...continuação
Nas águas do Araguaia, dezenas de barcos, canoas e lanchas
abrigavam pescadores de anzol, vez ou outra fisgando matrinxã, caranha,
pintado. Logo baixou o barco da fiscalização a fim de verificar a documentação
necessária, do barco e do piloto, e o tamanho mínimo dos peixes pescados.
Ao longo das escadarias do lado mato-grossense, moradores
aproveitavam a sombra providencial para contemplar o rio, acompanhar e comentar
os feitos e falhas dos pescadores. Permaneci ali durante horas, sem me cansar
ou me entediar.
Do lado goiano, muito sol, praias em crescimento e a rua
distante das águas. Máquinas da prefeitura terraplanavam o local para a
temporada de praias que apenas começava.
Barra do Garças, apesar de tamanho médio, contava com ares
de cidade grande, na infraestrutura, no comércio, nos serviços oferecidos.
Obviamente a vida cultural diversificada, digna desse nome, inexistia. Mas o
que esperar de polo e trânsito do capital agropecuário, celeiro de empresários
e políticos truculentos?
À noite, belisquei algo exatamente de frente à praça do
Garimpeiro, a famigerada rotatória próxima às pontes interestaduais, sobre os
rios das Garças e Araguaia. Indignava a procissão monótona de incontáveis
carretas-duplas transportando produtos agrícolas do centro-oeste brasileiro,
entupidos de transgenia e agrotóxicos, para exportação no distante porto de Santos.
Quadro triste, trepidante e barulhento.
O ônibus partiu ainda no claro e escuro da alvorada. O
detalhe eram as cortininhas entre as duplas de assentos de cada lado do
corredor, isolando os passageiros, em solução encontrada durante o auge da
pandemia de covid-19.
Após Nova Xavantina, a leste da BR-158, placas indicavam aldeias
indígenas do povo Xavante. Daquele lado, o cerrado imperava praticamente
intacto. Do lado oposto, o dos brancos civilizados, nada do cerrado original,
mas monoculturas extensivas, contaminadas por agrotóxicos, a perder de vista.
Em outra cidade, feia, quadriculada e espalhada, Água Boa,
próxima às nascentes do rio Xingu, parada para desembarque e embarque de
passageiros. Ao norte da cidade, a leste da rodovia, mais aldeias Xavante, da
reserva Pimentel Barbosa, intercaladas por raras manchas de monocultura. A
desolação reinava do lado oeste da BR-158. Eram milharais gigantescos, sem fim aparente.
À tarde mais uma cidade medonha, amontoada ao longo da
rodovia, Ribeirão Cascalheira. Os passageiros tiveram que desembarcar e trocar para
ônibus velho e duro, mais afeito às estradas de chão após do trevo de Alô
Brasil e Bom Jesus do Araguaia.
As tenebrosas cidades pelas quais o ônibus passava estavam
repletas de lojas de produtos agropecuários produzidos fora do Brasil,
convivendo com a miséria da maioria da população que mendigava trabalho nas
empresas da região. Típicas cidades a serviço do capital agropecuário.
A partir de Ribeirão Cascalheira, ao longo da agora não
pavimentada BR-158, saía de cena o cerrado e entrava a floresta úmida mais
desenvolvida, numa transição para a floresta amazônica mais ao norte.
Tanto nos ônibus, como nas rodoviárias, passageiros
pobres, miseráveis, maltratados, cansados, esgotados, com os rostos sofridos e
marcados, envelhecidos precocemente. Todos eles a trabalho, nas piores
condições possíveis, para a minoria mandachuva da região, o capital
agropecuário. Mas as monoculturas infinitas de milho ou soja empregavam
pouquíssima mão de obra.
O acesso a Bom Jesus do Araguaia, outro depósito disforme
de gente, foi por estrada de chão estreita, sinuosa, cheia de sobes e desces,
margeada por pastos de gado bovino. À frente, Serra Nova Dourada e Alto da Boa
Vista, mais duas calamidades urbanísticas. Mais depósitos de gente pobre e
maltratada.
