sexta-feira, 13 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 2/7)

...continuação
Cruzamos de balsa o rio Madeira próximo à foz do rio Mamoré. Cem metros, rio Madeira acima, duas enormes faixas de casebres flutuantes e, sobre tudo isso, como capacete negro, extensa e espessa camada de poluição. Eram cerca de duzentas balsas de garimpo de ouro. Ali se morava e trabalhava. Os motores das dragas lançavam a fumaça escura puxando o cascalho do leito profundo do rio. Esse cascalho seria tratado e bateado na esperança de se encontrar o metal.
Os garimpeiros atuavam sempre em duplas. Enquanto um deles permanecia embaixo por até oito horas respirando através de canos ligados à superfície, o outro em cima comandava todas as atividades. Aquele que trabalhava embaixo ficava inteiramente nas mãos do sócio da superfície. Não era raro o fluxo do oxigênio do cano ser interrompido, ou até mesmo esse cano ser colocado na saída do escapamento do motor. Método simples e cruel de não dividir o ouro encontrado.
Anoiteceu. O ônibus cruzou a antiga ponte ferroviária e entrou em Guajará-Mirim. Em bar e restaurante ao ar livre com nome boliviano empurrei a carne de sol dura, acompanhada pelo baião-de-dois. Do enorme telão dentro do bar vinham os gritos daquelas duplas que se dizem sertanejas e se fantasiam de caubói estadunidense.
Para ajudar a digerir a sola de sapato andei pela cidade, bastante espalhada, com ruas e avenidas largas. A iluminação pública era pouca ou inexistente. Nenhuma alma viva nas ruas, apenas o barulho das folhas levadas pelo vento.
Depois de café da manhã fui às margens do rio Mamoré. Ali o museu municipal, mesmo local onde funcionou a antiga estação ferroviária, ponto final da célebre Madeira-Mamoré. Restavam duas locomotivas, comidas pelo tempo, poucos metros da linha férrea, invadidas pelo mato. E nada mais. A ferrovia sucumbiu pelo abandono e pela submissão à ditadura da indústria automobilística.
Na outra margem do rio Mamoré, a cidade boliviana de Guayaramerym, acessada por barcos motorizados. A cidade, de traçado semelhante ao lado brasileiro, apresentava maior movimento nas ruas e estabelecimentos comerciais.

Guajará-Mirim, outrora ativa zona franca, penava entre ruas com pequeno movimento, construções vazias e abandonadas, extensas praças em ruínas e invadidas pelo mato alto, semblante desanimado dos moradores. Havia muito verde e, do rio, soprava brisa suave. Muitas motos e bicicletas circulavam pelas ruas. Havia até vias exclusivas. Assim como em Porto Velho, os negros e mulatos possuíam aparência diversa do sudeste brasileiro. Eram os descendentes dos trabalhadores trazidos de Barbados para a construção da ferrovia.
Almocei espetinho de carne com baião-de-dois em restaurante com mesas ao ar livre sob a frondosa árvore. Da cozinha, o som de rádio no qual o locutor resumia as três ocorrências policiais das últimas vinte e quatro horas. Uma delas tratava de dois motoristas de táxi que se agrediram a tapas na disputa por passageiros na estação rodoviária. Na parte política da programação, o locutor agradecia imensamente ao senador e a toda a bancada do mesmo partido pela a infinita ajuda prestada à cidade. E por aí seguia o tão informativo programa.
Jantar caseiro servido em mesas espalhadas na calçada em frente à própria casa da cozinheira. As panelas ofereciam as opções da noite, o preço era justo e o sabor compensador.
Amanheceu com névoa úmida e temperatura agradável depois de forte e rápida chuva durante a noite. A estrada à capital rondoniense cruzou dois estreitos pontilhões metálicos onde passava apenas um carro de cada vez. Outros dois pontilhões localizavam-se ao lado da rodovia. Relíquias da antiga ferrovia, muito envelhecidos, cruzavam vales profundos.
Perambulei no dia seguinte em Porto Velho pelas regiões próximas ao rio Madeira. Almocei em restaurante especializado em peixes, em posição privilegiada sobre as barrancas do rio, permitindo bela vista das águas e da margem oposta. A sesta depois do almoço da capital rondoniense era sagrada. Quase tudo fechava até 15h.

