...continuação
Acordei cedo, encarei o café da manhã e saí para conhecer
a cidade. Canutama guardava ruas de concreto em traçado quadriculado, casas de
madeira e esgoto a céu aberto. No final da rua principal, que se iniciava nas
barrancas do cais, simpática praça abrigava a igreja, prefeitura e escolas. Os
alunos, aglomerados na praça, aguardavam o sinal de entrada. Crianças brincavam
nas ruas em atmosfera de simplicidade, pobreza e preguiça.
Deixamos Canutama somente depois do almoço. O rio Purus
tornava-se mais largo e caudaloso e, nas margens, se observavam desbarrancamentos
decorrentes das últimas cheias. Casas, isoladas ou em pequenos grupos nas
margens do rio, se sustentavam sobre troncos de árvore amarrados a terra, de
modo a flutuarem ao sabor do nível das águas.
As luzes da tarde douraram toda a paisagem e valorizaram a
beleza da floresta, águas, praias, as gaivotas muito alvas, os incríveis
cardumes de peixes pequenos que, em bloco, pulavam e voavam acima da linha das
águas do rio. Não dava para tirar os olhos. Ao anoitecer, raios, relâmpagos e
trovões brilharam no céu escuro. Descargas elétricas imensas e interligadas
formando diferentes desenhos que, além de bonitos, amedrontavam pelo que estava
por vir. Forte tempestade desabou mais à noite e as lonas laterais do barco
foram baixadas antes de ensopar as redes. Os ventos e a água da chuva
balançaram intensamente o barco, levando o comandante a atracá-lo na margem
mais próxima. Permanecemos ali mais de uma hora até o tempo se acalmar.
Apesar das extensas faixas de praia, o nível das águas
subira e, nelas, vez ou outra, surgiam cobras nadando com as cabeças para cima,
feito periscópios. Da mata vinha a sinfonia dos diferentes cantos dos pássaros.
No ar revoavam diversas aves, destaque para as de bico amarelo alongado.
As paradas promovidas pelo comandante eram, sobretudo,
voltadas para o tráfico e comércio ilegal de animais silvestres, como
pirarucus, tambaquis, tartarugas, tracajás e demais quelônios. Comprava barato
para revender caro em Manaus. Não se importava em atrasar a viagem, irritar os
passageiros ou praticar comércio predatório e ilegal. A perspectiva de auferir
bons lucros prevalecia. Em várias paredes do convés da embarcação, as placas
afixadas com os dizeres “este empreendimento tem o apoio de Deus”, escancaravam
a hipocrisia religiosa. Será que esse deus em quem eles, o comandante incluído,
acreditavam apoiaria aquele crime contra a fauna brasileira?
Os passageiros do barco se banhavam várias vezes ao dia.
Em seguida se perfumavam e vestiam roupas limpas. Lavavam e secavam as roupas
sujas no piso superior. Higiene herdada dos indígenas.
Chegada ao porto bem construído da cidade de Tapauá no
meio da noite. As ruas, algumas em íngremes ladeiras, estavam vazias pelo
avançado da hora. Não era final de semana e tudo parecia adormecido.
Durante a madrugada cruzamos a reserva biológica do
Abufari, unidade de conservação com praias exclusivas para desova de quelônios,
além da presença de jacarés, da fauna e flora exuberantes. Houve fiscalização
do IBAMA, na qual cinco fiscais entraram no barco para verificar a possível
existência de comércio e transporte ilegal de fauna e flora silvestre. Não
entraram nos camarotes e, infelizmente, nem no porão da carga, onde o
comandante escondia mais de cem unidades de quelônios e muitos quilos de peixe
de pesca proibida.
O amanhecer foi avermelhado e lindo, com a floresta nas
margens do rio refletida nas águas. A floresta em ambas as margens do rio
tornava-se ainda mais compacta e imponente à medida que avançávamos. Na
superfície das águas, “mamorés”, cujos caules não ultrapassavam trinta
centímetros, boiavam ao sabor das ondas com as folhas abertas. Ao fundo do
igarapé de águas negras apareciam casas flutuantes. Mas a quantidade ainda era
pequena. Essa situação se alterava à medida que nos aproximávamos da foz no rio
Solimões.
