quinta-feira, 27 de outubro de 2022

de Goiás ao Piauí (via GO, MT, TO, BA, PE, CE, PI) (parte 7/7)

 ...continuação

Doces versos ouvidos pelas ruas dos interiores brasileiros, vindos daquelas duplas que vivem à custa do dinheiro público como garotos-propaganda do capital agrário:

Essa mulher merece um tiro...

Mas ela não vale o preço da bala...

Ou então:

A gente briga muito...

Mas se dá bem pelado...pelado...peladuuuuu...

Após café da manhã reforçado subi em micro até o ponto final, na pracinha do vilarejo de Coqueiro, município de Luís Correia, na beira do mar, de frente à igreja e ao bucolismo local.

Andei bastante pela praia. Passei por concentrações de bares, alguns simples, outros nem tanto, mas todos com frequência maciça de domingo. Ao final da praia, nas imediações da ponta cheia de pedras, se encontravam chalés convidativos de pousada isolada e cara. Avancei depois da ponta e atingi a praia do Itaqui, reservando ao fundo da areia o farol de mesmo nome.



Nem precisei avançar tanto mais. Já não havia sinal de seres humanos de quaisquer lados. Tirei tudo e fiquei peladinho da silva, do jeito que vim ao mundo. Entrei naquele mar de ondas fracas e águas cristalinas. Delícia das delícias. Voltava à areia, fazia flexões de braço, tomava sol. Meia hora depois, já saciado da nudez, dentro e fora da água, apareceram dois pescadores que se postaram na ponta da praia, junto às pedras. Me viram sem esboçar qualquer reação. Por via das dúvidas pus a sunga e prossegui meus banhos de mar, as flexões, a exposição ao sol, agora vestido como banhista padrão.

Saciado, peguei o caminho e descansei o esqueleto em bar e restaurante de bom aspecto no meio da praia do Coqueiro.

Encontrei mesa livre e bem posicionada, da qual eu podia ver os frequentadores. Maioria de grupos e famílias, raros casais isolados. Tomei duas caipirinhas. Comi camarão ensopado no abacaxi e porção de farofa. Apreciei o vaivém das banhistas. O céu azul, o calor bem-vindo, o vento suave, o bom humor geral, mais a música ao vivo, em volume e repertório aceitáveis, me faziam sentir bem, muito bem.

De volta à cidade, jantei bem, proteínas e vitaminas, em frente à estupenda lua cheia, à brisa refrescante, ao vaivém discreto e agradável das parnaibanas.

A zona urbana de Parnaíba e dos arredores contavam com espaços vazios, no centro, nos bairros, nas praias, nas partes intermediárias. E também havia as regiões abandonadas, em ruínas, ou simplesmente decrépitas, embora ainda em funcionamento. Os exemplos vinham do Porto das Barcas, Pedra do Sal, Lagoa do Portinho, praia de Atalaia. Eu também não notava construções em andamento. A região estava com estabilidade populacional ou com decréscimo e êxodo de moradores?

Tomei os dois tradicionais ônibus à praia da Pedra do Sal. Desembarquei a tempo de acessar a baía mansa ao sul do farol.

Caminhei pelas areias no sentido da foz do rio Parnaíba. A maré baixa permitia escolher em qual faixa da areia eu andaria. Caminhei muito. Caminhei demais. Esparsos pescadores de rede na linha da água, em especial nos trechos de areia escura. Esse tom era da madeira decomposta, escurecida e enegrecida pela ação do tempo, da água salgada e doce. Os peixes para ali afluíam a fim de se alimentarem. Vindos de moto pela areia da praia, os pescadores estendiam nessas zonas as redes de arrasto. Rebanhos de jegues pastavam na parte traseira da praia, onde crescia vegetação rasteira. Avistei conjunto de cabanas cobertas de palha, afastadas da praia, indecifráveis. Dunas ao fundo, bem ao fundo, provavelmente a borda leste das dunas atrás do porto de Tatus. Pela areia, concentrado, o lixo vindo do mar, sobretudo os plastificados e mais resistentes ao tempo. Por cerca de duas horas e meia caminhei pelas areia da praia, a fim de atingir o trecho do encontro do rio com o mar, mesmo sabendo que não pisaria no vértice, no ponto exato daquele acidente geográfico. Aterrissei em extensa faixa de areia, guardando troncos de árvores ressecados, vegetação rasteira logo atrás, a água do mar mais escura, acastanhada em alguns locais, quase negra em outros. Eu alcançara ponto muito próximo da foz do rio. Era cerca de meio-dia e eu estava um bagaço de tão cansado.



Lentamente o movimento da maré anunciava o começo da cheia. E eu teria que enfrentar as mesmas duas horas e meia, para caminhar de volta, a favor da luz do sol e contra o vento nordeste.

Entrei no mar e me refresquei, recuperando pequena parte da energia dispendida. As solas dos pés ardiam ao pisar na areia. As pernas bambeavam. A ponta do farol da Pedra do Sal parecia cada vez mais distante. Sonhava acordado com bebida e comida. E nada de chegar.

A tarde avançava ao entrar na única barraca em funcionamento naquele dia na baía mansa. Na parte coberta, sobre a areia, mesa ocupada por dois casais bêbados acompanhando porcamente a música alta das caixas de som do estabelecimento. Suguei um litro de refrigerante, bem doce, bem líquido. Não me animei a pedir nada sólido. O local, como os demais que ainda sobreviviam na Pedra do Sal, era sujo, semiabandonado, quase em ruínas. E diante daquela natureza tão linda. Bem ali em frente. Limpa e vazia. Inadmissível!

Mais dois ônibus ao hotel.

Eu me precavera e à minha disposição no frigobar havia pão, queijo, salame, chocolate, espumante seco diretamente do vale do São Francisco. Comi e bebi tudo e muito bem. E água, muita água.

Na manhã seguinte repeti a ida à praia do Coqueiro, em Luís Correia. Desci no ponto final, no larguinho do Coqueiro.

Havia menos banhistas que no domingo anterior. Na praia do Coqueiro a maré muito baixa expunha pedras, sargaço aos montes, barcos sobre a areia, as águas distantes e rasas. Pela areia alcancei a praia do Itaqui, vazia, e me instalei em frente ao farol. Somente eu e a natureza preservada. Fiquei peladão e entrei deliciosamente no mar. Saía apenas para as costumeiras flexões de braço. Uma hora depois de nadar, flutuar, me refrescar, me exercitar, duas mulheres apareceram nas pedras da ponta que separava a praia do Itaqui da do Coqueiro. Permaneceram por ali. Obviamente notaram que eu não vestia sunga ou roupa alguma. Mesmo se apurassem os olhares por curiosidade, valeria a máxima “quem nunca viu não sabe o que é, quem já viu está acostumada”. E entrei novamente no mar. Nadei, flutuei. Contemplei o entorno de todas as maneiras.

