Novamente fiz bom uso das milhas do programa de
fidelidade, desta vez até a distante cidade de Cruzeiro do Sul, extremo oeste
do Acre.
O avião partiu lotado com meia hora de atraso. As pernas
se espremiam no reduzido espaço entre os bancos. Há muito tempo que os ônibus
intermunicipais humilham os aviões em espaço e conforto. Em Manaus corri para
embarcar no outro avião da empresa regional. Após a decolagem a aeronave
retornou ao aeroporto de Manaus com problemas mecânicos. Nova decolagem ocorreu
só uma hora depois. Ao meu lado sentou-se um rapaz de Cruzeiro do Sul cujos pais
morreram em desastre aéreo daquela mesma empresa regional.
Chegada em Cruzeiro do Sul ao anoitecer. Vesti o pequeno
capacete que cobria pouco além da metade da minha cabeça. O moto-taxista me
deixou na porta do hotel simples e limpo.
Feia, mal cuidada, pobre, suja, a cidade de Cruzeiro do
Sul desprovia de charme. Os
habitantes eram reservados, mas simpáticos e prestativos.
O estreito rio Juruá estava alto e com as águas barrentas,
carregando detritos, galhos, folhas, pedras e blocos de terra. A cidade,
infelizmente, lhe dava as costas. A área de lazer situava-se longe da margem,
em canteiro central da avenida principal. Bares, lanchonetes, pistas de corrida
e ciclismo, bancos de praça, tudo mal feito, mal desenhado, sem carinho, de mau
gosto.
Peguei ônibus para Guajará, cidade próxima, mas já no
estado do Amazonas. A estrada cruzou terrenos ondulados, com muitas curvas e
inclinações, pastos verdes e alguma floresta mais afastada. Organizada, limpa,
arborizada e tranquila, Guajará reservava casas de madeira simples e de boa
aparência, sombras refrescantes, orla despretensiosa e simpática na margem do
rio Juruá. Ali havia bancos, gramados, barracas de comes e bebes, o porto
flutuante, pequeno e funcional, acessado por escada cimentada. Os habitantes saíam
às ruas, brincavam, passeavam, conversavam ou simplesmente se sentavam para
apreciar o deslizar das águas. Bem diferente da sonolenta Rodrigues Alves, rio
Juruá acima.
Durante a noite em Cruzeiro do Sul reparei em meninas
menores de idade, circulando ou simplesmente paradas na esquina do outro lado
da avenida em frente ao hotel. Vestiam roupas brilhantes e óbvias,
comportamentos sugestivos, passeando para lá e para cá, sempre em pares.
Trocavam frases com quem passava de moto ou carro, olhavam para os lados,
eventualmente subiam nos veículos, observavam todos os passantes. Era evidente
demais. Infelizmente.
O café da manhã foi esticado com boas conversas com outros
hóspedes. Um hóspede a trabalho na cidade, com trinta e poucos anos, tinha
cinco filhos com cinco mulheres diferentes em cinco municípios diferentes do
Acre. Apenas dois eram registrados com o sobrenome dele. Justificativa todos os
casos e jurava não ser culpado em nenhuma das situações. Apaixonava-se com
facilidade e não conseguia segurar as emoções. Ainda faltavam 17 filhos para
completar os 22 municípios do estado.
Enfermeira brasileira recém-formada em Cobija, cidade
boliviana que faz fronteira com o Brasil. Aguardava o barco para levá-la até o
posto de trabalho, em Porto Walter, um dia de viagem rio Juruá acima. Teria
casa à disposição, salário mensal substancioso, mais ajuda de custo.
Cruzeiro do Sul e as cidades vizinhas passavam por epidemia
de malária. Cartazes e faixas espalhadas pelas ruas alertavam e orientavam a
população.
Raros os barcos rio Juruá abaixo. Atracavam em extenso
lamaçal na beira da água. Tripulantes improvisaram trilha coberta de serragem
para evitar o atoleiro. Armei minha rede no pequeno barco enquanto ainda estava
vazio. Evitaria o vento noturno vindo da proa e o ensurdecedor barulho do motor
na popa. Mais tarde o exíguo espaço interno lotou e as redes foram armadas lado
a lado, acima, abaixo. O balanço de um passageiro causava o balanço dos demais.
No barco de um nível só, quem não se deitava nas redes
permanecia na proa para conversar, jogar cartas ou apreciar a paisagem. Poucos
nunca deixavam as redes, permaneciam calados, jamais sorriam. Se alguém lhes
dirigisse a palavra, respondiam com contrariedade, aos grunhidos, olhando para
o chão.
