...continuação
Pela manhã dei voltas despretensiosas pelo parque
Muritiba, área que englobava as nascentes do rio Lençóis que banha a cidade.
Desviei o caminho para os altos da cidade de Lençóis e, lá de cima, tomei a
trilha ao Ribeirão do Meio. Ao final da trilha, rio com corredeiras, pequenas
quedas d’água, poços para banho. Nada de especial. E retornei à zona urbana.
Conversei com casal jovem brasileiro que viajava várias
vezes por ano. E sem gastar um tostão. Por conta das filmagens e fotografias
que produziam e divulgavam na internet, “surgiu”, do nada, um anjo que os
financiava. Efetuavam as despesas de transportes, de hospedagem, alimentação,
passeios, e automaticamente lhes era reembolsado o valor pago. Ele não
conseguiu explicar como “surgiu” essa entidade. Tampouco como essa entidade
sabia o valor gasto a ser depositado na conta deles. Nem o que essa entidade
ganhava com a suposta “boa ação” ao casal. Nas palavras dele, “eu também não
entendo...”. Simplesmente me garantiu que o negócio funcionava perfeitamente e
jamais a tal entidade deixou de reembolsá-los.
À noitinha atravessei o rio Lençóis pela ponte principal,
alcancei trecho frequentado por moradores e tracei dois acarajés legítimos, de
mão. E me considerei jantado. Fazia frio. Muita gente, turistas inclusive,
vestia blusas e casacos.
Encerrei Educação
Como Prática da Liberdade, de Paulo Freire. Os capítulos que tratam
especificamente da educação necessária e do método de aprendizado,
indissoluvelmente ligado à conscientização crítica da realidade, fizeram o
livro crescer em qualidade. Embora ele usasse termos como “amor”, “diálogo”,
“respeito”, o método pedagógico de Paulo Freire nada tem de dócil ou
caritativo. Ele insiste na evolução para a consciência crítica do povo pobre e
trabalhador, rumo a uma nova sociedade, sem explorados e sem exploradores.
Emendei com outro livro, Os Cangaceiros, de Luís Bernardo Pericás, ensaio sobre o banditismo
rural durante a República Velha.
Que maravilha rever Lençóis e a Chapada Diamantina pela
terceira vez! Pelos baianos da região, pela cidade, pelas belezas naturais do
entorno.
O ônibus procedente de São Paulo e com destino a Apodi partiu
na alvorada. Atrasou uma hora devido ao congestionamento causado por acidente
com caminhão na famigerada BR-242. Entre passageiros e cargas, e sob a ditadura
do transporte rodoviário por estradas entupidas, o Brasil mostrava o quanto
caminhava para trás. Sem a urgente mudança na matriz de transportes, sobretudo
com maciços investimentos em ferrovias, não haveria luz no fim do túnel.
E lá fui rumo ao sertão norte da Bahia. Dentro do ônibus somente
eu usava a máscara facial contra a disseminação da covid-19. O frio matinal da
Chapada Diamantina provocava cerração forte nos vales e baixadas da região. A
contemplação da serra do Sincorá continuava a me encantar.
Amanheceu com céu azul e muito sol, sem nenhuma nuvem. O
ônibus entrou na BA-142, passando por Wagner, Utinga, Bonito, Morro do Chapéu.
Esta última cidade, visitada anos antes, estranhamente em nada me foi familiar.
Não reconheci uma esquina ou construção sequer. Tampouco as cercanias serranas.
Após Morro do Chapéu, tendo a serra do Sincorá a oeste, a
estrada mergulhou na caatinga autêntica, embora ainda ligeiramente esverdeada.
A vegetação, rala e ressecada, aqui e acolá cultivada por plantações de sisal,
ora bem cuidadas, ora praticamente abandonadas e com muito mato crescido.
O ônibus daquela linha de longo percurso recebia
frequência típica de quem ia visitar as distantes origens nordestinas.
Famílias, grupos, crianças irritadiças pela viagem interminável, alguns
passageiros metidos a besta e não se misturando com a plebe majoritária, outros
bastante comunicativos. Para não serem assaltados nas paradas
oficiais da empresa de ônibus durante o percurso, uns traziam comida de casa e
se alimentavam com o veículo em movimento. Melodias variadas brotavam dos
celulares, nada exageradamente em alto volume, mas compondo aos ouvidos bizarra
gororoba musical.
O ônibus trafegava pela BR-324 e desceu o relevo rumo a
Jacobina. A paisagem se tornou menos árida. Já perto da cidade, as serras
rochosas, altas, imponentes, escarpadas, embelezavam tudo ao redor, as mesmas que
me fascinaram durante as caminhadas de exploração anos antes.
Mais à frente, após Capim Grosso, o ônibus entrou na
BR-407, novamente rodovia entupida de carretas. O trânsito fluía, mas de
maneira lenta e arrastada. Chuviscou antes de entrar na rodoviária de Senhor do
Bonfim, onde desembarquei.