Alguns passageiros no setor das redes liam a bíblia e
cantarolavam inúteis ladainhas. Outros, especialmente as mulheres, só saiam das
redes para as refeições ou ir ao banheiro. A maioria exibia rostos com
expressões tristes ou assustadas e sorrisos apareciam apenas quando eu tomava a
iniciativa.
Rápida parada no meio da tarde na cidade de Beruri, de
aspecto bem simpático à distância. Apesar disso, ao redor, estavam presentes os
sinais da nossa civilização branca e ocidental, com áreas desmatadas, serrarias
e queimadas.
O entardecer foi espetacular, com a lua cheia, passando de
avermelhada à alaranjada e finalmente prateada, sempre refletida nas águas do
rio. Depois, a movimentação de embarcações indicou que saíramos do rio Purus e
que já navegávamos no imenso rio Solimões. A terra, mesmo com a luz do luar,
quase não se fazia notar. Vaivém de barcos de diversos tipos e tamanhos. Perto
de meia noite, as luzes da cidade de Manacapuru apareceram à esquerda.
Não queria dormir e perder a entrada do rio Negro. Mas o
sono veio com tudo e voltei ao camarote. Acordei antes do amanhecer já nas
águas do rio Negro. As luzes da periferia de Manaus davam o sinal da chegada. A
visão diferia dos últimos cinco dias navegando no rio Purus. Grandes navios,
dezenas de barcos, refinarias, indústrias, as águas negras do rio, sujas pela
poluição de óleo. No rascunho do último café da manhã, raspamos o que restava
das bolachas secas e mais o café puro da garrafa térmica.
O comandante, de consciência pesada, atracou em pequena
praia antes do porto e evitou o risco da fiscalização da capitania dos portos.
Mesmo assim ela apareceu, entrou no barco, conversou, olhou superficialmente e,
infelizmente, liberou-o com quilos e quilos de animais silvestres escondidos no
porão. O comandante e mais dois passageiros, que se aproveitaram da situação,
sorriram aliviados, já pensando nos lucros daquela ilegalidade.
O desembarque final ocorreu no porto da cidade, chamado de
Escadaria. Despedi-me de todos, especialmente da tripulação. Caminhei com a
mochila nas costas por ruas e avenidas familiares. Entrei no mesmo hotel de três
anos antes, predominantemente frequentado por mochileiros estrangeiros.
Comi jaraqui frito com baião-de-dois no mercado municipal.
Passeei pela área nova do porto, mais parecendo aeroporto. Embora confortável,
com restaurante simpático e caro para a população, a estação hidroviária era
denominada de roadway e exibia as placas internas de sinalização apenas
na língua inglesa. Dentro do Brasil e com avisos somente em inglês. Não é para
menos que era pouco utilizada. Saí dali e voltei ao porto antigo e maior, à
Escadaria, com mais barcos e atmosfera mais genuína. O sol estava de frente e
impiedoso, mas a luz refletida na água do rio, lotada de barcos, era
compensadora. Cruzei a região antiga da cidade, com bares e inferninhos ainda
fechados, antes de me sentar em sorveteria.
Jantei em movimentado restaurante frequentado
principalmente por famílias manauaras e estrangeiros jovens. Os coitados dos
garçons eram obrigados a usar calça social comprida, camisa de mangas compridas
abotoadas, gravata borboleta. Transpiravam muito no rosto e as camisas azuis
ficavam ensopadas. Tristes cenas se repetiam nas várias mesas ocupadas. Casais
abraçados e calados, famílias inteiras que não se conversavam. Todos vidrados e
com o infalível olhar bovino em direção a um dos quatro televisores instalados
nas paredes do restaurante. O pai sequer comia ou dava assistência ao filho no
berço. Permanecia bestificado, de boca aberta. A mulher, penalizada por estar
de costas para a televisão, batia com os dedos na mesa e olhava para o teto na
tentativa desesperada de passar o tempo naquele abandono e solidão. Dois homens
se sentavam do mesmo lado da mesa, de frente para a televisão, ignorando os
olhares insinuantes de duas estrangeiras, feias e avermelhadas, sentadas
próximas.
Caminhei lentamente até o cais de São Raimundo, local de
partida dos barcos que navegam pelo rio Negro. O lugar era simplesmente
pavoroso, sujo, miserável, com palafitas e esgoto fedido correndo sobre a rua
enlameada. Deixei a mochila no pequeno barco. Muitas redes já estavam armadas.
