...continuação
Uma Yanomami e os dois filhos embarcaram conosco, em busca
de assistência médica. O mais novo tossia forte e frequentemente. A mãe
aceitava tudo que oferecíamos, sem trocar palavras, olhares ou sorrisos.
Durante a descida do rio, vista das serras ao norte, barcos transportando indígenas,
pequenas malocas na beira do igarapé. Em uma delas nos ofereceram cestas de palha
em troca de nossas roupas.
O belíssimo nascer do sol, acompanhado de densa cerração,
o desabrochar de flores lilases e róseas nas árvores eram demonstrações da
alegria da natureza e também sinal de despedida. Essas belas imagens compuseram
o último trecho de barco.
O calor estava infernal em São Gabriel da Cachoeira. Antes
do pôr-do-sol subi ao morro através de caminho tomado de oratórios e
anteriormente usado como peregrinação religiosa. No topo, o mirante bastante
pichado e em péssimo estado, a vista privilegiada da cidade, o rio Negro, as montanhas
e a extensa floresta. No hotel, raspei a barba de doze dias antes do banho
caprichado.
O funcionário da empresa aérea nos forneceu o cartão de
embarque ainda dentro do ônibus e, sem qualquer controle, desci na pista de
pouso para o embarque na pequena aeronave. Após o início das manobras para
decolagem, o piloto abriu a porta da cabine de comando e gritou para todos:
“Ei, tem alguém aqui na pista me pedindo para parar.
Alguém aí se esqueceu de devolver a chave do carro. Devolve logo!”.
A chave encontrada foi então atirada da janela da cabine,
na direção de quem tinha pedido.
Hospedei-me na mesma pousada em Manaus, perto do teatro
Amazonas. Dei voltas pelo centro da cidade. Sem fome, apenas belisquei e tomei
guaraná em pó com frutas. Voltei ao quarto do hotel a fim de retirar, com a
ponta do canivete, os últimos bichos de pé.
O restaurante na esquina próximo ao hotel oferecia comida
razoável. A caipirinha era bem preparada e ainda se apreciava o movimento das
pessoas nas calçadas. Os coitados dos garçons usavam calças compridas, grossas
camisas de mangas compridas abotoadas e gravata borboleta. Transpiravam,
ensopando as camisas. A equivocada linha da hotelaria no país, geralmente
importada do exterior e sem critérios, ignora as especificidades do Brasil,
como o clima e a cultura descontraída.
Comprei passagem no barco que sairia no dia seguinte para
Belém. Tentei ir ao cinema e passar o tempo, mas só havia lixo estadunidense. Renovei
meu estoque de livros em sebo do centro da cidade. Contos de Machado de Assis e Clara
dos Anjos do mestre Lima Barreto.
Maravilha os pontos minúsculos na cidade vendendo guaraná
natural, em pó ou xarope. Pode-se levar a matéria prima em saquinhos e vidros
de diversos tamanhos ou consumir no local. Misturam com diversas frutas,
cereais, leite, folhas afrodisíacas e adoçam com o próprio xarope do guaraná. O
efeito estimulante sentia-se claramente. Num dia tomei dois copos de meio litro
cada. Durante a madrugada, completamente sem sono e com os olhos vidrados, tive
que sair do hotel e andar a esmo pelas ruas vazias para passar o tempo.
Arrumei a mochila e caminhei até o porto pela
manhã. O camarote do barco, cubículo infestado de baratas, possuía beliche com
duas camas estreitas e curtas, frigobar. Acima da cama superior existia a
entrada do ar condicionado central, sem possibilidades de regular. O barco
encheu à tarde e era grande a animação do público nas plataformas. Uma família
cristã fundamentalista se instalou no camarote ao lado e saiu para passear no
porto. Só voltaram quando o barco já havia desatracado. Gritaram
desesperadamente, acenaram e o comandante voltou para pegá-los.
