segunda-feira, 13 de setembro de 2010

do Mato Grosso à Bahia, via Amazônia (parte 1/7)

Em novembro larguei a paranoia do bug do milênio no banco onde trabalhava e decidi explorar o Monte Roraima e o Pico da Neblina no norte da Amazônia. E com tempo suficiente para aproveitar o caminho até o encontro com os colegas da empreitada em Boa Vista.
O ônibus com destino a Cuiabá saiu de manhã do Terminal Rodoviário da Barra Funda praticamente vazio. Ao chegar peguei outro ônibus para a cidade de Chapada dos Guimarães, cujo percurso passou por dentro do parque nacional, margeando imponentes escarpas. Jantar muito saboroso na base de galinha caipira com arroz e farofa de banana. A porção era imensa. Mesmo faminto, sobrou muito. Ainda teve a pinga da região, muito gostosa e gratuita.
Durante a noite, além dos mosquitos, o galo do vizinho da pousada não parou de cantar, histericamente.
Decidi me encaixar em passeio de grupo, difícil sem guia e transporte próprio, rumo à cachoeira da Martinha, caverna Aroe Jarí, gruta do Lago Azul e à Cidade de Pedra. Para atingi-las foi preciso encarar bastante estrada de terra, trilhas pelo cerrado e matas ciliares. A gruta do Lago Azul impressionou pelo tom azulado da água. A Cidade de Pedra reservava vista maravilhosa das escarpas da chapada e dos vales mais abaixo. Na parte alta e aplainada da chapada predominavam monoculturas de soja e fazendas de gado, mas os blocos rochosos de diversas formas e tamanhos chamavam mais a atenção. De volta à cidade, vazia naquela época do ano, delicioso jantar com o grupo na base de muita comida típica e pinga artesanal.
Durante o café da manhã da pousada surgiram paranaenses do interior, bem típicos, broncos, com medo de gente. Foi o sufoco para eles responderem ao simples “bom dia”. Peguei o ônibus local e caminhei até a entrada do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Visitei a cachoeira Véu de Noiva, as escarpas e os vales e, mais adiante, pelas trilhas no cerrado, límpidas cachoeiras, maravilhosamente sem ninguém. Deu para ficar nu e relaxar de verdade. As trilhas prosseguiam em meio ao cerrado com vistas dos paredões.

Aceitei a sugestão do mesmo guia de dias antes de caminhar até o morro São Jerônimo, o ponto culminante da Chapada dos Guimarães. Surgiu excursão de colegiais vindo do interior de Rondônia. Quase cinqüenta adolescentes mais dois coordenadores lotavam o ônibus de turismo. O passeio ficaria bem mais barato dividindo com a tropa. Eu e o guia fomos em pé, na frente, junto ao motorista. No toca-fitas rolava em volume altíssimo a música cujo refrão dizia:
Não te quero mais, Me deixe em paz, Procure outro rapaz (repete).
Piranha! (repete).
E no final arrematava com o doce verso “Socorro polícia, essa mulher roubou minha carteira”.
Antes da caminhada, cerca de vinte adolescentes empacaram logo na primeira cachoeira, urbanizada, e ali ficaram. Os remanescentes partiram para a caminhada, sob o sol quente, com chinelo de dedo, sem camisa, garrafas de água penduradas por barbantes, enormes sacos de sanduíche, bolachas, uma enorme e pesada filmadora. Antes de completar o primeiro quilômetro de trilha já estavam exaustos e querendo desistir, muitos já descalços. Mas apertaram o passo e passaram a curtir. Conversavam comigo e até elogiavam o guia. Subiram os paredões do morro satisfeitíssimos, fotografaram bastante, filmaram as explicações do guia.
Deixei o dia seguinte para não fazer nada e me entregar à lentidão e à preguiça da interiorana Chapada dos Guimarães. Circulei pelas ruas onde se construíam casas grandes para os ricaços de temporada. Na zona central, conforme determinação contemporânea à criação do parque nacional, somente casas térreas, janelas de madeira e acabamento colonial.
Durante a noite de sábado reencontrei os rondonienses na praça lotada. Além da escola ajudavam nas lavouras ao redor da cidade fundada pelos pais, imigrantes principalmente paranaenses e gaúchos. O grupo bancou a excursão a partir de contribuição de dois reais por cabeça, mais o dinheiro arrecadado em festas beneficentes. Extremamente broncos, simpáticos, sinceros e autênticos, contaram das cobras, muito trabalho, pouco lazer, hábitos conservadores, banhos de rio, falta de dinheiro.
Entrei novamente no parque nacional e explorei as trilhas situadas depois da cachoeira Véu de Noiva. Após a trilha íngreme, encontrei cachoeira quase selvagem com queda de cerca de quarenta metros. Araras voavam no céu azul. Depois de meia hora de absoluta tranquilidade surgiram três turistas guiados. Com menos de 30 anos, muito magra e tensa, a paulista explicou que a consultora esotérica lhe recomendou a viagem porque a data e o local se casavam com os astros no dia do aniversário dela. Ficaria na chapada apenas três dias e depois voltaria ao trabalho estafante. A coitada chegou tensa, permaneceu tensa e assim retornaria.

