domingo, 12 de setembro de 2010

do Acre ao Maranhão (parte 7/7)

...continuação
A apresentação do grupo de carimbó da ilha do Marajó contava com danças representando temas específicos, como gado, trabalho, amor, pesca, entre outros. Muito sensual e contagiante com as dançarinas requebrando os quadris e levantando coloridas saias rodadas.
A chuva caiu em cheio na volta a Belém. O barco balançou horrores e entrou águas pelas laterais.
Após árdua procura em sebos fraquíssimos de opções, comprei em sebo o livro Senhora, de José de Alencar.
À noite, além dos frequentadores habituais nos restaurantes, bares e sorveterias, a estação das Docas apresentava danças de carimbó ao ar livre e o bumba-meu-boi em teatro fechado. Do outro lado da avenida, em frente aos armazéns do porto, dezenas de barracas atulhadas de gente agitavam com o concurso de quadrilhas de São João. Bem mais interessante e emocionante. Ali a frequência era mais eclética e à vontade. Mais diversão e menos exibição.
 O ônibus, sem o quase sempre supérfluo ar condicionado, partiu no começo da noite rumo ao Maranhão. Espaço de sobra, ventilação natural e refrescante, bons cochilos. Despertei para apreciar a paisagem pela janela durante o amanhecer. A neblina espessa cobria vilarejos, campos e florestas. Logo depois entrou na pequena estação rodoviária de Cururupu.
A maranhense Cururupu era pequena, pacata, pobre e simpática, assim como a maioria dos moradores. Casas antigas, muitas de taipa. Mais abaixo do centro da cidade, o rio estreito, caudaloso e cercado de manguezais, seguia lentamente o rumo à foz poucos quilômetros abaixo. A cidade guardava jeito mais nordestino e menos amazônico. Muitos negros bem escuros circulavam pelas ruas e praças. Caranguejos, diretos dos mangues vizinhos, eram vendidos nas ruas, de porta em porta. Diversas e precárias carroças puxadas a jegue, o principal meio de transporte de carga, circulavam pelas ruas.
À noite me misturei nas comemorações das festas juninas em meio a poucas e descaracterizadas barracas. Somente as liberadas pela prefeitura estavam montadas. Havia também o palco em frente para apresentações musicais. Fogueiras de diversos tamanhos ardiam pelas ruas. Grupos de bumba-meu-boi exibiram os ritmos, figurinos e danças, rústicas e cativantes como sempre. Os grupos de sotaque de costa de mão, típico da região, levam esse nome em razão dos percursionistas usarem as costas das mãos na batida dos pandeiros. Versos folclóricos e rimados entoavam críticas à administração municipal e ao prefeito. O público delirava e aplaudia com entusiasmo. Era quase meia-noite quando deu início a apresentação de forró eletrônico, banda padronizada, mulheres dançando coreografias ensaiadas e nada originais. Pouca roupa, pouca música e pouca empolgação do público também.

Feriado do padroeiro da cidade. Logo pela manhã ouvia-se a percussão dos grupos de bumba-meu-boi nos diversos cantos da cidade. Dos alto-falantes da igreja vinham cantos religiosos e rezas sem fim. Dei uma grande volta pela cidade, especialmente nas regiões mais periféricas. A pobreza e miséria assustavam. A maioria das ruas sem calçamento, apenas terra ou areia com muitos buracos. Casas de pau-a-pique e, mesmo naquelas com paredes de alvenaria, os interiores eram assustadores. Bastava sair do centro da cidade para mergulhar na miséria e abandono. A população aí residente, negra na maioria, sobrevivia amontoada em casebres imundos sem água e esgoto. Homens e mulheres carregavam sobre a cabeça baldes e lata de água para cima e para baixo. Nenhuma presença da administração pública. Os pobres coitados vegetavam sem saber como seria o dia seguinte.   
Os moradores primavam pela discrição e simpatia. Minha presença chamava a atenção nas áreas mais pobres. Eles paravam de conversar, dirigiam os olhares em minha direção, assustados, perplexos pela minha intrusão.
À noite, em frente à igreja matriz, diversos grupos de bumba-meu-boi, todos de sotaque de costa de mão, se revezaram nas apresentações. Antes de término, o padre não se cansava de repetir aos fiéis para não se dispersarem e tampouco irem à outra praça ver os grupos de quadrilhas. O receio era que público não permanecesse para os cantos religiosos que vieram a seguir. Preferi ver as quadrilhas e fui embora. A maioria fez o mesmo.
As quadrilhas, vindas de diversos distritos e comunidades vizinhas a Cururupu, eram simples, autênticas e espontâneas. O grande público presente assistia com muita atenção e aplaudia no final.
A condição das estradas maranhenses estava lamentável, com muitos buracos, crateras, trechos de terra e pedras, em abandono total. A situação era a mesma até nas proximidades da cidade de Pinheiro, terra natal de José Sarney. Não faltavam por ali logradouros e prédios públicos com o nome de alguém da família do sujeito. Apenas as incontáveis casas de taipa, emblemáticas da miséria da região, não levavam aqueles nobres nomes. O maravilhoso povo maranhense não merecia esse horror.

