...continuação
O hotel, ruim, velho e decadente, lembrava hospital velho
ou reformatório para menores. Larguei as coisas sobre a mesa quebrada do quarto
e desabei na cama de cansaço, sem ao menos tomar banho ou escovar os dentes.
Levantei para o café da manhã. Em local sujo, escuro e
triste, me deparei com duas funcionárias do hotel, ambas de aspecto mofado e
sombrio. O que serviam era simplesmente deplorável. Pão azedo, mamão duro, suco
colorido de açúcar com água. Empurrei goela abaixo o que deu para empurrar e
saí às ruas para procurar desesperadamente outro lugar.
Em poucos minutos encontrei um hotel melhor aparentado,
com empregados sorridentes, mesa do café da manhã animadora, quarto com cama de
casal e muita claridade. Sem hesitação, voltei ao reformatório, peguei minhas
coisas, paguei a diária ao funcionário morto vivo e me transferi. Finalmente
tomei banho, belisquei o café da manhã e pude descansar.
Explorei Altamira na procura da área de lazer e
restaurantes. Caminhei por longas e intermináveis avenidas sem atingir a margem
do rio. Altamira é plana, moderna, sem prédios altos, com muito movimento em
oficinas, lojas de autopeças e manutenção de maquinários em geral. Embora
formada originalmente na beira do rio, cresceu distanciando-se dele, através de
extensas artérias e bairros novos. Ela
vivia de serviços e como base de apoio regional, daí a grande quantidade de
caminhões em circulação.
Mais de uma hora depois e após voltas e mais voltas,
tentativas e erros, enfim entrei na parte mais antiga da cidade, a orla e o
rio. Desci até a margem, na beira da água e, com muita emoção, molhei as mãos e
o rosto nas águas escuras e azuladas do famoso rio Xingu.
As águas do rio Xingu mantinham a tonalidade azulada,
mesmo em dia nublado. Em frente à cidade, e ao longo de imensa curva, havia uma
grande ilha coberta de vegetação espessa, em cujo lado oposto apareciam praias
na estação seca. Atrás da ilha, bem ao fundo, podia ser vista a margem direita
do rio.
Assim como em outras partes da cidade, a orla também
estava sendo reformulada. Sem ser muito extensa, era mais antiga e simpática
que nas outras cidades. Havia o despretensioso e bonito gramado, que corria
paralelo ao rio, ornado de árvores entre as duas pistas de pedestres. Do outro
lado da rua, casas, poucos bares e restaurantes. Entre a murada e o rio, ainda
restavam vegetação, barcos pequenos, palafitas, bares de madeira, pontos de
prostituição decadente.
Subi na balsa que atravessava o rio Xingu até a margem
direita. Vários caminhões transportavam seres humanos, amontoados na carroceria
junto de outros objetos, como se fossem bois. Trabalho escravo? O motorista se
incomodou quando os fotografei.
Na margem direita, praias submersas pelas águas do rio Xingu,
faixas de pedras e corredeiras também praticamente cobertas pelas águas.
Botecos de madeira com mesas de sinuca, o início de estrada empoeirada e nada
mais. Com o corpo parcialmente dentro das águas do rio e utilizando-se da
bancada de lavagem de roupas, uma jovem abria e limpava diversos peixes
frescos. As sandálias estavam sobre a bancada e protegida das águas.
Em importante avenida do centro de Altamira, meia dúzia de
caminhões armou bloqueio em frente às sedes regionais do INCRA e IBAMA. Eram
madeireiros, indignados com a fiscalização daqueles órgãos que impediam que
destruíssem a floresta para ganhar dinheiro. E os madeireiros ainda ousavam
afirmar que aquela situação gerava desemprego. De quem? Dos trabalhadores em
regime de escravidão?
