...continuação
Cruzamos de balsa o rio Madeira próximo à foz do rio
Mamoré. Cem metros, rio Madeira acima, duas enormes faixas de casebres
flutuantes e, sobre tudo isso, como capacete negro, extensa e espessa camada de
poluição. Eram cerca de duzentas balsas de garimpo de ouro. Ali se morava e
trabalhava. Os motores das dragas lançavam a fumaça escura puxando o cascalho
do leito profundo do rio. Esse cascalho seria tratado e bateado na esperança de
se encontrar o metal.
Os garimpeiros atuavam sempre em duplas. Enquanto um deles
permanecia embaixo por até oito horas respirando através de canos ligados à
superfície, o outro em cima comandava todas as atividades. Aquele que
trabalhava embaixo ficava inteiramente nas mãos do sócio da superfície. Não era
raro o fluxo do oxigênio do cano ser interrompido, ou até mesmo esse cano ser
colocado na saída do escapamento do motor. Método simples e cruel de não
dividir o ouro encontrado.
Anoiteceu. O ônibus cruzou a antiga ponte ferroviária e entrou
em Guajará-Mirim. Em bar e restaurante ao ar livre com nome boliviano empurrei
a carne de sol dura, acompanhada pelo baião-de-dois. Do enorme telão dentro do
bar vinham os gritos daquelas duplas que se dizem sertanejas e se fantasiam de
caubói estadunidense.
Para ajudar a digerir a sola de sapato andei pela cidade,
bastante espalhada, com ruas e avenidas largas. A iluminação pública era pouca
ou inexistente. Nenhuma alma viva nas ruas, apenas o barulho das folhas levadas
pelo vento.
Depois de café da manhã fui às margens do rio Mamoré. Ali
o museu municipal, mesmo local onde funcionou a antiga estação ferroviária,
ponto final da célebre Madeira-Mamoré. Restavam duas locomotivas, comidas pelo
tempo, poucos metros da linha férrea, invadidas pelo mato. E nada mais. A
ferrovia sucumbiu pelo abandono e pela submissão à ditadura da indústria
automobilística.
Na outra margem do rio Mamoré, a cidade boliviana de
Guayaramerym, acessada por barcos motorizados. A cidade, de traçado semelhante
ao lado brasileiro, apresentava maior movimento nas ruas e estabelecimentos
comerciais.
Guajará-Mirim, outrora ativa zona franca, penava entre ruas
com pequeno movimento, construções vazias e abandonadas, extensas praças em
ruínas e invadidas pelo mato alto, semblante desanimado dos moradores. Havia
muito verde e, do rio, soprava brisa suave. Muitas motos e bicicletas
circulavam pelas ruas. Havia até vias exclusivas. Assim como em Porto Velho, os
negros e mulatos possuíam aparência diversa do sudeste brasileiro. Eram os
descendentes dos trabalhadores trazidos de Barbados para a construção da
ferrovia.
Almocei espetinho de carne com baião-de-dois em
restaurante com mesas ao ar livre sob a frondosa árvore. Da cozinha, o som de
rádio no qual o locutor resumia as três ocorrências policiais das últimas vinte
e quatro horas. Uma delas tratava de dois motoristas de táxi que se agrediram a
tapas na disputa por passageiros na estação rodoviária. Na parte política da
programação, o locutor agradecia imensamente ao senador e a toda a bancada do
mesmo partido pela a infinita ajuda prestada à cidade. E por aí seguia o tão
informativo programa.
Jantar caseiro servido em mesas espalhadas na calçada em
frente à própria casa da cozinheira. As panelas ofereciam as opções da noite, o
preço era justo e o sabor compensador.
Amanheceu com névoa úmida e temperatura agradável depois
de forte e rápida chuva durante a noite. A estrada à capital rondoniense cruzou
dois estreitos pontilhões metálicos onde passava apenas um carro de cada vez.
Outros dois pontilhões localizavam-se ao lado da rodovia. Relíquias da antiga
ferrovia, muito envelhecidos, cruzavam vales profundos.
