lhe mandassem dinheiro. As faxineiras da estação comentavam que foi mais um. O ônibus havia sido assaltado horas antes, nas proximidades de Redenção. Em pânico, os passageiros evitavam falar e entrar em detalhes.
Embarquei no ônibus quase vazio. Quinze quilômetros ao sul da partida a estrada cruzou a ponte sobre o rio Araguaia. Do outro lado do rio, no estado de Tocantins, predominava o cerrado, raras serras e relevo ondulado. Fazendas de gado, vilarejos e cidades pequenas. O tráfego aumentou intensamente na rodovia Belém/Brasília e os buracos apareciam aos montes. A chuva fina e constante acompanhou a maior parte do trajeto. As cidades pareciam mais organizadas, com bons terminais rodoviários, lanchonetes limpas e banheiros gratuitos.
Já bem instalado em Palmas, mas faminto, saí para procurar algo para jantar. Como em cidade planejada não havia centro com as características habituais, a alternativa era sair a esmo no sentido do movimento. Encontrei outra longa e larga avenida no lado oposto da quadra onde me hospedara e lá se estendiam bares e restaurantes. Ocupei mesa na calçada e matei a fome com comida acima da média.
Tentei caminhar depois do jantar. Nada encontrei de interessante entre a infinidade de avenidas, rotatórias, gramados, jardins e pouquíssima iluminação. Muitas quadras, provavelmente comerciais, inteiramente às escuras, silenciosas e desertas. Nada acolhedor.
Durante o dia não havia sombras para se esconder do sol escaldante do cerrado em Palmas. O planejamento da cidade a deixou com muitos espaços vazios e as árvores ainda estavam pequenas. Caminhei pela região da sede do governo estadual, com prédios públicos padronizados e repetidos, cercado por mais ruas e avenidas. Mais adiante, concentrações de atividades comerciais, bancárias e de lazer bastante movimentadas e separadas por imensos vazios de grama e asfalto.
Sem semáforos, os cruzamentos se davam por rotatórias, nas quais a travessia de pedestres ficava difícil nos horários de pico. Mais uma cidade planejada e construída para automóveis. Os pedestres que se virassem como pudessem. As áreas de estacionamento ficavam entre as avenidas e os prédios. Ônibus grandes e pequenos cruzavam as principais vias. Mapas desatualizados estavam afixados em cruzamentos. A leste, depois do final da zona urbana, serras alongadas e com tonalidade azulada. O aspecto dos habitantes variava muito e ouviam-se sotaques de várias regiões brasileiras. Paguei caro pelo livro Os Ratos, de Dyonélio Machado, em sebo da área central.
Comprei a passagem de volta para São Paulo no único e inconveniente horário das 7h. Teria que acordar cedo e perder o café da manhã.
Na manhã seguinte esperei muito tempo no ponto de ônibus urbano. Dois rapazes, vestindo roupas sociais, cambaleavam de bêbados nas imediações. Nem notaram olhares de censura dos trabalhadores à espera do transporte.
Cheguei na estação rodoviária em cima da hora, comprei comes e bebes na lanchonete local e embarquei. O ônibus partiu no horário com apenas quinze ocupantes. Cada passageiro sentou nas duplas de assentos e ainda sobraram lugares. Ninguém acompanhado de ninguém. Ninguém conversava com ninguém. O quase sempre supérfluo ar condicionado estava muito gelado. Solicitei ao motorista que aliviasse e educadamente fui atendido.
A marginal Tietê, como sempre, estava congestionada na chegada a São Paulo.
Nem bem entrei em casa, em dezembro, e já comecei a planejar a próxima exploração à Amazônia, mais precisamente ao vale do rio Juruá.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 6/7)

...continuação
O rio Amazonas estava calmo próximo às margens. Porém, quando o barco cruzava a largura do rio, trocando de lado, as águas se agitavam, fazendo o barco balançar bastante.
Três colegas de percurso resolveram comprar vinho de quinta categoria durante a parada na cidade de Prainha. Deixaram no congelador do bar para tomarmos após o jantar. Não dava para engolir. Mesmo gelado, era doce e enjoativo. Eles continuaram a beber, enquanto outros apareciam ali no piso superior com garrafa de conhaque vagabundo. Os goles e o papo animado corriam soltos sob o céu estrelado. As luzes da cidade de Monte Alegre logo apareceram no horizonte, enganando quanto à proximidade. A chegada só ocorreu duas horas depois. A bebedeira exagerada continuava. Saí de fininho. A tripulação, sempre séria e comportada, notou, não gostou e deu fim na festa.
Esperei todos desembarcarem em Santarém. Arrumei minhas coisas, engoli o café da manhã e me despedi da tripulação. Caminhei até o hotel de sempre. Ainda deu tempo de aproveitar o café da manhã.
Os banheiros dos quartos desse hotel eram um caso à parte. A pia estava montada sobre largo gabinete de cozinha de aço. A torneira, de plástico, pequena, torta, muito junto à parede e longe da cuba, espirrava água para todos os lados. A porta do box nunca fechava totalmente. A água do chuveiro escorria para várias direções, menos para o ralo, pois a inclinação do piso estava ao contrário. A descarga, quando acionada, vazava no chão e o tapete encharcava constantemente.
Havia feira cultural popular na praça à beira rio e mais adiante do centro de Santarém. Diversas comunidades, vilarejos e aldeias da região estavam representados com barracas, comidas típicas, produtos locais. Havia até palco para as exibições noturnas de danças, músicas folclóricas, contadores de piadas, declamações de poesia e outras manifestações artísticas. Muito tacacá e gente simpática.

Eis algumas pérolas de nomes paraenses que ouvi: Wenes Cindely, Wenes Kimberly, Medellen, Andrely Lohana, Leyen Tendiohana, Rayla Ohana, Welesson. Eram todos reais e vivos. O argumento, além da “beleza”, consistia em serem únicos, evitando o risco de vizinhos usarem a mesma e brilhante ideia.
Dia solto na praia da Pajuçara, ao sul de Santarém. Era grande, em formato de baía e com morro em toda a extensão. Havia muito verde, areias brancas, as águas verdes do rio Tapajós, sombra à vontade para descansar. Mesmo no feriado, pouca gente e muito espaço. A temperatura da água agradava, sem sal ou correnteza.
Em nova investida a Alter do Chão no dia seguinte, a praia estava bem mais cheia que da última visita. Achei melhor caminhar em outras direções e explorar partes mais tranquilas. Bastava sair do miolo e dos bares que a paz voltava a reinar. Mais baías praticamente sem alma viva, só praias de areias brancas, águas esverdeadas, os morros e a sombra das árvores. Antes de retornar a Santarém, ainda detonei a caldeirada de tambaqui com caipirinhas em restaurante simples perto das águas do rio.
O barco para Itaituba era inferior aos demais utilizados, apertado, sem área de lazer, sem bancos ou cadeiras. Antes da partida houve muita demora na fiscalização da capitania dos portos. Depois, o comandante deu as boas vindas aos passageiros, passou instruções de limpeza, segurança, o que podia e o que não podia fazer. Entre as proibições, “namoro explícito” e “mais que um adulto na mesma rede”. O único chuveiro masculino disponível provocava longas filas de espera. No bar minúsculo da popa, lá estava a maldita televisão.
Com apenas três paradas rápidas para embarque e desembarque, a viagem de apenas uma noite e uma manhã guardou paisagem com muita névoa e falta de contrastes. O amplo rio Tapajós oferecia colinas e serrotes em ambas as margens. Ilhas e longas praias surgiam eventualmente. Os botos e tucuxis saltavam acima das águas do rio. Os focos de queimadas e áreas desmatadas aumentavam em quantidade à medida que o barco se aproximava de Itaituba. Entre os passageiros do barco, vários rostos sulinos e pessoas envolvidas com madeireiras.
Era grande o fluxo de caminhões, pessoas, cargas e madeira em Itaituba, situada no cruzamento entre a rodovia transamazônica e o rio Tapajós. Paranaenses e gaúchos não faltavam por ali. A vida noturna se concentrava na rua à beira rio. Bares, restaurantes e barraquinhas, tudo muito simples. Perto do acesso à balsa o nível despencava e predominava a frequência de putas, garimpeiros e afins.
Em frente ao restaurante de melhor aparência, estacionavam caminhonetes e delas saiam paranaenses, capixabas e demais sulistas. Todos com aquele jeitão de fazendeiros, ou invasores de terras, com calça justa, cinturão e botas. Se sentavam nas mesas da calçada e logo as meninas, ainda menores, circulavam por ali oferecendo os corpos. O japonês paranaense negociou com uma delas e saíram de caminhonete, a fim de completar o programa em alguma beirada de rio. A ingenuidade das cidades fluviais da Amazônia ficara para trás. Ali, as rodovias traziam o progresso branco e a modernidade capitalista.
Mesmo nas ruas situadas longe da margem do rio, para onde a cidade mais crescia, a atmosfera cheirava a perigo. Havia algo suspeito no ar e no comportamento dos habitantes. As mulheres esbanjavam beleza e charme, além de sensualidade perigosa. Aquele convite para se meter em boas encrencas. A cada sorriso ou olhar mais diferenciado pressentia-se o risco. A incrivelmente sensual recepcionista do hotel, na verdade sócia ou parenta dos donos, me lançava olhares, sorrisos e frases insinuantes, enquanto a aliança brilhava no dedo da mão esquerda.
Inúmeras lojas de compra de ouro espalhavam-se pelo centro da cidade, amplas, vazias, com diversas balanças e inúmeros funcionários. Com a queda da produção do ouro, o garimpo na região do alto Tapajós estava em franca decadência e os garimpeiros migravam para o Amapá, Guiana Francesa e Suriname.     
À noite as barracas e bares perto do rio se agitaram e a prostituição, inclusive infantil com meninas de menos de 15 anos, rendia bons programas. As garotinhas surgiam sozinhas e logo se juntavam às mais experientes. Sentavam-se nos bares e restaurantes a fim de garfarem os clientes em potencial, prósperos empresários no ramo de madeiras, serrarias e monoculturas, invariavelmente chegando em imensas caminhonetes. Entre eles, estrangeiros também. Parte do dinheiro obtido com a destruição da Amazônia os tais empresários gastavam na prostituição infantil. De um lado o agronegócio de exportação enriquecendo ínfima minoria, de outro, a miséria e o abandono envolvendo a imensa maioria.
Acordei bem cedo e ainda consegui aproveitar o abundante e delicioso café da manhã do hotel. Já estava no ponto do micro-ônibus antes do horário previsto da saída para Altamira. Como não havia fiscalização sobre aquele tipo de transporte não oficializado, o motorista esperou encher e só pegamos a balsa uma hora depois. E ainda tivemos que pagar a passagem da balsa. Tentei iniciar a reclamação, mas, sem aliados, desisti.