Esses madeireiros bloquearam todos os acessos rodoviários
de entrada e saída de Altamira. E o crime desfrutava do apoio da mídia
burguesa. Como sempre. A televisão e jornais mostravam a cidade bloqueada, os
latifundiários e empresários locais apoiando o movimento. A maioria da cidade
não concordava, mas nenhuma opinião contrária era exibida, assim como nada a
respeito do desabastecimento da cidade, sobretudo de gêneros de primeira
necessidade, como alimentos e remédios.
Havia também a ameaça de protestos de empresários do
comércio, do agronegócio, latifundiários, aliados aos madeireiros, em Redenção
e São Félix do Xingu, sudeste do Pará. O nobre motivo? O governo federal movia
campanha contra o trabalho escravo na região. E os modernos donos do capital
eram contra.
Quando os trabalhadores sem terra reivindicam a reforma
agrária, protestam ou ocupam terras improdutivas para plantar alimentos, a
mídia burguesa os trata como baderneiros e contra a modernidade, além de apoiar
ou se omitir diante da brutal repressão dos latifundiários e policiais.
Na tarde de deixar Altamira rumo a Marabá, o ônibus
provisório levou até o bloqueio dos ricos madeireiros. Cada passageiro foi
obrigado a carregar as próprias bagagens e caminhar por entre caminhões e
máquinas dos criminosos, sorridentes com a situação. Cerca de cem metros
depois, ao anoitecer, embarque no ônibus definitivo para enfrentar mais um
trecho da transamazônica.
Quase na entrada de Marabá, o ônibus cruzou o rio
Tocantins através de obra megalomaníaca. Ponte exageradamente imensa e alta. As
dimensões chocavam os olhos e dava a impressão de se entrar em outro planeta.
Marabá é estranhamente dividida em três pedaços separados,
não contíguos. A Marabá pioneira ou velha Marabá, a Nova Marabá construída
depois da enchente da década de 1970, e a Cidade Nova. Essa separação forçada e
mal feita dificultava a circulação. Era praticamente impossível, e até
perigoso, caminhar entre elas pelos matagais ou avenidas sem acostamento. O
comércio maior e o lazer se concentravam na Cidade Nova. A orla fluvial, o
encontro das águas dos rios Itacaiúnas e Tocantins, bancos e parte do comércio
estavam na Marabá Pioneira. A rodoviária, cercada de pequenos hotéis, raros
botecos, avenidas e o vazio pertencem à Nova Marabá, cujos endereços compõem-se
de Folha XX, Quadra YY, Lote ZZ e mais alguma coisa. Eram cerca de três a
quatro quilômetros de pontes e avenidas sem acostamentos. Desolador. Em
diversos estabelecimentos comerciais estavam afixados cartazes de campanha
contra a prostituição, sobretudo a infantil.
Subi em ônibus urbano e desci na Velha Marabá, ou Marabá
Pioneira. Cidade com cara de cidade. Pequena, com ruas estreitas, casas
antigas, avenida principal simpática com canteiro central arborizado, inúmeros
estabelecimentos comerciais em ambos os lados. Havia movimento, vida, sorrisos.
À medida que se avançava dentro da cidade, ela se estreitava, as ruas paralelas
gradualmente desapareciam, restando apenas a avenida central que se transforma
em rua estreita, até o fim, local de encontro das águas dos rios Itacaiúnas e
Tocantins em ponta alongada de areia, lixo e abandono.
Comprei a passagem para Conceição do Araguaia em meio à
disputa entre os vendedores das empresas de ônibus. A primeira parada do ônibus
foi em Eldorado dos Carajás, zona do massacre de 19 trabalhadores rurais sem
terra em 1996. O crime foi cometido pela polícia militar paraense a mando de
latifundiários e empresários do agronegócio. Os culpados permaneciam soltos e
impunes. A paisagem das imediações era desoladora, desmatada, vazia,
improdutiva, sem nada plantado. Eram enormes latifúndios usados apenas para
especulação e poder. As cidades, pobres, feias, sujas e mal cuidadas. A miséria
e o desemprego explodiam em cenas constantes de violência e assassinatos.
