...continuação
A apresentação do grupo de carimbó da ilha do Marajó
contava com danças representando temas específicos, como gado, trabalho, amor,
pesca, entre outros. Muito sensual e contagiante com as dançarinas requebrando
os quadris e levantando coloridas saias rodadas.
A chuva caiu em cheio na volta a Belém. O barco balançou
horrores e entrou águas pelas laterais.
Após árdua procura em sebos fraquíssimos de opções, comprei
em sebo o livro Senhora, de José de
Alencar.
À noite, além dos frequentadores habituais nos
restaurantes, bares e sorveterias, a estação das Docas apresentava danças de carimbó
ao ar livre e o bumba-meu-boi em teatro fechado. Do outro lado da avenida, em
frente aos armazéns do porto, dezenas de barracas atulhadas de gente agitavam
com o concurso de quadrilhas de São João. Bem mais interessante e emocionante.
Ali a frequência era mais eclética e à vontade. Mais diversão e menos exibição.
O ônibus, sem o
quase sempre supérfluo ar condicionado, partiu no começo da noite rumo ao
Maranhão. Espaço de sobra, ventilação natural e refrescante, bons cochilos.
Despertei para apreciar a paisagem pela janela durante o amanhecer. A neblina
espessa cobria vilarejos, campos e florestas. Logo depois entrou na pequena
estação rodoviária de Cururupu.
A maranhense Cururupu era pequena, pacata, pobre e simpática,
assim como a maioria dos moradores. Casas antigas, muitas de taipa. Mais abaixo
do centro da cidade, o rio estreito, caudaloso e cercado de manguezais, seguia
lentamente o rumo à foz poucos quilômetros abaixo. A cidade guardava jeito mais
nordestino e menos amazônico. Muitos negros bem escuros circulavam pelas ruas e
praças. Caranguejos, diretos dos mangues vizinhos, eram vendidos nas ruas, de
porta em porta. Diversas e precárias carroças puxadas a jegue, o principal meio
de transporte de carga, circulavam pelas ruas.
À noite me misturei nas comemorações das festas juninas em
meio a poucas e descaracterizadas barracas. Somente as liberadas pela
prefeitura estavam montadas. Havia também o palco em frente para apresentações
musicais. Fogueiras de diversos tamanhos ardiam pelas ruas. Grupos de
bumba-meu-boi exibiram os ritmos, figurinos e danças, rústicas e cativantes
como sempre. Os grupos de sotaque de costa de mão, típico da região, levam esse
nome em razão dos percursionistas usarem as costas das mãos na batida dos
pandeiros. Versos folclóricos e rimados entoavam críticas à administração
municipal e ao prefeito. O público delirava e aplaudia com entusiasmo. Era
quase meia-noite quando deu início a apresentação de forró eletrônico, banda
padronizada, mulheres dançando coreografias ensaiadas e nada originais. Pouca
roupa, pouca música e pouca empolgação do público também.
Feriado do padroeiro da cidade. Logo pela manhã ouvia-se a
percussão dos grupos de bumba-meu-boi nos diversos cantos da cidade. Dos
alto-falantes da igreja vinham cantos religiosos e rezas sem fim. Dei uma
grande volta pela cidade, especialmente nas regiões mais periféricas. A pobreza
e miséria assustavam. A maioria das ruas sem calçamento, apenas terra ou areia
com muitos buracos. Casas de pau-a-pique e, mesmo naquelas com paredes de
alvenaria, os interiores eram assustadores. Bastava sair do centro da cidade
para mergulhar na miséria e abandono. A população aí residente, negra na
maioria, sobrevivia amontoada em casebres imundos sem água e esgoto. Homens e
mulheres carregavam sobre a cabeça baldes e lata de água para cima e para
baixo. Nenhuma presença da administração pública. Os pobres coitados vegetavam
sem saber como seria o dia seguinte.
Os moradores primavam pela discrição e simpatia. Minha
presença chamava a atenção nas áreas mais pobres. Eles paravam de conversar,
dirigiam os olhares em minha direção, assustados, perplexos pela minha
intrusão.
À noite, em frente à igreja matriz, diversos grupos de
bumba-meu-boi, todos de sotaque de costa de mão, se revezaram nas
apresentações. Antes de término, o padre não se cansava de repetir aos fiéis
para não se dispersarem e tampouco irem à outra praça ver os grupos de
quadrilhas. O receio era que público não permanecesse para os cantos religiosos
que vieram a seguir. Preferi ver as quadrilhas e fui embora. A maioria fez o
mesmo.
As quadrilhas, vindas de diversos distritos e comunidades
vizinhas a Cururupu, eram simples, autênticas e espontâneas. O grande público
presente assistia com muita atenção e aplaudia no final.
A condição das estradas maranhenses estava lamentável, com
muitos buracos, crateras, trechos de terra e pedras, em abandono total. A
situação era a mesma até nas proximidades da cidade de Pinheiro, terra natal de
José Sarney. Não faltavam por ali logradouros e prédios públicos com o nome de
alguém da família do sujeito. Apenas as incontáveis casas de taipa,
emblemáticas da miséria da região, não levavam aqueles nobres nomes. O
maravilhoso povo maranhense não merecia esse horror.
Três meninas embarcaram no micro-ônibus na parada em
Pinheiro. Menores de idade, com cabelos tingidos de loiro, usando roupas
provocantes, usavam e abusavam da exibição. Uma delas se recusou a me dizer o
que fazia e o que pretendia em São Luís. Pelos resmungos e ingênuas mentiras, as
três estavam a caminho da prostituição na capital.
