quinta-feira, 6 de outubro de 2022

de Goiás ao Piauí (via GO, MT, TO, BA, PE, CE, PI) (parte 1/7)

Depois de mais de dois anos de castigo em São Paulo, por conta da pandemia de covid-19, embarquei naquele mês de abril no terminal rodoviário do Tietê com destino a Goiás.

Eu e apenas cinco passageiros do ônibus usavam a máscara facial. Pouco ou nada valia a recomendação do motorista que a pandemia ainda não acabara e que era preciso se prevenir. Por outro lado, a maioria deles entrava em paranoia para tentar recarregar os celulares, a fim de usá-los para absolutamente nada de importante ou urgente, a não ser se rastrearem orgulhosamente.

A trintona sentada ao meu lado, goiana de Anápolis e moradora em São Paulo, separada com filho adulto, voltava de férias à terra natal. A baiana, a trabalho em Laranjal Paulista, onde vivia com o pai da filha de três anos, mas cansada da vida conjugal, estava literalmente fugindo, mais a filha, para a casa dos pais no interior baiano. Escolhera itinerário estapafúrdio, talvez para despistar o companheiro, via dois ou três transportes em dois dias de travessia.

O ônibus encerrou o trajeto em Anápolis na tarde do dia seguinte. Atravessei a avenida para comer algo substancial e, principalmente, fugir da rodoviária da cidade, construção enorme, vazia, abandonada, decrépita, deprimente, com lanchonetes às moscas, todas de péssimo aspecto.

Subi no final da tarde no segundo ônibus, desembarcando pouco depois em Pirenópolis.

À noite, caí na tal rua do lazer da cidade, composta de fileiras de restaurantes em ambos os lados, com música ao vivo, e garçons que disputavam, ainda que suavemente, os poucos turistas daquela noite de começo da semana. A maioria das opções gastronômicas abria as portas somente de quinta a domingo.

Pirenópolis encantava pela beleza do casario do século XIX e início do XX. Becos e ruas calçadas de pedra, igrejas e capelas antigas, detalhes em portas, janelas, escadinhas de acesso à entrada principal da construção. Tudo bem conservado, pintado de novo, de bom aspecto, pelo menos externamente. Praticamente ninguém de máscaras faciais contra a covid-19, nas ruas, comércios, restaurantes, etc. A iluminação noturna da cidade pouco iluminava e aumentava o charme do centro histórico.



A seleção musical durante o café da manhã da pousada, se não era na base do lixo sertanejo, tão marcante em Goiás, se restringia a sucessos da indústria cultural estadunidense dos anos 1990. Música brasileira, a rica e diversa música brasileira, nem pensar por ali.

Painéis turísticos da cidade de Pirenópolis divulgavam o chamado “Caminho de Cora Coralina”, que percorria cidadezinhas e vilarejos, entre Pirenópolis e a cidade de Goiás, por estradas vicinais, afastadas das rodovias estaduais e federais, nem sempre asfaltadas. Ótima pedida para se embrenhar pela história dos sertões do planalto central.

Depois da última rua calçada da cidade peguei a estradinha rumo à cachoeira do Bonsucesso. Percorri algo como dez quilômetros entre ida e volta. Não cheguei a entrar na propriedade privada, nem avistar a queda d’água. Para isso eu teria que desembolsar valor abusivo. Atração natural em propriedade privada dá nisso. A caminhada em si valeu pelo esforço físico. Ao cruzar com veículos, na maioria aqueles escabrosos SUV’s, meros símbolos de ostentação e poluentes ao extremo, a poeira subia e impregnava na pele, roupas, calçados e, principalmente, boca, nariz e pulmões.

Durante a leitura da extensa antologia de contos e crônicas de Luiz Fernando Veríssimo, me deparei com o conto A Mancha, escrito na primeira década do século XXI. Talvez o texto mais longo dentre os presentes no livro. Mas que conto! Impressionante. Aterrador. Nada daquele humor tão típico e delicioso do autor. Mas que conto! Li quase sem respirar, de queixo caído, de ponta a ponta. Texto para ler e reler, incontáveis vezes.

Se durante o dia a culinária goiana praticamente inexistia nos cardápios dos restaurantes de Pirenópolis, à noite esse quadro se agravava. À exceção dos pontos do tradicional empadão goiano, estabelecimentos pequenos, e alguns em processo de fechamento das portas, nada da rica culinária regional para o jantar. O que se via eram cardápios paulistanos, cobrando preços paulistanos.

Cidade bonitinha, mas ordinária. Em vez do visitante se adaptar a ela, era ela que se submetia aos supostos gostos dos visitantes. Completamente o inverso do desejável. A indústria do turismo predatório ia muito bem, obrigado.

Mandei às favas os restaurantes pretensiosos, com cardápios pretensiosos, servindo pouca comida a preços astronômicos. Fui de empadão goiano e suco de caju. O empadão, do tamanho de um prato de sobremesa, vinha recheado de tudo e mais um pouco, carnes de boi, carnes de frango, carnes de porco, azeitonas, batatas, legumes, tudo junto e misturado no mesmo empadão. Popular em Goiás era acrescentar a guariroba, espécie amarga de palmito. Paguei pouco e comi bem comida tipicamente goiana.