Foram dezessete horas de viagem desconfortável para vencer o percurso da rodovia transamazônica, não pavimentada, até Altamira. A maioria da bagagem amontoava-se pelo corredor estreito e curto. Com mais passageiros em pé, não havia como evitar o esmagamento interno. Escolhi assento individual e na primeira fileira. Meus joelhos chocavam-se constantemente com a barreira na frente.
O motorista, logo no início da viagem, avisou a todos sobre sacos plásticos disponíveis para o caso de alguém passar mal. A janelas, travadas, nunca abriam. O ar condicionado permanecia ligado, apesar dos protestos gerais. Não demorou muito para os saquinhos serem utilizados e, assim que enchiam, eram entregues ao ajudante do motorista. Ele simplesmente abria a porta do ônibus e os soltava na estrada. Ultrapassaram de dez os casos de enjoos e preenchimento dos saquinhos, de homens, mulheres, crianças, idosos.
O relevo da paisagem era um sobe e desce danado. A estrada cortava perpendicularmente toda a drenagem, rios, igarapés encachoeirados com pedras, corredeiras e vales profundos. As pontes, sempre de madeira, estavam podres. A estrada estava cheia de buracos e irregularidades na terra. A visão das ondulações da estrada no horizonte, aliada à sinuosidade do trilho marcado pelo caminho dos veículos, era bela e impressionante. Emocionavam também as lagoas de águas escuras, as plantas circulares e flutuantes, os buritizais com imensas palmas.
Na segunda metade da viagem, pouca lama, poças d’água e trechos escorregadios. E as chuvas apenas ameaçavam começar. Muitas partes estreitas onde mal cabiam dois veículos, obrigando-os a quase parar. Ali a floresta estava presente até as margens da rodovia e o aspecto bruto fascinava. Mas infelizmente não era a regra. Quase tudo devastado, cortado e queimado. Apenas no fundo do horizonte se notava, quando muito, a linha das árvores.
Inúmeros caminhões transportavam enormes toras de madeira. Na pequena cidade de Uruará, gigantesca serraria e outra olaria expeliam enormes quantidades de fumaça por altas chaminés, mais parecendo reatores nucleares.
As cidades situadas nas margens da estrada eram feias, empoeiradas, desleixadas. Apenas depósito de gente. Funcionavam como base para atacar a floresta. Rostos sulinos abundavam na região. Nas paradas vendiam-se passagens rodoviárias para outras cidades do Pará e, pasmem, para Santa Rosa no Rio Grande do Sul. Na vila de Placas a escola de ensino fundamental levava o nome de Melvin Jones.


Anoiteceu e a escuridão serviu como prenúncio macabro da próxima cidade, com o nome de, com o perdão da palavra, Medicilândia. Em sintonia com o nome, a cidade, além de miserável, suja e podre, situava-se em região com alto índice de assaltos a veículos em geral. Os caminhões nunca circulavam sozinhos, mas sempre em comboio de dois ou três. 
As poucas paradas na beira da estrada, sempre ao sabor do humor do motorista, eram nojentas e sem banheiros. Para urinar a saída era encontrar muros, becos ou locais escondidos. Comer nesses lugares somente para os sem apego à vida. Depois de engolir a refeição, o motorista saía pelas ruas à caça de mais passageiros para se espremerem dentro do micro-ônibus.
Cheguei em Altamira no meio da madrugada. A cidade estava deserta nas imediações da estação rodoviária. Por ser transporte clandestino, o micro-ônibus apenas encostou para o desembarque antes de seguir para o destino final, a cidade de Marabá, muitas e muitas horas adiante. Os taxistas se aproximaram e me indicaram rua com hotéis ali perto.
Coloquei a mochila nas costas e caminhei pela rua completamente vazia na madrugada. Estava quase chegando na entrada de um hotel quando fui abordado pela viatura da polícia militar. Saíram truculentos, pedindo meus documentos, querendo saber de onde vinha e o que fazia na rua àquela hora. Cansado pela longa e desgastante viagem, tentei me controlar e responder apenas o óbvio. Alegaram que era perigoso estar nas ruas durante a madrugada. Mais uma vez lhes disse que foi a hora que o ônibus me deixou. Se quisessem me ajudar, que me deixassem entrar naquele hotel. Sob os olhares idiotas dos policiais, toquei três vezes a campainha da portaria e ninguém atendeu. Tentei o hotel ao lado. O funcionário amassado de sono, após a incrível pergunta sobre o que eu desejava, abriu a porta e finalmente consegui entrar. Os policiais ainda me observavam com desconfiança.
continua...

domingo, 22 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 5/7)

...continuação
Perto do meio-dia o barco parou em Almeirim, cidade sem cara de nada e erguida na foz do rio Paru. O calor tornou-se insuportável sem o vento. Embarcou nova passageira, mulher, provocante. Os homens do barco se disputavam para se encostar e puxar assunto. Desse jeito alguém teria que organizar fila para evitar tumulto. Do cais, duas gordinhas lançavam olhares insinuantes aos passageiros.
Durante o percurso, barcos e canoas encostaram para vender queijo em grandes pedaços ou para deixar novos passageiros. A monótona refeição do barco era na base de arroz, macarrão, carne e, somente no almoço, feijão.
A passageira embarcada em Almeirim permanecia junto do segundo candidato. Ele não desgrudava embora nada estivesse para acontecer. Ela mandava olhares sugestivos para outros.
Ventou forte durante a madrugada por mais de uma hora. As águas se agitaram em banzeiros. O barco balançou bastante, chegando a dar saltos acima da água. 
A chegada ao porto de Santana, no Amapá, dois dias depois da partida de Santarém se deu em plena madrugada. Permaneci dormindo até pela manhã. Nesse momento a maioria dos passageiros já havia desembarcado. Dividi taxi com uma paulista viajando sozinha e outro passageiro do barco até a cidade de Macapá, vinte e seis quilômetros mais ao norte, depois de cruzar a linha do equador.
Macapá não possuía edifícios altos, mas muito verde em praças e ruas. O rio Amazonas corria ao lado e o calor torrava. Nas margens do rio havia orla urbanizada, com quiosques de comes e bebes, extenso trapiche projetando-se nas águas com bondinho ligando a avenida até o restaurante na ponta. A pouca profundidade das águas do rio em frente à Macapá forçou a construção do porto estadual na cidade de Santana. Nas águas do Amazonas se destaca a estátua de São José. Mais acima o imponente forte de São José de Macapá, marco fundador da cidade, com obras de escavações arqueológicas e de restauração a fim de integrá-lo ao circuito cultural e de lazer da cidade. O sol do hemisfério norte em Macapá era de torrar e fundir o cérebro. Tinha que escolher com carinho o horário para caminhar.
O quarto sem banheiro do hotel era de madeira e com frestas nas paredes. Quase tudo se ouvia dos quartos vizinhos. Para não ver e também não ser visto, tapei os orifícios com papel higiênico. Nos vãos do piso, tocos de cigarro e outros objetos dos hóspedes anteriores e não removidos.