Me considerei saciado com a praia, a água do mar, a tranquilidade, a privacidade, o nudismo extemporâneo. Me vesti e andei na direção das barracas de comes e bebes da praia do Coqueiro.

Suguei duas caipirinhas bem preparadas com a cachaça piauiense. Devorei dois espetos de camarão, suculentos e saborosos.

O sol começava a baixar ao pegar o micro de volta à Parnaíba.

Amanheceu mais um dia. Peguei dois ônibus ao porto de Tatus, no município de Ilha Grande, na margem direita do braço do Parnaíba.

De frente às águas observei a pequena movimentação de turistas no embarque aos passeios de barco, ao Delta do Parnaíba, à revoada dos guarás, entre outros roteiros fluviais. Um barqueiro me abordou educadamente oferecendo passeios de barco e educadamente aceitou minhas negativas.

Eu desejava repetir a exploração às dunas de areia de Tatus que realizara três anos antes. Me dei com entrada diferente e avancei pela trilha. Eu tinha que obter fortes pontos de referência para me orientar no sentido contrário. Antes de entrar nas dunas propriamente ditas contornei touceira alta, verde e cerrada. Ali seria o marco que eu não deveria perder de vista a fim de voltar pela mesma trilha.



Circulei pelas belíssimas, imensas e extensas dunas, contando com lagoas de águas cristalinas e azuladas. Escalei rampas de quarenta e cinco graus de inclinação, ao longo da qual era preciso dar três passos para render um. Avancei pelas cristas sinuosas das dunas. Me voltava de vez em quando para conferir a posição da touceira de referência. O céu azul liberava o sol quente para massacrar. O mormaço repetia o efeito de baixo para cima. E virava o pescoço para rever a tal touceira alta, verde e cerrada. Estava sempre lá, mais distante, mas impassível. Pelas areias, de vez em quando, rastos de patas e fezes ressecadas de equinos. Nenhum sinal de ser humano. A única coisa que destoava de tanta beleza eram as gigantescas hélices dos coletores de energia eólica, postadas mais a leste.

Em meio às maravilhas da natureza a mente devaneava. Perambulei com imenso prazer por horas sobre as dunas de Tatus, entre cristas sinuosas, sobe e desces em rampas de areia, margeando e me refrescando em lagoas azuladas. Dei meia volta e tomei o rumo da estática e salvadora touceira de referência.

Ao atingir a dita touceira, percebi decepcionado que não era a touceira original, mas outra, parecidíssima e em local semelhante. Girei trezentos e sessenta graus na procura da minha salvadora e nada de encontrá-la. Andei feito camelo para lá e para cá na tentativa de corrigir o rumo. Finalmente encontrei o meio da trilha original da ida, mas não a touceira de referencia que ficou distante, mais perto das grandes dunas.

Pelas ruas do vilarejo de Tatus, ignorei o ônibus que manobrava para partir de volta à Parnaíba. A sede estratosférica me obrigava a matá-la antes de qualquer coisa.

No mercadinho mergulhei de cabeça em meio litro de cajuína. Não bastou. Saquei da geladeira garrafa de um litro e meio de água mineral. Em minutos eu a secava completando a ingestão de dois litros de líquidos para repor o que perdera nas dunas.

Entre os goles conversei animadamente com a dona do comércio e com turista maranhense a caminho de passeio de barco com familiares à revoada dos guarás.

Jantei no canteiro central da acolhedora avenida São Sebastião, em Parnaíba. Não era a minha primeira e nem a última vez naquele bar e restaurante. Comida ótima. Atendimento eficiente e descontraído. O responsável pela grelha me presenteou com cebola inteira grelhada. Além de ser ao ar livre, diante do movimento do calçadão e da avenida, entre poucos pedestres e espaçados veículos, as mesas recebiam frequência variada de moradores de Parnaíba.

Em meio a reflexões aleatórias e espontâneas, do nada, sem mais, chegava a determinadas conclusões. Por exemplo, para além dos clichês turísticos, o nordeste sempre iria me lembrar de duas coisas. As árvores mutiladas geometricamente nas ruas e praças, eliminando as tão desejadas sombras. E a obsessão pela música, alta, altíssima, em todos os lugares, em todos os momentos, vinda de várias caixas de som, ao mesmo tempo.



Li capítulos de Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, volume extenso que eu demoraria a atingir o final.

Almocei no centro da cidade e voltei de micro ao hotel. O veículo deu baita volta urbana, verdadeiro giro turístico pelas zonas oeste e sul de Parnaíba. Trafegou por ruas calçadas de pedras irregulares, quase regra na cidade, aliás, regra sustentável e muito bem-vinda, à exceção daquelas vias desgraçadamente impermeabilizadas e aquecidas pelo asfalto negro. Nos bairros, casario discreto, de bom aspecto, nada de miséria aparente. Espaços vazios aos montes, como não poderia deixar de existir em Parnaíba, e pouco movimento.

Eram raríssimos os debates políticos ouvidos pelas ruas da cidade. Mais sobre a realidade local e raros os sobre o país. Nas poucas menções ao presidente proto-fascista, críticas, deboches, indignações.

À noite, na rodoviária de Parnaíba, vesti a camiseta de mangas longas já prevendo a temperatura glacial costumeira naquela empresa de ônibus.

Desembarquei na rodoviária de Fortaleza de manhãzinha. Imediatamente segui ao aeroporto.

No voo lotado, tendo ao lado rapaz agitado e nervoso, ignorei o sono e li bastante Ariano Suassuna.

A tarde começava ao desembarcar no aeroporto de Cumbica, em São Paulo.

E, naquele final de junho, encerrava mais uma livre, descontraída e pedagógica viagem.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

de Goiás ao Piauí (via GO, MT, TO, BA, PE, CE, PI) (parte 6/7)

 ...continuação

Pela manhã, atravessei mais uma vez a pé a ponte sobre o rio São Francisco. Circulei pelo centro velho de Juazeiro, mortinho da silva naquela manhã de domingo. E retornei a Petrolina de barco.

Almocei novamente no restaurante ao lado do hotel, aquele frequentado pelos mais entre os mais de Petrolina. E lá estavam eles marcando presença. Ao final, adquiri na lojinha ao lado meio quilo do estonteante bolo-de-rolo, recheado de goiabada, produto tipicamente pernambucano.

E voltei ao quarto de hotel para fugir da modorra da tarde. Comecei a ler os contos de O Macaco Que Se Fez Homem, de Monteiro Lobato.

O ônibus partiu cedinho da rodoviária de Petrolina. Seguiu pela BR-428 até Lagoa Grande. Atravessou caatinga brava, espinhenta, fechada, sobre solo pedregoso. Nas zonas irrigadas, porém, intensa fruticultura, comercializada nas próprias cidades ou levadas para cidades distantes. Dobrou na BR-122, ainda atravessando a mesma caatinga fechada, pouco habitada, exceto por minúsculos e isolados vilarejos.