Entre os passageiros havia homem e mulher de São Paulo, um casal de espanhóis e
um italiano. O barco oferecia apenas dois níveis. Redes, banheiros, cozinha,
cabine de comando e o acesso ao porão de carga se localizavam no piso inferior.
O bar, três camarotes e pequena área livre, parcialmente ocupada pela carga,
ficavam no superior. Escolhi o camarote de frente para a proa, antiga cabine de
comando e sem cortinas. Nem precisava de ventilação artificial, bastava abrir
as janelas basculantes e o vento soprava deliciosamente. A ausência de cortinas
tornava o espaço uma espécie de aquário, sobretudo com as luzes acesas, quando eu
me transformava em atração para os demais passageiros.
A viagem rio Negro acima iniciou no começo da noite. A
saborosa sopa foi logo servida. Próximo, outro barco com destino a Novo Airão
desenvolvia manobras radicais. Ventava forte. Ondas se formavam no rio e os
movimentos sinuosos punham aqueles passageiros em perigo. Caiu forte tempestade
e ambos os barcos atracaram em ilha na espera de tudo se acalmar. Como não
havia bar, os tripulantes do outro barco subiram ao nosso para beber e
conversar. O piloto deles já estava bêbado.
Amanheceu com o barco navegando em meio ao labirinto de
ilhas do rio Negro. A floresta de verde intenso de todos os lados do
arquipélago de Anavilhanas, cercada de águas sempre escuras. Muitas vezes o
barco se aproximava das margens, quase tocando nas árvores.
O café da manhã foi reforçado, com pão, manteiga, ovos
mexidos, ovos cozidos, café e leite separados. Se houvesse frutas regionais
seria verdadeiro banquete. As refeições eram servidas em mesas improvisadas
sobre dois congeladores espremidos entre a cozinha e as redes. Cada um pegava a
porção feita e saia em busca de lugar para sentar e comer.
Guiando o casal espanhol rumo à comunidade no meio do
caminho, um barqueiro amazonense me contou. O espanhol “ensinaria” técnicas
agrícolas aos moradores locais e compraria deles cerca de vinte e cinco mil
reais em artesanato. A espanhola era antipática, fumante e não queria conversa
com ninguém. Não parecia estar à vontade ao lado dos brasileiros. O italiano,
supostamente da área de medicina tropical, acompanharia os espanhóis. Ele
recebia dinheiro de entidades da Itália também para comprar grandes quantias em
artesanato. O barqueiro recebia pagamento de outros italianos residentes na
mesma vila, para pescar, plantar e fabricar artesanato.
Novo amanhecer em outro labirinto de ilhas, desta vez o de
Mariuá, nome original da cidade de Barcelos. Embora maior, o arquipélago de
Mariuá era menos badalado que o de Anavilhanas, mais próximo a Manaus. O rio
Negro, calmo e sem vento, sem banzeiros ou rebojos, atuava como espelho, refletindo
a mata ciliar nas águas escuras. Praias de areias brancas ao fundo.
E surgiu então a cidade de Barcelos, iluminada pelo sol.
Igreja e casas antigas à frente, o porto pequeno e bem construído. Despedi-me
da tripulação, dos passageiros mais chegados e caminhei sob o sol escaldante.
A área urbanizada da cidade, na margem do rio, com praças,
bares e restaurantes concentrava o movimento de adolescentes. Raros eram os
adultos. A cidade estava bem arrumada e limpa, com prédios públicos recém-construídos,
entre hospitais, escolas e secretarias municipais. Grupos de estrangeiros
perambulavam pelas ruas e ONG’s possuíam escritórios por ali. Muitos duvidavam
das reais intenções dos estrangeiros.
Em cabana simples o clube da cidade cobrava um real para
entrar e curtir baile despretensioso da noite de sábado. Enquanto estava parado
perto da entrada, apareceram as adolescentes que lançavam sorrisos desde o bar
da praça. Conversei com duas delas que pretendiam que eu bancasse a entrada e o
consumo delas lá dentro. Desconversei e entrei sozinho. Lá dentro já estavam os
colegas do hotel acompanhados de duas garotas. Elas dançavam separadas enquanto
os dois permaneciam sentados, bebendo.