Acordei com o despertador bem cedo. Sem esperar o café da manhã do hotel, eu e a paulista tomamos táxi até a estação ferroviária na cidade de Santana.
Compramos as passagens para o último vagão do trem rumo a Serra do Navio. Optamos por assentos numerados, com poltronas macias e reclináveis. Subiram muitos passageiros sem lotar os vagões, de trabalhadores braçais a engravatados. Na segunda metade do trajeto a floresta surgiu imponente e sem grandes clareiras. Antes dali, cerrado, plantações de pinheiros e eucalipto compunham paisagem triste, monótona e estéril. Casas e pequenos vilarejos apareciam esporadicamente em meio a extensos açaizais. Nas paradas descíamos e caminhávamos pela estação ou pela beira da linha, sempre de olho no apito do maquinista. O trem sacudia ligeiramente, sem incomodar, permitindo apreciar a paisagem, cochilar, beliscar as comidas e salgados vendidos nos vagões ou mesmo nas paradas mais demoradas.
Nas proximidades da estação de Serra do Navio ouviam-se os gritos altos e roucos dos macacos vindos do interior da mata. Subimos até a vila de Serra do Navio, local planejado e construído para ser a moradia e trabalho dos quase dois mil funcionários da empresa ICOMI, transnacional de mineração estadunidense. Essa empresa explorou durante 50 anos, até o esgotamento, o minério de manganês. O Brasil exportou o minério bruto a preços irrisórios e a população local jamais foi beneficiada.
Comentava-se que uma empresa transnacional sul africana iniciaria a exploração de minério de ouro em local situado na linha ferroviária pouco antes do ponto final. Muitos viam como a salvação diante da ausência de perspectivas de trabalho para as populações locais. Mas a tendência seria, infelizmente, a mesma da exploração predatória do manganês. Altos lucros para os patrões, sem retornos para a população local.
Noite mal dormida pelo calor, mosquitos e desconforto da cama e do quarto. Consegui trocar para apartamento com banheiro, ar condicionado para espantar os mosquitos, duas camas e sem buracos na parede ou piso.
A frequência dos passageiros no apertado ônibus para a cidade de Oiapoque era jovem, entre homens e mulheres com aspecto de aventureiros, nada confiáveis, provavelmente garimpeiros, prostitutas, golpistas e afins.
Apenas o primeiro terço do trajeto foi em estrada asfaltada. Nos trechos sem pavimentação muitas eram as pontes de madeira, mal conservadas, passando sobre rios e igarapés cheios de pedras. A maioria delas apodrecia e estava pronta para cair. Havia previsão de pavimentação, sem prazo definido.

Na primeira metade do percurso predominou cerrado e a estéril monotonia das deprimentes e venenosas monoculturas de pinheiros e eucaliptos. Na segunda metade, prejudicada pela pouca luz, reapareceu a floresta com árvores de grande porte, neblina espessa, poças d’água e pouca lama, pequenos vilarejos. Muita sujeira, desolação e nenhuma opção para matar a fome nas três paradas na beira da estrada.
Cheguei no meio da madrugada na praça agitada da cidade de Oiapoque. Em meio à infinidade de barracas, bares e muitos bêbados, perguntei ao primeiro que apareceu sobre hotéis na cidade. Ele me sugeriu um nas proximidades, para o qual, cansado e desconfiado, caminhei pelas ruas escuras. Na hospedaria fui recebido friamente pelo vigia noturno, que mal me mostrou os quartos ruins, caros e sem café da manhã. Escolhi o menos pior e tive que pagar adiantado. Deixei a mochila no canto e, sem banho, desabei na cama rumo ao sono profundo.
A cidade de Oiapoque era um nojo, praticamente sem calçamento, muito lixo por todos os lugares, feia, mal cuidada, com cheiro de perigo no ar. As pessoas exibiam aspecto suspeito, sejam garimpeiros, putas, comerciantes de ouro e bugigangas, condutores de barcos, taxistas. Ninguém escapava. E todos exibiam aquela cara de espertos e malandros.
Nas margens do rio Oiapoque, que divide o Brasil da Guiana Francesa, o comércio era o caos. Um por cima do outro, barracas podres de ambulantes, com comida e bebida, mais e mais lixo, barqueiros oferecendo serviços, mulheres exageradamente maquiadas logo pela manhã. Parecia o esgoto do país.
Na outra margem do rio, a Guiana Francesa, ainda colônia da, assim considerada, civilizada França em pleno século XXI. Atingi a vila de Saint George através das caras voadeiras. A vila se resumia a posto militar de fronteira do governo francês, em volta do qual surgiram ruas, construções, cafés, bares. A maioria da população era negra e gorducha. Forte presença de brasileiros e da música brasileira. Por ser tudo mais caro na colônia da França, os guianenses vinham comprar no Brasil.

Por mais que se andasse em Oiapoque, nunca se chegava à parte boa. Não havia o centro. A cidade era uma imensa periferia com ruas de terra, poeira e lama, feia, suja, esculhambada, fedorenta. Não faltavam bares, no estilo de barracos de favela, com frequência que não poderia ser pior. Perambulavam morenas vulgares com cabelos tingidos de loiro, roupas mínimas, pouco escondendo as banhas e celulites em corpos ainda jovens. E dali martelava o som daqueles grupos musicais de sempre durante 24 horas por dia. Os vocalistas gritavam o nome do grupo e do disco a todo instante na desesperada tentativa de se diferenciar da geleia geral. Não paravam de tocá-los. O ruim tornava-se insuportável e a vontade era de vomitar. E ainda comi carne de sol ruim, acompanhada de baião-de-dois ruim, em restaurante ruim.
Durante a noite os habitantes de Oiapoque se concentravam ao redor do campo de futebol de areia. Em um canto localizava-se a parada do ônibus para Macapá. Não faltavam bares e botecos entupidos de bêbados, gritando, xingando, cantando, dançando. Eles se divertiam intensamente como queriam e podiam. Voltei ao hotel antes da meia-noite, evitando olhares das bandidas no horário de trabalho, com a firme certeza de querer continuar vivo. Ao jeito dela, porém, a cidade de Oiapoque era muito animada e a festa nunca terminava.
No meio da noite seguinte, já dentro do ônibus de volta a Macapá, dois bêbados subiram e, sem assentos livres, cambaleavam pelo corredor. Enquanto um tentava se equilibrar, apoiando-se nos passageiros, o outro se estendeu no chão, dormiu, roncou forte e se urinou todo. Na parada na cidade de Calçoene, mesas abarrotadas de bêbados desenhavam cena triste e deprimente, mais parecendo processo de autodestruição que simples diversão entre colegas.
Em todo o estado do Amapá encontrei maçãs frescas à venda. Eram pequenas, doces e saborosas. Valia comprar aos montes e comer aos poucos.
De volta à capital amapaense. Apesar das limitações, Macapá atraía pela simpatia pelo urbanismo singelo e pelos simpáticos habitantes. A região beira rio encantava mesmo durante o dia e sob o sol intenso. E após o pôr-do-sol a região se movimentava com muita gente e animação. Havia quiosques com música ao vivo, barracas com comidas e lanches típicos, sorveterias, sem falar nos vários ambulantes oferecendo os deliciosos bombons de cupuaçu, de castanha ou açaí. Os frequentadores aproveitavam o extenso trapiche para caminhar, correr, namorar, paquerar ou simplesmente observar as águas do rio Amazonas e o reflexo das luzes da cidade. Tudo se valorizava com o alaranjado da enorme lua cheia.