À medida que o barco se afastava do porto e descia o rio
Negro, Manaus ficava para trás com as palafitas iluminadas pelo sol de final de
tarde. Escurecia quando cruzamos o encontro das águas do rio Negro com o rio
Solimões.
Não serviram o jantar no barco na primeira noite. Entrei
no camarote para comer meus lanches. Difícil. Eu era observado e cercado por
inúmeras baratas. Alternava as dentadas e mastigadas com porradas e pisadas. Mais
eu matava, mais baratas apareciam pelas frestas das madeiras das paredes e do
piso. Na volta do banheiro coletivo o camarote parecia filme de terror. Eram
centenas de baratas por todos os lados. Não perdoavam nem as camas do beliche.
Pouco se importavam se eu estava lá ou não. Praticamente não consegui dormir.
Elas subiam pelo meu corpo e, após leves cochilos, acordava assustado. Batia
com as mãos na cama, matei algumas. Nada parecia afugentá-las.
Logo ao amanhecer forte tempestade atingiu o barco em
cheio. A chuva entrou no convés e os passageiros instalados nas redes
reclamaram. As águas barrentas do rio Amazonas carregavam galhos, troncos,
folhas, pedras. Vez ou outra se avistavam ilhas alongadas e casas isoladas nas
margens.
Após a chuva subi ao convés superior. Não havia sol e a
temperatura, com a brisa do movimento do barco, era bastante agradável. Lá
havia imensa área livre com cadeiras, mais quatro camarotes, bar e lanchonete,
onde se vendiam bebidas, salgadinhos, lanches, doces e poucos gêneros de
primeira necessidade. Das caixas de som saía música em alto volume, que variava
de forró, brega, rock brasileiro a reggae.
O barco atracou no cais de Parintins para desembarcar
grande carga de refrigerantes. Parte dos estrangeiros desembarcou ali. Assim
que encostamos, dezenas de ambulantes, na maioria crianças, invadiram o barco
vendendo tudo aos berros. Tinha sucos, sorvetes, banana seca, bolinhos,
iogurtes, queijo de coalho e muito mais. Reforcei o pedido para o tripulante
comprar inseticida. Usei quase todo o tubo nos cantos do camarote. Ficou cheiro
forte, fechei a porta, esperei fazer efeito. Mais tarde voltei para verificar o
resultado. As baratas não só ainda estavam lá como ficaram mais assanhadas e
nervosas.
Os passageiros se aglomeravam na profusão de redes no
convés intermediário, onde também havia mais cinco camarotes, além do meu e das
baratas, a cabine de comando, quatro banheiros com chuveiros, quatro pias,
reservatório de água potável e gelada, enorme mesa retangular para as
refeições. O piso lotava de sacolas e objetos, o teto, de roupas e toalhas
penduradas. O convés inferior era usado para carga e descarga, cozinha, acesso
às maquinas e para a tripulação. Alguns passageiros armavam as redes no meio da
carga que não ficou no porão, entre caixas e mais caixas, e até um carro.
Me banhei demoradamente no chuveiro frio e forte. Enxaguei
as roupas e as vesti ainda molhadas. Parada para descarga de sal em Juruti no
final da tarde. Desci e circulei pelas ruas cheias de gente.
Ventos fortes fizeram o barco balançar muito pela manhã. A
impressão era que estávamos navegando no mar. Várias ilhas apareciam e se
desmanchariam com a ação violenta das águas. Nelas se viam casas e muito gado.
Conversei com um passageiro paraense, vendedor de sapatos.
A conversa ia muito agradável até que caiu no comércio da fé. Apelou ao
dogmatismo habitual dos fundamentalistas, vomitou frases feitas, muita bobagem.
Mudei de assunto na marra. Mesmo porque o hipócrita bebia, comentava baixarias
sobre mulheres e as comia com os olhos. Muitos passageiros eram evangélicos.