Parada para almoço ao lado de Santa Cruz, cidadezinha também chamada de Santa Cruz da Venerada e de Cruz de Malta. No posto de combustíveis ao lado do restaurante, carretas gigantescas estacionadas carregavam imensas peças dos coletores de energia eólica. Aguardavam o horário noturno permitido para tráfego de tais veículos nas rodovias. Embora considerada limpa, a energia eólica, imposta sem debates públicos, causava tremenda poluição visual em toda a região instalada, assim como ruídos perturbadores aos moradores próximos.

Pequenos e médios serrotes despontavam no relevo aplainado da caatinga.



Na plana, feia, suja e desorganizada cidade de Ouricuri o ônibus despejou e recolheu passageiros nas beiras das calçadas, em paradas muito próximas entre si, às vezes quarteirão a quarteirão.

Esse estranho comportamento fez lembrar as escolas em São Paulo, frequentadas pelos filhos dos ricos. Os pais formavam imensas filas de carrões, congestionando o trânsito, para deixar e buscar os respectivos nas portas das escolas. Exatamente na porta das escolas. Nem mais um metro, antes ou depois. O que me levava a chamá-las de escolas de “aleijados” porque o aluno não “conseguia” andar se o carro o deixasse ou o resgatasse a uma quadra ou mais de distância.

Já nos interiores brasileiros, ali em Ouricuri por exemplo, como resultado dessa prática, a rodoviária da cidade, nova, ampla, cheia de espaços disponíveis para o comércio local, órgãos públicos e outros interessados, todos vazios e fechados, apresentava pouco ou nenhum movimento nas plataformas.

A partir de Ouricuri o relevo se tornou mais acidentado e a vegetação mais desenvolvida e menos árida. O não aproveitamento das terras, contudo, permanecia o mesmo.

Bodocó, cidade pequena e simpática, tipicamente sertaneja, com a feira semanal a todo vapor, também contribuiu para manter o ônibus lotado desde Ouricuri.

Estátuas, esculturas, pinturas, cartazes, faixas, frases de Luiz Gonzaga, nas margens da estrada, pracinhas, muros, paredes, anunciavam Exu, terra natal do rei do baião. A cidade revelava urbanismo bagunçado, disforme, acidentado, mas de legítima cidade sertaneja pé-de-serra, no caso a serra do Araripe.

Nas cercanias ao norte de Exu a rodovia ziguezagueou em aclives, chapada acima, ao lado de vegetação agreste, quase tropical, bem mais desenvolvida que nas baixadas. No altiplano, a natureza se encontrava preservada nas imediações da unidade de conservação ambiental da Serra do Araripe. Não demorou a divisa interestadual entre Pernambuco e Ceará. Daí a estrada entrou em declive, rumo ao vale do Cariri, ao longo do qual Crato e Juazeiro do Norte reinavam absolutas.

Desembarquei no meio da tarde na rodoviária de Juazeiro do Norte. Me instalei em quarto de hotel, como os demais quartos do estabelecimento, sem janelas, sem tapetes no banheiro, fora ou dentro do box, sem lençol de cima. Retirei da cama de solteiro o lençol de baixo e o usei como o de cima na cama de casal.

Saí cedo para jantar. A fome exigia comida farta e nutritiva. Acabei caindo nos arredores da praça de nome, adivinhem qual, Padre Cícero, justamente na esquina da rua, adivinhem qual, Padre Cícero. Comi bem e bastante ao lado de mesas ocupadas com clientes bebericando sem pressa. Fui de carne-de-sol, baião-de-dois com queijo coalho, macaxeira cozida, vinagrete, farofa. Enchi divinamente o bucho em mesa ao ar livre.

E ali, na calçada onde se instalavam as mesas ao ar livre, me deparei com fenômeno que marcava como selo os destinos religiosos e de peregrinação. A mendicância. Pedintes. Aos montes. De vários aspectos e estratégias de atuação. Um deles, vestido de missionário, com roupa longa de algodão cru e tudo o mais, rodeava as mesas de hora em hora, sempre com o olhar sofrido de mau ator. Mas eram muitos, muitos mesmo.



Na volta ao hotel encontrei enorme barata viva sob a cama de casal. A primeira barata vista em quarto de hotel em quase dois meses de viagem pelos interiores de seis estados brasileiros.

Pela manhã saí para subir a colina do Horto, sobre a qual se encontrava a estátua de Padre Cícero e outras construções religiosas. Era local de peregrinação intensa de brasileiros, sobretudo em quatro datas anuais. Descrevi em detalhes essa exploração nos relatos de minha viagem anterior, realizada vinte anos antes.

Era subida árdua e constante, durante mais de uma hora, por rua estreita e sinuosa, calçada de paralelepípedos, com esgoto a céu aberto fétido escorrendo por ambas as sarjetas. No topo, sob a estátua, nenhum guia ou pedinte, e poucos vendedores de bugigangas religiosas, ao contrário de minha primeira visita.

Além da vista panorâmica de Juazeiro do Norte, se destacaram os nomes e frases de milhares de devotos gravados a caneta, umas sobre as outras, na base da estátua do Padre Cícero.

Ao voltar, notei que, além de não terem limpado o quarto do hotel, os corredores de acesso não viam faxina havia dias. A mosca morta que encontrara na soleira da porta dias antes ainda estava lá, intocada.

Repeti o jantar da noite anterior. Circulei levemente pela praça Padre Cícero. Os pedintes, sempre os mesmos, caracterizados de igual maneira, incluindo o falso missionário e péssimo ator, pediam repetidamente, insistentemente.

E voltei ao quarto do hotel onde não havia limpeza, troca de itens sujos ou arrumação. Mas havia, sim, baratas vivas e moscas mortas.

O ônibus partiu cedo com poucos passageiros, metade dos quais, eu inclusive, usando máscara facial contra a covid-19.

O veículo parou em Crato, Farias Brito, Várzea Alegre, por entre serras, serrotes, colinas, vales, muito verde, umidade, água, fertilidade. Eram cidades de bom aspecto, mas as mutilações geométricas das árvores das ruas e praças estavam lá, desgraçadamente. Na margem de uma das rodovias, me chamou atenção igreja ou capela, isolada, no meio do nada, de fachada e portão alto, datada de 1762.

A relevo se suavizou ao chegar em Iguatu, cidade média cujo centro comercial fervilhava de movimento. Estação ferroviária, linhas de trilhos, simples e duplas, pontilhões metálicos, apontavam, assim como em toda a região nordeste, que a ferrovia, de cargas e passageiros, reinou com eficácia e eficiência durante décadas. A ditadura do transporte rodoviário, no entanto, se impôs pela força dos monopólios capitalistas, sucateando e abandonando o transporte ferroviário.

Nos arredores urbanos apareciam, esparsas casas de taipa ou de pau-a-pique, em péssimo estado. Algumas abandonadas, outras com seres humanos sobrevivendo amontoados.



A vegetação passou a agreste. A serra de Acopiara e a cidade de mesmo nome despontaram na paisagem. Parada para almoço em Catolé da Pista, distrito entre serras no município de Piquet Carneiro.