Devido à proximidade da foz do rio Amazonas no oceano Atlântico, as marés influenciavam fortemente o nível das águas. A ponta do trapiche, na maré baixa, secava completamente, inclusive a base da estátua de São José. Nesse período dezenas de pássaros ciscavam na lama em busca de comida. E na maré alta, as pequenas ondas levavam as águas do rio Amazonas até as muradas da avenida.
Pegando a avenida Beira Rio no sentido sul, passando pelo forte e o mercado, existe outra área de lazer, ainda maior, com mais quiosques, bares e restaurantes. Na ponta desse espaço, mais pistas de caminhada, palcos para apresentações culturais, gramados e quadras. Sempre nas margens do rio Amazonas, de onde soprava vento refrescante. O sol se mantinha implacável, mas a caminhada era para lá de compensadora.
Na minha última noite a região da Beira Rio estava mais cheia e movimentada. Depois do vatapá, camarão no tucupi e arroz com jambu nas barraquinhas, nada melhor para coroar a noite que bombons de cupuaçu.
Antes da partida do barco de volta para Santarém, inúmeros vendedores de bugigangas e comidas em geral circulavam pelos barcos do porto da cidade de Santana. Aproveitei para reparar as imediações da pitoresca zona portuária local. Eram construções velhas, residências de madeira, armazéns, mercearias, depósitos, bares com frequência perigosa e típica de porto, hotéis, dormitórios sujos e caindo aos pedaços, muita promiscuidade, putas em fim de carreira. Porto de verdade e sem frescuras.
O barco, novamente, não saiu lotado e a sopa, para esquentar, foi servida logo após a saída. Acrescentada às maçãs compradas no porto, fiquei bem alimentado. O piso superior de lazer, sem bar e sem os passageiros já recolhidos nas redes, tornou-se lugar perfeito para, sem iluminação, contemplar o céu estrelado, sentir o vento fresco da noite e refletir sobre os rumos da viagem.
Durante a noite, nas proximidades da foz do rio Jari, divisa entre Amapá e Pará, as águas ficaram revoltas e chegaram a preocupar. A impressão era de estar em alto mar.
Nos estreitos canais, bem ao norte da cidade paraense de Almeirim, ocorria o mesmo que no estreito de Breves ao sul da ilha de Marajó, embora em menor intensidade. Crianças avançavam com canoas a remo na direção do barco e, com gritos estridentes e balanço das mãos, esperavam a boa vontade dos passageiros para jogarem comida, roupas ou outras utilidades.
continua...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 4/7)

...continuação
Depois de dias em Barcelos embarquei de volta a Manaus. Além da tradicional área das redes, o barco contava com camarotes comuns e suítes. Eram três níveis e, no superior, bar grande e bem servido, com banheiro e lavatório públicos, as várias mesas e cadeiras disponibilizadas para o lazer ou para a hipnose coletiva em frente ao enorme televisor. Cestos de lixo espalhavam-se por todos os níveis. O efeito da televisão, claro, foi devastador. Estava sintonizada naquele canal de sempre. Pessoas com olhares bovinos contribuíam para o próprio embrutecimento e desinformação. Senti falta do social, dos comes e bebes, das conversas tão típicas das viagens de barco. Voltei ao camarote para ler e dormir.
Desembarque à noite em Manaus no repugnante cais de São Raimundo. Tudo escuro nas redondezas e resolvi pegar táxi. De volta à civilização de cidade grande, com pedintes, grupo de garotos cheirando cola em terreno abandonado, buzinas estridentes e putas em busca de clientes. Manaus perdera o charme há muito tempo. E os xópins da cidade eram a tortura multiplicada por mil. Naquela montanha de concreto, aço e vidro, como em qualquer parte do mundo, o que se via eram demonstrações de individualismo, exibicionismo, competição, consumismo e inveja. Eram os únicos lugares da cidade com salas de cinema, exibindo o que tem de pior do lixo estadunidense ou algum filme brasileiro comercial e recheado de modelos da televisão.
A parte interessante de Manaus ficava na margem do rio Negro, o porto tradicional, a Escadaria. Era sempre prazeroso apreciar o embarque e desembarque de passageiros e cargas, dezenas ou centenas de barcos de variados tipos e tamanhos, a movimentação frenética dos vendedores de passagens aos gritos, ambulantes de comes e bebes, circulação de pessoas e veículos ao lado das águas marcantes do rio Negro, carregadores levando quilos nas costas das mais variadas mercadorias.
Feriado municipal e praticamente tudo fechado. Andei a esmo para tentar fotografar os prédios antigos, do auge da história da cidade. Estava em frente à bonita casa que abriga o Tribunal de Contas da União quando uma mulher sorriu, puxou assunto, disse que estava a caminho da praia fluvial de Ponta Negra e me convidou a acompanhá-la. Apesar dos três filhos, do aspecto estranho e com parafusos a menos, aceitei o convite pela falta de alternativas.
Em bar na praia da Ponta Negra pedi algo para beber enquanto observava a paisagem ao redor, feia e sem graça. Na parte alta, atrás da praia, bares e mais bares martelando aqueles lixos de sempre em volume ensurdecedor. A frequência combinava com o ambiente e apareciam mulheres com caras suspeitas, homens mais ainda, crianças lambuzadas e cheias de vontade. Muitos se embriagavam e ainda não passava das 13 horas. A coisa só pegaria fogo mais tarde.

Comprei o último ingresso em cadeira na plateia para a mesma noite no teatro Amazonas, prestando atenção no aviso de proibição do uso de bermudas, camisetas sem manga e chinelos. A peça foi longa e cansativa, estrelada por atriz global. O público, de casais e famílias na maioria, inquietou-se no segundo ato, com o ranger das cadeiras e consultas insistentes aos relógios e celulares. Valeu pela beleza dos interiores do teatro, iluminado e em atividade.
A música ao vivo, na base de banquinho, violão e, eventualmente teclado, ocupavam espaços na cidade, entre eles, o bar e restaurante da estação hidroviária. O bom repertório de música popular brasileira se repetia, se limitando a no máximo vinte músicas. E acontecia em todos os lugares, como cópias em série. Eram aquelas de sempre. Não arriscavam a trilhar outros repertórios. E o público aplaudia sempre as mesmas coisas. E eles continuavam interpretando as mesmas músicas.
Entre trocas e compras em sebos da cidade, saí com O Trapicheiro, primeiro volume pertencente à excelente série O Espelho Partido, de Marques Rebelo, e o fraco romance As Alianças, de Ledo Ivo.
Ainda tinha que esperar mais dois dias para a saída da cidade. Acabei conversando com outro hóspede no café da manhã. Paulistano, vendedor de livros de engenharia e também sem saber o que fazer. Decidimos ir até a praia da Lua, pouco ao norte da praia da Ponta Negra, de onde caminhamos e depois pegamos barco. A simpática praia lembrava a de Barcelos, com areias brancas e finas, vegetação e sombras abundantes, poucas barracas de petiscos, barcos e nada de som alto. Mulheres charmosas, acompanhadas e sérias. Escolhemos mesa sob a sombra. Entre mergulhos nas águas do rio Negro, me abastecia de caipirinhas, jaraqui frito, tambaqui grelhado, muita farinha d’água. Após bons papos com pessoas de outras mesas e pouco antes do anoitecer retornamos felizes da vida.
Mais à noite, eu e o vendedor tentamos chegar a forró distante do hotel. Até vesti calça e camisa seguindo recomendações dos manauaras. Pegamos ônibus errado. Assim que descobrimos, descemos e subimos em outro. Também errado. Desistimos do forró e arriscamos pagode nas redondezas. Estava fechado. Tentamos outra festa e não encontramos. Eram quase 3 horas da madrugada e a noite estava perdida. Esgotados e frustrados, resolvemos forrar o estômago antes de voltar ao hotel. Comi sanduíche de tucumã com queijo bola, guaraná natural com mel e limão, açaí na tigela.
A lancha rápida que me tirou de Manaus finalmente partiu rumo ao médio rio Amazonas com lotação completa. Eram duas cadeiras de cada lado, separadas por largo corredor central. No fundo ficavam dois banheiros e a cozinha, onde de preparavam as refeições, tudo incluído na passagem. O almoço era composto de arroz, salada de maionese, macarrão, farinha d’água e duas fatias grossas de lagarto recheado. Mais a tarde foi servido suco de maracujá. Filmes eram exibidos sem parar, um após o outro, nos vários televisores espalhados pelo interior da lancha. As cadeiras, embora acolchoadas, não eram anatômicas e o percurso se tornou muito cansativo, agravado pelo calor úmido.