Havia momentos em que me sentia cercado pelas falas, cantos, mulheres de bigode
vestindo roupas medievais.
Pela manhã, após o encontro das águas barrentas do
Amazonas com as esverdeadas do Tapajós, o barco atracou em Santarém em porto de
enormes guindastes. Abaixo da foz do rio Tapajós, o rio Amazonas ficou ainda
mais largo, imponente e fascinante. O vento suave ainda provocava leve balanço
no barco. Quando não havia ilhas e o barco navegava a meio caminho entre as
duas margens, se notava apenas a linha escurecida no horizonte. Antes de
aportarmos em Monte Alegre passamos por canal margeado por muito verde,
mangues, poucas casas e pastagens de gado. A luz dourada de fim de tarde deu o
toque mágico à natureza do lugar.
O barco parou pouco tempo em Prainha no começo da noite.
Assim como nas demais paradas noturnas, a juventude da cidade, banhada e
arrumada, permanecia no cais para assistir ao embarque e desembarque de
passageiros. Um militar brasileiro, de feições indígenas, apreciava a
movimentação, fardado e em posição de sentido, tendo o bizarro nome Kissinger
bordado na farda.
Em parada em Almeirim no meio da madrugada ouvi a batida
do brega paraense tocado em alto volume. Entramos no fuso horário de Brasília.
No meio da manhã, chegada em Gurupá, simpática cidadezinha, com construções de
madeira, inclusive todo o cais, onde se emaranhavam dezenas de barcos de
diversos tamanhos.
O barco deixou o canal principal do rio Amazonas e avançou
por entre rios e ilhas do extremo sul da ilha do Marajó. Tanto na entrada, como
nas margens dos canais menores, pequenas casas de madeira ou palha. Não se via
nada plantado. Nenhuma horta, criação, nada. Madeireiras, transnacionais na
maioria, atuavam nas imediações. Em meio aos canais e ilhas se pediam esmolas a
quem passava. Geralmente ocupadas por crianças saídas dos casebres, canoas
rumavam na direção do barco, formando, em seqüência, longa fileira de canoas.
As crianças agitavam as mãos e gritavam histericamente. Os passageiros do barco
jogavam comida e roupas em sacos plásticos. As cenas causavam mal-estar,
particularmente pela abundância, ao redor, de água, terra e verde.
A paisagem, porém, fascinava e ganhava mais nitidez devido
à estreiteza dos canais. Os açaizeiros abundavam carregados de frutos. Mais à
frente os canais se alargaram. As diversas entradas e saídas de água, em ambos
os lados, eram mais evidentes.
Último café da manhã a bordo. Momento de arrumar tudo e se
despedir das baratas, inclusive daquelas mais preguiçosas que fixaram
residência na capa da mochila. Mais imagens de partes do arquipélago, dezenas
de barcos de passageiros dos mais variados tamanhos.
O barco fez a curva acentuada e a baía de Guajará se
apresentou, com a cidade de Belém no final do horizonte. Era uma larga muralha
de edifícios altos ainda indefinidos pela distância. Pesava sobre a baía de
Guajará a sina de afundar embarcações devido à forte influência da maré. Daí a
maioria dos barcos chegarem a esse trecho somente nas primeiras horas da manhã,
sob o risco de enfrentar correntezas traiçoeiras e prováveis naufrágios.
Esperamos ainda algumas horas antes de chegarmos. Passamos em frente ao centro
antigo, o mercado Ver-o-Peso, o burburinho da zona comercial. O barco atracou
nas docas do porto de Belém no meio da manhã.
Caí nas ruas da cidade em busca de hospedagem nas ruas do
centro velho. Logo em seguida, degustei dois tacacás e um vatapá com arroz e
jambu.
À tarde o céu escureceu, estouraram trovões por toda parte
e desabou temporal tipicamente amazônico. Permaneci o resto da tarde chuvosa no
quarto do hotel, lendo e avaliando os próximos passos da viagem. Não saíam da
cabeça as boas lembranças da viagem de barco pelo rio Amazonas e os desejos de
repetir a dose em outros rios da região.