Em plena noite de segunda-feira, numa cidade de porte
médio, a quase totalidade dos poucos restaurantes existentes se encontrava
fechada. Bem que circulei pelas ruas centrais e nada encontrei aberto. Improvisei
diante do possível.
Comi bem no café da manhã do hotel ao lado de mesas
ocupadas por senhoras e senhores a trabalho em Senhor do Bonfim. Turista, eu,
apenas eu, somente eu.
Ao andar pelas ruas vazias senti o frio bater no rosto e no
corpo. Nada exagerado, porém baita contraste com o esperado para o interior da
Bahia e mais ainda com as regiões visitadas anteriormente naquela viagem, como
Goiás, Mato Grosso e, principalmente, Tocantins.
Não me agradava a leitura de Os Cangaceiros, de Luís Bernardo Pericás. Além da estruturação e
conteúdo dos capítulos, ambos confusos, o livro expunha visão preconcebida do
autor sobre o cangaço e os cangaceiros, segundo ele desprovidos de raízes
econômicas e sociais.
A população de Senhor do Bonfim e das cidades vizinhas, ao
contrário das demais visitadas, no interior da Bahia e em outros estados, fazia
uso da máscara facial, especialmente no transporte coletivo e ambientes
internos. Muito bem!
E o tema recorrente da arborização urbana no nordeste
voltava à baila. A mutilação das árvores de ruas e praças públicas, visando
figuras geométricas ou estilizadas, mas sempre mutilação, prática nordestina
que se propagava que nem praga, causaria indignação a qualquer ser humano dotado
de bom senso. Além da destruição, ainda que parcial, da vegetação,
comprometendo o desenvolvimento da planta, as mutilações eliminavam algo tão
caro e tão desejado pela população, a sombra, a tão almejada sombra, sobretudo
em locais tórridos pelo sol implacável. Então por que teimar em juntar a feiura
do resultado da árvore mutilada com a disfunção prática do ato? Bastaria
escolher devidamente a árvore adequada para um determinado local, praça,
canteiro central, calçada larga, calçada estreita, e deixá-las crescer
livremente. A população teria a combinação perfeita, ou seja, mais beleza e
mais sombra. Simples assim.
O ônibus partiu ao amanhecer em frente à antiga e
imponente escadaria da estação ferroviária da Leste em Senhor do Bonfim. Percorreu a BR-407 até Filadélfia, depois a
BA-381.
No assento ao lado, o funcionário da empresa de mineração
de cobre, outrora estatal, sediada em Jaguarari, descreveu detalhes do dia a
dia do trabalho. Em galerias a cerca de quinhentos metros abaixo do nível do
mar, alcançando quatorze quilômetros de extensão, ele e colegas, em turno de
sete horas, perfuravam e injetavam explosivos nas paredes frontais para avançar
na lavra do minério. Sob as normas de segurança que lembravam regime militar,
os operários padeciam naquelas profundidades quentes e úmidas, a despeito da
ventilação artificial e dos salários, segundo ele, bastante atraentes. Ao
final, me presenteou com duas pequenas amostras do minério azulado.
No meio da manhã eu caminhava pela cidadezinha de Itiúba.
E com som ambiente. Pelos alto-falantes da rádio local, transmitido ao vivo,
notícias, música, diversão e muitos comerciais das lojas locais. As vinhetas
eram tantas vezes repetidas que acabei decorando a musiquinha e as frases
feitas para atrair clientes.
A relação entre a zona urbana e a serra de Itiúba não
deixava de intrigar. A ferrovia abandonada, a famosa Leste, a mesma que passava
em Senhor do Bonfim, cortava a cidade de ponta a ponta. Nem sinal da estação de
passageiros, mas apenas o desativado galpão de manutenção de locomotivas, em cuja
placa de inauguração constava o nome do então presidente Getúlio Vargas. Ao
fundo dos trilhos flagrei jegues transportando cargas em bagagens quadriculadas
de couro legítimo, conduzidos por sertanejos após o escambo na feira municipal.
A leste de Itiúba, após cruzar os passos da serra, o
veículo atravessou o vilarejo ao lado do açude de Camandaroba, represando as
águas do rio Jacurici.
Após Cansanção, na cidade de Monte Santo, o monte santo
propriamente dito se erguia a partir das ruelas do centro urbano. Era acessado
somente a pé, através de subida intensa por escadarias e trilhas, conforme eu
descrevera em relato anterior.
O tempo se mantinha fechado, com nuvens carregadas,
chuviscos a toda hora, ventanias fortes. Em todo o trajeto percorrido, a caatinga
esverdeada favorecia os plantios e o rebanho de bovinos e caprinos.
Desembarquei na feia Euclides da Cunha e sentei no banco
precário da rodoviária. Minúsculo e sujo, o terminal não oferecia banheiros
para os usuários, mas sim um bar, no lugar da tradicional lanchonete, em frente
ao qual se concentravam bebuns em geral. Abri a mochila de ataque e detonei dois
sanduíches de queijo e presunto, entre goles de água da garrafinha
providencial.
O segundo ônibus acessou a BR-116 até Bendegó. De lá tomou
a BR-235 ao meu destino final, a nova cidade de Canudos.