A correnteza do rio Amazonas era forte e nas águas, repletas de pedaços de madeira, circulavam muitos barcos, balsas e grandes navios.
Desembarquei ao anoitecer em Óbidos, cidade cheia de ladeiras, construções antigas e silêncio assustador. Ainda não eram 19h e apenas um irrisório som de vozes vinha das poucas mesas na beira do rio. Óbidos estava mal servida de hotéis. O tal melhor hotel da cidade, na verdade pensão mofada, ficava em casa antiga nos altos da cidade e com preços salgados pelo pouco que oferecia.
O relevo, o traçado das ruas e a arquitetura com muitas construções antigas davam charme especial a Óbidos, ainda mais com as ladeiras caindo em direção à margem do rio Amazonas. Assim como em várias localidades da Amazônia, e principalmente no Pará, os invasores trocaram os nomes originais indígenas por nomes de cidades portuguesas, com o objetivo de apagar todos os traços culturais dos habitantes originais. Não bastava dizimá-los fisicamente, tinha que destruir a memória coletiva. Assim Pauxi virou Óbidos. Negros oriundos de quilombos nas proximidades da cidade circulavam pelas ruas e comércio.
Os moradores de Óbidos primavam pela antipatia e mau humor. A melancolia, tristeza e frieza talvez fossem, ao lado do casario antigo, heranças do invasor europeu. Não era local para se permanecer muito tempo. Encontrei restaurante bom e barato, que só não era mais agradável devido ao imenso televisor ligado em alto volume. Conseguia fazer com que a atendente diminuísse o som somente nas situações em que eu era o único cliente. A sensação de que todos os moradores estavam de mal com a vida saltava aos olhos. Será que já morreram e ninguém os avisou? Era por isso que existiam tantos urubus na cidade. Só esperavam o sinal para levar os moribundos.
Paguei a pensão. Os cadáveres nem sequer agradeceram ou se despediram. Arrumei minhas coisas e permaneci no quarto à espera do tempo. Embarquei na lancha e coloquei minha mochila na cadeira vazia ao lado. Serviram sopa reforçada de carne, arroz e macarrão com duas fatias de pão de forma. Pouco tempo depois atracamos nas docas do porto de Santarém.
Depois de instalado, caminhei pelo amplo calçadão da margem do rio Tapajós. Muita animação nos bares, lanchonetes, pessoas caminhando, sentadas nas calçadas ou namorando. A primeira impressão não poderia ser melhor, sobretudo depois de conseguir escapar do “cemitério” de Óbidos.

A vista das sacadas do hotel era deslumbrante, com a orla margeando as águas límpidas e esverdeadas do rio. Santarém situa-se na foz do Tapajós e a sensação era de estar em rua bonita e tranquila, próxima ao entroncamento de grande e movimentada avenida. A linha de separação com as águas barrentas do rio Amazonas tornava-se muito marcante, conforme a incidência da luz do sol. A cidade era comum, mas agradável e com população simpática e acolhedora. Além da agitação da orla após o entardecer, Santarém guardava a parte antiga, quieta e bucólica, também à beira rio, com bancos e pescadores silenciosos.
Tomei ônibus para a praia de Alter do Chão, cujo trajeto cruzou pequenos vilarejos com casas cobertas de palha, sítios, chácaras e floresta nativa de grande porte. A morena ao meu lado ensinava geografia e história para adolescentes na zona rural da cidade de Monte Alegre e, com mais cinco professores, se instalava em alojamentos improvisados na própria escola. Dormiam em colchões no chão, com direito a visitas inesperadas de escorpiões e cobras. Segundo ela, muitos alunos ainda não sabiam ler e escrever.
Vila ainda não descaracterizada de praia fluvial, Alter do Chão atraía pela simpatia e aconchego. Havia barraquinhas com guarda-sol, o traçado sinuoso e alongado da orla. As águas estavam rasas, com temperatura agradável e coloração esverdeada. Á tarde o tempo se firmou e as cores ficaram ainda mais realçadas.
Em Santarém levei a bagagem para o camarote do barco rumo a Macapá. Ainda deu tempo de visitar a praia de Maracanã e almoçar em restaurante regional. A luz de final de tarde nas águas do rio Tapajós estava deslumbrante.
Embarquei antes do pôr-do-sol. No barco ao lado um rapaz usando linha de pesca e iscas de pequenos pedaços de banana não se cansava de recolher peixes. O isopor enchia-se rapidamente. A vida não era tão complicada assim.
Pouco depois da partida pontual do barco e da vistoria da capitania dos portos, a tradicional sopa da primeira noite foi servida. Gostosa e farta. O barco, simples e sem a maldita televisão, permitia maior entrosamento entre os passageiros.

Conversei com o garimpeiro da região do médio rio Tapajós, a caminho de Oiapoque na esperança de melhor sorte. Também com a senhora e o filho, residentes em Oiapoque, onde o marido operava voadeira no transporte de passageiros para a Guiana Francesa. Todos comentaram sobre a violência na cidade paraense de Itaituba, da tensão e pobreza entre os garimpeiros. A atividade estava em acelerado declínio na região.
Surgiram serras alongadas a oeste. O rio Amazonas estava muito largo e com águas barrentas. Nas margens, a floresta, fazendas, casas ou vilarejos isolados.
A passageira macapaense quarentona, separada, já tentara o suicídio via envenenamento em função das traições do ex-marido. A jovem de Itaituba, acompanhada de três rapazes, estava a caminho do Suriname ignorando a língua falada no país. Nem tinha 30 anos e já dera a luz a cinco filhos de dois pais diferentes. A filha mais velha nascera ainda na adolescência. Uns filhos moravam com o pai, outros com a mãe dela. Admitiu ter feitos coisas que jamais repetiria. Não senti muita convicção. Um dos amigos dela, constantemente bêbado, assim que notou a conversa, chamou-a grosseiramente com voz embriagada. Cabisbaixa, ela imediatamente se retirou e subiu na rede ao lado do dono. Uma adolescente recém-casada permanecia sempre coladinha com o noivo pouco mais que adolescente. Ele, garimpeiro na Guiana Francesa, a estava levando para ser a cozinheira.
continua...

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 3/7)

...continuação
Acordei cedo, encarei o café da manhã e saí para conhecer a cidade. Canutama guardava ruas de concreto em traçado quadriculado, casas de madeira e esgoto a céu aberto. No final da rua principal, que se iniciava nas barrancas do cais, simpática praça abrigava a igreja, prefeitura e escolas. Os alunos, aglomerados na praça, aguardavam o sinal de entrada. Crianças brincavam nas ruas em atmosfera de simplicidade, pobreza e preguiça.
Deixamos Canutama somente depois do almoço. O rio Purus tornava-se mais largo e caudaloso e, nas margens, se observavam desbarrancamentos decorrentes das últimas cheias. Casas, isoladas ou em pequenos grupos nas margens do rio, se sustentavam sobre troncos de árvore amarrados a terra, de modo a flutuarem ao sabor do nível das águas.
As luzes da tarde douraram toda a paisagem e valorizaram a beleza da floresta, águas, praias, as gaivotas muito alvas, os incríveis cardumes de peixes pequenos que, em bloco, pulavam e voavam acima da linha das águas do rio. Não dava para tirar os olhos. Ao anoitecer, raios, relâmpagos e trovões brilharam no céu escuro. Descargas elétricas imensas e interligadas formando diferentes desenhos que, além de bonitos, amedrontavam pelo que estava por vir. Forte tempestade desabou mais à noite e as lonas laterais do barco foram baixadas antes de ensopar as redes. Os ventos e a água da chuva balançaram intensamente o barco, levando o comandante a atracá-lo na margem mais próxima. Permanecemos ali mais de uma hora até o tempo se acalmar.
Apesar das extensas faixas de praia, o nível das águas subira e, nelas, vez ou outra, surgiam cobras nadando com as cabeças para cima, feito periscópios. Da mata vinha a sinfonia dos diferentes cantos dos pássaros. No ar revoavam diversas aves, destaque para as de bico amarelo alongado.
As paradas promovidas pelo comandante eram, sobretudo, voltadas para o tráfico e comércio ilegal de animais silvestres, como pirarucus, tambaquis, tartarugas, tracajás e demais quelônios. Comprava barato para revender caro em Manaus. Não se importava em atrasar a viagem, irritar os passageiros ou praticar comércio predatório e ilegal. A perspectiva de auferir bons lucros prevalecia. Em várias paredes do convés da embarcação, as placas afixadas com os dizeres “este empreendimento tem o apoio de Deus”, escancaravam a hipocrisia religiosa. Será que esse deus em quem eles, o comandante incluído, acreditavam apoiaria aquele crime contra a fauna brasileira?

