...continuação
Pela manhã, atravessei mais uma vez a pé a ponte sobre o
rio São Francisco. Circulei pelo centro velho de Juazeiro, mortinho da silva
naquela manhã de domingo. E retornei a Petrolina de barco.
Almocei novamente no restaurante ao lado do hotel, aquele
frequentado pelos mais entre os mais de Petrolina. E lá estavam eles marcando
presença. Ao final, adquiri na lojinha ao lado meio quilo do estonteante
bolo-de-rolo, recheado de goiabada, produto tipicamente pernambucano.
E voltei ao quarto de hotel para fugir da modorra da
tarde. Comecei a ler os contos de O
Macaco Que Se Fez Homem, de Monteiro Lobato.
O ônibus partiu cedinho da rodoviária de Petrolina. Seguiu
pela BR-428 até Lagoa Grande. Atravessou caatinga brava, espinhenta, fechada,
sobre solo pedregoso. Nas zonas irrigadas, porém, intensa fruticultura,
comercializada nas próprias cidades ou levadas para cidades distantes. Dobrou
na BR-122, ainda atravessando a mesma caatinga fechada, pouco habitada, exceto por
minúsculos e isolados vilarejos.
Parada para almoço ao lado de Santa Cruz, cidadezinha também
chamada de Santa Cruz da Venerada e de Cruz de Malta. No posto de combustíveis
ao lado do restaurante, carretas gigantescas estacionadas carregavam imensas
peças dos coletores de energia eólica. Aguardavam o horário noturno permitido
para tráfego de tais veículos nas rodovias. Embora considerada limpa, a energia
eólica, imposta sem debates públicos, causava tremenda poluição visual em toda
a região instalada, assim como ruídos perturbadores aos moradores próximos.
Pequenos e médios serrotes despontavam no relevo aplainado
da caatinga.
Na plana, feia, suja e desorganizada cidade de Ouricuri o
ônibus despejou e recolheu passageiros nas beiras das calçadas, em paradas
muito próximas entre si, às vezes quarteirão a quarteirão.
Esse estranho comportamento fez lembrar as escolas em São
Paulo, frequentadas pelos filhos dos ricos. Os pais formavam imensas filas de
carrões, congestionando o trânsito, para deixar e buscar os respectivos nas
portas das escolas. Exatamente na porta das escolas. Nem mais um metro, antes
ou depois. O que me levava a chamá-las de escolas de “aleijados” porque o aluno
não “conseguia” andar se o carro o deixasse ou o resgatasse a uma quadra ou
mais de distância.
Já nos interiores brasileiros, ali em Ouricuri por
exemplo, como resultado dessa prática, a rodoviária da cidade, nova, ampla,
cheia de espaços disponíveis para o comércio local, órgãos públicos e outros
interessados, todos vazios e fechados, apresentava pouco ou nenhum movimento
nas plataformas.
A partir de Ouricuri o relevo se tornou mais acidentado e
a vegetação mais desenvolvida e menos árida. O não aproveitamento das terras,
contudo, permanecia o mesmo.
Bodocó, cidade pequena e simpática, tipicamente sertaneja,
com a feira semanal a todo vapor, também contribuiu para manter o ônibus lotado
desde Ouricuri.
Estátuas, esculturas, pinturas, cartazes, faixas, frases
de Luiz Gonzaga, nas margens da estrada, pracinhas, muros, paredes, anunciavam
Exu, terra natal do rei do baião. A cidade revelava urbanismo bagunçado,
disforme, acidentado, mas de legítima cidade sertaneja pé-de-serra, no caso a
serra do Araripe.
Nas cercanias ao norte de Exu a rodovia ziguezagueou em
aclives, chapada acima, ao lado de vegetação agreste, quase tropical, bem mais
desenvolvida que nas baixadas. No altiplano, a natureza se encontrava
preservada nas imediações da unidade de conservação ambiental da Serra do
Araripe. Não demorou a divisa interestadual entre Pernambuco e Ceará. Daí a
estrada entrou em declive, rumo ao vale do Cariri, ao longo do qual Crato e
Juazeiro do Norte reinavam absolutas.