Pirenópolis começava a encher de turistas de fim de semana. Desfiles de SUV’s e caminhonetes cabines-duplas pelas ruas. Nas mulheres, roupas novas, cheirando a guardado, espalhafatosas, destaque especial aos saltos-agulha, apropriadíssimos para aquele calçamento de pedra irregular. Casais, muitos casais, famílias, grupos de amigos, raros os sozinhos ou as sozinhas.



Parti de Pirenópolis no ônibus bem cedo. Desci na rodoviária de Goiânia, de onde embarquei no segundo ônibus.

No trajeto rodoviário pela BR-070, paradas em Inhumas, Ituaçu e Itaberaí. Nas imediações dessa última, típico cenário do capitalismo agrário nos interiores do Brasil. Monoculturas de milho e laranja, usando e abusando de agrotóxicos, imensos rebanhos de gado, granjas gigantescas. Quem mandava por ali, feito coronel das antigas, era o dono de tudo, até dos seres humanos. Praticamente toda a população da cidade, direta ou indiretamente, trabalhava para empresas agropecuárias do grupo dele. Por conta dessa dependência explícita de somente um grupo empresarial, a cidade se espalhava ao longo da BR-070 numa concentração urbana repugnante, desumana, sem nenhuma qualidade habitacional ou de serviços para a população. Funcionava apenas como depósito de gente.

A passageira piauiense ao meu lado enalteceu o figurão, afirmando de boca cheia que a empresa fornecia vale-refeição e cobria tratamentos médicos e odontológicos. Mas essas não eram obrigações do empregador e direito dos empregados segundo legislação da CLT, em vigor havia mais de setenta anos e que o então regime federal fazia tudo para destruir? Há quatro anos radicada na cidade, atuando como empregada doméstica nas mansões dos donos do lugar, ela desembarcaria em Itapirapuã para visitar parentes e comparecer a ações judiciais que movera contra empresa de transportes. Quatro meses antes, o ônibus em que ela viajava quebrou e passou doze horas parado no meio do nada, sem água, sem comida, sem hospedagem, sem qualquer tipo de apoio ou orientação.

Desembarquei na cidade de Goiás no começo da tarde. Me hospedei de frente para o rio Vermelho, para a velha ponte de madeira e para o museu Cora Coralina, antiga residência da poeta que nasceu e viveu na primeira capital do estado de Goiás. Mais adiante, o casario colonial, os telhados dos sobrados, a serra ao fundo.

Com o sol mais baixo e o calor suportável, saí às ruas. Logo de cara, paixão à primeira vista pela cidade de Goiás, pelas ruazinhas e becos, pelo casario bem conservado, pelas construções maiores dos tempos de capital do estado, pelas pitorescas praças, pelo silêncio bucólico de fim de tarde de sábado. E pela simpatia espontânea dos moradores e visitantes esparsos. Radical e deliciosamente diferente do agito turístico de Pirenópolis. Goiás era bem mais bonita, mais ampla, mais acolhedora, mais charmosa, mais discreta, mais tudo.

Uma cavalgada teve início numa das praças, talvez a maior delas, em terreno extenso e inclinado. O evento trazia o patrocínio de parlamentares da região. A bandeira do Brasil no ombro dos cavaleiros indicaria a coloração política dos líderes do evento?

Saboreei sorvete de cajá, empadinha, café preto. Arrisquei perambuladas pela beira do rio Vermelho, antes e depois do busto e estátua de Cora Coralina. Havia outros visitantes por ali. Afinal, era tarde de sábado ensolarado. Nada a ver, porém, com o turismo massificado de Pirenópolis.

Saí para jantar em restaurante na praça do coreto. Som ao vivo na base de voz e violão interpretando canções brasileiras de qualidade. Destaque para o suco de cagaita, fruto típico do cerrado. E me sentei sob as árvores, ao lado da praça e de construções históricas imponentes, com vista para ruazinhas e becos charmosos, da iluminação noturna amarelada, do vaivém pequeno e discreto de pedestres e veículos.



De estômago cheio, circulei por outras ruas, vielas e praças. A maioria vazia, silenciosa, atraente, somente sob o som dos meus passos. Num sábado à noite estrelado, a cidade histórica e famosa, antiga capital do estado, não perdia a atmosfera tranquila e bucólica.

Pela manhã circulei por todo o centro histórico e mais um pouco. Bem conservado, bonito, tranquilo, silencioso. Poucos turistas. Nenhuma aglomeração. Visitei a casa, então museu, onde nasceu, viveu e morreu Cora Coralina. Singelo e comovente.

Me intrigava a enorme quantidade de casas, dentro do centro histórico, sem moradores, desabitadas, sem sinais de vida interior. Embora bem conservadas, pelo menos externamente, não tinham vida. Não por acaso, andar pelas ruas do centro antigo de Goiás primava pelo silêncio, não o relativo, mas o silêncio absoluto.