Perambulei no dia seguinte em Porto Velho pelas regiões
próximas ao rio Madeira. Almocei em restaurante especializado em peixes, em
posição privilegiada sobre as barrancas do rio, permitindo bela vista das águas
e da margem oposta. A sesta depois do almoço da capital rondoniense era sagrada.
Quase tudo fechava até 15h.
O bom restaurante do jantar pecava pela mania doentia de
entupir o local com televisores, obrigando os clientes a ver e ouvir o lixo
estadunidense. No espaço reduzido havia seis aparelhos ligados em alto volume.
As pessoas nas mesas não conversavam ou se divertiam, apenas olhavam fixamente
para o aparelho. A visão panorâmica no recinto fornecia a impressão de
verdadeira sessão de hipnose.
No percurso a Humaitá, após cruzar de balsa o rio Madeira,
os buracos e crateras se multiplicavam. O motorista do ônibus fazia
malabarismos. Os impactos eram violentos, tudo chacoalhava e os passageiros se
seguravam como podiam. As pontes eram estreitas e sem pavimentação. Nas áreas
desmatadas, nada de plantações, raras criações de gado. Pedaços de campos e
cerrados apareciam nas proximidades de Humaitá com monoculturas de soja. Os
passageiros, que subiam e desciam no meio do caminho, apresentavam fortes
traços indígenas.
Humaitá era daquelas cidades espalhadas, planejadas, com
ruas e avenidas largas, onde a bicicleta reinava absoluta. Na margem do rio
Madeira, destoando desse padrão, o centro antigo atraía com simpáticas
ladeiras, prédios antigos da época áurea da borracha. Ali o comércio
efervescente e o cais bonito e organizado se sobressaíam.
Em mesa ao ar livre de restaurante na praça, ao lado dos
colegas de hotel, o jantar animou entre assuntos sobre a situação da região,
estórias machistas do norte. Besteiras e risadas se alternavam com a bela visão
das garotas da cidade, pedalando na noite quente e abafada. Muito novas,
morenas, olhos amendoados, mais ou menos índias, mais ou menos brancas, quase
sempre bonitas e atraentes.
O calor se mantinha intenso. Caminhar ou almoçar
tornava-se sacrificante. Mas no restaurante perto do cais, uma morena
deslumbrante, ainda nova, filha da proprietária, atendia os fregueses. Com
cabelos longos e pretos, traços indígenas, beleza e sensualidade sem fim,
enlouquecia a todos quando circulava pelas mesas. O senão ficava por conta do
namorado mal encarado, com quem trocava carinhos pelo salão.
Houve na parte da tarde, próximo da estação rodoviária, um
concurso de som. Se a cena de um carro vomitando som pelo porta-malas era
insuportável, ainda pior quando vários deles se competiam para eleger o mais potente.
Quatro carros, ao ritmo de bate-estacas e o pior do funk no último volume,
desfilaram para a moçada esperta da cidade. Sem opções de lazer no domingo à
tarde, virou bom pretexto para saírem de casa, verem e serem vistos,
paquerarem, esquecerem o calor.
Em frente ao hotel participei de longa conversa entre
pequenos agricultores estabelecidos a leste de Humaitá, pela rodovia
transamazônica. Paranaenses na maioria, questionavam o endurecimento da
fiscalização do IBAMA e outros órgãos rurais e ambientais. Não se diziam contra
o IBAMA ou a favor do desmatamento e até pregavam a necessidade de união e
organização de todos para alcançar melhores resultados. Não havia consenso no
grupo e, enquanto uns acreditavam na necessidade de mais discussões, outros desejavam
partir para as vias-de-fato. Não confiavam nas ONG’s. Preferiam destruir a
floresta a entregá-la aos estrangeiros.
Além de gerar discussão salutar sobre a questão amazônica,
o debate aproximava os órgãos públicos da população rural, ainda que com conflitos
e desconfianças. O que não era de se espantar, depois de séculos de políticas
desastrosas e impostas aos que dela deveriam se beneficiar.
Depois de dias em Humaitá, recebi a tão esperada
confirmação da saída do caminhão para a manhã seguinte, antes do amanhecer.
Choveu e relampejou durante parte da noite. Eram sinais da chegada da estação
chuvosa. Já não era sem tempo de encarar o trecho menos utilizado da rodovia
transamazônica.
