quinta-feira, 2 de setembro de 2010

do Acre ao Maranhão (parte 2/7)

...continuação
A chegada em Eirunepé deu-se no início da segunda noite em local novamente sem porto, apenas a inclinação no barro ressecado. Desembarquei sem saber aonde ir. Ninguém no barco parecia conhecer a cidade. Caminhei na direção com mais iluminação. Um vereador apareceu do nada e me ofereceu carona na moto para me levar aos possíveis hotéis. Encarei o hotel que oferecia somente quatro quartos posteriormente construídos em cima do restaurante de mesmo nome.
Durante o café da manhã, o dono de salão de cabeleireiro, na cidade há três semanas e proveniente de Teresina, estranho a agitado, enchia a barriga até a tampa. Após a separação no Piauí ele trabalhou como motorista de circo antes de se dedicar à vocação. Pedia a todo instante mais pão às cozinheiras até que elas se cansaram suspendendo o reabastecimento da mesa. E me lançaram sorrisos marotos em insinuação à precária sanidade do cabeleireiro.
Eirunepé era cidade plana e, exceto no núcleo mais antigo, espalhava-se com ruas planejadas. O centro, nas proximidades do pobre mercado municipal, apesar de decadente e abandonado, ainda apresentava certo charme, com casas de madeira, ruas curvas e estreitas, barrancos sujos com escadas de madeira apodrecida em direção às águas do rio. Extremamente mal cuidada, a cidade parecia estar sem qualquer tipo de administração pública. A indiferença da população ou as criticas tímidas e superficiais só ajudavam a perpetuar a situação. Construções fechadas ou abandonadas indicavam o esvaziamento da cidade. Em êxodo regional, que não era exclusivo de Eirunepé, os moradores deixavam a terra natal para viver ilusões e inchar as periferias miseráveis das cidades grandes.
Um grande navio do governo estadual, o PAI, atracado próximo ao centro da cidade, atendia a centenas de pessoas amontoadas em longas filas. Atuando em diversas regiões do estado, prestava serviços itinerantes de saúde, documentação, assistência social, entre outras. Na tentativa de se aproveitarem da situação, várias faixas de políticos locais estendiam-se pelas imediações.

O almoço do restaurante do hotel, o único da cidade, era torturante. Carnes duras e secas, acompanhamentos requentados e sem tempero. Empurrava-os goela abaixo o quanto podia. A compensação vinha das ruas na venda do vinho de açaí. As carrocinhas, daquelas de pedreiro, passavam perto do horário do almoço, carregando enorme caixa de isopor lotada de sacos de um litro de vinho do açaí. Acrescido de açúcar e farinha de mandioca se chegava a alimento saboroso e altamente nutritivo. E também à felicidade por ingerir algo com prazer.
Absurdamente caros os gêneros de primeira necessidade. A região quase nada produz. Depende completamente do abastecimento das balsas provenientes de Manaus, carregadas de produtos trazidos nos caminhões do sul e sudeste do país. A exceção ficava por conta da farinha de mandioca, do açaí e do peixe, obtidos artesanalmente.
No bairro pobre na margem do rio, as construções eram suspensas e de madeira, incluídas as vias de locomoção e os acessos às casas. As moradias, de tamanho e formato semelhantes, estavam invariavelmente em mau estado. Sob as casas e vias, lama, zonas alagadas, água parada e lixo, muito lixo. Os moradores sentavam-se nas soleiras das portas, conversavam preguiçosamente, esperando o tempo passar. Com estilo de vida tão monótono, não era sem motivo que eu chamasse tanto a atenção e ajudasse a quebrar a rotina diária. Bastava sorrir para ser imediatamente correspondido e convidado para boa prosa.
Fui de voadeira com colegas ao igapó, lago formado pelas águas do rio Juruá na margem oposta à cidade. Em extensa área inundada, calma e belíssima, ainda mais quando se navegava lentamente pelos labirintos, árvores, imensas folhagens e plantas aquáticas distribuíam-se em meio ao espelho do rio. Ficamos com a lancha a deriva por horas, conversando e bebendo uma mistura insólita de cachaça com refrigerante de laranja. As conversas passaram por temas variados, desde a situação atual dos moradores da região, agricultura familiar, mulheres, vidas pessoais e até como fazer parto de emergência em canoas, conforme experiências vividas por eles. A chuva fina nos chicoteou na travessia do lago de volta à cidade.
A luz, movida à energia termoelétrica, se foi após o anoitecer. Parte da cidade ficou às escuras. O gerador particular garantiu parcialmente a iluminação do hotel. A luz da rua só retornou tarde da noite. Me sentei na frente do hotel para assistir ao vaivém dos moradores naquele breu total, a pé, de bicicleta, de moto.
A maioria da população da cidade não apresentava traços indígenas marcantes. Como em todo o vale do rio Juruá, a influência nordestina originada da imigração nas épocas dos ciclos da borracha era notada nos tipos físicos e até no modo de falar. Pequenos grupos de indígenas, longe das terras, eram atendidos precariamente em uma casa de assistência médica e social. Perambulavam descalços pela cidade, vestindo roupas urbanas, conversando em língua própria. Alguns bebiam e rolavam pelo chão.