Desembarquei no começo da noite em São Félix do Araguaia. O
hotel tinha mais cara de motel e abrigava hóspedes barulhentos. Pelo adiantado
da hora jantei no restaurante anexo. E jantei bem pirarucu grelhado, arroz,
purê de batatas e salada mista.
Quase nada de água saía do chuveiro. Retirei a tampa da
ducha e a limpei de folhas e grãos de areia. Após o serviço simples a água
jorrou com força e o banho se tornou refrescante.
Dei voltas de reconhecimento pela orla do Araguaia, bucólica,
simpática, antiga, arborizada, relaxante, pelo menos no começo da manhã. Bem
mais largo do que em Barra do Garças, o rio exibia a ilha do Bananal bem em
frente, na margem direita. Dóceis e amigáveis, os Karajá descansavam sob as
sombras das árvores enquanto, em silêncio, observavam o deslizar das águas.
Logo atravessariam o rio para retornar às aldeias do oeste da ilha do Bananal.
Voadeiras alugadas retornavam de pescarias e atracavam abaixo das muradas da
orla. Pelo calçadão, quiosques de açaí, sorvetes, comes e bebes ligeiros.
Ali na beira do rio, contemplando quase em meditação as
belezas fluviais, encontrei funcionário público estadual de educação, guia e
pesquisador individual dos ecossistemas do Araguaia. Lamentou que o rio não contasse
com linhas regulares de passageiros havia quarenta anos. Afirmava descender do
povo Canela, etnia do Maranhão que fugira da invasão europeia. Ele e o pai
atuaram com o falecido bispo Don Pedro Casaldaliga. Por isso se sentia ameaçado
pelos grandes latifundiários e pelos respectivos políticos de estimação.
Amanheceu nublado, com nuvens escuras e sons de pancadas
de chuva. No meio da manhã evoluiu gradualmente para parcialmente nublado com
aberturas de sol tórrido.
Visitei a casa onde viveu Don Pedro Casaldaliga. O caseiro
e militante das comunidades eclesiais de base me mostrou cômodo por cômodo,
todos simples, incluindo livros e objetos de uso pessoal do bispo, cuja causa
sempre se voltou para a luta dos trabalhadores, ribeirinhos, indígenas.
Segui ao cemitério abandonado, ao norte da cidade, onde o
bispo fez questão de ser enterrado. Na sepultura de terra, sem túmulo de
alvenaria ou lápide, apenas a cruz simples de madeira em cuja haste estava
inscrita frase curta e direta do falecido.
Das paredes do cemitério partia estradinha beirando o rio
Araguaia, tendo a ilha do Bananal me acompanhando na margem oposta. Ao final, zona
de praias, ainda em esboços, de acordo com a lenta baixa das águas do rio.
Grupos de pássaros cantavam desesperadamente diante de minha intromissão. E milhares
de piuns fizeram a festa nas minhas pernas, picando e sugando meu sangue sem
dó.
Na volta, me sentei durante horas em banco sombreado do
calçadão da orla, bem de frente para o rio Araguaia. Batia vento constante,
agradabilíssimo. E lá permaneci durante horas. Desejar mais do que aquilo para
que?
Enquanto eu aguardava a fome brotar, ali parou para
conversar o policial civil de folga. Contou do rapaz jovem assassinado a
pauladas na noite anterior. Era antes do meio dia e aquele policial já estava
bêbado. Me pediu cinco reais para beber mais. Neguei, evidentemente.
Tempos depois me levantei e repeti o restaurante de sempre
ao final do calçadão. E precedi a refeição com goles de cachaça curtida em
sementes de murici.
A febre dos celulares atingia as raias da dependência
tecnológica e da obsessão pura e simples. Em praças, bares, restaurantes,
lanchonetes, quiosques, todos, não importa o tipo, a idade ou a origem, com o
aparelhinho nas mãos e os olhos neles vidrados. Ficavam em pânico na busca
insana por tomadas a fim de recarregarem as baterias.