Era ainda noite quando ouvi a buzina do caminhão.
Coloquei a mochila na carroceria sob a lona improvisada e
entrei na cabine ao lado de um vendedor de livros de Porto Velho. Outros
passageiros, com ou sem carga, subiam e desciam da carroceria durante o
percurso.
Foram quase dez horas para percorrer os últimos 216
quilômetros da rodovia transamazônica. No pedaço intermediário e maior, estreito
e com muitos buracos, eram péssimas as condições. Com o início das chuvas,
surgiam os longos atoleiros que, em pouco tempo, se tornariam intransponíveis,
até a próxima estação seca. Os demais veículos pesados ajudavam a piorar a
situação, afundando os buracos e revolvendo a lama. Em um dos buracos profundos
o impacto fez a carroceria jogar para os lados. Uma mulher e um homem voaram da
carroceria e caíram no chão da estrada.
O caminhão atolou em quatro locais. Se não fosse o guincho
mecânico na dianteira do chassi, a habilidade e a experiência do motorista,
teríamos muitas dificuldades de prosseguir. Nessas situações, o ajudante e os
passageiros da carroceria cravavam com a marreta um grosso pino na lama e os
engatavam em cabos de aço já conectados à roldana do guincho. Houve momentos
que a lama era muito mole e foi preciso cravar mais que um pino para sustentar
o esforço do guincho.
A travessia dos rios era feita por balsas totalmente manuais.
Cabos de aço, ligando as duas margens, eram puxados por várias mãos assim que o
caminhão subia na plataforma. Os operadores das balsas residiam em minúsculos
vilarejos, situados na beira dos rios, formados por amontoado de cabanas
cobertas de palha. Os passageiros aproveitavam as paradas durante a travessia
das balsas para mergulharem e se refrescarem nas águas dos rios e igarapés. Cotias
e macacos cruzavam a estrada, abelhas e borboletas coloridas estavam por toda
parte.
Chegamos em Lábrea no início da tarde. Hospedei-me no
melhor hotel da cidade. Barato, pequeno, mal cuidado e com o restaurante ao
lado. O quarto era cheio de remendos mal feitos e inacabados, nas paredes e
instalações hidráulicas. Não estava em reforma, era assim mesmo. Assim como o hotel,
a cidade estava maltratada. Em tudo faltava carinho, cuidado, organização,
interesse, vontade.
A chuva da tarde deixou a noite limpa e estrelada, mas o
calor continuou intenso e abafado. Lábrea estava mais alegre e movimentada que
Humaitá. Durante o entardecer e à noite, os moradores lotavam as ruas, praças,
bares, sorveterias e quadras de esportes. Três bares, situados nos andares
superiores das casas, se revezavam nas programações noturnas de modo a evitarem
a concorrência.
Fechados e desconfiados, os moradores se soltavam somente
depois de tempo, esforço e paciência. Autênticos caboclos, herdaram o estilo de
vida indígena. Possuíam em abundância tudo o que necessitavam para viver. O
trabalho era apenas esporádico.
Não era raro encontrar meninas novas, com os corpos ainda
em formação, sendo assediadas por homens adultos, casados ou não. Os machões
adoravam essa situação. Consideravam a prática normal. Não conheci nenhum que
demonstrasse qualquer tipo de censura ou remorso. E as presenteavam com agrados
e dinheiro, numa clara indução à mendicância ou à prostituição.
O barco recém-chegado ao porto reservava três níveis. O
inferior para cargas, cozinha e tripulação, o intermediário para as redes,
camarotes, banheiros, copa e cabine de comando, o superior com bar, outros
camarotes e grande área livre para lazer. Eu teria que esperar alguns dias para
a partida rio Purus abaixo. O carro de som da cidade chamaria para o dia exato
da saída. Mas eu poderia embarcar e permanecer no barco, mesmo antes da saída.