Tomei o ônibus urbano para Cuiabá. Na rodoviária, esperei o ônibus proveniente de Curitiba e com destino a Porto Velho. O ônibus era do tipo semileito, com terrível e gelado ar condicionado, água à vontade e aqueles incômodos suportes para pernas e pés. A frequência, claro, de paranaenses e sulistas em geral.
Depois de Várzea Grande a estrada sinuosa desviou para oeste evitando os trechos mais íngremes e dramáticos das chapadas, com serras de coloração verde escura, cerrado, escarpas. Nas partes baixas, extensas planícies parcialmente alagadas, fazendas e muito gado. Próximo ao entroncamento da fronteira boliviana, no meio da serra e sob a forte chuva, agentes da Polícia Federal pararam o ônibus para verificação de documentos dos passageiros masculinos. O veículo atravessou a plana cidade de Cáceres, com longas ruas de terra e muito verde. Haja mangueiras e sombras frescas. Mais à frente, o jantar em Pontes de Lacerda.
Na fronteira entre Mato Grosso e Rondônia a fiscalização sanitária apenas aconselhou aos passageiros a vacinação contra a febre amarela. O dia começou a clarear em Rondônia. Ao lado a cidade de, com o perdão da palavra, Presidente Médici.
Muitos sulistas desceram na parada em Pimenta Bueno durante a madrugada, quase esvaziando o ônibus. Embarcou e se sentou ao meu lado uma mineira de Ouro Fino. Idosa, morava na região desde 1964, quando nem havia estrada de terra. Até Porto Velho era preciso barcos pelo rio Machado e depois rio Madeira. A estrada veio mais tarde, com poeira, lama, atoleiros. Não tinha médicos, apenas enfermeiros despreparados e, eventualmente, estudantes do projeto Rondon. O marido faleceu em 1971 após aplicação indevida de injeção. Sobreviveu viúva à malária, hepatite e outras “febres de verão”, mantendo-se firme para, como lavadeira, sustentar sozinha os nove filhos. Foi atraída pelas falsas promessas da ditadura civil e militar. Depois da chegada, decepções e falta de dinheiro para voltar. Outros tantos milhares de seres humanos tiveram o mesmo destino.
A paisagem de Rondônia vista da janela do ônibus era desoladora. Cidades agitadas, como Ariquemes e Ji-Paraná, mas pobres, feias, sujas. Imensas áreas planas sem vestígios do que já foi a floresta amazônica. Não faltavam grandes galpões das madeireiras e caminhões transportando enormes toras. E no lugar da floresta? Plantações de alimentos, lavouras? Nada. Apenas o vazio cercado e as raríssimas criações de gado. A senhora mineira constatava e se entristecia com a catástrofe e a destruição desenfreada.
Ela se despediu emocionada na rodoviária de Porto Velho, afirmando que fora um prazer poder conversar comigo. Puxa, foi todo meu! Coloquei a mochila nas costas e, sob o sol escaldante, caminhei dez quarteirões até o hotel.
Porto Velho não tinha nada de especial. Plana com ruas longas, largas e planejadas, poucos prédios altos. Com exceção da parte central, tudo calmo e agradável de andar. Andei pela margem do rio Madeira, com o porto fluvial, os barzinhos, a estação desativada da ferrovia Madeira/Mamoré. A estação possuía museu com objetos e fotos que contavam a história da famosa ferrovia. Os textos falavam dos estrangeiros que trabalharam e acabaram ficando, entre os quais os negros de Barbados. O povo sempre desejou a reativação total da ferrovia. Mas, como em todo o país, é impedida pela ditadura do transporte rodoviário.

