...continuação
Na margem guianense senti-me no meio do nada, sem ruas,
casas ou qualquer construção que lembrasse cidade ou vila. Meia dúzia de
guianenses de cor de piche sorria sob a sombra fresca da mangueira. Segui em
estrada de terra e cascalho. Logo surgiram construções esparsas e velhas em
meio à vegetação. Mais à frente, a delegacia de policia, campo de futebol,
outras casas. Tudo espalhado e em completo silêncio. Seguindo a rua de terra,
sinalizações em inglês, o hospital precário, mais casas de onde se ouvia
reggae, curtos trechos de asfalto.
O calor e o sol do meio-dia estavam impiedosos. A sede
bateu forte. Prossegui a caminhada e percebi que Lethem não era nada mais que
aquilo. Construções aqui e ali, ruas de terra, poucos prédios públicos, espaços
vazios, com muito mato crescido, árvores frondosas, poucos e pequenos mercados,
silêncio, preguiça, calor, muito calor. Um policial cumprimentou-me em frente à
delegacia e, em inglês complicado, tentamos conversar. Não passou de três
frases. Quase perguntei que língua era aquela. Embarquei na voadeira de volta a
Bonfim.
Na margem brasileira do rio, experimentei o refrigerante
guianense de gengibre, fortíssimo, que me deixou com a garganta arranhada. Ataquei
o pequeno mercado nas redondezas. Comi e bebi o que havia nas prateleiras.
Sentei na cadeira defronte ao mercado. Vazio, silêncio, nada e mais nada. Era o
fim em Bonfim. Montanhas mais altas despontavam do lado guianense. Sentei sem
ser convidado no posto de vigilância sanitária. Aceitei o açaí oferecido pelos
simpáticos funcionários. Conversei bastante até a chegada do ônibus para me
buscar.
Em Boa Vista escolhi a mesma barraca para jantar, desta
vez, por ser sábado, com mais mesas montadas e muito mais fregueses. As praças
estavam mais cheias e animadas em noite estrelada e quente. Eram famílias com
crianças, casais, jovens, comendo, passeando, sentados nos bancos, paquerando,
conversando ou simplesmente observando. A maioria nada consumia e divertia-se
bastante ao ar livre naquela amplidão bem aproveitada. Espaço público e
democrático.
Terminei o terceiro livro da viagem. Fui convidado à
caldeirada na casa de moradores. Passamos antes em boteco muito simples, frequentado
por nordestinos, especializado, entre tantas coisas, nas cachaças aromatizadas
com raízes e frutas. A aromatizada com cururu-curural era seca, não muito forte
e de sabor divino.
A casa deles era ampla, térrea, aconchegante e com
piscina. O dono logo se embebedou. De nada adiantaram os mergulhos na piscina.
Os lábios amoleceram, as pernas bambearam, não falava coisa com coisa. A esposa
foi obrigada a ampará-lo até o quarto para nunca mais reaparecer. A caldeirada
de tambaqui, a cachaça mineira e a pimenta estavam deliciosas. Os senões
ficaram por conta da separação entre homens e mulheres. Logo na chegada de um
dos casais, o homem ordenou à mulher:
“fique lá com elas enquanto fico aqui com meus amigos”.
Todos pareciam levar esse comportamento à risca.
Boa Vista, entre outras qualidades, guardava uma de dar
inveja aos países assim chamados de civilizados e também de calar a boca de
muitos que insistem em menosprezar, por pura ignorância, tudo que é brasileiro.
Havia faixas de pedestres, sem semáforo, nas grandes avenidas. E todos os
motoristas paravam para os pedestres atravessarem, não importando a quantidade
de pessoas, se jovens, velhos, bonitos, feios, homens ou mulheres. Nem era
preciso pisar no asfalto. Bastava posicionar-se na calçada que logo os ônibus,
carros, motos, caminhões, paravam no mesmo instante.
A tarde em Boa Vista, com o por do sol, foi belíssima. As
cores em vários matizes impressionaram no céu com poucas nuvens.
O ônibus com destino a Manaus partiu à noite, quase vazio,
muito gelado pelo exagero do desnecessário ar condicionado. A malha, sempre
deixada no fundo da mochila, foi oportuna e bem aproveitada.
O sol sobre o concreto e asfalto de Manaus provocava
efeito insuportável durante o dia. A disputa pelas raras sombras da cidade era
acirrada e, com menos de um minuto de caminhada, o suor derramava-se pelo corpo
todo.
Garimpei livros insistentemente num sebo sem encontrar
grandes coisas e sim dezenas de piuns que me comeram vivo. Escolhi dois, entre
eles o razoável A Estrela Sobe de
Marques Rebelo, autor de O Trapicheiro,
A Mudança, A Guerra Está Em Nós, volumes pertencentes à excelente trilogia O Espelho Partido.