A rodovia seguia no rumo norte. Cidadezinhas surgiam e ficavam para trás, mas o ônibus parava em todas elas para desembarque e embarque de passageiros. Entre elas, Mombaça, Mineirolândia, Senador Pompeu.

Ainda na CE-060 brotaram lajedos cobertos de xique-xiques, rochedos imensos. Mas ao entrar em Quixeramobim os rochedos se afastaram e a cidade plana nada oferecia de atraente aos olhos.

Na BR-122, aí sim, mais monólitos, maiores, próximos da rodovia, escarpados, anunciando Quixadá, cidade rodeada deles e tão bem relatada na viagem anterior. Pertencente à região do Sertão Central, típica do semiárido cearense, exibindo vegetação de caatinga, Quixadá costumava sofrer com secas periódicas e devastadoras.

Anoiteceu.

Ao entrar na BR-116 o ônibus se deparou com buraqueira, lama, poças d’água, causados pelas chuvas recentes e pelo descaso do governo federal de então, a serviço de projeto capitalista de destruição da infraestrutura nacional e da entrega das riquezas brasileiras aos monopólios privados, sobretudo estrangeiros.

O frio se tornou intenso internamente. Vesti a blusa guardada providencialmente na mochila de ataque e logo adormeci. A maioria dos passageiros usava máscara facial de proteção conta a covid-19.

 Ouvi durante a madrugada o motorista anunciar aos dorminhocos a cidade de Camocim, no litoral oeste do Ceará. Amanheceu no Piauí, nas imediações de Cajueiro da Praia. Em seguida, bem próximo ao mar, o ônibus cruzou o município de Luís Correia, ao lado das praias do Coqueiro, Peito de Moça, Atalaia, antes de se dirigir à Parnaíba, passando não muito afastado da lagoa do Portinho. E vivas ao mar que aparecia pela primeira vez aos meus olhos em quase dois meses de viagem!

Desembarquei na rodoviária de Parnaíba no começo da manhã.

O funcionário do banheiro do terminal, que colocava bem altas as gravações de Roberto Carlos, talvez porque adorava o repertório, talvez para ajudar a encobrir os ruídos orgânicos dos usuários, pedia contribuições espontâneas ao final das necessidades fisiológicas de cada um.

Permanecei nos sofás da recepção do hotel, aguardando a liberação do quarto, apenas trocando de lugar para fugir dos raios de sol. Sim, porque em Parnaíba fazia calor de verdade. Aproveitei para registrar no diário as emoções e sensações vividas desde a saída de Juazeiro do Norte no dia anterior.

Almocei bem comida saborosa e temperada em restaurante simples. E hidratei a refeição com a divina cajuína cristalina da região. Parnaíba mantinha a qualidade dos serviços urbanos, entre garçons, balconistas, recepcionistas, caixas.

Comecei Romance d’ A Pedra do Reino, calhamaço de Ariano Suassuna. Acreditava que jamais iria encontrar monotonia naquelas mais de mil páginas.



Após o farto café da manhã tomei micro ao centro da cidade, zona conhecida como Porto das Barcas, na margem direita de um dos braços do rio Parnaíba, borda leste do Delta do Parnaíba. De lá subi em outro ônibus à praia da Pedra do Sal, ao norte da ilha Grande de Santa Isabel. Sentada ao meu lado, piauiense cinquentona de feição mameluca, envelhecida e gasta pela vida. Passara a noite em claro e exalava odor de álcool. Tinha filhos espalhados pelos estados do país. Morava num clã familiar, pouco ao sul do mar, sozinha em casa, mas ao lado de casas de filhos e outros parentes. Ali desembarcou, carregada de tralhas compradas na cidade e amontoadas no fundo do ônibus.

Desci no ponto final, em frente ao mar. As duas baías da praia da Pedra do Sal, a mansa e a brava, seguiam firme na situação de abandono. Pouca gente, barracas decrépitas de comes e bebes, a maioria fechada ou abandonada, dezenas em ruínas. Triste quadro em local repleto de belezas naturais. Os raros hotéis e pousadas, na mesma, caindo aos pedaços. Muito espaço vazio. Ruas e calçadas levando a lugar nenhum. Areia cobrindo pisos e calçadas. Coletores de energia eólica ocupavam extensas áreas em ambas as baías, compondo efeito visual questionável.

O vento fustigava com violência. E o sol não dava tréguas.

Acabei optando por bar, obviamente de mau aspecto, mas com meia dúzia de fregueses. Duas águas de coco, doze bolinhos de peixe até que razoáveis, me abasteceram parcialmente enquanto eu observava o mar agitado da maré subindo ao longo da baía brava. Visual bonito e relaxante de praias pouco frequentadas, águas limpas e natureza preservada. Apesar de tudo.

Durante o trajeto do ônibus na volta apreciei os carnaubais preservados em zonas alagadas ou alagáveis. Lindo demais! Nada construído ou cultivado por ali. Parecia unidade de conservação.

Em vez de descer ao pé da ponte sobre o braço do rio, fui até o ponto inicial daquela linha urbana de ônibus, até a zona do mercado 40. Naquele momento, fim da tarde de sábado, tudo fechado. Apenas alguns bares sórdidos acolhiam bêbados inveterados. Ao redor, moradores de rua, pichações do PCC nas paredes, ambiente para lá de suspeito. Apertei o passo para sair dali antes de escurecer e partir para longa caminhada ao hotel.

Jantei peixada atraente e fresquinha em bar e restaurante no canteiro central da avenida São Sebastião. Era local tranquilo, sem música ao vivo, silencioso, com a lua quarto-crescente subindo acima das copas das árvores.

continua...

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

de Goiás ao Piauí (via GO, MT, TO, BA, PE, CE, PI) (parte 5/7)

 ...continuação

O guia, que se dizia tetraneto de conselheirista, me pegou de moto de manhã cedo. Acompanhados de casal paulista sessentão que estavam de carro alugado em Aracaju, lá fomos para as explorações naturais, em casas e museus que explicavam a história do arraial de Belo Monte, depois Canudos, massacrado pelo exército do Brasil, após quatro tentativas de ataque aos moradores que resistiram bravamente ao genocídio.

Criado em 1986, o parque estadual de Canudos se mantinha administrado pela UNEB, universidade estadual da Bahia, universidade pública e gratuita.

Em área de mil hectares, o parque abrangia vários sítios onde ocorreram as batalhas travadas pelo exército contra o arraial, este posteriormente submerso pelo açude de Cocorobó, em atitude deliberada das classes dominantes para apagar a história. Pouco se via de vestígios do massacre ao longo do vale do rio Vaza Barris. Afinal se passaram mais de cento e vinte anos. Painéis explicativos e informações adicionais pelo guia nos ensinavam o que ocorrera no alto da Favela, no vale da Morte, nas trincheiras, em eventuais cartuchos e ossadas encontradas pelo caminho.

