...continuação
Acordei cedo. Enrolei bastante antes de ir ao café da
manhã básico da pousada, à disposição em ampla mesa retangular e coletiva, ao
lado dos anfitriões octogenários.
Ponte Alta contava com raras agências de turismo, ao
contrário das mais funcionais cidades de Barreirinhas, São Jorge, Chapada dos
Guimarães, Lençóis, São Raimundo Nonato, também situadas às portas de atrações
naturais. Daí a imensa dificuldade, ou quase impossibilidade, de obter vagas na
cidade nos passeios ao Jalapão que começavam e terminavam exclusivamente em
Palmas. Só não me chateou muito porque jamais fui tão entusiasta de explorar ao
Jalapão.
Terminei Vila dos
Confins, de Mario Palmério. A campanha eleitoral e as eleições propriamente
ditas, em cidadezinha do interior brasileiro, dominada até a medula pelo velho
coronelismo, ocupavam apenas partes do texto. Na maioria dos capítulos o
escritor descrevia cenas de pescarias, caçadas, lendas e casos rurais,
personagens pitorescos, o clima, a geografia. Romance muito bem escrito por um
não romancista.
Durante toda a noite, madrugada e início da manhã, a boate
do outro lado do rio se manteve agitada, com música e vibração altíssimas, embora
não tivesse impedido o meu sono. E ainda teríamos naquela noite de sábado, a
Festa do Beijo, fartamente anunciada em cartazes e pelos alto-falantes de carro
de som.
Caminhei despretensiosamente pela ponte nova sobre o rio
Ponte Alta e por estradinha de terra que o margeava. Lagartos acinzentados e
esverdeados, com mais de um metro de comprimento, exploravam os galhos altos
das árvores para comer os brotos.
Retornei para me sentar sob a sombra da frente da pousada
e começar a ler Cova 312, de Daniela
Arbex. Da mesma maneira que no livro anterior, Holocausto Brasileiro, a autora tratava tema pertinente, humana e politicamente.
No entanto, em ambos os livros de registro jornalístico, os textos careciam de
organização e estruturação, confundindo o leitor com detalhes fora de hora ou
apenas tocando superficialmente em temas de alto interesse.
Da janela do banheiro, eu ouvia gritos, imitações bizarras
de cantos de galo, vozes instigantes. Mais tarde o casal idoso me contou que o
sujeito, então quarentão, casara com uma das filhas da proprietária do terreno.
Com o tempo passara a agredi-la fisicamente. Caiu na dependência química de
drogas pesadas que lhe afetou os membros e o cérebro. Se tornou quase vegetal e
dependente para as tarefas mais simples. O casal teve três filhos antes da
decaída física e mental do marido. A justiça decidiu que a família dela teria a
obrigação de cuidar dele. A dona do terreno construiu quartinho para o
inválido, o sustentando meio como ser humano, meio como animal.
O micro me resgatou em frente à pousada. Antes de
escurecer eu descia na rodoviária de Porto Nacional.
Pouco antes da meia noite, embarquei em ônibus que passou
por Silvanópolis, Santa Rosa do Tocantins, Natividade, Almas, Dianópolis, Novo
Jardim, a divisa entre Tocantins e Bahia, sempre ao lado de imensas
monoculturas contaminadas de agrotóxicos dos capitalistas agrários.
Amanheceu na famigerada e tenebrosa Luís Eduardo
Magalhães, cidade que, como o sobrenome indica, tudo para as classes
dominantes, nada para os trabalhadores e o povo pobre. O dono de tudo e de todos
na Bahia dos finais dos anos 1990 mandou trocar o nome original do distrito,
Mimoso do Oeste, para o do filho morto. Tanto a emancipação do município como o
novo nome sofreram diversas ações de inconstitucionalidade. Em vão. Inteiramente
plana e sem horizontes, a cidade oferecia galpões, lojas, oficinas, no ramo
agropecuário, sobretudo de empresas transnacionais, estadunidenses
principalmente. Ali tudo parecia frio, distante, desumano, voltado
exclusivamente para o acúmulo de capital pelo latifúndio e pelas empresas
agropecuárias, jamais levando em consideração quem trabalhava dia e noite para
construir e tocar tudo aquilo.
Desembarquei em Barreiras no começo da manhã depois de o
relevo se acidentar levemente e exibir escarpas chapadas ao longo da BR-242.
No meio da tarde, depois de horas sem fim de espera na
rodoviária, embarquei em novo ônibus.
A BR-242, depois do declive do planalto onde se localizava
a repugnante Luís Eduardo Magalhães, novamente voltava a subir o relevo, cruzar
a serra, comportando tráfego intenso de carretas-duplas. Parada para
desembarque e embarque em Crisópolis, logo em seguida ao trevo para
Baianópolis. A paisagem revelava cerrado dos gerais da Bahia, esparsamente
ocupado por rebanhos de gado bovino e nada plantado. A natureza e a população
original agradeciam. Ainda.