A classe dominante de Lábrea estava em polvorosa, entre
conchavos, cochichos, arranjos e rearranjos políticos rumo às eleições
municipais do ano seguinte. No restaurante ao lado do hotel, onde parecia ser o
ponto de encontro dos donos da cidade, o nível das discussões não poderia ser
mais deplorável e ao mesmo tempo tão ilustrativo. Não mencionavam assuntos de
interesse popular, com conteúdo social, econômico, político ou cultural. Apenas
exaltações, ou execrações, sobre o caráter, a fibra, a força e a macheza deste
ou daquele cacique. Palavras, como educação, saúde, saneamento básico, emprego,
moradia, cultura, reforma agrária, preservação ambiental não constavam do
dicionário das elites. Mas e o povo? O povo que se danasse!
Os tucuxis, os botos, davam belo espetáculo nas águas do
rio Purus. Bastava observar a superfície das águas. Apareciam geralmente em
duplas, o pequeno, de cor cinza e outro grande, de cor rosa.
Embarquei um dia antes da partida. Tomei banho para
refrescar da caminhada com a mochila nas costas e aceitei o convite para jantar
na cozinha do barco junto com a tripulação, na base de frango ensopado e arroz.
A noite no camarote foi confortável. Após o trauma quatro anos antes, no barco
da linha entre Manaus e Belém, senti-me aliviado de não ver baratas circulando.
O ventilador era silencioso e eficaz, o colchão confortável e longo o suficiente
para poder esticar as pernas.
Acordei cedinho com a movimentação de cargas e passageiros
para o embarque. Devido ao nível baixo das águas do rio, o comandante optou por
navegar somente durante o dia nos trechos mais secos. O paupérrimo café da
manhã foi servido, composto de pão seco e bolacha seca, manteiga e garrafa
térmica cheia de café com leite, já misturados e adoçados. Com lotação parcial,
o barco de madeira partiu rumo a Manaus em viagem prevista para cinco dias.
A entidade do governo estadual de auxílio aos povos
indígenas contava com escritório em Lábrea e centro de tratamento médico em
Manaus. Nos casos de emergência, os pacientes eram enviados à capital,
gratuitamente e com direito a acompanhante. Era o caso da mulher Palmari, muito
doente, fraca e com hemorragia. Uma garota, bonita, grávida do terceiro filho,
também ia a Manaus para ficar ao lado da mãe doente. Estava no quarto mês da
gravidez e, assim como os dois primeiros filhos, vinha de produção independente
e de pais diferentes. Pretendia aproveitar a cesariana e ligar as trompas.
Fumante, com apenas 23 anos, aparentava 35.
O rio Purus se apresentava sinuoso e com praias. Os
ribeirinhos usavam as várzeas para plantar milho, feijão e mandioca. As casas
eram esparsas, a floresta predominava nas margens, os vilarejos raros e
minúsculos. As praias onde ocorria desova das tartarugas, tracajás e outros
quelônios estavam interditadas, sinalizadas por bandeirinhas hasteadas em
galhos fincados na areia para garantir a preservação.
As refeições, incluídas no preço da passagem, em
quantidade livre e servidas em enorme mesa, no sistema de revezamento dos
passageiros, eram fartas e saborosas. Valia a pena repetir a dose.
Atracamos em Canutama para passar a noite. Alguns
desceram para se embebedar, procurar festas ou agitação. Também desembarquei e
circulei pela vila, às escuras e sem movimento naquele horário.
continua...
Minha mãe e tia trabalham nas aéreas de educação e saúde, respectivamente, e já fizeram diversas viagens a trabalho nesses municípios do Amazonas que você visitou (entre outros). Sempre destacaram a mistura de ausência de infraestrutura de serviços básicos para população (que tornariam a qualidade de vida melhor), com a simplicidade e receptividade dos moradores. Claro, sempre enfatizaram a deslumbrante riqueza de paisagem, fauna, rios por que passaram.
ResponderExcluirAtt, Jafé Praia
Oi Jafé, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirEssa viagem completa 13 anos, mas, mesmo assim, não creio que tenha havido alterações estruturais nesse tempo.
Há três anos revi parte desse percurso ao subir de barco o rio Purus, de Manaus a Boca do Acre, cujos relatos publiquei neste blog. Pouco ou nada havia mudado. Em outras palavras, continuo adorando a região!!!
Abraços e comente sempre!