O bom restaurante do jantar pecava pela mania doentia de entupir o local com televisores, obrigando os clientes a ver e ouvir o lixo estadunidense. No espaço reduzido havia seis aparelhos ligados em alto volume. As pessoas nas mesas não conversavam ou se divertiam, apenas olhavam fixamente para o aparelho. A visão panorâmica no recinto fornecia a impressão de verdadeira sessão de hipnose.
No percurso a Humaitá, após cruzar de balsa o rio Madeira, os buracos e crateras se multiplicavam. O motorista do ônibus fazia malabarismos. Os impactos eram violentos, tudo chacoalhava e os passageiros se seguravam como podiam. As pontes eram estreitas e sem pavimentação. Nas áreas desmatadas, nada de plantações, raras criações de gado. Pedaços de campos e cerrados apareciam nas proximidades de Humaitá com monoculturas de soja. Os passageiros, que subiam e desciam no meio do caminho, apresentavam fortes traços indígenas.
Humaitá era daquelas cidades espalhadas, planejadas, com ruas e avenidas largas, onde a bicicleta reinava absoluta. Na margem do rio Madeira, destoando desse padrão, o centro antigo atraía com simpáticas ladeiras, prédios antigos da época áurea da borracha. Ali o comércio efervescente e o cais bonito e organizado se sobressaíam.
Em mesa ao ar livre de restaurante na praça, ao lado dos colegas de hotel, o jantar animou entre assuntos sobre a situação da região, estórias machistas do norte. Besteiras e risadas se alternavam com a bela visão das garotas da cidade, pedalando na noite quente e abafada. Muito novas, morenas, olhos amendoados, mais ou menos índias, mais ou menos brancas, quase sempre bonitas e atraentes.
O calor se mantinha intenso. Caminhar ou almoçar tornava-se sacrificante. Mas no restaurante perto do cais, uma morena deslumbrante, ainda nova, filha da proprietária, atendia os fregueses. Com cabelos longos e pretos, traços indígenas, beleza e sensualidade sem fim, enlouquecia a todos quando circulava pelas mesas. O senão ficava por conta do namorado mal encarado, com quem trocava carinhos pelo salão.
Houve na parte da tarde, próximo da estação rodoviária, um concurso de som. Se a cena de um carro vomitando som pelo porta-malas era insuportável, ainda pior quando vários deles se competiam para eleger o mais potente. Quatro carros, ao ritmo de bate-estacas e o pior do funk no último volume, desfilaram para a moçada esperta da cidade. Sem opções de lazer no domingo à tarde, virou bom pretexto para saírem de casa, verem e serem vistos, paquerarem, esquecerem o calor.
Em frente ao hotel participei de longa conversa entre pequenos agricultores estabelecidos a leste de Humaitá, pela rodovia transamazônica. Paranaenses na maioria, questionavam o endurecimento da fiscalização do IBAMA e outros órgãos rurais e ambientais. Não se diziam contra o IBAMA ou a favor do desmatamento e até pregavam a necessidade de união e organização de todos para alcançar melhores resultados. Não havia consenso no grupo e, enquanto uns acreditavam na necessidade de mais discussões, outros desejavam partir para as vias-de-fato. Não confiavam nas ONG’s. Preferiam destruir a floresta a entregá-la aos estrangeiros.