Anoitecia quando a estrada atravessou o rio São Francisco
pela extensa ponte. No quadrante sudeste, o espetáculo inesquecível. A lua
cheia, enorme, alaranjada, depois amarelada, subia no horizonte. Ibotirama,
onde eu estivera anos antes, se erguia na margem oposta do rio. O luar se
estendia sobre as casinhas da cidade e formava cauda prateada sobre as águas do
São Francisco. Imagem deslumbrante. Impossível não se encantar com tanta beleza
concentrada. Os passageiros do ônibus, sobretudo os do lado direito, pararam o
que faziam para contemplar o efeito da combinação lua cheia, águas do São
Francisco, cidade de Ibotirama. Lindo demais! Esqueci o cansaço de tantas horas
em ônibus diferentes, as longas e monótonas esperas em rodoviárias, as noites
mal dormidas, a alimentação precária de passageiro em trânsito, o desejo
intenso de me instalar em quarto confortável para relaxar o esqueleto. Aquela perfeição
de cena levantava os ânimos.
Após os fundos do vale o relevo tornou a se elevar. Mesmo
no escuro da noite reparei no relevo acidentado atravessado pela rodovia. A
imensa lua cheia iluminava tudo com a luz prateada. Serras, serrotes, paredões,
escarpas verticais, asfalto sinuoso, em meio a tantos sobes e desces.
Desembarquei à noite em Seabra e fui a pé ao hotel.
Instigante a atmosfera desses locais que, como viajante, costumo
parar por necessidade logística. Feios, poluídos, mais ou menos perigosos,
barulhentos, nada convidativos para estadias longas. Mas, por outro lado,
vibrantes, cheios de vida. Seabra nada tinha a ver com aquelas pavorosas
cidades repartidas ao meio pela rodovia, apenas para servir ao capital agrário,
de determinados interiores brasileiros, como no Mato Grosso, por exemplo.
Seabra reservava a vibração de cidades autênticas, dotadas de qualidades e
defeitos inerentes à localização ao lado de rodovia.
Sem precisar atravessar a fatídica BR-242, o restaurante
de comida caseira servia comida saborosa, temperada e barata. Almocei carne de
sol e demais acompanhamentos, todos deliciosos e preparados na hora, fresquinhos,
quentinhos. Repentinamente caiu baita temporal, precedido e acompanhado de
trovões e ventania. Não faltaram goteiras e pingos de chuva no quintal coberto
da casa. Eu já terminara e raspara o prato de tão bom que soube a refeição.
Apenas mudei de mesa para não me molhar. O mundo caía lá fora. Mais tarde, ao
voltar pela rua, desviando e saltando do jeito que dava, enxurradas, poças
d’água, lama arrastada das transversais não pavimentadas.
Em tarde de preguiça sem culpa no quarto do hotel, assisti
a 7 Prisioneiros, filme de Alexandre
Moratto. Apenas bonzinho.
Baixei cedo na rodoviária de Seabra.
Após a parada em Palmeiras, a BR-242 penetrou na Chapada
Diamantina e o relevo se acidentou. A vegetação, floresta, cerrado, caatinga,
brotava preservada em ambos os lados da rodovia que, entupida de carretas, exibia
trânsito lento e favorável à contemplação da paisagem. Serras, morros
testemunhos, vales, paredões e escarpas rochosas e íngremes, o emblemático
visual da Chapada Diamantina. Entre os morros avistados, o do Camelo e o do Pai
Inácio. Belíssimas e dramáticas imagens anunciando as riquezas naturais da
região. Enquanto o ônibus engatinhava ao longo da fileira de carretas eu
apreciava o panorama de cair o queixo.
Desembarquei na pequena rodoviária de Lençóis ainda pela
manhã. Os quartos da pousada escolhida primavam tanto pelo conforto e
funcionalidade que nenhum deles contava com a supérflua televisão para
embrutecer os hóspedes. Também não havia esse aparelho no salão do café da
manhã. Se o hóspede teimoso insistisse em se imbecilizar diante da telinha que
descesse a uma espécie de porão coletivo sob a cozinha. Lá, entre sofás e
bugigangas, poderia ficar na companhia de outros hóspedes. Pelo menos haveria
um mínimo de integração social. Que outros hotéis e pousadas seguissem o mesmo
caminho.
Além dos bares e restaurantes espalhados pelo centro
histórico de Lençóis, havia a ruazinha estreita, a chamada rua da Baderna, ao
longo de dois quarteirões, que concentrava diversos estabelecimentos de comes e
bebes. Os garçons abordavam os passantes educadamente com o cardápio nas mãos.
Fora a música ao vivo na calçada, na base de MPB, uma
deusa negra surgiu no meio da rua. Andava e cantava, por entre as mesas, sem
microfone, recorrendo apenas ao triângulo de marcação e ao vozeirão estupendo.
Interpretava peças musicais de gêneros próximos aos aboios e às vaquejadas.
Cantava com personalidade. O ritmo, a melodia, os arranjos imaginários a
completavam. Maravilhosa! A maioria, nas mesas ou circulando pela rua, nem
davam bola. O som ao vivo da calçada, entretanto, se calou para reverenciá-la.