O entardecer no porto de Manaus, a Escadaria, foi
espetacular. À noite no largo de São Sebastião houve recital de música brasileira,
interpretado por grupo extremamente suave no tocar e cantar. O repertório era
bonito e variado. Enquanto isso, na casa de sucos das proximidades, dois
estrangeiros na faixa dos trinta anos analisavam minuciosamente a carta
topográfica em alta resolução da região amazônica. Turistas?
O ônibus partiu da plataforma da rodoviária lotado e com o
ar condicionado absurdamente gelado. Os passageiros vestiam casacos grossos,
gorros, cobertores, e outros objetos bem típicos da região. Sítios e chácaras
para finais de semana, bonitos igarapés e lagos com águas escuras marcaram a
paisagem até Itacoatiara. Chegada e embarque imediato em lancha rápida rumo a
Maués.
Após a partida foi servido o almoço em embalagens térmicas
de alumínio e refrigerantes em copos descartáveis. Coloquei o copo entre os pés
e tratei de engolir logo a comida para não derrubá-la. O trajeto seguiu pelo
rio Amazonas, paranás, as águas bonitas e escuras do rio Maués. A forte
tempestade não afetou a estabilidade da lancha. A tranquila viagem se encerrou
no porto de Maués ainda com luz. Bares e movimento agitavam o porto e a margem
do rio. A praça da matriz de Maués enfeitava-se para a festa do Divino.
À noite, sobretudo após a missa celebrada na igreja
moderna, os moradores da cidade e comunidades vizinhas afluíram à praça. As
barracas de comes e bebes eram muito procuradas, as arquibancadas ocupadas para
assistir às atrações variadas da noite no grande palco. Pagode, canções
religiosas, canções de rock cantadas em inglês, coreografias estudantis e até
bingo beneficente premiando os fiéis com moto e computador. A população
participava com entusiasmo no preenchimento das cartelas, de pé, nas mesas, nos
bancos da praça ou até sentados na borda do jardim. A maioria dos moradores da
cidade revelava fortes traços indígenas.
O rio Maués estava cheio e as praias submersas sob as
águas negras e límpidas. A cidade oferecia extensa orla. A antiga mais próxima
ao porto, e a nova, mais distante, longa e urbanizada com calçadão, quiosques
de comes e bebes. Apenas estreitas faixas de areia úmida apareciam nessa época,
usadas para lavagem de roupas e eventuais banhos. Os rojões e bombas não
paravam de estourar pelas ruas e casas, em função das comemorações da festa do
Divino.
Durante a deliciosa caldeirada de jaraqui na beira do rio
Maués, pude reparar no tipo de jornalismo praticado na rádio da cidade.
Locutores da emissora entrevistavam o prefeito e o vice-prefeito. As expressões
usadas nas perguntas eram invariavelmente:
“querido prefeito”, “grande prefeito de Maués”, “alguns
elementos o caluniam com...”, “os derrotados tentam desmoralizá-lo...”.
Entre as respostas dos entrevistados, eles adicionavam:
“parabéns prefeito...”, “Maués e todos os mauesenses
agradecem seu gesto...”, “o povo desta cidade jamais esquecerá o que fez por
ela...”, “sua grande obra entrou para a história...”,
E outras pérolas da imparcialidade jornalística.
O prefeito e o vice não se cansavam de afirmar durante a
falsa entrevista que eram pessoas humildes e vieram trabalhar para pessoas humildes
como eles. Em trecho antológico o prefeito disse:
“jamais me rebaixarei ao nível de meus acusadores...”,
“não quero polemizar como eles...”, “eu não faço acusações, eu trabalho pelo
meu povo...”, “eu sirvo ao povo da minha cidade e jamais direi que há, entre
meus acusadores, demitidos por roubo...”, “não quero entrar no jogo de calúnias
sujas e pessoais e dizer que um deles veste calças durante o dia e adora estar
de saias durante a noite...”.
No final do longo programa, o prefeito e o vice-prefeito
agradeceram o convite da rádio e sentiram-se satisfeitos e orgulhosos por
responderem a todas as perguntas dos entrevistadores, reafirmando que elas não
os amedrontavam, pois nada tinham a esconder. Os tais locutores da rádio de
Maués, encerraram as transmissões com as declarações:
“este programa foi gravado para entrar para a história do
jornalismo da região”, “o depoimento espontâneo de um grande líder foi
registrado para a história”.
O vendedor gaúcho a trabalho na cidade insistia que os
homens deviam dar presentes ou agrados em retribuição ao carinho recebido das
mulheres, sobretudo as garotas mais jovens. Diante do argumento da indução à
mendicância e à prostituição, arrematou:
“não devemos guardar o nosso dinheiro e sim compartilhá-lo
com os necessitados”.
A festa do Divino encerrou-se à noite com grande
procissão, seguida de missa na catedral. Muitos acompanharam as imagens de
santos, santas, entre rojões, rezas. Os discursos eram excessivamente
religiosos e sem qualquer conteúdo social, casando perfeitamente com a opressão
política e o clientelismo. O padre não se cansava de louvar o prefeito e o
vice, o deputado federal, o deputado estadual, como grandes cidadãos ligados ao
espírito santo. Durante o bingo beneficente a cinco reais a cartela, o locutor
derramava-se em elogios e agradecimentos aos mesmos quatro políticos citados.