Desembarquei no meio da tarde na rodoviária de Juazeiro do
Norte. Me instalei em quarto de hotel, como os demais quartos do
estabelecimento, sem janelas, sem tapetes no banheiro, fora ou dentro do box,
sem lençol de cima. Retirei da cama de solteiro o lençol de baixo e o usei como
o de cima na cama de casal.
Saí cedo para jantar. A fome exigia comida farta e
nutritiva. Acabei caindo nos arredores da praça de nome, adivinhem qual, Padre
Cícero, justamente na esquina da rua, adivinhem qual, Padre Cícero. Comi bem e
bastante ao lado de mesas ocupadas com clientes bebericando sem pressa. Fui de
carne-de-sol, baião-de-dois com queijo coalho, macaxeira cozida, vinagrete,
farofa. Enchi divinamente o bucho em mesa ao ar livre.
E ali, na calçada onde se instalavam as mesas ao ar livre,
me deparei com fenômeno que marcava como selo os destinos religiosos e de
peregrinação. A mendicância. Pedintes. Aos montes. De vários aspectos e
estratégias de atuação. Um deles, vestido de missionário, com roupa longa de
algodão cru e tudo o mais, rodeava as mesas de hora em hora, sempre com o olhar
sofrido de mau ator. Mas eram muitos, muitos mesmo.
Na volta ao hotel encontrei enorme barata viva sob a cama
de casal. A primeira barata vista em quarto de hotel em quase dois meses de
viagem pelos interiores de seis estados brasileiros.
Pela manhã saí para subir a colina do Horto, sobre a qual
se encontrava a estátua de Padre Cícero e outras construções religiosas. Era local
de peregrinação intensa de brasileiros, sobretudo em quatro datas anuais. Descrevi
em detalhes essa exploração nos relatos de minha viagem anterior, realizada
vinte anos antes.
Era subida árdua e constante, durante mais de uma hora,
por rua estreita e sinuosa, calçada de paralelepípedos, com esgoto a céu aberto
fétido escorrendo por ambas as sarjetas. No topo, sob a estátua, nenhum guia ou
pedinte, e poucos vendedores de bugigangas religiosas, ao contrário de minha
primeira visita.
Além da vista panorâmica de Juazeiro do Norte, se
destacaram os nomes e frases de milhares de devotos gravados a caneta, umas
sobre as outras, na base da estátua do Padre Cícero.
Ao voltar, notei que, além de não terem limpado o quarto
do hotel, os corredores de acesso não viam faxina havia dias. A mosca morta que
encontrara na soleira da porta dias antes ainda estava lá, intocada.
Repeti o jantar da noite anterior. Circulei levemente pela
praça Padre Cícero. Os pedintes, sempre os mesmos, caracterizados de igual
maneira, incluindo o falso missionário e péssimo ator, pediam repetidamente,
insistentemente.
E voltei ao quarto do hotel onde não havia limpeza, troca
de itens sujos ou arrumação. Mas havia, sim, baratas vivas e moscas mortas.
O ônibus partiu cedo com poucos passageiros, metade dos
quais, eu inclusive, usando máscara facial contra a covid-19.
O veículo parou em Crato, Farias Brito, Várzea Alegre, por
entre serras, serrotes, colinas, vales, muito verde, umidade, água,
fertilidade. Eram cidades de bom aspecto, mas as mutilações geométricas das árvores
das ruas e praças estavam lá, desgraçadamente. Na margem de uma das rodovias,
me chamou atenção igreja ou capela, isolada, no meio do nada, de fachada e
portão alto, datada de 1762.