Na margem do rio Madeira, ancorados, barcos com destino a Manaus. Os vendedores das agências de passagens surgiam aos montes. Alto-falantes tocavam músicas e passavam recados pessoais. O monte de barro com pedaços de madeira servia de rampa para embarque e desembarque. Tudo muito improvisado e desleixado.
À noite, pelo centro, ruas desertas e sem iluminação. Raros veículos e nenhum pedestre. Breu total. Por outro lado, a tirania da televisão atingiu a cidade em cheio. Em praticamente todos os bares e restaurantes a desgraça estava ligada, para onde os frequentadores fixavam os olhares bovinos. Até nas barraquinhas de sanduíche existia a dita cuja voltada para as mesinhas dos fregueses.
Na outra margem do rio Madeira, nos acostamentos da BR-319, barracas cobertas com palha de buriti vendiam refrescos e salgadinhos. Numa delas, o homem gritava indignado para o colega:
“Onde já se viu admitir uma coisa dessas? A mulher chegou aqui em setembro e já arrumou quatro maridos nesse tempo. Assim não dá! Essa não presta”.
E emendava:
“Eu, quando cheguei aqui, até hoje já tive onze mulheres, com essa que está em casa. A primeira eu peguei na rua, dei comida para ela, ajeitei ela, deixei ela bem...”.
Em outra barraca três homens falavam mal dos índios, acusando-os de beberem um litro de pinga na mesma noite e quererem trocar três índias pela mulher do comerciante.
Encontrei churrascaria com comida saborosa, bela vista para o rio Madeira, trilha sonora de puteiro. Na árvore ao lado, a arara vermelha gritava por não suportar mais ouvir aquilo. Em frente, o grupo de amigos se confraternizava tomando vinho tinto. Embora servido gelado e em jarra, ainda acrescentavam pedras de gelo. Um deles estava a caráter, todo de preto, cinto com enorme fivela, botas, pulseiras.
Ainda era cedo no aeroporto. Enrolei, bebi umas e outras, belisquei amendoim. Em todas as alas do aeroporto os televisores transmitiam a instrutiva programação da tal rede de televisão. Contrato de exclusividade? Embarquei em voo vazio e tranquilo. Ainda estava claro e pude ver a floresta.
Em Boa Vista, de madrugada e sem ônibus urbanos, não consegui escapar de táxi caríssimo para percorrer o curto trecho até o hotel.
O centro oficial de Boa Vista, situada no hemisfério norte, fica na Praça do Centro Cívico, ampla, cercada por avenidas largas, prédios modernos, inclusive a catedral, palácio do governo, assembleia legislativa. Praticamente toda a cidade se espalhava em ruas e avenidas largas, sem edifícios altos. O sistema de ônibus urbano era organizado, com pequenos terminais, veículos novos, funcionários bem treinados e educados. O rio Branco parecia bem aproveitado como área de lazer pela população. Na margem erguia o núcleo histórico da capital de Roraima, com ruas estreitas, o porto, o mercado de peixes, o pequeno bairro com casebres de madeira, bares, a zona barra pesada.
A maioria da população da cidade era indígena, com pouca ou nenhuma miscigenação. O restaurante na beira do rio preparava uma caipirinha deliciosa, exibia vista panorâmica de praias atraentes, da ponte e das colinas ao fundo. A família de venezuelanos chegou e logo foram cumprimentados pelos brasileiros de outra mesa. Trocaram saudações e frases nas próprias línguas, sem traduções desnecessárias.