Na ilha alongada na margem oposta à cidade havia praia
acessada por voadeiras ao preço de um real. As areias brancas contrastavam com
as águas escuras do rio. Muita sombra, poucas barracas de comes e bebes, quase
ninguém naquela manhã. Fiquei sentado
por ali, a fim de sentir a brisa refrescante e apreciar a bela paisagem, tendo
ao fundo o perfil de Barcelos.
As garotas da Amazônia desenvolvem-se fisicamente de
maneira precoce, vestem-se como mulheres adultas, exibem sensualidade natural.
Lançam-se muito cedo na iniciação sexual, sem os cuidados e prevenções devidas,
daí o alto índice de gravidez na adolescência. A deformação e o envelhecimento
físicos também se manifestam precocemente. Embora crescessem as influências da
cultura branca, ocidental e cristã, como o moralismo, tabus, barreiras, pecado
e culpa, a herança cultural indígena evidenciava a diferença de comportamento
em relação ao sul e sudeste do Brasil. A sexualidade brota com mais intensidade
e naturalidade, nos homens e mulheres. O lado negativo reside na pobreza, falta
de assistência médica e educação, desinformação e machismo, podendo levar a
gravidez precoce, desorientações, prostituição.
Por outro lado, alunos uniformizados assistiam, além das
aulas normais, às atividades das escolas aos finais de semana. Palestras
diversas orientavam sobre saúde, sexualidade, doenças sexualmente
transmissíveis. Tudo sem bagunça, com silêncio e atenção por parte dos alunos.
Não havia miséria, indigência, mendicância ou
moradores de rua. A maioria contava com o suficiente para viver. Na Amazônia a
miséria concentrava-se principalmente nas grandes cidades, trazendo consigo o
desemprego e criminalidade.
continua...
Canutama com toda as suas peculiaridades demonstra ao mundo que é possível viver em harmonia com a natureza...não há lugar melhor para se crescer
ResponderExcluirOi Samuel, tudo bem?
ResponderExcluirObrigado pelo comentário.
Adorei Canutama e a maioria das cidades na margem do rio Purus.
Este ano de 2011 pretendia repetir esse vale, desta vez subindo de Manaus a Boca do Acre, mas imprevistos me fizeram mudar os planos.
Ainda subirei o Purus, parando com mais tempo nas cidades ribeirinhas, inclusive Canutama.
Você mora em Canutama?
Conte mais de você, de sua cidade, de sua vida...
São vários os relatos neste blog que descrevo minhas viagens pelos interiores do Brasil e de outros países, contendo reflexões e críticas sociais e ambientais. Fique à vontade para ler, pesquisar, comentar, divulgar...
Boas leituras!!!
Fiquei surpreso ao visualizar a foto da rua onde "nasci", cresci, brinquei, caí, chorei, sorri, etc. Enfim, onde vivi feliz.
ResponderExcluirÉ a foto que está logo abaixo do parágrafo:
"Atracamos em Canutama para passar a noite toda. Alguns desceram para se embebedar, procurar festas ou agitação. Também desembarquei e circulei pela vila, às escuras e sem movimento naquele horário."
É muito gratificante encontrar pessoas que registram suas passagens por Canutama.
Obrigado viajante!
Olá, Marx Gomes! Obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirAdorei sua cidade e o curso do rio Purus. Inclusive planejo retornar à região este ano. Ao contrário da primeira vez, subirei o rio, de Manaus a Boca do Acre. E passarei novamente em Canutama. Viva!
Abraços e comente sempre.
Que Bom!!!
ResponderExcluirVocê irá se surpreender pelas mundanças que ocorreram na cidade.
Aguardo os comentários e as fotos! (rsrs)
Seria bom se pudesses ir na segunda quinzena de Junho, é a época dos Festejos de São João Batista - tradição na cidade - e, diga-se de passagem, é uma bela festa!
Abraço
Se eu for mesmo, certamente publicarei os relatos e as fotos dessa próxima viagem.
ResponderExcluirMas tenho que ir no máximo até abril, antes que as águas do Purus baixem muito e impeçam a navegação dos grandes barcos até Boca do Acre.
Abraços!