A estrada entre Xinguara e Redenção estava em péssimas
condições, com muitos buracos e irregularidades. Neste trecho, e no ramal para
São Félix do Xingu, ocorrem frequentemente assaltos, diurnos e noturnos, a
ônibus e demais veículos. Os assaltantes, após interditarem a pista, entram
armados no ônibus, obrigam aos gritos todos a se despirem para evitar que
escondam valores sob as roupas, recolhem tudo e, eventualmente, os agridem. A
violência desorganizada dos pobres sempre nasce da violência organizada dos
capitalistas.
Chegada à noite em Conceição do Araguaia. Precisei acordar
o único taxista disponível naquela hora para me levar ao distante centro da
cidade. Pedi para ele me sugerir um hotel qualquer situado perto do rio
Araguaia. Desembarquei em frente ao hotel escuro, fechado e completamente
vazio. Sentada no sofá, a dona demonstrava contrariedade pela minha chegada.
Ela nem desgrudou do sofá. Instalei-me em quarto simples, barato, caindo aos
pedaços, com janela quebrada, vazamento na pia. Segundo as palavras da moribunda,
o café da manhã era pequeno e não vinha quase nada.
Saí para dar uma volta, beber e comer alguma coisa. Logo
encontrei local praticamente vazio e na beira do rio. O atendimento era
simpático e eficiente, a comida razoável e a brisa vinda do rio Araguaia refrescante.
Situação ideal para refletir sobre os perigos pelos quais passei durante esses
dias e noites. A possibilidade de eu retornar ao sudeste do Pará era
praticamente zero.
Não à toa eu era o único hóspede do lastimável hotel. O
sifão da pia do banheiro era uma avenida. A água da torneira entrava pelo ralo,
caia diretamente no chão e espirrava nos pés. A janela quebrada do quarto dava
para os fundos do lava-rápido e alguns bares. Os mosquitos, livres para invadir
o quarto, me trucidaram durante a noite. As paredes estavam rachadas e com a
pintura descascando. O café da manhã correspondeu às expectativas tenebrosas
dadas pela dona. De bom mesmo, somente a atraente cozinheira que, sorrindo e
com lindos olhos brilhantes, me passou a bandeja pela escotilha da cozinha.
Encontrei logo outro hotel, mais confortável e bem conservado.
A cidade estava vazia e parada. Até crescia mato nas
calçadas. Os habitantes eram sorridentes e simpáticos. Descobri gostoso
restaurante típico, simples e barato. A fome era grande e detonei vatapá com
camarão, arroz e jambu, suco de cupuaçu com leite e, para arrematar, açaí na
tigela com tapioca.
O entardecer na beira do rio Araguaia foi belíssimo. A luz
alaranjada iluminava fracamente o grupo de amigos jogando vôlei de praia. Havia
duas ilhas em frente à cidade e, mais ao fundo, na margem direita, o estado de
Tocantins.
No dia da partida de Conceição do Araguaia rumo a Palmas,
logo ao chegar na estação rodoviária, notei a aglomeração em frente ao ônibus
vindo de Belém. Pessoas conversavam com os passageiros. Um senhor ligava do
orelhão e pedia que lhe mandassem dinheiro. As faxineiras da estação comentavam
que foi mais um. O ônibus havia sido assaltado horas antes, nas proximidades de
Redenção. Em pânico, os passageiros evitavam falar e entrar em detalhes.
Embarquei no ônibus quase vazio. Quinze quilômetros ao sul
da partida a estrada cruzou a ponte sobre o rio Araguaia. Do outro lado do rio,
no estado de Tocantins, predominava o cerrado, raras serras e relevo ondulado.
