...continuação
O barco embicava nas comunidades ribeirinhas. O comandante
trocava mercadorias por mandioca e carne de caça. Também parou na boca de uma
picada onde dois pequenos barcos estavam atracados e vendendo tartarugas. A
picada dava acesso à serraria ilegal sob a responsabilidade do prefeito de
Itamarati. Em campanha eleitoral, o prefeito trocaria madeira, ilegalmente
cortada, pelos votos dos eleitores.
A passageira de 19 anos, morena cabocla, natural de
Eirunepé, passava longas temporadas em Manaus. Estava no supletivo, mas pela
viagem, parou. Adorava bandas de brega paraense e sabia todas as letras. A avó
viúva já trabalhara como cozinheira em barcos pelo rio. A mulher de 28 anos
teve apenas uma filha, já falecida. Era separada e, devido à operação, não pode
mais engravidar.
Atracamos na minúscula cidade de Itamarati de madrugada.
Pela manhã segui a rua principal da cidade, perpendicular ao rio. Atingi o alto
da colina, com vista panorâmica da cidade, do rio Juruá e da floresta mais ao
fundo. Mais alguns minutos e cruzei todas as ruas. O mercado municipal exibia
poucos itens à venda.
Em pequeno espaço as fases de produção da fábrica de
farinha de mandioca podiam ser observadas da calçada da rua. Desde a limpeza e
trituração, passando pela feitura da massa branca e úmida, até ser torrada e
secada em enormes frigideiras, ou chapas de ferro. Nesta última fase,
utilizando espátula de madeira, o rapaz mexia constantemente para que a farinha
não queimasse e nem grudasse no metal.
Houve jogo de futebol de salão na quadra próxima ao rio,
com direito a uniformes, juiz e torcida. Era coisa séria. O comércio funcionou
normalmente na parte da manhã. Com aumento do calor, os moradores voltaram às
casas para aproveitar o domingo. O barco só saiu de Itamarati no meio da tarde.
As mulheres incomodaram-se com o peruano e um grupo de
rapazes que não paravam de beber. E os acusavam de impedir o sono tranquilo
durante a noite fazendo molecagens de vários tipos na rede. Começavam bem cedo na
base de cerveja com sal e muito cigarro.
A passageira de 27 anos, separada e com um filho, embarcou
em Itamarati. Trabalhava como vendedora e trouxe várias mercadorias a serem
oferecidas aos passageiros. Contou que os pais se separaram quando ainda era
criança. A mãe e todos os irmãos mais velhos trabalhavam e ficava para ela a
responsabilidade de cuidar da casa e dos irmãos menores. Aos oito anos se
cansou, fugiu de casa e foi morar com amigos. Concluiu durante a adolescência
que precisava de marido e casou-se aos quinze anos. Com o tempo o sujeito se
mostrou bêbado, violento e mulherengo. Ela apanhou muito, soube dos casos e até
conheceu as amantes. Mas gostava muito dele e continuava em casa. Ele
envolvia-se em brigas e voltava ferido para casa, muitas vezes a facadas.
Depois de sete anos de casamento, chegou ao limite e alertou que o deixaria.
Ele não deu importância e trouxe uma das amantes para morar junto do casal.
Seguiram-se muitas idas e vindas, agressões e sangue. Finalmente saiu de casa a
fim de iniciar vida independente junto aos quatro filhos pequenos. Somente
depois de muita insistência reatou relações com a mãe.
As irmãs adolescentes iam para a casa dos pais na cidade
de Carauari. A morena residia em Manaus e parou de estudar na oitava
série. A irmã interrompeu os estudos na quinta série, mas afirmou que
terminaria, nem que fosse no “acelerado”.
Os botos apareciam com mais frequência, fazendo
espetáculos próximos ao barco. A maioria era cinza e pequeno. Surgiam trechos
no rio com muitos galhos e troncos de árvores flutuando na superfície da água,
sobre os quais garças muito brancas pousavam na espera dos peixes que lhes
servissem de alimento.
Longa parada em Carauari no meio da noite a partir de
donde entramos no mesmo fuso horário de Manaus.
Irritante a dupla de gritadores no som do camarote ao
lado. Os tripulantes nem sequer desligavam o equipamento, apenas esperavam o
corte diurno da energia. E à noitinha, com a volta dela, o gravador ligava
automaticamente no ponto exato que parou pela manhã. Os lados da fita tocavam
alternadamente, sem a necessidade de virá-la. Era massacre recorrente, sem
tréguas, sem variações. A parede fina de madeira mal encaixada, que separava os
ambientes, nada protegia.
