Depois de mais de dois anos de castigo em São Paulo, por
conta da pandemia de covid-19, embarquei naquele mês de abril no terminal
rodoviário do Tietê com destino a Goiás.
Eu e apenas cinco passageiros do ônibus usavam a máscara facial. Pouco ou nada valia a recomendação do motorista que a pandemia ainda não acabara e que era preciso se prevenir. Por outro lado, a maioria deles entrava em paranoia para tentar recarregar os celulares, a fim de usá-los para absolutamente nada de importante ou urgente, a não ser se rastrearem orgulhosamente.
A trintona sentada ao meu lado, goiana de Anápolis e moradora em São Paulo, separada com filho adulto, voltava de férias à terra natal. A baiana, a trabalho em Laranjal Paulista, onde vivia com o pai da filha de três anos, mas cansada da vida conjugal, estava literalmente fugindo, mais a filha, para a casa dos pais no interior baiano. Escolhera itinerário estapafúrdio, talvez para despistar o companheiro, via dois ou três transportes em dois dias de travessia.
O ônibus encerrou o trajeto em Anápolis na tarde do dia seguinte. Atravessei a avenida para comer algo substancial e, principalmente, fugir da rodoviária da cidade, construção enorme, vazia, abandonada, decrépita, deprimente, com lanchonetes às moscas, todas de péssimo aspecto.
Subi no final da tarde no segundo ônibus, desembarcando pouco depois em Pirenópolis.
À noite, caí na tal rua do lazer da cidade, composta de fileiras de restaurantes em ambos os lados, com música ao vivo, e garçons que disputavam, ainda que suavemente, os poucos turistas daquela noite de começo da semana. A maioria das opções gastronômicas abria as portas somente de quinta a domingo.
Pirenópolis encantava pela beleza do casario do século XIX
e início do XX. Becos e ruas calçadas de pedra, igrejas e capelas antigas,
detalhes em portas, janelas, escadinhas de acesso à entrada principal da
construção. Tudo bem conservado, pintado de novo, de bom aspecto, pelo menos
externamente. Praticamente ninguém de máscaras faciais contra a covid-19, nas
ruas, comércios, restaurantes, etc. A iluminação noturna da cidade pouco
iluminava e aumentava o charme do centro histórico.
A seleção musical durante o café da manhã da pousada, se
não era na base do lixo sertanejo, tão marcante em Goiás, se restringia a
sucessos da indústria cultural estadunidense dos anos 1990. Música brasileira,
a rica e diversa música brasileira, nem pensar por ali.
Painéis turísticos da cidade de Pirenópolis divulgavam o
chamado “Caminho de Cora Coralina”, que percorria cidadezinhas e vilarejos,
entre Pirenópolis e a cidade de Goiás, por estradas vicinais, afastadas das
rodovias estaduais e federais, nem sempre asfaltadas. Ótima pedida para se
embrenhar pela história dos sertões do planalto central.
Depois da última rua calçada da cidade peguei a estradinha
rumo à cachoeira do Bonsucesso. Percorri algo como dez quilômetros entre ida e
volta. Não cheguei a entrar na propriedade privada, nem avistar a queda d’água.
Para isso eu teria que desembolsar valor abusivo. Atração natural em
propriedade privada dá nisso. A caminhada em si valeu pelo esforço físico. Ao
cruzar com veículos, na maioria aqueles escabrosos SUV’s, meros símbolos de
ostentação e poluentes ao extremo, a poeira subia e impregnava na pele, roupas,
calçados e, principalmente, boca, nariz e pulmões.
Durante a leitura da extensa antologia de contos e
crônicas de Luiz Fernando Veríssimo, me deparei com o conto A Mancha, escrito na primeira década do
século XXI. Talvez o texto mais longo dentre os presentes no livro. Mas que
conto! Impressionante. Aterrador. Nada daquele humor tão típico e delicioso do
autor. Mas que conto! Li quase sem respirar, de queixo caído, de ponta a ponta.
Texto para ler e reler, incontáveis vezes.
Se durante o dia a culinária goiana praticamente inexistia
nos cardápios dos restaurantes de Pirenópolis, à noite esse quadro se agravava.
À exceção dos pontos do tradicional empadão goiano, estabelecimentos pequenos,
e alguns em processo de fechamento das portas, nada da rica culinária regional para
o jantar. O que se via eram cardápios paulistanos, cobrando preços paulistanos.
Cidade bonitinha, mas ordinária. Em vez do visitante se
adaptar a ela, era ela que se submetia aos supostos gostos dos visitantes.
Completamente o inverso do desejável. A indústria do turismo predatório ia
muito bem, obrigado.
Mandei às favas os restaurantes pretensiosos, com
cardápios pretensiosos, servindo pouca comida a preços astronômicos. Fui de
empadão goiano e suco de caju. O empadão, do tamanho de um prato de sobremesa,
vinha recheado de tudo e mais um pouco, carnes de boi, carnes de frango, carnes
de porco, azeitonas, batatas, legumes, tudo junto e misturado no mesmo empadão.