Fazendas de gado, vilarejos e cidades pequenas. O tráfego aumentou intensamente
na rodovia Belém/Brasília e os buracos apareciam aos montes. A chuva fina e
constante acompanhou a maior parte do trajeto. As cidades pareciam mais
organizadas, com bons terminais rodoviários, lanchonetes limpas e banheiros
gratuitos.
Já bem instalado em Palmas, mas faminto, saí para procurar
algo para jantar. Como em cidade planejada não havia centro com as
características habituais, a alternativa era sair a esmo no sentido do
movimento. Encontrei outra longa e larga avenida no lado oposto da quadra onde
me hospedara e lá se estendiam bares e restaurantes. Ocupei mesa na calçada e
matei a fome com comida acima da média.
Tentei caminhar depois do jantar. Nada encontrei de
interessante entre a infinidade de avenidas, rotatórias, gramados, jardins e
pouquíssima iluminação. Muitas quadras, provavelmente comerciais, inteiramente
às escuras, silenciosas e desertas. Nada acolhedor.
Durante o dia não havia sombras para se esconder do sol
escaldante do cerrado em Palmas. O planejamento da cidade a deixou com muitos
espaços vazios e as árvores ainda estavam pequenas. Caminhei pela região da
sede do governo estadual, com prédios públicos padronizados e repetidos,
cercado por mais ruas e avenidas. Mais adiante, concentrações de atividades
comerciais, bancárias e de lazer bastante movimentadas e separadas por imensos
vazios de grama e asfalto.
Sem semáforos, os cruzamentos se davam por rotatórias, nas
quais a travessia de pedestres ficava difícil nos horários de pico. Mais uma
cidade planejada e construída para automóveis. Os pedestres que se virassem
como pudessem. As áreas de estacionamento ficavam entre as avenidas e os
prédios. Ônibus grandes e pequenos cruzavam as principais vias. Mapas
desatualizados estavam afixados em cruzamentos. A leste, depois do final da
zona urbana, serras alongadas e com tonalidade azulada. O aspecto dos
habitantes variava muito e ouviam-se sotaques de várias regiões brasileiras.
Paguei caro pelo livro Os Ratos, de
Dyonélio Machado, em sebo da área central.
Comprei a passagem de volta para São Paulo no único e
inconveniente horário das 7h. Teria que acordar cedo e perder o café da manhã.
Na manhã seguinte esperei muito tempo no ponto de ônibus
urbano. Dois rapazes, vestindo roupas sociais, cambaleavam de bêbados nas
imediações. Nem notaram olhares de censura dos trabalhadores à espera do
transporte.
Cheguei na estação rodoviária em cima da hora, comprei
comes e bebes na lanchonete local e embarquei. O ônibus partiu no horário com apenas
quinze ocupantes. Cada passageiro sentou nas duplas de assentos e ainda
sobraram lugares. Ninguém acompanhado de ninguém. Ninguém conversava com
ninguém. O quase sempre supérfluo ar condicionado estava muito gelado.
Solicitei ao motorista que aliviasse e educadamente fui atendido.
A marginal Tietê, como sempre, estava congestionada na
chegada a São Paulo.
Nem bem entrei em casa, em dezembro, e já comecei a
planejar a próxima exploração à Amazônia, mais precisamente ao vale do rio
Juruá.
Como vai?
ResponderExcluirCaí no seu blog por acaso entre pesquisas pela internet. E foi uma surpresa das boas.
Você escreve muito bem e analisa com seriedade a situação social tenebrosa do Sul do Pará. Você devia publicar suas visões em órgãos da imprensa.
Parabéns pelo blog.
Sérgio.
Olá Sérgio, obrigado pela visita e comentários.
ResponderExcluirTem certas coisas que, se não for ao vivo e em cores, mesmo que de passagem, não damos crédito. O sudeste do Pará, mas não somente lá, concentra o máximo de injustiça social, falta de liberdade e falta de democracia. E o que se divulga pela mídia burguesa é somente a revolta desorganizada da população.
Valeu os elogios e incentivos.
Comente sempre...abraços.