O idoso comandante não se cansava de contar os casos
sexuais nas viagens passadas. Eram sempre elas que se ofereciam e só lhe
restava aceitar a situação. Num das noites quatro mulheres entraram no camarote
dele, em momentos alternados. Na única oportunidade em que ele não usou
camisinha, a esposa de um sargento da polícia transmitiu-lhe gonorreia. Segundo
ele, porém, tudo mudou. Decidiu, para a decepção da longa fila de pretendentes,
não mais se envolver nas viagens de baixada. Indo de encontro à esposa
residente em Manaus, não queria lhe criar embaraços.
Araras e papagaios sobrevoavam o rio com cantos e cores
vivas. O rio Juruá alargava-se. As casas e comunidades também reduziram em
quantidade à medida que descíamos as águas. A floresta, as várzeas e as
imbaúbas predominavam na paisagem. A sinuosidade extrema do rio Juruá, sem dar
tréguas, fazia o sol vaguear por todos os lados. As águas mantinham-se calmas e
espelhadas, situação interrompida apenas nos momentos de ventos fortes que
precediam as pancadas de chuva.
Era o final da tarde quando parte do céu escureceu com
nuvens espessas, baixas e ameaçadoras. Em seguida caiu a tempestade com ventos
fortes, obrigando o barco a encostar por segurança na margem direita. Como
sempre ocorre nessas situações de medo e pânico, não faltaram passageiros com
estórias sobre trágicos naufrágios nos diversos rios da Amazônia.
O barco atracou à noite na cidade de Juruá, antiga Caetaú.
Porto flutuante com vários barcos, lanchonete, longa escadaria de concreto e
rampas para os veículos até a parte de cima, no nível da rua. Tudo em bom
estado, organizado e limpo. Os adolescentes do barco vestiram as melhores roupas,
se enfeitaram diante dos espelhos e saíram para dar voltas pela cidade.
Para muitos, o trajeto rio Juruá abaixo funcionava como
viagem de retirante. Iam para Manaus tentar vida melhor em meio às falsas
ilusões da cidade grande. Vindos de cidades sem emprego, educação de baixa
qualidade e sem qualquer perspectiva animadora, seriam empurrados para as
periferias das capitais.
De uma casinha de madeira e palha situada na margem
direita, os moradores nos acenaram e se aproximaram com a canoa até atracar no
barco. Ofereceram dois grandes tambaquis ao comandante, ainda se debatendo no
chão da canoa. Acertaram o preço e o peixe foi levado para o refrigerador do
piso inferior. A canoa afastou-se com o remador feliz e com dinheiro no bolso.
O peixe seria vendido em Manaus por preço muito superior ao pago.
Atingimos a boca do rio Juruá no meio da manhã do sexto
dia de viagem, entrando em seguida no mar de águas do rio Solimões. Ainda que
com ilhas e sem poder avistar a outra margem, era enorme e com forte
correnteza. O tempo abriu à tarde e o sol contribuiu para deixar as cores ainda
mais vivas. Os furos ou paranás eram belíssimos, estreitos, com as árvores
muito próximas. A sinfonia dos cantos dos pássaros, diversificada e forte, provinha
de todos os lados.
Atracamos em Alvarães no início da noite, em porto
flutuante sobre igarapé de águas escuras. Me despedi dos passageiros e
tripulantes, que seguiriam ainda por mais dias até Manaus. Após os últimos
acenos de mão, o barco desapareceu na noite escura. Dormi em hotel simples e em
obras do outro lado da rua. O apertado banheiro do quarto, improvisado no canto
originalmente sem instalações hidráulicas, exibia verdadeiras obras primas. A
torneira de plástico possuía cano de mesmo comprimento da cuba da pia, também
de plástico. A água ia para o chão e espirrava para todos os lados. O piso mais
alto do banheiro fazia a água escorrer para dentro do quarto. Do chuveiro não
saía água. Reclamei. Me pediram para esperar encher a caixa d’água. Encheu. E
nada. Diagnosticaram que o chuveiro era pouco usado e a água não ia para aquele
cano. Caía somente poucos pingos. Me banhei assim mesmo. Nas demais
dependências do hotel tudo estava revirado. Quartos com móveis sobre móveis,
trapos sobre trapos, lixo sobre lixo. As panelas, copos, talheres, alimentos e
objetos velhos amontoavam-se na cozinha. Galinhas e patos ciscavam por entre
caixas e mais caixas no quintal enlameado.
O café da manhã, com café preto e bastante pão e manteiga,
foi servido pela dona do estabelecimento, envelhecida, simpática e acolhedora. A
filha mais velha residia em flutuante miserável próximo ao porto. Com corpo
marcado pela vida dura, sobrevivia da retirada do vinho de açaí.