Os passageiros do barco se banhavam várias vezes ao dia. Em seguida se perfumavam e vestiam roupas limpas. Lavavam e secavam as roupas sujas no piso superior. Higiene herdada dos indígenas.
Chegada ao porto bem construído da cidade de Tapauá no meio da noite. As ruas, algumas em íngremes ladeiras, estavam vazias pelo avançado da hora. Não era final de semana e tudo parecia adormecido.
Durante a madrugada cruzamos a reserva biológica do Abufari, unidade de conservação com praias exclusivas para desova de quelônios, além da presença de jacarés, da fauna e flora exuberantes. Houve fiscalização do IBAMA, na qual cinco fiscais entraram no barco para verificar a possível existência de comércio e transporte ilegal de fauna e flora silvestre. Não entraram nos camarotes e, infelizmente, nem no porão da carga, onde o comandante escondia mais de cem unidades de quelônios e muitos quilos de peixe de pesca proibida.
O amanhecer foi avermelhado e lindo, com a floresta nas margens do rio refletida nas águas. A floresta em ambas as margens do rio tornava-se ainda mais compacta e imponente à medida que avançávamos. Na superfície das águas, “mamorés”, cujos caules não ultrapassavam trinta centímetros, boiavam ao sabor das ondas com as folhas abertas. Ao fundo do igarapé de águas negras apareciam casas flutuantes. Mas a quantidade ainda era pequena. Essa situação se alterava à medida que nos aproximávamos da foz no rio Solimões.
Alguns passageiros no setor das redes liam a bíblia e cantarolavam inúteis ladainhas. Outros, especialmente as mulheres, só saiam das redes para as refeições ou ir ao banheiro. A maioria exibia rostos com expressões tristes ou assustadas e sorrisos apareciam apenas quando eu tomava a iniciativa.
Rápida parada no meio da tarde na cidade de Beruri, de aspecto bem simpático à distância. Apesar disso, ao redor, estavam presentes os sinais da nossa civilização branca e ocidental, com áreas desmatadas, serrarias e queimadas.
O entardecer foi espetacular, com a lua cheia, passando de avermelhada à alaranjada e finalmente prateada, sempre refletida nas águas do rio. Depois, a movimentação de embarcações indicou que saíramos do rio Purus e que já navegávamos no imenso rio Solimões. A terra, mesmo com a luz do luar, quase não se fazia notar. Vaivém de barcos de diversos tipos e tamanhos. Perto de meia noite, as luzes da cidade de Manacapuru apareceram à esquerda.
Não queria dormir e perder a entrada do rio Negro. Mas o sono veio com tudo e voltei ao camarote. Acordei antes do amanhecer já nas águas do rio Negro. As luzes da periferia de Manaus davam o sinal da chegada. A visão diferia dos últimos cinco dias navegando no rio Purus. Grandes navios, dezenas de barcos, refinarias, indústrias, as águas negras do rio, sujas pela poluição de óleo. No rascunho do último café da manhã, raspamos o que restava das bolachas secas e mais o café puro da garrafa térmica.

O comandante, de consciência pesada, atracou em pequena praia antes do porto e evitou o risco da fiscalização da capitania dos portos. Mesmo assim ela apareceu, entrou no barco, conversou, olhou superficialmente e, infelizmente, liberou-o com quilos e quilos de animais silvestres escondidos no porão. O comandante e mais dois passageiros, que se aproveitaram da situação, sorriram aliviados, já pensando nos lucros daquela ilegalidade.
O desembarque final ocorreu no porto da cidade, chamado de Escadaria. Despedi-me de todos, especialmente da tripulação. Caminhei com a mochila nas costas por ruas e avenidas familiares. Entrei no mesmo hotel de três anos antes, predominantemente frequentado por mochileiros estrangeiros.
Comi jaraqui frito com baião-de-dois no mercado municipal. Passeei pela área nova do porto, mais parecendo aeroporto. Embora confortável, com restaurante simpático e caro para a população, a estação hidroviária era denominada de roadway e exibia as placas internas de sinalização apenas na língua inglesa. Dentro do Brasil e com avisos somente em inglês. Não é para menos que era pouco utilizada. Saí dali e voltei ao porto antigo e maior, à Escadaria, com mais barcos e atmosfera mais genuína. O sol estava de frente e impiedoso, mas a luz refletida na água do rio, lotada de barcos, era compensadora. Cruzei a região antiga da cidade, com bares e inferninhos ainda fechados, antes de me sentar em sorveteria.
Jantei em movimentado restaurante frequentado principalmente por famílias manauaras e estrangeiros jovens. Os coitados dos garçons eram obrigados a usar calça social comprida, camisa de mangas compridas abotoadas, gravata borboleta. Transpiravam muito no rosto e as camisas azuis ficavam ensopadas. Tristes cenas se repetiam nas várias mesas ocupadas. Casais abraçados e calados, famílias inteiras que não se conversavam. Todos vidrados e com o infalível olhar bovino em direção a um dos quatro televisores instalados nas paredes do restaurante. O pai sequer comia ou dava assistência ao filho no berço. Permanecia bestificado, de boca aberta. A mulher, penalizada por estar de costas para a televisão, batia com os dedos na mesa e olhava para o teto na tentativa desesperada de passar o tempo naquele abandono e solidão. Dois homens se sentavam do mesmo lado da mesa, de frente para a televisão, ignorando os olhares insinuantes de duas estrangeiras, feias e avermelhadas, sentadas próximas.
Caminhei lentamente até o cais de São Raimundo, local de partida dos barcos que navegam pelo rio Negro. O lugar era simplesmente pavoroso, sujo, miserável, com palafitas e esgoto fedido correndo sobre a rua enlameada. Deixei a mochila no pequeno barco. Muitas redes já estavam armadas. Entre os passageiros havia homem e mulher de São Paulo, um casal de espanhóis e um italiano. O barco oferecia apenas dois níveis. Redes, banheiros, cozinha, cabine de comando e o acesso ao porão de carga se localizavam no piso inferior. O bar, três camarotes e pequena área livre, parcialmente ocupada pela carga, ficavam no superior. Escolhi o camarote de frente para a proa, antiga cabine de comando e sem cortinas. Nem precisava de ventilação artificial, bastava abrir as janelas basculantes e o vento soprava deliciosamente. A ausência de cortinas tornava o espaço uma espécie de aquário, sobretudo com as luzes acesas, quando eu me transformava em atração para os demais passageiros.

A viagem rio Negro acima iniciou no começo da noite. A saborosa sopa foi logo servida. Próximo, outro barco com destino a Novo Airão desenvolvia manobras radicais. Ventava forte. Ondas se formavam no rio e os movimentos sinuosos punham aqueles passageiros em perigo. Caiu forte tempestade e ambos os barcos atracaram em ilha na espera de tudo se acalmar. Como não havia bar, os tripulantes do outro barco subiram ao nosso para beber e conversar. O piloto deles já estava bêbado.     
Amanheceu com o barco navegando em meio ao labirinto de ilhas do rio Negro. A floresta de verde intenso de todos os lados do arquipélago de Anavilhanas, cercada de águas sempre escuras. Muitas vezes o barco se aproximava das margens, quase tocando nas árvores.
O café da manhã foi reforçado, com pão, manteiga, ovos mexidos, ovos cozidos, café e leite separados. Se houvesse frutas regionais seria verdadeiro banquete. As refeições eram servidas em mesas improvisadas sobre dois congeladores espremidos entre a cozinha e as redes. Cada um pegava a porção feita e saia em busca de lugar para sentar e comer.
Guiando o casal espanhol rumo à comunidade no meio do caminho, um barqueiro amazonense me contou. O espanhol “ensinaria” técnicas agrícolas aos moradores locais e compraria deles cerca de vinte e cinco mil reais em artesanato. A espanhola era antipática, fumante e não queria conversa com ninguém. Não parecia estar à vontade ao lado dos brasileiros. O italiano, supostamente da área de medicina tropical, acompanharia os espanhóis. Ele recebia dinheiro de entidades da Itália também para comprar grandes quantias em artesanato. O barqueiro recebia pagamento de outros italianos residentes na mesma vila, para pescar, plantar e fabricar artesanato.
Novo amanhecer em outro labirinto de ilhas, desta vez o de Mariuá, nome original da cidade de Barcelos. Embora maior, o arquipélago de Mariuá era menos badalado que o de Anavilhanas, mais próximo a Manaus. O rio Negro, calmo e sem vento, sem banzeiros ou rebojos, atuava como espelho, refletindo a mata ciliar nas águas escuras. Praias de areias brancas ao fundo.
E surgiu então a cidade de Barcelos, iluminada pelo sol. Igreja e casas antigas à frente, o porto pequeno e bem construído. Despedi-me da tripulação, dos passageiros mais chegados e caminhei sob o sol escaldante.
A área urbanizada da cidade, na margem do rio, com praças, bares e restaurantes concentrava o movimento de adolescentes. Raros eram os adultos. A cidade estava bem arrumada e limpa, com prédios públicos recém-construídos, entre hospitais, escolas e secretarias municipais. Grupos de estrangeiros perambulavam pelas ruas e ONG’s possuíam escritórios por ali. Muitos duvidavam das reais intenções dos estrangeiros.
Em cabana simples o clube da cidade cobrava um real para entrar e curtir baile despretensioso da noite de sábado. Enquanto estava parado perto da entrada, apareceram as adolescentes que lançavam sorrisos desde o bar da praça. Conversei com duas delas que pretendiam que eu bancasse a entrada e o consumo delas lá dentro. Desconversei e entrei sozinho. Lá dentro já estavam os colegas do hotel acompanhados de duas garotas. Elas dançavam separadas enquanto os dois permaneciam sentados, bebendo.
Na ilha alongada na margem oposta à cidade havia praia acessada por voadeiras ao preço de um real. As areias brancas contrastavam com as águas escuras do rio. Muita sombra, poucas barracas de comes e bebes, quase ninguém naquela manhã.  Fiquei sentado por ali, a fim de sentir a brisa refrescante e apreciar a bela paisagem, tendo ao fundo o perfil de Barcelos.