A travessia da balsa passou rápido. Todos precisaram
descer e se instalar no convés. A lotação garantiu animação nas redondezas do
bar. As três meninas foram bastante abordadas no trajeto da balsa. Quando a
balsa saiu do canal e entrou no mar da baía de São Marcos, as águas tornaram-se
bastante turbulentas e o balanço foi grande. Aqueles com estômagos mais
sensíveis faziam fila nos banheiros para vomitar.
O desembarque se deu ao lado do porto de Itaqui. Novo embarque
no micro-ônibus até o anel viário, nas imediações do centro de São Luís.
Jantei em restaurante do projeto Reviver, no coração da
Praia Grande, local sempre bonito, simpático e alegre do centro histórico. E
com muitas putas oferecendo-se para os turistas desavisados. Mas a frequência
era variada, inclusive com muitos ludovicenses. Rever o centro histórico de São
Luís, sobretudo à noite, maravilhava pelo impacto. A iluminação amarelada, as
ladeiras, os casarões, o calçamento, as escadarias, o mar batendo nas muradas,
formavam conjunto perfeito, verdadeira pintura.
O café da manhã do hotel mantinha firmemente a tradição.
Catastrófico. Salão velho, pão velho, queijo velho, suco aguado e sabe-se lá de
quando, funcionárias mortas vivas. E para coroar a tortura matinal, o televisor
ligado em programa evangélico. Com aspecto de traficante e voz histérica, o
pastor berrava as bobagens de sempre. Precisaria arranjar outro hotel para as
próximas visitas à cidade.
As praias de São Luís localizam-se fora do centro
histórico, depois da ponte, em área mais moderna com avenidas largas, lagoas,
edifícios altos. Giro pela despretensiosa praia do Calhau, recém-urbanizada com
extenso calçadão, bares em quiosques padronizados, além de casas e edifícios
nas partes mais altas. Estava quase vazia e o movimento garantia a atmosfera
agradável.
As festas juninas em São Luís eram um caso a parte, com
duração de mais de quinze dias. E se espalhavam em dezenas de arraiais bem
organizados, onde os diversos bois e grupos das danças sensuais do Cacuriá, da
capital e do interior, se revezavam em apresentações desde o início da noite
até a alta madrugada. O arraial do Ceprama animava a todos com muito espaço,
barracas de comes e bebes, excelente visualização e, por isso, bastante
prestigiado pela população, que lotava, cantava e dançava com os bois
preferidos. Catálogos coloridos com toda a programação eram distribuídos
gratuitamente em diversos locais da cidade. Os arraiais eram monopolizados
desgraçadamente pela transnacional coca-cola. Refrigerantes e cerveja, somente
os dela. Quem quisesse outras variedades, era obrigado a sair do local e tentar
algo nos ambulantes ao redor. Foi o que fiz.
De todos os sotaques do bumba-meu-boi o de orquestra era o
pior. Em ritmo, música, letra, coreografias, formas de apresentação. O que mais
se afastava da cultura popular, não por coincidência, era o mais comercial e
profissional. Ao contrário dos bois autênticos, onde o cantador, músicos e
dançarinos dançavam junto ao povo, os de sotaque de orquestra se separavam no
palco e longe do povo. O cantor, os instrumentos de sopro e três bailarinas
deixavam os demais integrantes na plateia. O boi, pequeno e de pouca
importância, quase não aparecia e ficava esquecido em qualquer canto. O tal
cantor, além de propagandas constantes do CD e de camisetas, a todo instante
gritava o nome do grupo, seguido pela frase “a sensação do seu coração”. As
letras das músicas eram pobres e descaracterizadas, permeadas com versos
ufanistas e de mau gosto. A coreografia das dançarinas aproximava-se daquelas
de programas de auditório de televisão. Chegavam ao cúmulo da apelação com
letras falando de “cristo salvador” e outras idiotices fundamentalistas. Os meus
favoritos, e da maioria do público, eram os com sotaque de matraca, de zabumba
e de baixada.
O ônibus para São Paulo partiu pela manhã com poucos
passageiros. Mas antes de Santa Inês já tinha lotado. Os passageiros se deram
bem, surgiram diversas e animadas conversas, as crianças se comportaram e o
tempo passou rápido e agradavelmente.
O itinerário do ônibus cortou o Maranhão no sentido
sudoeste, passando por Miranda, Santa Inês, Açailândia, Imperatriz, expondo
toda a miséria e abandono das populações locais. Casebres de taipa, caminhos de
terra, saneamento básico nulo, crianças em trapos, doenças e demais maravilhas
oriundas da injustiça social. Ao redor, imensas fazendas, cercadas. Os
latifundiários desmatavam tudo para criar gado ou simplesmente especular com a
terra vazia. A população miserável funcionava como reserva de mão de obra
barata, sempre a mendigar pequenos serviços.
A estrada transformou-se em festival de buracos e barro ao
sul de Santa Inês, em meio ao relevo montanhoso, com serras e curvas sinuosas.
Extensos trechos sem pavimentação e com as cercas dos latifúndios invadindo e
estreitando a rodovia. O tráfego de veículos tornava-se mais complicado e
perigoso. Anoiteceu e aquela miséria ficou ainda mais sufocante.
Amanhecemos em plena rodovia Belém/Brasília no estado do
Tocantins. Monotonia, retas infindáveis e nada de interessante. A compensação
ficava por conta dos simpáticos passageiros que ajudavam passar o tempo.
A cidade de São Paulo nos deu as boas vindas com
enorme congestionamento na marginal Tietê. Desembarque no terminal rodoviário
do Tietê, no mês de julho, cinquenta horas após a saída de São Luís. Saudades
das cafuzas, dos bois com sotaques de matraca e de baixada.
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