No igarapé em frente ao hotel, flutuantes de madeira
caindo aos pedaços faziam a função de residências, bares ou depósitos. Todos
sujos e deteriorados. A influência indígena se evidenciava nos rostos, corpos e
no jeito pacato dos moradores. Além dos caboclos e mamelucos, frutos da
miscigenação, indígenas puros caminhavam pelas ruas, provenientes de inúmeros
territórios das imediações.
Embarquei em moto-táxi rumo à Nogueira, vila localizada
nas margens do lago de Tefé. A estrada cruzou restos de floresta ainda em pé,
extensos buritizais, açaizeiros e outras árvores frutíferas. A vila lembrava
cidadezinha à beira mar, com praia de areias brancas, barracas de comes e
bebes, especialmente bebes.
A viagem de catraia cruzou as águas escuras do lago antes
de desembarcar no centro de Tefé. No quarto do hotel, grande e mal cuidado, havia
banheiro grande, armário grande abandonado e empoeirado, janela para a sacada
comum, televisão modelo anos 1960 com seletor giratório de canais, aparelho de
som completo com gravador para duas fitas, sintonizador de AM e FM,
equalizador, tocador de CD, amplificador, toca-discos de vinil e mais duas
grandes caixas acústicas.
Dei volta rápida pelas ruas sujas e feias da cidade, entre
prédios velhos, infinidade de urubus, esgoto fedido a céu aberto pelas
sarjetas. Tefé, a maior cidade região do Solimões com cerca de cem mil
habitantes, oferecia apenas duas praças, pequenas, sujas e feias. A próxima ao
mercado era a favorita dos bêbados e dos onipresentes urubus. A outra, ainda
menor, com muito cimento e apenas uma árvore, localizada em frente à igreja
desajeitada, era a escolhida pelos adolescentes no período da noite. Era apenas
canteiro central entre duas ruas comerciais. Ao redor, barracas com carnes
grelhadas no espeto, lanchonetes de má aparência, sorveterias. Nada acontecia
nas margens do lago de Tefé durante a noite.
É praticamente regra. Cidades que dão as costas aos rios e
lagos são feias, sujas e mal cuidadas. As que valorizam as águas são bonitas,
organizadas, com orla urbanizada para o lazer dos moradores. Exemplos não
faltam.
Traços indígenas predominavam nos moradores da cidade,
normalmente mais reservados. Caminhei pelos bairros que margeiam o lago e
outros mais afastados. Tudo feio, sujo, descuidado, com poucas e esburacadas
calçadas. Tefé mais parecia periferia de qualquer grande cidade brasileira. O
desnecessário e inadequado asfalto das ruas era de qualidade primorosa. Bastava
parar uma moto e colocar o descanso que ele afundava em furo grande e definitivo.
Extensas praias se formariam em toda a margem do lago durante o verão. O esgoto
da cidade era jogado nas águas do lago, justamente de onde coletam a água para
quem não possuía poço artesiano particular ou tratava a água coletada. A zona
portuária de Tefé se movimentava febrilmente de barcos, navios, catraias,
lanchas, comércio fixo e ambulante, muito lixo, muitos urubus, esgoto a céu
aberto, bares imundos, hotéis podres, bêbados cambaleantes.
Inacreditável a quantidade de urubus em Tefé. Eles reviravam
os lixos, comiam animais mortos, pousavam nas ruas, praças, árvores e fios
elétricos. A falta de higiene, saneamento básico, coleta regular de lixo os
atraíam aos bandos. Chegaram a se aproximar da mesa interna do restaurante onde
eu costumava comer. E causavam sérios danos à aviação. Não por acaso existiam
cartazes de advertência no aeroporto de Tefé proibindo os lixões nas imediações
das pistas. Tiros para espantá-los eram disparados durante pousos e decolagens
em Tefé e Carauari.
Calçadas nas cidades amazônicas eram raras. Quando
existiam vinham descontinuadas, inclinadas, cheias de buracos de esgoto ou
ocupadas por barracas, mercadorias de lojas em exposição, obras inacabadas.
Restavam as ruas, cheias de motos, bicicletas e demais veículos.
O sol furou o bloqueio das nuvens, reapareceu no final
da tarde e proporcionou deslumbrante pôr-do-sol. Os tons de cores variaram
desde o amarelo, laranja, vermelho claro até o vermelho escuro, se refletindo
nas águas do lago. Os flutuantes à esquerda e os barcos eventuais coroaram o
incrível espetáculo.
continua...
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