Três meninas embarcaram no micro-ônibus na parada em Pinheiro. Menores de idade, com cabelos tingidos de loiro, usando roupas provocantes, usavam e abusavam da exibição. Uma delas se recusou a me dizer o que fazia e o que pretendia em São Luís. Pelos resmungos e ingênuas mentiras, as três estavam a caminho da prostituição na capital.
A travessia da balsa passou rápido. Todos precisaram descer e se instalar no convés. A lotação garantiu animação nas redondezas do bar. As três meninas foram bastante abordadas no trajeto da balsa. Quando a balsa saiu do canal e entrou no mar da baía de São Marcos, as águas tornaram-se bastante turbulentas e o balanço foi grande. Aqueles com estômagos mais sensíveis faziam fila nos banheiros para vomitar.
O desembarque se deu ao lado do porto de Itaqui. Novo embarque no micro-ônibus até o anel viário, nas imediações do centro de São Luís.
Jantei em restaurante do projeto Reviver, no coração da Praia Grande, local sempre bonito, simpático e alegre do centro histórico. E com muitas putas oferecendo-se para os turistas desavisados. Mas a frequência era variada, inclusive com muitos ludovicenses. Rever o centro histórico de São Luís, sobretudo à noite, maravilhava pelo impacto. A iluminação amarelada, as ladeiras, os casarões, o calçamento, as escadarias, o mar batendo nas muradas, formavam conjunto perfeito, verdadeira pintura.
O café da manhã do hotel mantinha firmemente a tradição. Catastrófico. Salão velho, pão velho, queijo velho, suco aguado e sabe-se lá de quando, funcionárias mortas vivas. E para coroar a tortura matinal, o televisor ligado em programa evangélico. Com aspecto de traficante e voz histérica, o pastor berrava as bobagens de sempre. Precisaria arranjar outro hotel para as próximas visitas à cidade.

As praias de São Luís localizam-se fora do centro histórico, depois da ponte, em área mais moderna com avenidas largas, lagoas, edifícios altos. Giro pela despretensiosa praia do Calhau, recém-urbanizada com extenso calçadão, bares em quiosques padronizados, além de casas e edifícios nas partes mais altas. Estava quase vazia e o movimento garantia a atmosfera agradável. 
As festas juninas em São Luís eram um caso a parte, com duração de mais de quinze dias. E se espalhavam em dezenas de arraiais bem organizados, onde os diversos bois e grupos das danças sensuais do Cacuriá, da capital e do interior, se revezavam em apresentações desde o início da noite até a alta madrugada. O arraial do Ceprama animava a todos com muito espaço, barracas de comes e bebes, excelente visualização e, por isso, bastante prestigiado pela população, que lotava, cantava e dançava com os bois preferidos. Catálogos coloridos com toda a programação eram distribuídos gratuitamente em diversos locais da cidade. Os arraiais eram monopolizados desgraçadamente pela transnacional coca-cola. Refrigerantes e cerveja, somente os dela. Quem quisesse outras variedades, era obrigado a sair do local e tentar algo nos ambulantes ao redor. Foi o que fiz.
De todos os sotaques do bumba-meu-boi o de orquestra era o pior. Em ritmo, música, letra, coreografias, formas de apresentação. O que mais se afastava da cultura popular, não por coincidência, era o mais comercial e profissional. Ao contrário dos bois autênticos, onde o cantador, músicos e dançarinos dançavam junto ao povo, os de sotaque de orquestra se separavam no palco e longe do povo. O cantor, os instrumentos de sopro e três bailarinas deixavam os demais integrantes na plateia. O boi, pequeno e de pouca importância, quase não aparecia e ficava esquecido em qualquer canto. O tal cantor, além de propagandas constantes do CD e de camisetas, a todo instante gritava o nome do grupo, seguido pela frase “a sensação do seu coração”. As letras das músicas eram pobres e descaracterizadas, permeadas com versos ufanistas e de mau gosto. A coreografia das dançarinas aproximava-se daquelas de programas de auditório de televisão. Chegavam ao cúmulo da apelação com letras falando de “cristo salvador” e outras idiotices fundamentalistas. Os meus favoritos, e da maioria do público, eram os com sotaque de matraca, de zabumba e de baixada.

O ônibus para São Paulo partiu pela manhã com poucos passageiros. Mas antes de Santa Inês já tinha lotado. Os passageiros se deram bem, surgiram diversas e animadas conversas, as crianças se comportaram e o tempo passou rápido e agradavelmente.
O itinerário do ônibus cortou o Maranhão no sentido sudoeste, passando por Miranda, Santa Inês, Açailândia, Imperatriz, expondo toda a miséria e abandono das populações locais. Casebres de taipa, caminhos de terra, saneamento básico nulo, crianças em trapos, doenças e demais maravilhas oriundas da injustiça social. Ao redor, imensas fazendas, cercadas. Os latifundiários desmatavam tudo para criar gado ou simplesmente especular com a terra vazia. A população miserável funcionava como reserva de mão de obra barata, sempre a mendigar pequenos serviços.
A estrada transformou-se em festival de buracos e barro ao sul de Santa Inês, em meio ao relevo montanhoso, com serras e curvas sinuosas. Extensos trechos sem pavimentação e com as cercas dos latifúndios invadindo e estreitando a rodovia. O tráfego de veículos tornava-se mais complicado e perigoso. Anoiteceu e aquela miséria ficou ainda mais sufocante.
Amanhecemos em plena rodovia Belém/Brasília no estado do Tocantins. Monotonia, retas infindáveis e nada de interessante. A compensação ficava por conta dos simpáticos passageiros que ajudavam passar o tempo.
A cidade de São Paulo nos deu as boas vindas com enorme congestionamento na marginal Tietê. Desembarque no terminal rodoviário do Tietê, no mês de julho, cinquenta horas após a saída de São Luís. Saudades das cafuzas, dos bois com sotaques de matraca e de baixada.

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