A relevo se suavizou ao chegar em Iguatu, cidade média
cujo centro comercial fervilhava de movimento. Estação ferroviária, linhas de
trilhos, simples e duplas, pontilhões metálicos, apontavam, assim como em toda
a região nordeste, que a ferrovia, de cargas e passageiros, reinou com eficácia
e eficiência durante décadas. A ditadura do transporte rodoviário, no entanto,
se impôs pela força dos monopólios capitalistas, sucateando e abandonando o
transporte ferroviário.
Nos arredores urbanos apareciam, esparsas casas de taipa
ou de pau-a-pique, em péssimo estado. Algumas abandonadas, outras com seres
humanos sobrevivendo amontoados.
A vegetação passou a agreste. A serra de Acopiara e a
cidade de mesmo nome despontaram na paisagem. Parada para almoço em Catolé da
Pista, distrito entre serras no município de Piquet Carneiro.
A rodovia seguia no rumo norte. Cidadezinhas surgiam e
ficavam para trás, mas o ônibus parava em todas elas para desembarque e
embarque de passageiros. Entre elas, Mombaça, Mineirolândia, Senador Pompeu.
Ainda na CE-060 brotaram lajedos cobertos de xique-xiques,
rochedos imensos. Mas ao entrar em Quixeramobim os rochedos se afastaram e a
cidade plana nada oferecia de atraente aos olhos.
Na BR-122, aí sim, mais monólitos, maiores, próximos da
rodovia, escarpados, anunciando Quixadá, cidade rodeada deles e tão bem
relatada na viagem anterior. Pertencente à região do Sertão Central, típica do
semiárido cearense, exibindo vegetação de caatinga, Quixadá costumava sofrer
com secas periódicas e devastadoras.
Anoiteceu.
Ao entrar na BR-116 o ônibus se deparou com buraqueira,
lama, poças d’água, causados pelas chuvas recentes e pelo descaso do governo
federal de então, a serviço de projeto capitalista de destruição da
infraestrutura nacional e da entrega das riquezas brasileiras aos monopólios
privados, sobretudo estrangeiros.
O frio se tornou intenso internamente. Vesti a blusa
guardada providencialmente na mochila de ataque e logo adormeci. A maioria dos
passageiros usava máscara facial de proteção conta a covid-19.
Ouvi durante a
madrugada o motorista anunciar aos dorminhocos a cidade de Camocim, no litoral
oeste do Ceará. Amanheceu no Piauí, nas imediações de Cajueiro da Praia. Em
seguida, bem próximo ao mar, o ônibus cruzou o município de Luís Correia, ao
lado das praias do Coqueiro, Peito de Moça, Atalaia, antes de se dirigir à
Parnaíba, passando não muito afastado da lagoa do Portinho. E vivas ao mar que
aparecia pela primeira vez aos meus olhos em quase dois meses de viagem!
Desembarquei na rodoviária de Parnaíba no começo da manhã.
O funcionário do banheiro do terminal, que colocava bem
altas as gravações de Roberto Carlos, talvez porque adorava o repertório,
talvez para ajudar a encobrir os ruídos orgânicos dos usuários, pedia
contribuições espontâneas ao final das necessidades fisiológicas de cada um.
Permanecei nos sofás da recepção do hotel, aguardando a
liberação do quarto, apenas trocando de lugar para fugir dos raios de sol. Sim,
porque em Parnaíba fazia calor de verdade. Aproveitei para registrar no diário
as emoções e sensações vividas desde a saída de Juazeiro do Norte no dia
anterior.
Almocei bem comida saborosa e temperada em restaurante
simples. E hidratei a refeição com a divina cajuína cristalina da região.
Parnaíba mantinha a qualidade dos serviços urbanos, entre garçons, balconistas,
recepcionistas, caixas.
Comecei Romance d’ A
Pedra do Reino, calhamaço de Ariano Suassuna. Acreditava que jamais iria
encontrar monotonia naquelas mais de mil páginas.