Retornei ao hotel para ler na sacada do andar superior, de
frente para o rio.
No começo da manhã o ônibus partiu com meia lotação e
apenas eu usando a máscara facial. Ao longo da não pavimentada BR-242, cerrado
esverdeado e algumas plantações grandes de milho.
Parada para almoço em Alto da Boa Vista. A partir daí o
ônibus lotou e apenas três pessoas usavam a máscara de proteção facial.
O veículo entrou na BR-158 que levava ao extremo nordeste
do Mato Grosso. Em legítimo leito de terra castanho-avermelhada, repleto de
sobes e desces a despontarem no horizonte, a estrada lembrava a Transamazônica.
Enxames de carretas-duplas trafegavam nos dois sentidos, ziguezagueando a fim
de driblar os buracos, levantando tanta poeira que mal se enxergava um metro à
frente. O motorista avançava mais por reflexo e por familiaridade com o
roteiro. O cerrado logo cedeu espaço para a floresta amazônica. Na verdade
floresta de apenas dez a vinte metros de largura. Atrás dessa ilusão de
natureza preservada, pastos sem fim com rebanhos de gado nelore.
Antes de Porto Alegre do Norte, cujo nome apontava quem
mandava, explorava, oprimia e devastava por ali, surgiu o asfalto, gerando
alívio principalmente ao estafado motorista do ônibus.
Pelas ruas daquela cidade, gigantescas lojas de material
agrícola, oferecendo itens estrangeiros na maioria dos casos, equipamentos
agrícolas, agrotóxicos, sementes transgênicas, de origens transnacionais e batizadas
eufemisticamente de sementes híbridas.
A cidade de Confresa era a maior daquela região. Como as
demais, repartida ao meio pela BR-158. A cidade segregava a classe dominante de
um lado da rodovia e a massa trabalhadora do outro lado, esta invariavelmente
em péssimas condições de vida. A primeira englobava paranaenses, catarinenses
e, principalmente, gaúchos. A segunda, mamelucos, indígenas, imigrantes
desesperados dos estados vizinhos.
Parada na pequena Veranópolis, antes de a estrada penetrar
em relevo acidentado, em cujo trecho havia mais floresta e menos pecuária ou
monoculturas. Por enquanto!
Desembarque em Vila Rica ao anoitecer, na rodoviária de
bom tamanho, porém abandonada na maior parte, em ambiente triste, com lojas
fechadas definitivamente. Belisquei pacote de bolacha salgada, castanhas-do-pará,
castanhas de caju, banana-passa.
Uma hora depois embarquei em novo ônibus. A divisa entre
Mato Grosso e Pará logo deu as caras. A buraqueira na estrada asfaltada, que já
incomodava, se tornou catastrófica. Na verdade, eram buracos e crateras profundas
entremeadas de restos de asfalto. A partir de Santana do Araguaia o estado da
rodovia melhorou.
Ao meu lado sentou garota de vinte e nove anos e já mãe de
quatro filhos. Nascida de pai tocantinense e mãe cearense, ela morava com o
novo marido e três dos filhos em Santana do Araguaia. A filha mais velha morava
com os avós nas imediações de Palmas.
No meio da noite, a lenta travessia de balsa pelo rio
Araguaia. Do outro lado do rio, Caseara, estado do Tocantins.
Ainda no escuro o ônibus atravessou a ponte sobre o rio
Tocantins que dava acesso a Palmas. Cruzou toda a capital tocantinense em meio
ao traçado quadriculado, rotatórias, avenidas, espaços vazios, construções
padronizadas, outras nem tanto, até estacionar no terminal rodoviário, ao sul
da cidade.
No meio da manhã embarquei em ônibus para Porto Nacional. Após
curto trajeto desci na rodoviária da cidade espalhada, cortada por largas e
extensas avenidas.
Ao chegar ao hotel, surpreendentemente, não havia vagas.