Além de gerar discussão salutar sobre a questão amazônica, o debate aproximava os órgãos públicos da população rural, ainda que com conflitos e desconfianças. O que não era de se espantar, depois de séculos de políticas desastrosas e impostas aos que dela deveriam se beneficiar.
Depois de dias em Humaitá, recebi a tão esperada confirmação da saída do caminhão para a manhã seguinte, antes do amanhecer. Choveu e relampejou durante parte da noite. Eram sinais da chegada da estação chuvosa. Já não era sem tempo de encarar o trecho menos utilizado da rodovia transamazônica.
Era ainda noite quando ouvi a buzina do caminhão.
Coloquei a mochila na carroceria sob a lona improvisada e entrei na cabine ao lado de um vendedor de livros de Porto Velho. Outros passageiros, com ou sem carga, subiam e desciam da carroceria durante o percurso.
Foram quase dez horas para percorrer os últimos 216 quilômetros da rodovia transamazônica. No pedaço intermediário e maior, estreito e com muitos buracos, eram péssimas as condições. Com o início das chuvas, surgiam os longos atoleiros que, em pouco tempo, se tornariam intransponíveis, até a próxima estação seca. Os demais veículos pesados ajudavam a piorar a situação, afundando os buracos e revolvendo a lama. Em um dos buracos profundos o impacto fez a carroceria jogar para os lados. Uma mulher e um homem voaram da carroceria e caíram no chão da estrada.
O caminhão atolou em quatro locais. Se não fosse o guincho mecânico na dianteira do chassi, a habilidade e a experiência do motorista, teríamos muitas dificuldades de prosseguir. Nessas situações, o ajudante e os passageiros da carroceria cravavam com a marreta um grosso pino na lama e os engatavam em cabos de aço já conectados à roldana do guincho. Houve momentos que a lama era muito mole e foi preciso cravar mais que um pino para sustentar o esforço do guincho.
A travessia dos rios era feita por balsas totalmente manuais. Cabos de aço, ligando as duas margens, eram puxados por várias mãos assim que o caminhão subia na plataforma. Os operadores das balsas residiam em minúsculos vilarejos, situados na beira dos rios, formados por amontoado de cabanas cobertas de palha. Os passageiros aproveitavam as paradas durante a travessia das balsas para mergulharem e se refrescarem nas águas dos rios e igarapés. Cotias e macacos cruzavam a estrada, abelhas e borboletas coloridas estavam por toda parte.
Chegamos em Lábrea no início da tarde. Hospedei-me no melhor hotel da cidade. Barato, pequeno, mal cuidado e com o restaurante ao lado. O quarto era cheio de remendos mal feitos e inacabados, nas paredes e instalações hidráulicas. Não estava em reforma, era assim mesmo. Assim como o hotel, a cidade estava maltratada. Em tudo faltava carinho, cuidado, organização, interesse, vontade.
A chuva da tarde deixou a noite limpa e estrelada, mas o calor continuou intenso e abafado. Lábrea estava mais alegre e movimentada que Humaitá. Durante o entardecer e à noite, os moradores lotavam as ruas, praças, bares, sorveterias e quadras de esportes. Três bares, situados nos andares superiores das casas, se revezavam nas programações noturnas de modo a evitarem a concorrência.