A prática da sesta na cidade, rigorosamente cumprida, ia desde antes do meio-dia até quase às 15h. Praticamente nada funcionava, nem sorveterias, nem padarias. Ninguém nas ruas, somente o silêncio e o forte calor.
Nova falta de energia durante a noite seguinte. A população mostrava-se cada vez mais irritada com tamanho descaso. A situação se repetiu no final da outra manhã. Ficou suspensa até o início da tarde e durante a noite toda. Já se falava em ação civil pública contra o órgão estadual.
Moradores me brindaram com mais informações sobre os desmandos, arbitrariedades, clientelismo, autoritarismo, abuso de poder, corrupção, coação, chantagens e demais mazelas nos municípios da região, sobretudo Eirunepé. Os prefeitos não moram nas cidades que administram. Usam-nas apenas para encher os bolsos e como trampolim político. O prefeito do então PFL(DEM), um dos donos dos negócios Eirunepé e pela terceira vez no cargo, segundo eles, corrompeu a maioria da câmara municipal, o delegado, o juiz e outras autoridades públicas. Governava como um ditador e não admitia oposição ou críticas. A população vivia amedrontada e dependente da prefeitura para tudo, sejam funcionários públicos, comerciantes que superfaturavam as vendas ou a maioria pobre que mendigava favores. Quem ousava furar o bloqueio e denunciar as irregularidades, ainda que comprovadas em documentos, era perseguido como opositor pessoal do prefeito. O governo estadual estava ausente ou conivente. Não existia imprensa escrita na cidade, local ou regional. A emissora de rádio, quando funcionava, fazia coro à administração municipal que a sustentava. O principal adversário político era ligado ao grupo empresarial de uma grande rede de televisão. Também governou de maneira autoritária e corrupta.

Moradores da cidade de Guajará afirmaram que lá também eram comuns prisões sem acusação formal pelos policiais. Na delegacia, os detidos eram agredidos durante horas e, antes de serem soltos, sofriam ameaças de morte em caso de qualquer tipo de denúncia sobre o acontecido.
Novamente a energia esteve ausente durante a noite e voltou apenas de manhã. Corriam boatos de apedrejamento das máquinas da central termoelétrica. Embora a energia não fosse da alçada municipal, o prefeito era a maior autoridade local e deveria estar à frente de tudo. Porém, como o sujeito passava mais tempo viajando ou nas propriedades em Manaus, a cidade permanecia à deriva.
Mais um corte de energia do meio da tarde até a noite. E os ânimos se acirravam.
O pôr-do-sol para os lados do lago foi deslumbrante. As poucas nuvens no céu se tingiram de rosa, roxo, amarelo e vermelho.
Comentou-se de uma comunidade de estadunidenses no vale do rio Juruá com centenas de moradores, funcionando como território estrangeiro dentro do Brasil. Ninguém poderia entrar sem autorização, seja de barco ou avião. Os sobrevoos também estariam proibidos. Falou-se também de outra comunidade de japoneses. As supostas doações dessas imensas áreas teriam sido realizadas durante o regime neoliberal Fernando Henrique Cardoso.
Levei a mochila para o único camarote disponível do barco. Ainda era cedo, voltei à cidade para chupar picolé de buriti e conversar.
Em frente ao hotel, na casa de assistência social da prefeitura, ocorria a festa para convidados restritos. A energia era mais uma vez cortada e um grupo de manifestantes, formando pequena passeata de pedestres, bicicletas, motos e carros, portando faixas de protesto, dirigia-se à central termoelétrica. Ameaçavam apedrejar o local pela demora em consertar o gerador. Nesse intervalo, o prefeito entrava na tal festa privativa para se divertir com os correligionários.
Depois de mais de uma semana aguardando em Eirunepé, a partida do barco ocorreu no começo da noite, acompanhada de cena comovente de despedida de mais de cem pessoas, entre amigos e parentes dos passageiros. Assim que o motor acelerou, dezenas de acompanhantes ainda no barco para os abraços e beijos, correram para as escadas ou pularam do convés antes que fosse tarde. Os gritos, quase uivos, suspiros, lágrimas e choros, daqueles estacionados na balsa ao lado, pareciam não ter fim diante do lento afastamento do barco.

Depois da partida, e já no meio do lago, o barco parou à espera da passageira que se esqueceu de embarcar. Também a cozinheira do barco estava ausente e, como ninguém gostaria de passar fome, voltamos à margem para resgatá-la. A outra passageira não aparecia, embora toda a bagagem dela estivesse a bordo. Nova partida, mais gritos, uivos, choros. Logo a voadeira surgiu, a toda velocidade, com a passageira distraída. E lá fomos nós rio Juruá abaixo para dias e dias de percurso. Mas poderia me deliciar com leituras de Blecaute, de Marcelo Rubens Paiva, e O Livro de Ouro da Amazônia, de João Meirelles Filho.
A lotação máxima do barco quase foi atingida. O casal peruano com filho recém-nascido trouxe berços, banheiras, galões de água mineral, toalhas e fraldas. O camarote do outro lado do convés e contíguo ao meu era ocupado pela tripulação. O equipamento de som estava sempre engatilhado. Quando a energia do barco era ligada, à noite, eu era automaticamente presenteado com o repertório repugnante de Bruno e Marrone. Eles não cantavam, gritavam.
Não havia cestos de lixo nos dois pisos. Coitado do rio Juruá, da Amazônia e dos moradores. A passagem pela foz do rio Tarauacá se deu após o jantar. Choveu durante toda noite e, por segurança, o barco diminuiu a força do motor.
continua...

2 comentários:

  1. Boa tarde.

    Gostaria de receber referência de local para hospedagem na cidade de Eirunepé.

    Obrigado.
    Sandro Andrade Batista
    Belo Horizonte/MG

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  2. Oi Sandro, obrigado pelo contato. Naquele ano em Eirunepé fiquei em um hotel com apenas 4 quartos, chamado, por incrível que pareça, "O Bigode do meu Tio". Os outros poucos hotéis eram pavorosos. Em minha última viagem ao Amazonas, no ano passado, soube de um novo hotel em Eirunepé, mas não descobri o nome, apenas que era considerado o melhor da cidade.
    Se tiver mais dúvidas ou comentários, fique à vontade.
    Abraços!

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