Popular em Goiás era acrescentar a guariroba, espécie amarga de palmito. Paguei
pouco e comi bem comida tipicamente goiana.
Pirenópolis começava a encher de turistas de fim de
semana. Desfiles de SUV’s e caminhonetes cabines-duplas pelas ruas. Nas
mulheres, roupas novas, cheirando a guardado, espalhafatosas, destaque especial
aos saltos-agulha, apropriadíssimos para aquele calçamento de pedra irregular.
Casais, muitos casais, famílias, grupos de amigos, raros os sozinhos ou as
sozinhas.
Parti de Pirenópolis no ônibus bem cedo. Desci na
rodoviária de Goiânia, de onde embarquei no segundo ônibus.
No trajeto rodoviário pela BR-070, paradas em Inhumas,
Ituaçu e Itaberaí. Nas imediações dessa última, típico cenário do capitalismo
agrário nos interiores do Brasil. Monoculturas de milho e laranja, usando e
abusando de agrotóxicos, imensos rebanhos de gado, granjas gigantescas. Quem mandava
por ali, feito coronel das antigas, era o dono de tudo, até dos seres humanos.
Praticamente toda a população da cidade, direta ou indiretamente, trabalhava para
empresas agropecuárias do grupo dele. Por conta dessa dependência explícita de
somente um grupo empresarial, a cidade se espalhava ao longo da BR-070 numa
concentração urbana repugnante, desumana, sem nenhuma qualidade habitacional ou
de serviços para a população. Funcionava apenas como depósito de gente.
A passageira piauiense ao meu lado enalteceu o figurão,
afirmando de boca cheia que a empresa fornecia vale-refeição e cobria
tratamentos médicos e odontológicos. Mas essas não eram obrigações do
empregador e direito dos empregados segundo legislação da CLT, em vigor havia
mais de setenta anos e que o então regime federal fazia tudo para destruir? Há
quatro anos radicada na cidade, atuando como empregada doméstica nas mansões
dos donos do lugar, ela desembarcaria em Itapirapuã para visitar parentes e
comparecer a ações judiciais que movera contra empresa de transportes. Quatro
meses antes, o ônibus em que ela viajava quebrou e passou doze horas parado no
meio do nada, sem água, sem comida, sem hospedagem, sem qualquer tipo de apoio
ou orientação.
Desembarquei na cidade de Goiás no começo da tarde. Me
hospedei de frente para o rio Vermelho, para a velha ponte de madeira e para o
museu Cora Coralina, antiga residência da poeta que nasceu e viveu na primeira capital
do estado de Goiás. Mais adiante, o casario colonial, os telhados dos sobrados,
a serra ao fundo.
Com o sol mais baixo e o calor suportável, saí às ruas. Logo
de cara, paixão à primeira vista pela cidade de Goiás, pelas ruazinhas e becos,
pelo casario bem conservado, pelas construções maiores dos tempos de capital do
estado, pelas pitorescas praças, pelo silêncio bucólico de fim de tarde de
sábado. E pela simpatia espontânea dos moradores e visitantes esparsos. Radical
e deliciosamente diferente do agito turístico de Pirenópolis. Goiás era bem
mais bonita, mais ampla, mais acolhedora, mais charmosa, mais discreta, mais
tudo.
Uma cavalgada teve início numa das praças, talvez a maior
delas, em terreno extenso e inclinado. O evento trazia o patrocínio de
parlamentares da região. A bandeira do Brasil no ombro dos cavaleiros indicaria
a coloração política dos líderes do evento?
Saboreei sorvete de cajá, empadinha, café preto. Arrisquei
perambuladas pela beira do rio Vermelho, antes e depois do busto e estátua de
Cora Coralina. Havia outros visitantes por ali. Afinal, era tarde de sábado
ensolarado. Nada a ver, porém, com o turismo massificado de Pirenópolis.
Saí para jantar em restaurante na praça do coreto. Som ao
vivo na base de voz e violão interpretando canções brasileiras de qualidade. Destaque
para o suco de cagaita, fruto típico do cerrado. E me sentei sob as árvores, ao
lado da praça e de construções históricas imponentes, com vista para ruazinhas
e becos charmosos, da iluminação noturna amarelada, do vaivém pequeno e
discreto de pedestres e veículos.
De estômago cheio, circulei por outras ruas, vielas e
praças. A maioria vazia, silenciosa, atraente, somente sob o som dos meus
passos. Num sábado à noite estrelado, a cidade histórica e famosa, antiga
capital do estado, não perdia a atmosfera tranquila e bucólica.
Pela manhã circulei por todo o centro histórico e mais um
pouco. Bem conservado, bonito, tranquilo, silencioso. Poucos turistas. Nenhuma
aglomeração. Visitei a casa, então museu, onde nasceu, viveu e morreu Cora
Coralina. Singelo e comovente.
Me intrigava a enorme quantidade de casas, dentro do
centro histórico, sem moradores, desabitadas, sem sinais de vida interior.
Embora bem conservadas, pelo menos externamente, não tinham vida. Não por
acaso, andar pelas ruas do centro antigo de Goiás primava pelo silêncio, não o
relativo, mas o silêncio absoluto.