Após o farto café da manhã tomei micro ao centro da
cidade, zona conhecida como Porto das Barcas, na margem direita de um dos
braços do rio Parnaíba, borda leste do Delta do Parnaíba. De lá subi em outro ônibus
à praia da Pedra do Sal, ao norte da ilha Grande de Santa Isabel. Sentada ao
meu lado, piauiense cinquentona de feição mameluca, envelhecida e gasta pela
vida. Passara a noite em claro e exalava odor de álcool. Tinha filhos
espalhados pelos estados do país. Morava num clã familiar, pouco ao sul do mar,
sozinha em casa, mas ao lado de casas de filhos e outros parentes. Ali desembarcou,
carregada de tralhas compradas na cidade e amontoadas no fundo do ônibus.
Desci no ponto final, em frente ao mar. As duas baías da
praia da Pedra do Sal, a mansa e a brava, seguiam firme na situação de
abandono. Pouca gente, barracas decrépitas de comes e bebes, a maioria fechada
ou abandonada, dezenas em ruínas. Triste quadro em local repleto de belezas
naturais. Os raros hotéis e pousadas, na mesma, caindo aos pedaços. Muito
espaço vazio. Ruas e calçadas levando a lugar nenhum. Areia cobrindo pisos e
calçadas. Coletores de energia eólica ocupavam extensas áreas em ambas as
baías, compondo efeito visual questionável.
O vento fustigava com violência. E o sol não dava tréguas.
Acabei optando por bar, obviamente de mau aspecto, mas com
meia dúzia de fregueses. Duas águas de coco, doze bolinhos de peixe até que
razoáveis, me abasteceram parcialmente enquanto eu observava o mar agitado da
maré subindo ao longo da baía brava. Visual bonito e relaxante de praias pouco
frequentadas, águas limpas e natureza preservada. Apesar de tudo.
Durante o trajeto do ônibus na volta apreciei os
carnaubais preservados em zonas alagadas ou alagáveis. Lindo demais! Nada
construído ou cultivado por ali. Parecia unidade de conservação.
Em vez de descer ao pé da ponte sobre o braço do rio, fui
até o ponto inicial daquela linha urbana de ônibus, até a zona do mercado 40.
Naquele momento, fim da tarde de sábado, tudo fechado. Apenas alguns bares
sórdidos acolhiam bêbados inveterados. Ao redor, moradores de rua, pichações do
PCC nas paredes, ambiente para lá de suspeito. Apertei o passo para sair dali
antes de escurecer e partir para longa caminhada ao hotel.
Jantei peixada atraente e fresquinha em bar e restaurante
no canteiro central da avenida São Sebastião. Era local tranquilo, sem música
ao vivo, silencioso, com a lua quarto-crescente subindo acima das copas das
árvores.
continua...
Gostei pois a gente vai enxergando através do seu olhar uma fatia do nosso Brasil. Percebemos a prática da destruição de nossa infra estrutura, com motivos e endereçamentos claros, e, que tais práticas circulam no nosso ambiente social e precisam ser transformadas, não dá mais para seguirmos em frente com esta mentalidade nociva. Ontem vi em Angra dos Reis uma poda extremamente agressiva. Não deixaram nem folhas, apenas palitos apontando para o céu. Creio que acham que tem árvores de sobra, e não precisam de arvores de sombra. Aliás está já ela para escrever e postar as respostas não dá! Digitar e consertar erros e muito cansativa. A tela é hostil à quem escreve...
ResponderExcluirOlá! Obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirCreio que não podemos ficar calados diante dessas mutilações das árvores urbanas. Agregar o máximo de pessoas e protestar, apresentando alternativas a esses crimes. À luta!
Comente sempre!
❤️👏👏👏👏👏amei
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos aplausos carinhosos...
ResponderExcluirContinuarei viajando com você. Olhando o que seus olhos viram e aprendendo um pouco com suas experiências tão vívidas e tao nitidas para seus leitores. Abraço, Dete.
ResponderExcluirOi Dete!
ResponderExcluirMais uma vez, obrigado pela visita e pelos comentários.
Você captou bem a ideia. O que no fundo eu passo nesses relatos é o meu olhar sobre um local ou situação num determinado momento. Na mosca.
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