Demais! Nem precisariam as caipirinhas, as cambraias, a carne de sol, devoradas
no jantar. Ela preenchia a noite sem necessidade de mais nada.
Comecei a reler, depois de décadas, Educação Como Prática Da Liberdade, de Paulo Freire, autor tão
louvado, citado e comentado, mas pouquíssimo lido e estudado. A educação
politizada e libertadora do mestre sempre seria essencial aos povos do mundo,
sobretudo ao brasileiro.
Na manhã seguinte, eu, outros passageiros soltos e o guia
local partimos para explorar partes da Chapada Diamantina. A fim de contornar a
área do parque nacional, pelo qual não havia estradas ao destino desejado, o
guia pegou a terrível BR-242, congestionada de carretas-duplas de soja, antes
de virar à direita na BA-142. Passou ao lado de Andaraí e próximo a Xique-Xique
de Igatu, outrora centro de garimpo de diamantes que deixou crateras e
assoreamento nos rios da região. Mais adiante vistas estupendas da serra do
Sincorá, prolongamento da serra do Espinhaço desde o centro sul de Minas
Gerais, e que recebia diferentes nomes regionais em toda a extensão.
No município de Itaetê o veículo acessou estrada de chão
até a entrada do Poço Encantado, em propriedade particular, fora do parque
nacional da Chapada Diamantina.
Portando capacete e lanterna acoplada, via trilha curta por
escadaria adaptada nas pedras, desci até o ponto de observação dentro da gruta.
O lago de águas cristalinas e azuladas pelo efeito luminoso recebia, naquele
horário e naquele dia do ano, os raios do sol, criando efeitos esplêndidos,
antes e depois de atingir a superfície da água. Efeitos de encantamento.
Irreal. Arrebatador. Não era mais permitida a entrada na água como acontecia em
minha primeira visita trinta e três anos antes. Em compensação, naquela época,
não fui recompensado com a penetração dos raios solares pela boca superior da
gruta. Dessa vez permaneceria deslumbrado com a imagem do Poço Encantado durante
um tempão. Lindo demais!
Mais estradas de chão, rumo ao município de Nova Redenção,
mais especificamente ao Poço Azul. A vegetação naqueles trechos da Bahia se
encontrava esverdeada pelas chuvas recentes, mas se tratava de zona de caatinga
em transição para floresta mais desenvolvida, sobretudo nas imediações dos
cursos d’água. O veículo cruzou ponte frágil de madeira sobre o rio Paraguaçu,
onde três banhistas se refrescavam nas águas ferruginosas.
Durante a espera de descer à gruta eu não cansava de
apreciar a visão da serra do Sincorá no horizonte.
Então me dirigi ao curto trecho de acesso em declive. Por
conta do horário e do dia do ano, o efeito dos raios solares nas águas
correntes do Poço Azul se assemelhava, porém com menos impacto, ao do Poço
Encantado. Ali era permitido, em grupos pequenos, flutuar nas águas e observar
as profundezas, assim como o salão da gruta de baixo para cima. Novamente o
azul gerado pelas águas e os raios do sol encantaram até não poder mais.
No final da tarde o veículo entrou de volta nas ruas
charmosas de Lençóis.
A noite valeu, novamente, pela deusa negra andando e cantando
na rua, emitindo a voz potente, acompanhada apenas e então somente pelo
triângulo de marcação. Interpretou mais cantigas da cultura popular nordestina.
Maravilhosa!
Saí alimentado do café da manhã para mais um dia de
incursões, dessa vez ao norte da Chapada Diamantina.
Inicialmente, a caminhada ao lado do rio Mucugezinho, até
o poço do Diabo.
Em seguida, a gruta da Fumacinha, situada no município de
Iraquara. O local reservava enorme variedade de espeleotemas, entre
estalactites, estalagmites, electites, cortinas, travertinos, agulhas, ao longo
das centenas de metros da exploração, munidos de capacetes com lanternas
acopladas.
No meio da tarde, o conjunto da Pratinha que incluía a
descida à Gruta Azul. Local desfigurado e extremamente turístico, apesar das
belezas naturais e da cristalinidade das águas. Serviu apenas para ticar mais atrações
da Chapada Diamantina.
Por fim, ao entardecer, subimos o icônico morro do Pai
Inácio, do alto do qual se tinha vista panorâmica das imagens clássicas da
Chapada Diamantina, marcada pelos morros chapados em ambos os lados dos vales
ricos em cursos d’água. Ainda no topo do morro, fomos presenteados por pôr do
sol magnífico.
Anoitecia ao entrarmos nas ruas estreitas de Lençóis.
continua...
Amei! Viajei literalmente! Parabéns 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirFique à vontade de ler, compartilhar e comentar, esse e outros tantos relatos publicados neste blog de minhas viagens pelos interiores do Brasil e de outros países.
Tudo maravilhoso
ResponderExcluirOlá! Obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirComente sempre!