Almocei nos interiores do antigo mercado municipal. Pequenos restaurantes ofereciam comida simples e barata. Duas rodadas de sorvete na praça do coreto e me senti bem alimentado.

Encerrei a extensa antologia de contos e crônicas de Luiz Fernando Veríssimo, chamada Veríssimo Antológico. Subdividido cronologicamente conforme as décadas de edição dos textos, mais me atraíram os dos anos de 1980 e os da primeira década dos anos 2000.

Fazendo jus ao ano eleitoral em que o Brasil se encontrava, com previsão de arbitrariedades e violências de todos os tipos, e nada de debates politizados em torno de projetos para o país, ainda mais pelos nossos interiores, selecionei a releitura de Vila dos Confins, de Mário Palmério.

Mais voltas pelo estupendo centro histórico da cidade de Goiás, deliciosamente quieto e charmoso sob a iluminação pública amarelada. Atravessei o rio Vermelho e rodeei a igreja do Rosário, saboreando cada recanto, cada esquina, cada porta, cada janela, cada telhado.

Baixei de manhã bem cedo na rodoviária e embarquei rumo ao Mato Grosso.

A paisagem, em declive e com algumas sinuosidades, revelava cerrado esverdeado, rara e esparsamente ocupado por pastagens de gado. Paradas regulamentares em Itapirapuã e Jussara, cidades feias, espalhadas e sem cara de nada. A partir daí o relevo se tornou ondulado e os pastos para gado bovino e as monoculturas extensivas de milho, de soja, de capim, de cana-de-açúcar, entupidas de agrotóxicos, imperavam sem dó nem piedade. Gigantescos silos de armazenamento das colheitas compunham cenários apocalípticos à paisagem rural. O quadro se agravava nas imediações de Montes Claros de Goiás.

Na parada para o almoço, junto ao motorista do ônibus, arrisquei bufê com preço fixo, pois, segundo o malandro dono do estabelecimento, a balança estava quebrada. Nos pratos esvaziados pelos famintos passageiros notei vários pequis, limpos, raspados corretamente com os dentes e a língua, mas jamais mordidos a fim de evitar os terríveis espinhos do núcleo do fruto.



O relevo prosseguia em declive suave. Serrotes isolados se erguiam no horizonte. No começo da tarde, logo após a cidade de Aragarças, o ônibus atravessou a ponte sobre o rio Araguaia, divisa dos estados de Goiás e Mato Grosso e, em seguida, a ponte sobre o rio das Garças, já em território mato-grossense.

Me hospedei em quarto de hotel cujas janelas se voltavam para dentro, para o poço central do edifício. Ainda bem. Barra do Garças se notabilizava pela poluição sonora de veículos, sobretudo ao longo da avenida/estrada que corta toda a cidade, atravessa as duas pontes e atinge Goiás. Infinidades de carretas-duplas, os bitrens, transportavam soja dos interiores mato-grossenses em direção ao longínquo porto de Santos. E retornavam vazias. Num país sob a ditadura do transporte rodoviário, e das monoculturas extensivas para exportação, os produtos agrícolas, envenenados de transgenia e agrotóxicos, percorriam distâncias imensas pelas rodovias brasileiras. Cenas de país meramente exportador de produtos agrícolas e minerais.

E fui à volta de reconhecimento na única parte interessante naquela cidade agropecuária, nas margens dos rios das Garças e Araguaia. Neste, na margem goiana, apareciam esboços de praia naquele outono, início da estação seca.

Atravessei ambas as pontes a pé, observando as margens, o fluxo das águas fluviais, o vaivém das carretas-duplas, a vida pulsante e agitada nas duas cidades ribeirinhas. De tédio ou melancolia ninguém padeceria por ali. Indígenas da etnia Xavante, semelhante aos avistados na cidade de Goiás, circulavam se comunicando na língua original.

Na margem mato-grossense, praças e áreas públicas largadas às intempéries, inacabadas, arrebentadas, ocupadas por moradores de rua e afins. Bares e restaurantes, porém, abundavam por todos os cantos, com direito a putas perambulando ou atuando junto aos inseparáveis celulares. Ao som de músicas sertanejas em volumes ensurdecedores, o solo trepidava no estilo bem centro-oeste, na base de ostentação das quadrilhas do capital agrário. Como se isso não bastasse, em volumes ainda mais altos e graves, veículos desfilavam pelas ruas, repletos de caixas de som, tremendo tudo e todos. E era apenas começo de noite de terça-feira útil.

continua...

2 comentários:

  1. Que linda essa página! Assim que terminar esse doutorado vou colocar as viagens no meu norte.Sei que poderá me ajudar.Obrigada

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  2. Olá Mariângela! Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Que encerre seu doutorado com todo o êxito.
    Quando quiser, estarei aqui para sanar suas dúvidas a respeito deste e de outros tantos roteiros pelos interiores do Brasil e de outros países que publiquei aqui no blog.
    Comente sempre!

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