O açude de Cocorobó cobria a primeira Canudos, incendiada pelo exército. A segunda Canudos, para onde os moradores se transferiram voluntariamente, também foi submersa pelas águas do açude em 1968, auge da ditadura empresarial e militar implantada a partir do golpe de Estado de 1964.

Visitamos as ruínas da Canudos velha, a segunda, de onde se via a famosa igreja velha, emersa devido à baixa das águas do açude. Em seguida, a lagoa do Sangue, onde os conselheiristas sobreviventes do massacre foram degolados pelo exército, embora desarmados e rendidos, a maioria mulheres e crianças. Ainda caminhamos, atravessando o riacho Umburana, então completamente seco, ao ponto onde estivera o corpo do Moreira César. O arrogante e espalhafatoso comandante da terceira expedição contra Canudos fora ali abandonado após ser carregado pelos soldados famintos por quilômetros desde o arraial de Belo Monte, local da morte do oficial.



Encerramos o dia ao por do sol no eixo da barragem do açude de Cocorobó. A jusante floresciam plantações de bananas, entre outras frutas e produtos agrícolas, ao longo do leito umedecido do rio Vaza Barris. As exuberantes plantações comprovavam que ali jamais houve problemas com a fertilidade do solo, mas sim com a concentração da propriedade da terra e com a falta de acesso à água, ambas monopolizadas nas mãos da minoria de latifundiários.

Em nova visita ao IMPC, Instituto Popular Memorial de Canudos, os cuidadores realçaram a importância de manter viva a memória daquele crime hediondo cometido pelo exército, mais um dentre muitos, a serviço do então governo federal do Brasil. E também destacaram que a resistência prolongada dos moradores de Canudos contra os ataques militares comprovou que a organização, a união e a mobilização são as únicas armas do povo contra a exploração e a opressão das classes dominantes, de ontem e de hoje.

A Canudos nova, a terceira e atual, com menos de sessenta anos de idade, era aplainada e de traçado quadriculado. Felizmente, porém, não se espalhava em vias largas e inóspitas. Canudos tinha cara de cidade, sim. Nada de atraente arquitetonicamente, mas de resultado final satisfatório. Se fosse coibido o crime da mutilação geométrica das árvores de ruas e praças, destruindo sombras refrescantes, Canudos se tornaria bem mais agradável.

Passava da meia-noite. Do lado da janela do quarto do hotel, a inauguração de bar seguia a todo vapor com indivíduos se revezando no palco e vomitando gritarias. Do lado oposto, sons tão altos quanto o do evento, mas vindo das caixas de som de carros particulares. Os sujeitos duelavam para ver quem explodia o som mais alto e trepidante. E eu era o único hóspede do hotel naquela noite barulhenta de sábado.

Os policiais militares da Bahia perambulavam pelas ruas da cidade em carro oficial e com metralhadoras a tiracolo. Da lei do silêncio jamais ouviram falar. Aqueles fardados foram treinados para matar trabalhadores, pobres e pretos, jamais prevenir a poluição sonora ou proteger a vida dos cidadãos comuns.

No café da manhã, básico e condizente com a qualidade do hotel, a proprietária informou que de madrugada, durante a festa de inauguração do bar da esquina, um rapaz fora assassinado. Era canudense e conhecido dela. O corpo havia sido retirado do local do crime havia minutos.

E saí a esmo pelas ruas de Canudos. O assassinado da madrugada era o assunto recorrente. Ninguém se lembrava, no entanto, de condenar a polícia militar. A instituição daquele governo estadual constrangia cidadãos comuns pelas ruas da cidade, conforme eu testemunhara na noite anterior, mas não tinha competência, ou interesse, em barrar pessoas armadas numa festa de rua.



Encerrei o ótimo Cangaços, de Graciliano Ramos. Embora eu tivesse lido a maioria dos artigos em Viventes das Alagoas e em dois capítulos de Vidas Secas, agradou a ideia de editar num único volume aqueles textos sob o tema do cangaço. Menos os personagens em si, e mais as origens, as causas e o contexto histórico e social do fenômeno que assolou os interiores do Brasil, sobretudo durante a República velha.

Embalei as leituras com os contos de Negrinha, de Monteiro Lobato O autor era injustamente demonizado e perseguido pelos movimentos chamados de identitários, de cunho pequeno burguês, que defendiam conteúdos importados daquele regime terrorista ao norte do México.

À noite, mesmo com o tempo chuvoso e poucos em circulação pelas ruas e calçadas, o som alto, em bares e carros, confirmava a regra que no nordeste a poluição sonora reinava não como exceção, mas como característica cultural.

Sem o café da manhã, fui esperar o micro perto da esquina da rua com os enfeites das festas de Santo Antônio. No itinerário, pela BR-235, os distritos de Canché, Água Branca e Brejo Grande, a últimas duas vilas com casas dotadas de platibandas. Raríssimas, distantes e isoladas formações rochosas brotavam no horizonte. No mais, pequenas propriedades, bananais, gado, caprinos, coqueirais, caatinga esverdeada e úmida, terreno levemente ondulado.

Sob a chuva fina e teimosa, desembarquei bem cedo na minúscula rodoviária de Jeremoabo. Belisquei bolachas salgadas e iogurte, trazidos na mochila de ataque. Me mudava sempre de lugar a fim de driblar as inúmeras goteiras no teto do terminal.

Aproveitei a estiagem momentânea e me dirigi à pousada próxima, mal conservada, com quartos escuros e mofados. Detestei o que vi. Atravessei a avenida de volta à decrépita rodoviária.

Belisquei mais bolachas e castanhas. Haja goteiras no teto do terminal de zinco da estação! As pancadas de chuva se tornaram mais intensas.

No meio do dia embarquei em ônibus praticamente vazio. Pouco depois desci na rodoviária de Paulo Afonso. Era cidade nova, planejada e espalhada ao longo de extensas e largas avenidas que atravessavam a ilha em meio ao lago formado com as águas do rio São Francisco por conta da hidrelétrica de Paulo Afonso.

No meio da caminhada ao hotel me simpatizei com restaurante. Parei, com bagagens e tudo, para devorar carne de sol coberta com queijo coalho e acompanhada por macaxeira bem crocante.

Sem quaisquer retornos promissores das agências de turismo quanto a passeios organizados ao Raso da Catarina, inviáveis por conta própria, eu saí para caminhar pelas ruas e avenidas de Paulo Afonso, mais especificamente no rumo das águas da hidrelétrica no São Francisco.

A despeito de não contar com conjunto arquitetônico ou histórico digno de nota, e se distribuir por avenidas largas e extensas, Paulo Afonso tinha um charme peculiar. O povo sorridente e receptivo, as áreas verdes amplas e tranquilas nas imediações da represa, forneciam à cidade atmosfera leve e agradável. Passei pelo centro comercial, parques, margem da represa com a hidrelétrica ao fundo, bairros ribeirinhos ou ao lado de riachos que corriam ao longo de gargantas profundas, pedregosas e áridas, estas quase sempre beirando a divisa interestadual entre Bahia e Alagoas. Muitos usavam máscaras faciais contra a covid-19, inclusive em espaços abertos. População bem orientada.