As águas muito barrentas do rio Juruá ainda refletiam a
estação chuvosa, recém-encerrada. Os barrancos estavam comidos pela correnteza.
Poucas e escuras eram as praias, de areia ou lama. Casas de palha isoladas ou
em pequenos ajuntamentos apareciam nas margens. Canoas pescavam próximas às
margens. A sinuosidade do rio era espetacular. Sentado na proa para melhor
apreciar a paisagem reparava nas curvas e mais curvas, sempre bastante
fechadas. A posição do sol variava a todo instante, à frente, à direita, à
esquerda, atrás. O entardecer foi lindo e colorido.
Após o anoitecer, me recolhi à rede. O vento frio castigou
aqueles instalados mais próximos da proa. Quando alguém circulava esbarrava nas
alças da rede e provocava incômoda vibração. Na ida noturna ao banheiro tive
que afastar delicadamente as bundas que me cercavam. Desenvolvi acrobacias
entre o emaranhado de redes. Meio curvado e meio de cócoras no banheiro feito
para anões consegui aliviar a vontade. Na volta, mais acrobacias, novo
afastamento das bundas com as mãos, entrada na rede e liberação final das
bundas. Alcancei, aparentemente, a proeza de não acordar ninguém.
O barco atracou no porto flutuante de Ipixuna no meio da
madrugada. Luzes apagadas e ninguém na recepção do único hotel em funcionamento
na cidade. O proprietário morava na casa em frente, de onde surgiu uma senhora,
tal uma carcereira, com enorme molho de chaves nas mãos. Pegamos as chaves e
escolhemos os números dos quartos a esmo. Desabei na cama sem tomar banho.
Em hotel que não servia café da manhã, saí à procura de
comida nas ruas vazias da pequena cidade. Em pleno domingo quase tudo estava
fechado. Encontrei uma mistura de padaria e mercearia aberta. Comi somente um
pedaço de bolo e dois copos de suco de cupuaçu. Almocei e jantei no único
restaurante da cidadezinha, familiar e com comida razoável.
As águas barrentas do rio Juruá estavam com o nível pouco
abaixo da linha das casas, alimentadas pela vazão de mais igarapés e rios.
Singelas cabanas de madeira e palha se erguiam na outra margem, de onde se
ouviam os gritos das crianças e as marteladas nos barcos. Canoas atravessavam as
águas levando passageiros e caixas de isopor.
Ipixuna era pequena e com relevo levemente ondulado. As
casas eram de alvenaria apenas na região central. No restante, de madeira,
simples, caindo aos pedaços, tipo palafitas e exalando forte odor de esgoto. Os
dois primeiros quarteirões da rua principal, perpendicular ao rio, formavam
calçadão exclusivo para pedestres com canteiro central e vegetação plantada. O
abastecimento de água era feito a partir de quatro poços artesianos, seguidos
de tratamento precário, com no máximo cloro. A energia local era termoelétrica,
com direito a racionamento e cortes noturnos de energia. A situação se agravaria
em caso de atraso da balsa de combustíveis.
O prefeito do então PFL(DEM), segundo os moradores, era do
tipo que “prende e arrebenta”, sempre acobertado pela total impunidade. A
justiça inexistia e o juiz comparecia apenas trimestralmente. Nada acontecia ao
infrator, desde que aliado da máfia do prefeito. Aos de fora da camarilha,
mesmo inocentes, sobravam prisões arbitrárias e diversas perseguições. O padre
local, conservador, não se interessava pelos inúmeros problemas sociais da
cidade.
Durante minhas caminhadas, os moradores paravam de
conversar e me observavam com olhos paralisados. E me perguntavam intrigados o
que eu fazia por ali, tendo tantos lugares bonitos no Brasil para visitar.
Da mesma forma que Guajará, Ipixuna estava muito isolada
do restante do estado do Amazonas e dependia da cidade acreana de Cruzeiro do
Sul. Até surgiam ideias de ambas serem anexadas ao Acre. Era razoável a ligação
fluvial entre Ipixuna e Cruzeiro do Sul, assim como entre Eirunepé e o rio
Solimões. O hiato ficava por conta do trecho entre Ipixuna e Eirunepé. E nada
de barcos rumo a Eirunepé.
Acordei ao som ensurdecedor da chuva tipicamente amazônica
batendo no telhado do hotel. Nada de raios, trovões, relâmpagos ou vento.
Somente água, muita água, como milhares de torneiras abertas ao máximo. Foram
trinta minutos de chuva torrencial.
Os piuns me comiam vivo. Imperceptíveis, quando os notava
já era tarde. No restaurante de todos os dias e noites era pior e os ataques
fulminantes. Minhas pernas e pés ficaram pontilhados de picadas, marcas, furos.