Fechados e desconfiados, os moradores se soltavam somente depois de tempo, esforço e paciência. Autênticos caboclos, herdaram o estilo de vida indígena. Possuíam em abundância tudo o que necessitavam para viver. O trabalho era apenas esporádico. 
Não era raro encontrar meninas novas, com os corpos ainda em formação, sendo assediadas por homens adultos, casados ou não. Os machões adoravam essa situação. Consideravam a prática normal. Não conheci nenhum que demonstrasse qualquer tipo de censura ou remorso. E as presenteavam com agrados e dinheiro, numa clara indução à mendicância ou à prostituição.
O barco recém-chegado ao porto reservava três níveis. O inferior para cargas, cozinha e tripulação, o intermediário para as redes, camarotes, banheiros, copa e cabine de comando, o superior com bar, outros camarotes e grande área livre para lazer. Eu teria que esperar alguns dias para a partida rio Purus abaixo. O carro de som da cidade chamaria para o dia exato da saída. Mas eu poderia embarcar e permanecer no barco, mesmo antes da saída.
A classe dominante de Lábrea estava em polvorosa, entre conchavos, cochichos, arranjos e rearranjos políticos rumo às eleições municipais do ano seguinte. No restaurante ao lado do hotel, onde parecia ser o ponto de encontro dos donos da cidade, o nível das discussões não poderia ser mais deplorável e ao mesmo tempo tão ilustrativo. Não mencionavam assuntos de interesse popular, com conteúdo social, econômico, político ou cultural. Apenas exaltações, ou execrações, sobre o caráter, a fibra, a força e a macheza deste ou daquele cacique. Palavras, como educação, saúde, saneamento básico, emprego, moradia, cultura, reforma agrária, preservação ambiental não constavam do dicionário das elites. Mas e o povo? O povo que se danasse!
Os tucuxis, os botos, davam belo espetáculo nas águas do rio Purus. Bastava observar a superfície das águas. Apareciam geralmente em duplas, o pequeno, de cor cinza e outro grande, de cor rosa.  
Embarquei um dia antes da partida. Tomei banho para refrescar da caminhada com a mochila nas costas e aceitei o convite para jantar na cozinha do barco junto com a tripulação, na base de frango ensopado e arroz. A noite no camarote foi confortável. Após o trauma quatro anos antes, no barco da linha entre Manaus e Belém, senti-me aliviado de não ver baratas circulando. O ventilador era silencioso e eficaz, o colchão confortável e longo o suficiente para poder esticar as pernas.
Acordei cedinho com a movimentação de cargas e passageiros para o embarque. Devido ao nível baixo das águas do rio, o comandante optou por navegar somente durante o dia nos trechos mais secos. O paupérrimo café da manhã foi servido, composto de pão seco e bolacha seca, manteiga e garrafa térmica cheia de café com leite, já misturados e adoçados. Com lotação parcial, o barco de madeira partiu rumo a Manaus em viagem prevista para cinco dias.
A entidade do governo estadual de auxílio aos povos indígenas contava com escritório em Lábrea e centro de tratamento médico em Manaus. Nos casos de emergência, os pacientes eram enviados à capital, gratuitamente e com direito a acompanhante. Era o caso da mulher Palmari, muito doente, fraca e com hemorragia. Uma garota, bonita, grávida do terceiro filho, também ia a Manaus para ficar ao lado da mãe doente. Estava no quarto mês da gravidez e, assim como os dois primeiros filhos, vinha de produção independente e de pais diferentes. Pretendia aproveitar a cesariana e ligar as trompas. Fumante, com apenas 23 anos, aparentava 35.
O rio Purus se apresentava sinuoso e com praias. Os ribeirinhos usavam as várzeas para plantar milho, feijão e mandioca. As casas eram esparsas, a floresta predominava nas margens, os vilarejos raros e minúsculos. As praias onde ocorria desova das tartarugas, tracajás e outros quelônios estavam interditadas, sinalizadas por bandeirinhas hasteadas em galhos fincados na areia para garantir a preservação.
As refeições, incluídas no preço da passagem, em quantidade livre e servidas em enorme mesa, no sistema de revezamento dos passageiros, eram fartas e saborosas. Valia a pena repetir a dose.
Atracamos em Canutama para passar a noite. Alguns desceram para se embebedar, procurar festas ou agitação. Também desembarquei e circulei pela vila, às escuras e sem movimento naquele horário.
continua...

2 comentários:

  1. Minha mãe e tia trabalham nas aéreas de educação e saúde, respectivamente, e já fizeram diversas viagens a trabalho nesses municípios do Amazonas que você visitou (entre outros). Sempre destacaram a mistura de ausência de infraestrutura de serviços básicos para população (que tornariam a qualidade de vida melhor), com a simplicidade e receptividade dos moradores. Claro, sempre enfatizaram a deslumbrante riqueza de paisagem, fauna, rios por que passaram.
    Att, Jafé Praia

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  2. Oi Jafé, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Essa viagem completa 13 anos, mas, mesmo assim, não creio que tenha havido alterações estruturais nesse tempo.
    Há três anos revi parte desse percurso ao subir de barco o rio Purus, de Manaus a Boca do Acre, cujos relatos publiquei neste blog. Pouco ou nada havia mudado. Em outras palavras, continuo adorando a região!!!
    Abraços e comente sempre!

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