As faixas de pedestres das avenidas de Paulo Afonso, sem qualquer semáforo, eram respeitadíssimas pelos motoristas. Bastava se posicionar na calçada, em frente à faixa, que os motoristas ligavam o pisca-alerta, paravam, e os pedestres podiam atravessar calmamente.

Não muito comuns, mas charmosíssimas, as motos adaptadas a triciclo com capota e banco duplo para passageiros. Uns incrementavam a carroceria, parecendo bólidos futuristas. Quem disse que tais tipos de veículos só circulavam pela Ásia ou em Iquitos?

O bacanal em torno da provável privatização da Eletrobrás ia a todo vapor. O capital financeiro se refestelaria com a aguardada subida dos valores das ações da empresa estratégica estatal e também com a criação de fundos lastreados nessa privataria. Era a orgia dos donos do mercado, da grande burguesia, dos grandes capitalistas que dominam a economia brasileira e mundial!



Li mais contos de Negrinha, de Monteiro Lobato. Ouvi vídeos debatendo a conjuntura política do Brasil, outros de humor para descontrair.

Embarquei pouco antes da meia noite em ônibus vazio proveniente de Maceió. A numeração dos assentos, nos pisos inferior e superior, em nada combinava com o mapa que a bilheteria me mostrara e através do qual escolhi o lugar. Não era ônibus executivo, mas leito. Acabei ficando no piso inferior em banco grande, largo, confortável e com inclinação quase horizontal.

Dormi bem. Só acordei durante a madrugada, na parada em Cabrobó, para voltar a adormecer novamente. Antes saquei a malha da mochila de ataque para me proteger do friozinho do ar condicionado.

Desembarquei ao amanhecer na rodoviária de Petrolina.

Era cedo demais. O quarto do hotel ainda estava ocupado. Conversei com a sorridente funcionária do balcão que estudava a bizarra combinação de relações internacionais e teologia.

Perambulei pela orla urbanizada do rio São Francisco, tendo como vista as águas do rio, a ponte velha, e ainda a única e sempre carregada, às vezes engarrafada pelo tráfego intenso de veículos, e a cidade de Juazeiro na margem oposta.

Atravessei a pé, pela extensa ponte, até a Bahia, observando a ilha do Fogo, no meio do caminho, mas ainda no estado de Pernambuco. A BR-407 entupia a ponte que funcionava como gargalo para quem se movia dentro dos interiores nordestinos. De Juazeiro voltei de barco de passageiros para Petrolina.

Do lado de fora, o restaurante do almoço parecia modesto e por quilo. Seria suficiente diante da pouca fome. Mas nada de quilo, bufê ou estabelecimento para alimentar trabalhadores do entorno. Se tratava de loja de vinhos, comes e bebes diferenciados, além de algumas mesas em salão separado. Logo notei os arrumadinhos e as arrumadinhas bebericando vinho branco gelado. E não eram garrafas de marcas regionais do vale do São Francisco. Os rótulos apontavam para países distantes. Me senti imerso em ambiente similar às tais novidades que surgiam em São Paulo, ganhavam destaque por um tempo, recebiam o nome de bistrô, serviam comida de micro-ondas, aquela galerinha que gosta de ver e ser vista comparecia em peso. Isso até o ponto envelhecer, os buscadores de badalações mudarem de destino e o tal bistrô fechar as portas.

A frequência pelas mesas era a fina flor da elite local. Muitos se conheciam e se cumprimentavam efusivamente ao entrar ou sair. Eles, de calça e camisa. Elas, produzidíssimas, vestidas para matar. Vez ou outra se viravam para a mesa vizinha e trocavam frases sobre grandes negociatas, suspeitos investimentos de vulto, envolvendo cifras gigantescas.

Aceitei a sugestão de tomar taça de vinho tinto do Alentejo, a preço não abusivo. Dentre as opções executivas, fiquei com o filé mignon ao molho de vinho acompanhado de arroz, purê de batatas, precedido de salada verde. Tudo saboroso e não tão caro quanto eu imaginava. Nas mesas ao lado, elas e eles pediam mais garrafas de vinho branco, engarrafadas bem longe do vale do São Francisco.

Ao final, antes de pagar a conta, e aproveitando que me encontrava em Pernambuco, entrei de cabeça em generosa fatia de bolo-de-rolo recheado de goiabada. Soube divinamente, como de praxe.



À noite, tracei picanha suína grelhada com farofa, vinagrete e cebola também grelhada em bar e restaurante na beira do rio. Na margem oposta, entre sons de música, a Bahia e a cidade de Juazeiro. Som ao vivo do lado baiano, som ao vivo do lado pernambucano, sob a acústica das águas correntes do rio São Francisco.

Logo após o café da manhã me incluí em passeio às vinícolas e à represa de Sobradinho.

Repleto de turistas brasileiros, o ônibus seguiu à vinícola situada no município de Casa Nova, Bahia. Lá nos explicaram as fases da produção dos vinhos, espumantes e tranquilos, tintos, brancos e rosês. E com direito a degustação livre de todos os tipos mencionados, sem falar do brandy. Primeiro provamos o ainda bruto destilado do vinho, com oitenta por cento de álcool. Depois o envelhecido em barris de carvalho, com trinta e oito por cento de álcool. Todos podiam repetir as degustações. O clima entre os visitantes começou a animar.

O ônibus nos levou à barragem de Sobradinho, onde embarcamos em catamarã. O céu azul e a placidez das águas da represa valorizavam o passeio fluvial.

Por quase uma hora o catamarã navegou pelas águas calmas do lago. Beberiquei mais espumantes secos do vale do São Francisco, cujas garrafas vinham a preços bem aceitáveis. O bufê oferecia variedade de pratos para todos os gostos.

O catamarã ancorou em banco de areia coberto com vegetação original da caatinga. Mergulhei em banhos nas águas mornas. Ao redor, vento refrescante, descontração entre todos, pela alegria e pelo efeito cumulativo de tanto álcool ingerido. A música ao vivo mexeu com os passageiros, que dançaram a toda, incentivados por garrafas e garrafas de espumante.

Tempos depois o catamarã retornou ao eixo da barragem de Sobradinho, de onde reembarcamos no ônibus de volta à Petrolina.

À noite, a orla fluvial lembrava orla de verdade, de mar e não de rio. Ventava forte, constantemente, refrescando o ambiente. Às vezes até incomodava, mas evitava o calor excessivo e a transpiração inconveniente.

continua...