E amanheceu o dia do encontro. Os colegas mineiros finalmente desembarcaram em Boa Vista.
Viajamos por estrada plana, cortando o cerrado do norte de Roraima. Na divisa com a Venezuela relevo pouco mais acidentado. Serviço rápido e gratuito para obtenção do visto na fronteira. A pousada em Santa Helena de Uairén se compunha de ocas com os interiores, tetos, portas e quadros decorados pelo próprio proprietário. Dali se via a cidade e as montanhas mais ao fundo. O restaurante, improvisado no ateliê de pinturas. Comemos em meio a quadros, outras obras de arte, pincéis, tintas, ferramentas de trabalho.
Embarcamos cedo em veículos fora de estrada rumo ao início da trilha ao Monte Roraima, na aldeia indígena de Paraytepui. O caminho incluía inúmeros e enormes buracos, valetas profundas, somente restinhos de estrada aqui e ali.
Cumprimos as formalidades na portaria do parque nacional Canaima, visando o controle do limite máximo de pessoas. Os fiscais exigiram o roteiro detalhado da caminhada, os pontos e dias de acampamento, a data da volta. Com mais de dezoito quilos da minha mochila finalmente começamos a caminhar.
Em início fácil, por trilhas largas, bem marcadas e com poucas subidas, percorremos a savana venezuelana e logo na metade do dia começamos a avistar o Monte Roraima, à frente, e o monte Kukenan, à esquerda. O tempo abriu, as nuvens se dissiparam e a visão das imponentes montanhas ficou desimpedida. Jorrava do topo do monte Kukenan delgada queda d’água de centenas de metros.
A extensa e escorregadia laje de pedra no leito do rio Tek dificultou o cruzamento apesar da pouca água. E no rio Kukenan a forte correnteza sobre o fundo de pedras lisas e irregulares empacou o grupo na travessia. Depois de nos banharmos demoradamente, dormimos amontoados no casebre de taipa na margem do rio. Montar as barracas, porém, teria sido a opção mais adequada.
Pela manhã o monte Kukenan, iluminado pela luz do sol, nos presenteou a visão encantadora. A subida leve e constante antes do campo base do Monte Roraima quebrou a resistência, ainda mais com o estômago vazio. Após o lanche substancioso, iniciamos a longa subida até o topo, em trilha bastante íngreme, com pedras, trechos de mata, cursos d’água e até pequenas cachoeirinhas ou duchas naturais refrescantes. Margeando o paredão, o caminho parecia sem fim. A escarpa rochosa sobre nossas cabeças ficava cada vez mais alta. Toda a paisagem, porém, compensava e fascinava.
No topo, indescritível a visão das rochas negras, de vários formatos, dispersas nas nuvens. Escolhemos lugar abrigado, o “hotel”, para montar as barracas, sob a gruta na escarpa do morro. Em momentos de abertura do tempo era possível avistar, bem abaixo, os vales e os campos do primeiro dia. Comemos cedo e bastante, antes de desmaiar dentro da barraca.
continua...

4 comentários:

  1. Muito bom, gostei muito, vejo nos relatos sobre o modo dos paranaenses tratar as pessoas e me vem em mente que isso não é de agora, muitos sulistas que aqui vivem ainda mantes seus costumes grosseiros, meu pai é do Paraná mas ele não puxo tanto isso.

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  2. Olá, obrigado pelos comentários e os elogios.
    Longe de mim querer ofender o Paraná ou os paranaenses, tanto que gosto muito de viajar por lá. É que essa situação ocorreu em 1999 e, como você mesmo concordou, às vezes eles exageram na rispidez e evitam contatos humanos. Uma pena...
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    Abraços!

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  3. Um espetáculo da natureza! 👏👏👏👏👏👏👏

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  4. Oi Elza, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Adoro a Amazônia, apesar dos ataques constantes que sofrem a natureza e os moradores.
    O que não faltam no blog são relatos das muitas viagens que fiz pela região.
    Comente sempre!

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