Almocei nos interiores do antigo mercado municipal.
Pequenos restaurantes ofereciam comida simples e barata. Duas rodadas de
sorvete na praça do coreto e me senti bem alimentado.
Encerrei a extensa antologia de contos e crônicas de Luiz
Fernando Veríssimo, chamada Veríssimo
Antológico. Subdividido cronologicamente conforme as décadas de edição dos
textos, mais me atraíram os dos anos de 1980 e os da primeira década dos anos
2000.
Fazendo jus ao ano eleitoral em que o Brasil se encontrava,
com previsão de arbitrariedades e violências de todos os tipos, e nada de
debates politizados em torno de projetos para o país, ainda mais pelos nossos
interiores, selecionei a releitura de Vila
dos Confins, de Mário Palmério.
Mais voltas pelo estupendo centro histórico da cidade de
Goiás, deliciosamente quieto e charmoso sob a iluminação pública amarelada.
Atravessei o rio Vermelho e rodeei a igreja do Rosário, saboreando cada
recanto, cada esquina, cada porta, cada janela, cada telhado.
Baixei de manhã bem cedo na rodoviária e embarquei rumo ao
Mato Grosso.
A paisagem, em declive e com algumas sinuosidades,
revelava cerrado esverdeado, rara e esparsamente ocupado por pastagens de gado.
Paradas regulamentares em Itapirapuã e Jussara, cidades feias, espalhadas e sem
cara de nada. A partir daí o relevo se tornou ondulado e os pastos para gado
bovino e as monoculturas extensivas de milho, de soja, de capim, de
cana-de-açúcar, entupidas de agrotóxicos, imperavam sem dó nem piedade.
Gigantescos silos de armazenamento das colheitas compunham cenários
apocalípticos à paisagem rural. O quadro se agravava nas imediações de Montes
Claros de Goiás.
Na parada para o almoço, junto ao motorista do ônibus,
arrisquei bufê com preço fixo, pois, segundo o malandro dono do estabelecimento,
a balança estava quebrada. Nos pratos esvaziados pelos famintos passageiros
notei vários pequis, limpos, raspados corretamente com os dentes e a língua, mas
jamais mordidos a fim de evitar os terríveis espinhos do núcleo do fruto.
O relevo prosseguia em declive suave. Serrotes isolados se
erguiam no horizonte. No começo da tarde, logo após a cidade de Aragarças, o
ônibus atravessou a ponte sobre o rio Araguaia, divisa dos estados de Goiás e
Mato Grosso e, em seguida, a ponte sobre o rio das Garças, já em território
mato-grossense.
Me hospedei em quarto de hotel cujas janelas se voltavam
para dentro, para o poço central do edifício. Ainda bem. Barra do Garças se
notabilizava pela poluição sonora de veículos, sobretudo ao longo da avenida/estrada
que corta toda a cidade, atravessa as duas pontes e atinge Goiás. Infinidades
de carretas-duplas, os bitrens, transportavam soja dos interiores mato-grossenses
em direção ao longínquo porto de Santos. E retornavam vazias. Num país sob a
ditadura do transporte rodoviário, e das monoculturas extensivas para
exportação, os produtos agrícolas, envenenados de transgenia e agrotóxicos,
percorriam distâncias imensas pelas rodovias brasileiras. Cenas de país
meramente exportador de produtos agrícolas e minerais.
E fui à volta de reconhecimento na única parte
interessante naquela cidade agropecuária, nas margens dos rios das Garças e
Araguaia. Neste, na margem goiana, apareciam esboços de praia naquele outono, início
da estação seca.
Atravessei ambas as pontes a pé, observando as margens, o
fluxo das águas fluviais, o vaivém das carretas-duplas, a vida pulsante e
agitada nas duas cidades ribeirinhas. De tédio ou melancolia ninguém padeceria
por ali. Indígenas da etnia Xavante, semelhante aos avistados na cidade de Goiás,
circulavam se comunicando na língua original.
Na margem mato-grossense, praças e áreas públicas largadas
às intempéries, inacabadas, arrebentadas, ocupadas por moradores de rua e
afins. Bares e restaurantes, porém, abundavam por todos os cantos, com direito
a putas perambulando ou atuando junto aos inseparáveis celulares. Ao som de
músicas sertanejas em volumes ensurdecedores, o solo trepidava no estilo bem
centro-oeste, na base de ostentação das quadrilhas do capital agrário. Como se isso
não bastasse, em volumes ainda mais altos e graves, veículos desfilavam pelas
ruas, repletos de caixas de som, tremendo tudo e todos. E era apenas começo de
noite de terça-feira útil.
Que linda essa página! Assim que terminar esse doutorado vou colocar as viagens no meu norte.Sei que poderá me ajudar.Obrigada
ResponderExcluirOlá Mariângela! Obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirQue encerre seu doutorado com todo o êxito.
Quando quiser, estarei aqui para sanar suas dúvidas a respeito deste e de outros tantos roteiros pelos interiores do Brasil e de outros países que publiquei aqui no blog.
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