Me hospedei em
quarto de estabelecimento básico, com lençóis surrados e toalha de banho que se
desfazia ao uso. Ao pedir outra na recepção, a proprietária do hotel, se
espantou diante da toalha puída e afirmou “Que estranho! São toalhas da melhor
qualidade que comprei há pouco tempo”.
Quase todos os restaurantes de Canudos se encontravam
fechados naquela noite de quinta-feira. Em dia cujo café da manhã e o almoço se
constituíram de apenas quatro sanduíches feitos às pressas eu novamente tive
que improvisar. Mas o litro de suco natural de abacaxi lavou a alma.
Fazia friozinho noturno na terra onde Antônio Conselheiro
ergueu a vila de Belo Monte, depois chamada de Canudos.
Pela manhã, visitei o memorial de Canudos, exibindo
painéis explicativos, exposição de objetos do massacre, mapas esquemáticos da
região ao final do século XIX.
Era dia de feira semanal em Canudos. Os moradores, da
cidade e de distritos vizinhos, afluíram para vender e comprar. Todo o comércio
se manteve aberto para receber o dinheiro recém-adquirido nas vendas. Feira movimentada,
viva, alegre, vibrante.
Entrei no IPMC, Instituto Popular Memorial de Canudos. Penduradas
nas paredes e soltas aleatoriamente no piso, pinturas que tinham o antigo vilarejo
de Canudos como tema principal. Riscos vermelhos permeando todas as obras aludiam
explicitamente ao sangue derramado durante o massacre da população pelo
exército brasileiro. Também dentro do instituto, o cruzeiro de madeira,
original da igreja velha da vila Belo Monte. E as dezenas de toras de cedro, nó
da discórdia entre o Conselheiro e o fornecedor de Juazeiro, estopim para
atiçar a curiosidade geral sobre Belo Monte e para atrair as primeiras tropas
militares na intenção de reprimir o vilarejo que almejava a autonomia.
Tentei encontrar sombra pelo extenso e largo canteiro
central da avenida principal. Sombra ali era artigo raro. Adivinhem o motivo!?
Porque as árvores, dezenas delas, desgraçadamente, haviam sido mutiladas
geometricamente, reduzindo as áreas de sombra à praticamente nada e disputadas
ferrenhamente pelos sertanejos. Mania esquizofrênica de destruir as copas das
árvores e liberar o sol escaldante para massacrar, sem proteções naturais, tudo
e todos.
Terminei o ensaio Os
Cangaceiros, de Luís Bernardo Pericás. Mantive a mesma toada em razão da
região que eu atravessava. Iniciei Cangaços,
de Graciliano Ramos, coletânea de artigos, inéditos ou não, que o escritor
alagoano publicou em jornais e revistas. Logo nos primeiros textos percebi a superioridade,
na forma e no conteúdo, na abordagem do tema do cangaço e dos cangaceiros.
Dois anos, 2020 e 2021, por conta da pandemia do covid-19,
sem festas juninas no nordeste do Brasil, região que sempre foi apaixonada por elas.
Daria para imaginar como estavam os moradores nos preparativos em cada cidade
daqueles interiores. Em Canudos, cujo padroeiro era Santo Antônio, a população
se agitava em contagem regressiva. Os quarteirões da rua da igreja Matriz já
contavam com bandeirinhas, enfeites diversos, pau-de-sebo, entre tantas outras
decorações juninas. Nas demais cidades dos interiores nordestinos a expectativa
não era diferente. Tradicionalmente ruidosa, com músicas altas nas quase vinte
e quatro horas do dia, a região trepidava a cada dia mais próximo das datas
comemorativas.
À noite houve projeção de filme na concha acústica do
canteiro central da avenida principal, a praça de Canudos. Filme de divulgação
da transnacional que instalava captadores de energia eólica entre Canudos e
Jeremoabo. Através de material publicitário produzido por equipe gaúcha o filme
descrevia as belezas da energia eólica, a sustentabilidade da empresa, a
harmonia social e cultural com os moradores das comunidades afetadas, enfim,
aquele tipo de empresa capitalista dotada da tão alardeada “responsabilidade
social”. O filme bradava que a tal transnacional envolvia a comunidade nos
projetos técnicos e supostamente culturais, alegando que, assim, preservava a
história de Canudos, do Raso da Catarina e das populações sertanejas tradicionais.
Me engana que eu gosto!
continua...
Muito bom este texto. Me senti viajando também. Inclusive conheço várias cidades mencionadas no texto. Lençóis é a cidadezinha que mais gostei. Pretendo voltar lá outras vezes para terminar as trilhas que não deu tempo concluir em Chapada Diamantina. Parabéns!
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
A Chapada Diamantina é única. Tanto que não pretendo ficar só nas três vezes que lá fui. Muitas outras explorações virão pela frente. Vale e muito a pena!
Comente sempre!
Como está os preços de hospedagem na chapada?
ResponderExcluirVariam demais. Depende de que tipo de hospedagem deseja, o lugar, as condições, etc. Pela Internet vc terá ideias mais atualizadas.
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