O repelente tornou-se imprescindível.
O único restaurante transformou-se em ponto de
encontro para conversar e passar bons momentos, sobretudo no jantar, entre os
fregueses e os membros da família. Uma das filhas do dono do restaurante
aguardava para se inscrever no vestibular regional das universidades públicas.
Estudaria em Eirunepé ou em Cruzeiro do Sul. Para cada curso, ofereciam apenas
três vagas para todo o sudoeste amazônico. Somente três vagas! Apareceu também
uma senhora com o rosto e corpo castigados pelo tempo. Afirmou estar com muitas
dores e perguntou o que era preciso para combater o reumatismo. No posto de
saúde, segundo ela, não havia medicamentos. A dona do restaurante, que a
ajudava com alimentos, entregou-lhe um saco com caixinhas de medicamentos de tarja
vermelha.
Um morador me contou que um barco de passageiros chegaria a
Ipixuna e com destino a Eirunepé. O barco aceitaria passageiros para amenizar
os custos de transporte de uma remessa de motores de popa para a cidade de
Envira. E avisou que logo o rádio da cidade iria anunciar a novidade. Peguei a
mochila no hotel quase preparada para essa tão aguardada surpresa.
Embarquei. O proprietário do barco autorizou a saída mesmo
com apenas sete passageiros.
A floresta de árvores altas surgiu imponente, em ambas as
margens do rio Juruá, assim que deixamos Ipixuna. Casas isoladas, pequenas
comunidades com escola, poucas e desmatadas fazendas de gado. Os moradores
apareciam nas portas e janelas para assistir à passagem do barco.
Tarde com luminosidade belíssima, realçando as águas
espelhadas do rio Juruá, a floresta iluminada com o verde intenso. Duplas de
araras e quartetos de tucanos sobrevoavam o barco. As águas do rio tocavam a
base das árvores nas margens. Surgiu a lua quarto crescente e as estrelas refletiram-se
no espelho d’água.
O tempo virou durante a madrugada e começou chuva fina e
contínua.
O nível do rio subia cada vez mais e crescia a sinuosidade
de curvas e mais curvas com a mata fechada em ambos os lados. As raras casas de
palha situadas nas margens, suspensas para se defenderem das enchentes,
apresentavam péssimo estado, quase aos pedaços, algumas sem paredes e com
famílias inteiras nos interiores. Gado pastava nas áreas alagadas. O trajeto
entre as casas era feito de canoa ou a pé por passarelas de madeira.
Grandes voadeiras transportavam mercadorias a serem
vendidas na feira em Eirunepé. Era farinha de mandioca e banana produzidas
pelos ribeirinhos. Era uma a excelência da qualidade da farinha de mandioca
produzida no alto rio Juruá, considerada a melhor do país.
Mais uma tarde deslumbrante. A sucessão de curvas
fechadas do Juruá, perfazendo círculos quase completos, aumentava, e muito, a
duração da viagem. Os furos, canais estreitos que cortam as curvas, tornando o
trajeto mais curto, ofereciam largura insuficiente para a travessia.
continua...
👏👏👏 que bacana ... o trágico é esses fazedores de filho... triste .. se gosta de se apaixonar, ótima mas faz uma vasectomia
ResponderExcluirLindo texto,muito ilustrativo!Gostei de verdade! Deveria reunir seus relatos preferidos e publicá-los!
ResponderExcluirAdoro seus relatos..eles tornam vividos suas historias
ResponderExcluirOlá! Obrigado pela visita e pelos comentários. Sim, esses registros ficam para a eternidade e marcam experiências intensas que compartilhei com vocês. Espero que vocês leiam os outros tantos relatos publicados no blog. Tem pra todos os gostos e destinos. Pesquise à vontade. E comente sempre!
ResponderExcluirAdoro isso tudoMe perco no dia lendo os textos e imaginado como é legal(Maria Delícia)
ResponderExcluirOlá Maria!
ResponderExcluirObrigado Obrigado pela visita e pelos comentários.
Então continue lendo...leia...leia... E comente, para eu saber sua opinião .
Abraços!
Embriagadora descrição de uma viagem com tantos percalços e tantas belezas. Sua descrição exala o cheiro forte das matas e a sonoridade do cantar dos pássaros. Prossigo viagem com você. Lu Santos
ResponderExcluirOi Lu!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Essa é uma das tantas viagens que realizei pelos vales amazônicos e que me encantaram imensamente, pelas belezas e pelos percalços, como você bem ressaltou. Espero que continue vibrando nas outras seis partes desse relato. E também com as outras incursões pelos rios da Amazônia que desembocaram em outros relatos.
Comente sempre!