As garotas da Amazônia desenvolvem-se fisicamente de maneira precoce, vestem-se como mulheres adultas, exibem sensualidade natural. Lançam-se muito cedo na iniciação sexual, sem os cuidados e prevenções devidas, daí o alto índice de gravidez na adolescência. A deformação e o envelhecimento físicos também se manifestam precocemente. Embora crescessem as influências da cultura branca, ocidental e cristã, como o moralismo, tabus, barreiras, pecado e culpa, a herança cultural indígena evidenciava a diferença de comportamento em relação ao sul e sudeste do Brasil. A sexualidade brota com mais intensidade e naturalidade, nos homens e mulheres. O lado negativo reside na pobreza, falta de assistência médica e educação, desinformação e machismo, podendo levar a gravidez precoce, desorientações, prostituição.
Por outro lado, alunos uniformizados assistiam, além das aulas normais, às atividades das escolas aos finais de semana. Palestras diversas orientavam sobre saúde, sexualidade, doenças sexualmente transmissíveis. Tudo sem bagunça, com silêncio e atenção por parte dos alunos.
Não havia miséria, indigência, mendicância ou moradores de rua. A maioria contava com o suficiente para viver. Na Amazônia a miséria concentrava-se principalmente nas grandes cidades, trazendo consigo o desemprego e criminalidade.
continua...

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 2/7)

...continuação
Cruzamos de balsa o rio Madeira próximo à foz do rio Mamoré. Cem metros, rio Madeira acima, duas enormes faixas de casebres flutuantes e, sobre tudo isso, como capacete negro, extensa e espessa camada de poluição. Eram cerca de duzentas balsas de garimpo de ouro. Ali se morava e trabalhava. Os motores das dragas lançavam a fumaça escura puxando o cascalho do leito profundo do rio. Esse cascalho seria tratado e bateado na esperança de se encontrar o metal.
Os garimpeiros atuavam sempre em duplas. Enquanto um deles permanecia embaixo por até oito horas respirando através de canos ligados à superfície, o outro em cima comandava todas as atividades. Aquele que trabalhava embaixo ficava inteiramente nas mãos do sócio da superfície. Não era raro o fluxo do oxigênio do cano ser interrompido, ou até mesmo esse cano ser colocado na saída do escapamento do motor. Método simples e cruel de não dividir o ouro encontrado.
Anoiteceu. O ônibus cruzou a antiga ponte ferroviária e entrou em Guajará-Mirim. Em bar e restaurante ao ar livre com nome boliviano empurrei a carne de sol dura, acompanhada pelo baião-de-dois. Do enorme telão dentro do bar vinham os gritos daquelas duplas que se dizem sertanejas e se fantasiam de caubói estadunidense.
Para ajudar a digerir a sola de sapato andei pela cidade, bastante espalhada, com ruas e avenidas largas. A iluminação pública era pouca ou inexistente. Nenhuma alma viva nas ruas, apenas o barulho das folhas levadas pelo vento.
Depois de café da manhã fui às margens do rio Mamoré. Ali o museu municipal, mesmo local onde funcionou a antiga estação ferroviária, ponto final da célebre Madeira-Mamoré. Restavam duas locomotivas, comidas pelo tempo, poucos metros da linha férrea, invadidas pelo mato. E nada mais. A ferrovia sucumbiu pelo abandono e pela submissão à ditadura da indústria automobilística.
Na outra margem do rio Mamoré, a cidade boliviana de Guayaramerym, acessada por barcos motorizados. A cidade, de traçado semelhante ao lado brasileiro, apresentava maior movimento nas ruas e estabelecimentos comerciais.

Guajará-Mirim, outrora ativa zona franca, penava entre ruas com pequeno movimento, construções vazias e abandonadas, extensas praças em ruínas e invadidas pelo mato alto, semblante desanimado dos moradores. Havia muito verde e, do rio, soprava brisa suave. Muitas motos e bicicletas circulavam pelas ruas. Havia até vias exclusivas. Assim como em Porto Velho, os negros e mulatos possuíam aparência diversa do sudeste brasileiro. Eram os descendentes dos trabalhadores trazidos de Barbados para a construção da ferrovia.
Almocei espetinho de carne com baião-de-dois em restaurante com mesas ao ar livre sob a frondosa árvore. Da cozinha, o som de rádio no qual o locutor resumia as três ocorrências policiais das últimas vinte e quatro horas. Uma delas tratava de dois motoristas de táxi que se agrediram a tapas na disputa por passageiros na estação rodoviária. Na parte política da programação, o locutor agradecia imensamente ao senador e a toda a bancada do mesmo partido pela a infinita ajuda prestada à cidade. E por aí seguia o tão informativo programa.
Jantar caseiro servido em mesas espalhadas na calçada em frente à própria casa da cozinheira. As panelas ofereciam as opções da noite, o preço era justo e o sabor compensador.
Amanheceu com névoa úmida e temperatura agradável depois de forte e rápida chuva durante a noite. A estrada à capital rondoniense cruzou dois estreitos pontilhões metálicos onde passava apenas um carro de cada vez. Outros dois pontilhões localizavam-se ao lado da rodovia. Relíquias da antiga ferrovia, muito envelhecidos, cruzavam vales profundos.
Perambulei no dia seguinte em Porto Velho pelas regiões próximas ao rio Madeira. Almocei em restaurante especializado em peixes, em posição privilegiada sobre as barrancas do rio, permitindo bela vista das águas e da margem oposta. A sesta depois do almoço da capital rondoniense era sagrada. Quase tudo fechava até 15h.

O bom restaurante do jantar pecava pela mania doentia de entupir o local com televisores, obrigando os clientes a ver e ouvir o lixo estadunidense. No espaço reduzido havia seis aparelhos ligados em alto volume. As pessoas nas mesas não conversavam ou se divertiam, apenas olhavam fixamente para o aparelho. A visão panorâmica no recinto fornecia a impressão de verdadeira sessão de hipnose.
No percurso a Humaitá, após cruzar de balsa o rio Madeira, os buracos e crateras se multiplicavam. O motorista do ônibus fazia malabarismos. Os impactos eram violentos, tudo chacoalhava e os passageiros se seguravam como podiam. As pontes eram estreitas e sem pavimentação. Nas áreas desmatadas, nada de plantações, raras criações de gado. Pedaços de campos e cerrados apareciam nas proximidades de Humaitá com monoculturas de soja. Os passageiros, que subiam e desciam no meio do caminho, apresentavam fortes traços indígenas.
Humaitá era daquelas cidades espalhadas, planejadas, com ruas e avenidas largas, onde a bicicleta reinava absoluta. Na margem do rio Madeira, destoando desse padrão, o centro antigo atraía com simpáticas ladeiras, prédios antigos da época áurea da borracha. Ali o comércio efervescente e o cais bonito e organizado se sobressaíam.
Em mesa ao ar livre de restaurante na praça, ao lado dos colegas de hotel, o jantar animou entre assuntos sobre a situação da região, estórias machistas do norte. Besteiras e risadas se alternavam com a bela visão das garotas da cidade, pedalando na noite quente e abafada. Muito novas, morenas, olhos amendoados, mais ou menos índias, mais ou menos brancas, quase sempre bonitas e atraentes.
O calor se mantinha intenso. Caminhar ou almoçar tornava-se sacrificante. Mas no restaurante perto do cais, uma morena deslumbrante, ainda nova, filha da proprietária, atendia os fregueses. Com cabelos longos e pretos, traços indígenas, beleza e sensualidade sem fim, enlouquecia a todos quando circulava pelas mesas. O senão ficava por conta do namorado mal encarado, com quem trocava carinhos pelo salão.
Houve na parte da tarde, próximo da estação rodoviária, um concurso de som. Se a cena de um carro vomitando som pelo porta-malas era insuportável, ainda pior quando vários deles se competiam para eleger o mais potente. Quatro carros, ao ritmo de bate-estacas e o pior do funk no último volume, desfilaram para a moçada esperta da cidade. Sem opções de lazer no domingo à tarde, virou bom pretexto para saírem de casa, verem e serem vistos, paquerarem, esquecerem o calor.
Em frente ao hotel participei de longa conversa entre pequenos agricultores estabelecidos a leste de Humaitá, pela rodovia transamazônica. Paranaenses na maioria, questionavam o endurecimento da fiscalização do IBAMA e outros órgãos rurais e ambientais. Não se diziam contra o IBAMA ou a favor do desmatamento e até pregavam a necessidade de união e organização de todos para alcançar melhores resultados. Não havia consenso no grupo e, enquanto uns acreditavam na necessidade de mais discussões, outros desejavam partir para as vias-de-fato. Não confiavam nas ONG’s. Preferiam destruir a floresta a entregá-la aos estrangeiros.