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

de Goiás ao Piauí (via GO, MT, TO, BA, PE, CE, PI) (parte 4/7)

 ...continuação

Pela manhã dei voltas despretensiosas pelo parque Muritiba, área que englobava as nascentes do rio Lençóis que banha a cidade. Desviei o caminho para os altos da cidade de Lençóis e, lá de cima, tomei a trilha ao Ribeirão do Meio. Ao final da trilha, rio com corredeiras, pequenas quedas d’água, poços para banho. Nada de especial. E retornei à zona urbana.

Conversei com casal jovem brasileiro que viajava várias vezes por ano. E sem gastar um tostão. Por conta das filmagens e fotografias que produziam e divulgavam na internet, “surgiu”, do nada, um anjo que os financiava. Efetuavam as despesas de transportes, de hospedagem, alimentação, passeios, e automaticamente lhes era reembolsado o valor pago. Ele não conseguiu explicar como “surgiu” essa entidade. Tampouco como essa entidade sabia o valor gasto a ser depositado na conta deles. Nem o que essa entidade ganhava com a suposta “boa ação” ao casal. Nas palavras dele, “eu também não entendo...”. Simplesmente me garantiu que o negócio funcionava perfeitamente e jamais a tal entidade deixou de reembolsá-los.

À noitinha atravessei o rio Lençóis pela ponte principal, alcancei trecho frequentado por moradores e tracei dois acarajés legítimos, de mão. E me considerei jantado. Fazia frio. Muita gente, turistas inclusive, vestia blusas e casacos.

Encerrei Educação Como Prática da Liberdade, de Paulo Freire. Os capítulos que tratam especificamente da educação necessária e do método de aprendizado, indissoluvelmente ligado à conscientização crítica da realidade, fizeram o livro crescer em qualidade. Embora ele usasse termos como “amor”, “diálogo”, “respeito”, o método pedagógico de Paulo Freire nada tem de dócil ou caritativo. Ele insiste na evolução para a consciência crítica do povo pobre e trabalhador, rumo a uma nova sociedade, sem explorados e sem exploradores.



Emendei com outro livro, Os Cangaceiros, de Luís Bernardo Pericás, ensaio sobre o banditismo rural durante a República Velha.

Que maravilha rever Lençóis e a Chapada Diamantina pela terceira vez! Pelos baianos da região, pela cidade, pelas belezas naturais do entorno.

O ônibus procedente de São Paulo e com destino a Apodi partiu na alvorada. Atrasou uma hora devido ao congestionamento causado por acidente com caminhão na famigerada BR-242. Entre passageiros e cargas, e sob a ditadura do transporte rodoviário por estradas entupidas, o Brasil mostrava o quanto caminhava para trás. Sem a urgente mudança na matriz de transportes, sobretudo com maciços investimentos em ferrovias, não haveria luz no fim do túnel.

E lá fui rumo ao sertão norte da Bahia. Dentro do ônibus somente eu usava a máscara facial contra a disseminação da covid-19. O frio matinal da Chapada Diamantina provocava cerração forte nos vales e baixadas da região. A contemplação da serra do Sincorá continuava a me encantar.

Amanheceu com céu azul e muito sol, sem nenhuma nuvem. O ônibus entrou na BA-142, passando por Wagner, Utinga, Bonito, Morro do Chapéu. Esta última cidade, visitada anos antes, estranhamente em nada me foi familiar. Não reconheci uma esquina ou construção sequer. Tampouco as cercanias serranas.

Após Morro do Chapéu, tendo a serra do Sincorá a oeste, a estrada mergulhou na caatinga autêntica, embora ainda ligeiramente esverdeada. A vegetação, rala e ressecada, aqui e acolá cultivada por plantações de sisal, ora bem cuidadas, ora praticamente abandonadas e com muito mato crescido.

O ônibus daquela linha de longo percurso recebia frequência típica de quem ia visitar as distantes origens nordestinas. Famílias, grupos, crianças irritadiças pela viagem interminável, alguns passageiros metidos a besta e não se misturando com a plebe majoritária, outros bastante comunicativos. Para não serem assaltados nas paradas oficiais da empresa de ônibus durante o percurso, uns traziam comida de casa e se alimentavam com o veículo em movimento. Melodias variadas brotavam dos celulares, nada exageradamente em alto volume, mas compondo aos ouvidos bizarra gororoba musical.

O ônibus trafegava pela BR-324 e desceu o relevo rumo a Jacobina. A paisagem se tornou menos árida. Já perto da cidade, as serras rochosas, altas, imponentes, escarpadas, embelezavam tudo ao redor, as mesmas que me fascinaram durante as caminhadas de exploração anos antes.

Mais à frente, após Capim Grosso, o ônibus entrou na BR-407, novamente rodovia entupida de carretas. O trânsito fluía, mas de maneira lenta e arrastada. Chuviscou antes de entrar na rodoviária de Senhor do Bonfim, onde desembarquei.

Em plena noite de segunda-feira, numa cidade de porte médio, a quase totalidade dos poucos restaurantes existentes se encontrava fechada. Bem que circulei pelas ruas centrais e nada encontrei aberto. Improvisei diante do possível.

Comi bem no café da manhã do hotel ao lado de mesas ocupadas por senhoras e senhores a trabalho em Senhor do Bonfim. Turista, eu, apenas eu, somente eu.



Ao andar pelas ruas vazias senti o frio bater no rosto e no corpo. Nada exagerado, porém baita contraste com o esperado para o interior da Bahia e mais ainda com as regiões visitadas anteriormente naquela viagem, como Goiás, Mato Grosso e, principalmente, Tocantins.

Não me agradava a leitura de Os Cangaceiros, de Luís Bernardo Pericás. Além da estruturação e conteúdo dos capítulos, ambos confusos, o livro expunha visão preconcebida do autor sobre o cangaço e os cangaceiros, segundo ele desprovidos de raízes econômicas e sociais.

A população de Senhor do Bonfim e das cidades vizinhas, ao contrário das demais visitadas, no interior da Bahia e em outros estados, fazia uso da máscara facial, especialmente no transporte coletivo e ambientes internos. Muito bem!

E o tema recorrente da arborização urbana no nordeste voltava à baila. A mutilação das árvores de ruas e praças públicas, visando figuras geométricas ou estilizadas, mas sempre mutilação, prática nordestina que se propagava que nem praga, causaria indignação a qualquer ser humano dotado de bom senso. Além da destruição, ainda que parcial, da vegetação, comprometendo o desenvolvimento da planta, as mutilações eliminavam algo tão caro e tão desejado pela população, a sombra, a tão almejada sombra, sobretudo em locais tórridos pelo sol implacável. Então por que teimar em juntar a feiura do resultado da árvore mutilada com a disfunção prática do ato? Bastaria escolher devidamente a árvore adequada para um determinado local, praça, canteiro central, calçada larga, calçada estreita, e deixá-las crescer livremente. A população teria a combinação perfeita, ou seja, mais beleza e mais sombra. Simples assim.

O ônibus partiu ao amanhecer em frente à antiga e imponente escadaria da estação ferroviária da Leste em Senhor do Bonfim.  Percorreu a BR-407 até Filadélfia, depois a BA-381.