Eu telefonara dias antes para reservar, mas a recepção insistira que não
haveria necessidade, pois sempre havia quartos livres. Não foi o que aconteceu.
Acabaram me cedendo quarto no térreo, logo atrás da recepção. Verdadeira
espelunca que a gerência empurrava para os desavisados. Nada de móveis,
prateleiras ou cabides. Apenas a cama no meio do quarto apertado. Na parede, o
suporte de TV, mas sem a TV. O banheiro, sujo e em mau estado. O outro hotel da
cidade vivia lotado. Aceitei na esperança de mudar na manhã seguinte.
Ao entardecer, caminhei ao lago formado pelas águas do rio
Tocantins. Era lago em razão da hidrelétrica de Lajeado, quilômetros a jusante.
Orla bem cuidada e limpa, nada mais. Nas proximidades, poucas casas velhas,
provavelmente resquícios do núcleo fundador da cidade. Mais adiante igreja
imensa e pavorosa.
A dona do hotel, exibindo cara de vigia de reformatório de
menores, ainda quis me agradar, tentando me oferecer outro quarto para o dia
seguinte. Pedi e recebi desconto generoso por ter ficado naquele buraco.
De manhãzinha embarquei em micro ônibus que parou para
lanche na cidadezinha de Monte do Carmo. Em seguida subiu a serra pela TO-255,
sinuosa e bem conservada, ao topo do chapadão. Desembarquei em Ponte Alta do
Tocantins no meio do dia.
Me hospedei em quarto adaptado para visitantes em casa
simples e ampla de um casal de octogenários.
Comi comida saborosa e barata no restaurante principal da
cidade. No meio da tarde dei extensa volta pela cidadezinha, desprovida de
encantos maiores, mas acima do aceitável. Embora tentasse aqui e ali, nada de
conseguir me encaixar em grupos de passeios ao Jalapão que já saíam lotados de
Palmas.
Na beira do rio Ponte Alta a prefeitura providenciara
máquinas a fim de arrumar a praia fluvial para estação seca que começava. Bares
em ambas as margens abasteciam de comes e bebes os banhistas locais.
À tardinha, papos diversos com os octogenários da pousada.
Já tiveram fazenda de gado e galinha, mas dividiram entre os filhos para
poderem permanecer mais tempo na cidade. Ao visitar os demais quartos livres
carreguei um cabide vertical de madeira e uma cadeira a fim de amenizar a falta
de móveis para meus itens.
No mesmo bar e restaurante do almoço jantei omelete com
arroz e feijão, precedido de duas doses da saborosíssima cachaça artesanal
curtida em sementes de murici. Em outras mesas, três grupos de turistas, indo
ou voltando do Jalapão, cada grupo por uma agência diferente de Palmas.
Praticamente não se conversavam, preferindo cutucar os celulares.
Na beira do rio, aproveitando a noite fresca, me sentei em
banco tranquilo de frente para a escuridão. Atrás de mim, do outro lado da
ruazinha, lado a lado, porta a porta, quartos do hotel anexo ao restaurante.
Imediatamente me lembrei de local parecidíssimo em Tutoia, no Maranhão. Lá me
hospedara tarde da noite, depois de tentar, em vão, vaga em inúmeros hotéis,
todos lotados, naquele meio de carnaval de vinte anos antes. No Maranhão, assim
como ali em Ponte Alta, silêncio e breu total na frente dos quartos. Naquela
noite, em Tutoia, dormi intrigado com o mistério à minha frente. Somente na
manhã seguinte, ao abrir a porta do quarto, notei que me instalara bem em
frente à extensa e tranquila praia do litoral maranhense.
continua...
Encantador esse jeito especial de voltar nosso olhar para onde os pés ainda não alcançaram . 😍👏🏻👏🏻❤
ResponderExcluirOlá! Obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirProcuro sempre escrever o que vejo e sinto. Vejo e sinto maravilhas e horrores pelo mundo, quase todas fascinantes e portadoras de aprendizados.
Viajar e desenvolver o olhar é preciso!
Comente sempre!