Além de gerar discussão salutar sobre a questão amazônica, o debate aproximava os órgãos públicos da população rural, ainda que com conflitos e desconfianças. O que não era de se espantar, depois de séculos de políticas desastrosas e impostas aos que dela deveriam se beneficiar.
Depois de dias em Humaitá, recebi a tão esperada confirmação da saída do caminhão para a manhã seguinte, antes do amanhecer. Choveu e relampejou durante parte da noite. Eram sinais da chegada da estação chuvosa. Já não era sem tempo de encarar o trecho menos utilizado da rodovia transamazônica.
Era ainda noite quando ouvi a buzina do caminhão.
Coloquei a mochila na carroceria sob a lona improvisada e entrei na cabine ao lado de um vendedor de livros de Porto Velho. Outros passageiros, com ou sem carga, subiam e desciam da carroceria durante o percurso.
Foram quase dez horas para percorrer os últimos 216 quilômetros da rodovia transamazônica. No pedaço intermediário e maior, estreito e com muitos buracos, eram péssimas as condições. Com o início das chuvas, surgiam os longos atoleiros que, em pouco tempo, se tornariam intransponíveis, até a próxima estação seca. Os demais veículos pesados ajudavam a piorar a situação, afundando os buracos e revolvendo a lama. Em um dos buracos profundos o impacto fez a carroceria jogar para os lados. Uma mulher e um homem voaram da carroceria e caíram no chão da estrada.
O caminhão atolou em quatro locais. Se não fosse o guincho mecânico na dianteira do chassi, a habilidade e a experiência do motorista, teríamos muitas dificuldades de prosseguir. Nessas situações, o ajudante e os passageiros da carroceria cravavam com a marreta um grosso pino na lama e os engatavam em cabos de aço já conectados à roldana do guincho. Houve momentos que a lama era muito mole e foi preciso cravar mais que um pino para sustentar o esforço do guincho.
A travessia dos rios era feita por balsas totalmente manuais. Cabos de aço, ligando as duas margens, eram puxados por várias mãos assim que o caminhão subia na plataforma. Os operadores das balsas residiam em minúsculos vilarejos, situados na beira dos rios, formados por amontoado de cabanas cobertas de palha. Os passageiros aproveitavam as paradas durante a travessia das balsas para mergulharem e se refrescarem nas águas dos rios e igarapés. Cotias e macacos cruzavam a estrada, abelhas e borboletas coloridas estavam por toda parte.
Chegamos em Lábrea no início da tarde. Hospedei-me no melhor hotel da cidade. Barato, pequeno, mal cuidado e com o restaurante ao lado. O quarto era cheio de remendos mal feitos e inacabados, nas paredes e instalações hidráulicas. Não estava em reforma, era assim mesmo. Assim como o hotel, a cidade estava maltratada. Em tudo faltava carinho, cuidado, organização, interesse, vontade.
A chuva da tarde deixou a noite limpa e estrelada, mas o calor continuou intenso e abafado. Lábrea estava mais alegre e movimentada que Humaitá. Durante o entardecer e à noite, os moradores lotavam as ruas, praças, bares, sorveterias e quadras de esportes. Três bares, situados nos andares superiores das casas, se revezavam nas programações noturnas de modo a evitarem a concorrência.

Fechados e desconfiados, os moradores se soltavam somente depois de tempo, esforço e paciência. Autênticos caboclos, herdaram o estilo de vida indígena. Possuíam em abundância tudo o que necessitavam para viver. O trabalho era apenas esporádico. 
Não era raro encontrar meninas novas, com os corpos ainda em formação, sendo assediadas por homens adultos, casados ou não. Os machões adoravam essa situação. Consideravam a prática normal. Não conheci nenhum que demonstrasse qualquer tipo de censura ou remorso. E as presenteavam com agrados e dinheiro, numa clara indução à mendicância ou à prostituição.
O barco recém-chegado ao porto reservava três níveis. O inferior para cargas, cozinha e tripulação, o intermediário para as redes, camarotes, banheiros, copa e cabine de comando, o superior com bar, outros camarotes e grande área livre para lazer. Eu teria que esperar alguns dias para a partida rio Purus abaixo. O carro de som da cidade chamaria para o dia exato da saída. Mas eu poderia embarcar e permanecer no barco, mesmo antes da saída.
A classe dominante de Lábrea estava em polvorosa, entre conchavos, cochichos, arranjos e rearranjos políticos rumo às eleições municipais do ano seguinte. No restaurante ao lado do hotel, onde parecia ser o ponto de encontro dos donos da cidade, o nível das discussões não poderia ser mais deplorável e ao mesmo tempo tão ilustrativo. Não mencionavam assuntos de interesse popular, com conteúdo social, econômico, político ou cultural. Apenas exaltações, ou execrações, sobre o caráter, a fibra, a força e a macheza deste ou daquele cacique. Palavras, como educação, saúde, saneamento básico, emprego, moradia, cultura, reforma agrária, preservação ambiental não constavam do dicionário das elites. Mas e o povo? O povo que se danasse!
Os tucuxis, os botos, davam belo espetáculo nas águas do rio Purus. Bastava observar a superfície das águas. Apareciam geralmente em duplas, o pequeno, de cor cinza e outro grande, de cor rosa.  
Embarquei um dia antes da partida. Tomei banho para refrescar da caminhada com a mochila nas costas e aceitei o convite para jantar na cozinha do barco junto com a tripulação, na base de frango ensopado e arroz. A noite no camarote foi confortável. Após o trauma quatro anos antes, no barco da linha entre Manaus e Belém, senti-me aliviado de não ver baratas circulando. O ventilador era silencioso e eficaz, o colchão confortável e longo o suficiente para poder esticar as pernas.
Acordei cedinho com a movimentação de cargas e passageiros para o embarque. Devido ao nível baixo das águas do rio, o comandante optou por navegar somente durante o dia nos trechos mais secos. O paupérrimo café da manhã foi servido, composto de pão seco e bolacha seca, manteiga e garrafa térmica cheia de café com leite, já misturados e adoçados. Com lotação parcial, o barco de madeira partiu rumo a Manaus em viagem prevista para cinco dias.
A entidade do governo estadual de auxílio aos povos indígenas contava com escritório em Lábrea e centro de tratamento médico em Manaus. Nos casos de emergência, os pacientes eram enviados à capital, gratuitamente e com direito a acompanhante. Era o caso da mulher Palmari, muito doente, fraca e com hemorragia. Uma garota, bonita, grávida do terceiro filho, também ia a Manaus para ficar ao lado da mãe doente. Estava no quarto mês da gravidez e, assim como os dois primeiros filhos, vinha de produção independente e de pais diferentes. Pretendia aproveitar a cesariana e ligar as trompas. Fumante, com apenas 23 anos, aparentava 35.
O rio Purus se apresentava sinuoso e com praias. Os ribeirinhos usavam as várzeas para plantar milho, feijão e mandioca. As casas eram esparsas, a floresta predominava nas margens, os vilarejos raros e minúsculos. As praias onde ocorria desova das tartarugas, tracajás e outros quelônios estavam interditadas, sinalizadas por bandeirinhas hasteadas em galhos fincados na areia para garantir a preservação.
As refeições, incluídas no preço da passagem, em quantidade livre e servidas em enorme mesa, no sistema de revezamento dos passageiros, eram fartas e saborosas. Valia a pena repetir a dose.
Atracamos em Canutama para passar a noite. Alguns desceram para se embebedar, procurar festas ou agitação. Também desembarquei e circulei pela vila, às escuras e sem movimento naquele horário.
continua...