No assento ao lado, o funcionário da empresa de mineração de cobre, outrora estatal, sediada em Jaguarari, descreveu detalhes do dia a dia do trabalho. Em galerias a cerca de quinhentos metros abaixo do nível do mar, alcançando quatorze quilômetros de extensão, ele e colegas, em turno de sete horas, perfuravam e injetavam explosivos nas paredes frontais para avançar na lavra do minério. Sob as normas de segurança que lembravam regime militar, os operários padeciam naquelas profundidades quentes e úmidas, a despeito da ventilação artificial e dos salários, segundo ele, bastante atraentes. Ao final, me presenteou com duas pequenas amostras do minério azulado.

No meio da manhã eu caminhava pela cidadezinha de Itiúba. E com som ambiente. Pelos alto-falantes da rádio local, transmitido ao vivo, notícias, música, diversão e muitos comerciais das lojas locais. As vinhetas eram tantas vezes repetidas que acabei decorando a musiquinha e as frases feitas para atrair clientes.

A relação entre a zona urbana e a serra de Itiúba não deixava de intrigar. A ferrovia abandonada, a famosa Leste, a mesma que passava em Senhor do Bonfim, cortava a cidade de ponta a ponta. Nem sinal da estação de passageiros, mas apenas o desativado galpão de manutenção de locomotivas, em cuja placa de inauguração constava o nome do então presidente Getúlio Vargas. Ao fundo dos trilhos flagrei jegues transportando cargas em bagagens quadriculadas de couro legítimo, conduzidos por sertanejos após o escambo na feira municipal.



A leste de Itiúba, após cruzar os passos da serra, o veículo atravessou o vilarejo ao lado do açude de Camandaroba, represando as águas do rio Jacurici.

Após Cansanção, na cidade de Monte Santo, o monte santo propriamente dito se erguia a partir das ruelas do centro urbano. Era acessado somente a pé, através de subida intensa por escadarias e trilhas, conforme eu descrevera em relato anterior.

O tempo se mantinha fechado, com nuvens carregadas, chuviscos a toda hora, ventanias fortes. Em todo o trajeto percorrido, a caatinga esverdeada favorecia os plantios e o rebanho de bovinos e caprinos.

Desembarquei na feia Euclides da Cunha e sentei no banco precário da rodoviária. Minúsculo e sujo, o terminal não oferecia banheiros para os usuários, mas sim um bar, no lugar da tradicional lanchonete, em frente ao qual se concentravam bebuns em geral. Abri a mochila de ataque e detonei dois sanduíches de queijo e presunto, entre goles de água da garrafinha providencial.

O segundo ônibus acessou a BR-116 até Bendegó. De lá tomou a BR-235 ao meu destino final, a nova cidade de Canudos.

 Me hospedei em quarto de estabelecimento básico, com lençóis surrados e toalha de banho que se desfazia ao uso. Ao pedir outra na recepção, a proprietária do hotel, se espantou diante da toalha puída e afirmou “Que estranho! São toalhas da melhor qualidade que comprei há pouco tempo”.

Quase todos os restaurantes de Canudos se encontravam fechados naquela noite de quinta-feira. Em dia cujo café da manhã e o almoço se constituíram de apenas quatro sanduíches feitos às pressas eu novamente tive que improvisar. Mas o litro de suco natural de abacaxi lavou a alma.

Fazia friozinho noturno na terra onde Antônio Conselheiro ergueu a vila de Belo Monte, depois chamada de Canudos.

Pela manhã, visitei o memorial de Canudos, exibindo painéis explicativos, exposição de objetos do massacre, mapas esquemáticos da região ao final do século XIX.

Era dia de feira semanal em Canudos. Os moradores, da cidade e de distritos vizinhos, afluíram para vender e comprar. Todo o comércio se manteve aberto para receber o dinheiro recém-adquirido nas vendas. Feira movimentada, viva, alegre, vibrante.

Entrei no IPMC, Instituto Popular Memorial de Canudos. Penduradas nas paredes e soltas aleatoriamente no piso, pinturas que tinham o antigo vilarejo de Canudos como tema principal. Riscos vermelhos permeando todas as obras aludiam explicitamente ao sangue derramado durante o massacre da população pelo exército brasileiro. Também dentro do instituto, o cruzeiro de madeira, original da igreja velha da vila Belo Monte. E as dezenas de toras de cedro, nó da discórdia entre o Conselheiro e o fornecedor de Juazeiro, estopim para atiçar a curiosidade geral sobre Belo Monte e para atrair as primeiras tropas militares na intenção de reprimir o vilarejo que almejava a autonomia.



Tentei encontrar sombra pelo extenso e largo canteiro central da avenida principal. Sombra ali era artigo raro. Adivinhem o motivo!? Porque as árvores, dezenas delas, desgraçadamente, haviam sido mutiladas geometricamente, reduzindo as áreas de sombra à praticamente nada e disputadas ferrenhamente pelos sertanejos. Mania esquizofrênica de destruir as copas das árvores e liberar o sol escaldante para massacrar, sem proteções naturais, tudo e todos.

Terminei o ensaio Os Cangaceiros, de Luís Bernardo Pericás. Mantive a mesma toada em razão da região que eu atravessava. Iniciei Cangaços, de Graciliano Ramos, coletânea de artigos, inéditos ou não, que o escritor alagoano publicou em jornais e revistas. Logo nos primeiros textos percebi a superioridade, na forma e no conteúdo, na abordagem do tema do cangaço e dos cangaceiros.

Dois anos, 2020 e 2021, por conta da pandemia do covid-19, sem festas juninas no nordeste do Brasil, região que sempre foi apaixonada por elas. Daria para imaginar como estavam os moradores nos preparativos em cada cidade daqueles interiores. Em Canudos, cujo padroeiro era Santo Antônio, a população se agitava em contagem regressiva. Os quarteirões da rua da igreja Matriz já contavam com bandeirinhas, enfeites diversos, pau-de-sebo, entre tantas outras decorações juninas. Nas demais cidades dos interiores nordestinos a expectativa não era diferente. Tradicionalmente ruidosa, com músicas altas nas quase vinte e quatro horas do dia, a região trepidava a cada dia mais próximo das datas comemorativas.

À noite houve projeção de filme na concha acústica do canteiro central da avenida principal, a praça de Canudos. Filme de divulgação da transnacional que instalava captadores de energia eólica entre Canudos e Jeremoabo. Através de material publicitário produzido por equipe gaúcha o filme descrevia as belezas da energia eólica, a sustentabilidade da empresa, a harmonia social e cultural com os moradores das comunidades afetadas, enfim, aquele tipo de empresa capitalista dotada da tão alardeada “responsabilidade social”. O filme bradava que a tal transnacional envolvia a comunidade nos projetos técnicos e supostamente culturais, alegando que, assim, preservava a história de Canudos, do Raso da Catarina e das populações sertanejas tradicionais. Me engana que eu gosto!

continua...