Fora do centro antigo, Belém se parecia com qualquer
cidade grande, com a infinidade de edifícios altos, trânsito caótico, intenso e
nervoso, poluição sonora das buzinas estridentes, escapamentos de caminhões em
manobra, alarmes de carros. Dei uma volta pelo centro histórico, com ruas
estreitas, construções antigas, bonitas e mal conservadas. Em bom estado apenas
os prédios públicos, igrejas, museus. A catedral, suntuosa e bonita, por fora e
por dentro. Nas imediações do mercado Ver-o-Peso, muita sujeira se espalhava ao
redor das barracas de frutas, verduras, temperos, comidas, roupas, as com o
creme do açaí pronto para o consumo. Na parte interna, dezenas de barracas de
peixe. Instalado dentro de antigo forte, havia o restaurante de comidas típicas
paraenses. Saboreei o autêntico pato no tucupi e o divino suco de cupuaçu,
diante da baía de Guajará, com o circular de barcos de diversos formatos e
tamanhos.
Doei minha rede à camareira do hotel. Deixei a mochila no
guarda-volumes da estação rodoviária e voltei de ônibus à região do teatro da
Paz. Perto dali, outro restaurante de comida regional, porém em atmosfera
pretensiosa, ambiente artificialmente requintado, ar condicionado congelando o
ambiente. A frequência, a nata da alta sociedade belenense e de estrangeiros a
trabalho, acompanhados de prováveis testas de ferro do Brasil. Foi servida
porção minúscula em enorme prato estilizado e coberto de enfeites. A sobremesa
típica também revelava mais prato que conteúdo. Paguei caro e saí com fome.
Ganhei de brinde um prato decorativo que entreguei à moradora de rua da
esquina.
O ônibus para Parnaíba também vinha com o ar condicionado
desnecessariamente gelado. Na parada em Caxias foi servido o café da manhã
substancioso já incluído no preço da passagem. A estação das chuvas deixava a
paisagem agreste esverdeada no interior do Piauí. Passageiros com rostos
sofridos subiam e desciam nas cidades intermediárias, vilarejos, no meio do
nada. A trabalhadora rural que se sentou ao meu lado no trecho piauiense dava
exemplo de luta e perseverança. A sindicalista se movimentava por toda a região
na conscientização dos colegas de classe, jamais esmorecendo diante das
dificuldades.
Desembarquei em Parnaíba e fui ao hotel de moto-táxi,
cruzando a cidade plana, limpa, bem arrumada, com raros prédios altos. Na
margem do rio Parnaíba, o Porto das Barcas, local de fundação da cidade com o
conjunto de construções históricas. A área contava com ruelas, lojas de
artesanato, bares e restaurantes, onde caí de cabeça, várias vezes, nas
deliciosas galinhas ao molho pardo.
Tomei o ônibus para a praia de Atalaia no município de
Luis Correia. Sem graça, extensa, plana e sem vegetação, a praia possuía muitos
bares e cadeiras perto da linha do mar. A notável qualidade era a ausência de
lixo. Peguei o rumo leste com as areias praticamente desertas. Caminhei mais de
duas horas sob o sol inclemente até alcançar a praia do Coqueiro, mais bonita e
simpática, onde saboreei caipirinha e peixada.
continua...
Olá! Achei fantástico o seu texto, sua descrição mostra que você é um bom observador. Lendo seu texto me senti em uma experiência antropológica!
ResponderExcluirwww.estante450.blogspot.com.br
Oi Cassia, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirNão me restrinjo a descrever, mas tento analisar e refletir sobre o que vejo é sinto. Talvez por isso se diferencie dos blogs de viagens tradicionais.
Comente sempre, este é tantos outros relatos publicados neste blog.