Após o final das celebrações da festa do Divino, a cidade
voltou à rotina do dia-a-dia. Calmaria, silêncio e tranquilidade. A exceção
ficava por conta da feira e do mercado, agitados como sempre. A nova orla se tornava
ideal para passeios noturnos, bons papos ou simplesmente relaxar e ouvir o
silêncio. As ruas recebiam cadeiras nas calçadas, as conversas eram em voz
baixa, sem deixar o ambiente triste.
Depois de longa espera, chegou o barco com destino a
Parintins. O vendedor gaúcho embarcou também. A companhia rendeu bons papos, a
despeito do apoio dele à pena de morte, a crença em milagres evangélicos, o
machismo metido à filantropia. O barco partiu sob a forte chuva. Serviram sopa
saborosa acompanhada de suco e goiabada. Diversos outros hóspedes do hotel
também embarcaram, um paranaense, um mineiro e outro gaúcho. Todos residentes
na Amazônia.
Era noite de jogo da seleção contra a Argentina pelas
eliminatórias. A tripulação tentou sem sucesso acertar a antena do barco. As
curvas do rio e a má instalação da televisão não permitiam. Vários desceram na
parada na cidadezinha de Boa Vista de Ramos, inclusive o comandante e os
tripulantes. Sentamos ao redor de mesas ao ar livre, espalhadas na calçada e
rua, em frente ao bar. Logo após o apito final voltamos ao barco para seguir
viagem.
A enorme lua cheia esteve presente durante a noite toda,
iluminando o caminho pelo rio e permitindo enxergar ambas as margens.
O barco atracou antes do amanhecer no porto de Parintins.
Encontrei pousada central, pequena, simples e ainda barata, pelo menos até
próximo do festival.
A cidade de Parintins, situada em ilha na margem direita
do rio Amazonas, causou bom impacto à primeira vista, apesar do esgoto a céu
aberto nas guias da maioria das calçadas. A cidade estendia-se ao longo de orla
fluvial antiga, estreita e muita aconchegante, onde se alternavam pequenas
praças com bancos sob as árvores, poucos bares, trechos sinuosos e tranquilos,
a partir dos quais se inclinavam os paredões e gramados até as águas. Dos
bancos sob a sombra refrescante das árvores da orla, avistava-se toda a
amplidão do rio Amazonas, especialmente à montante, de onde apreciam os barcos
vindos de Manaus. Aqueles minúsculos pontos no horizonte atracariam em
Parintins somente duas ou três horas depois. As avenidas centrais pecavam pela
falta de mais sombra devido à injustificável mutilação geométrica das árvores.
A cidade era praticamente dividida em duas metades iguais
a fim de separar os seguidores de cada boi. Os ensaios para os desfiles dos
três últimos dias de junho ocorriam nos currais situados em lados opostos da
cidade. Os orelhões apresentavam formato de boi nas cores vermelha ou azul,
representando os dois blocos rivais de boi-bumbá, em quantidades iguais para
não desagradar ninguém. Tudo na cidade subiria assustadoramente de preço até o
auge da festa. Diárias de hotéis seriam multiplicadas por cinco ou dez. A
população explodiria, o porto entupiria de embarcações. Muitos dormiriam nos
barcos e o vaivém nas margens do rio se tornaria caótico.
Boa oportunidade de ouvir e ver as coreografias, letras e
ritmos em ensaio no curral do boi Caprichoso. A participação e o entusiasmo do
público eram intensos. A quadra lotou rapidamente. Todos cantavam e dançavam
juntos com o bloco. O ritmo em nada se parece com o ascendente bumba-meu-boi do
Maranhão. A batida repetitiva lembrou as fanfarras escolares. As coreografias,
muito certinhas e mecânicas, assemelham-se ao axé baiano ou às das dançarinas
dos fundos de palco dos programas de televisão. As letras giram em torno de
exaltações à cultura regional, como nos sambas enredo, e de pilhérias ao bloco
adversário. O puxador oficial do tema do ano animava a galera na quadra com
frases do tipo:
“vamos levantar e balançar a mãozinha...assim...”, “vamos
tirar o pé do chão...”, “que galera mais linda...”, “olha o Caprichoso aí,
gente...”.
Barracas de comes e bebes foram montadas do lado de
fora do curral. Na parte interna, apenas produtos do patrocinador oficial, a transnacional
estadunidense coca-cola.
continua...
Olá,
ResponderExcluirSou sua seguidora. Gosto de pesquisa e vim te visitar. Vem me ver tbm?
Abços
www.claudilicearagao.blogspot.com
Fique à vontade para ler meu blog. Leia, comente, critique, indique...
ResponderExcluirIrei visitá-la sim...me aguarde!
Abraços