sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

do Nepal ao Vietnã (parte 7/7)

...continuação
Fomos à cidade de Thai Nin para conhecer o templo Cao Dai, percorrendo extensas áreas cultivadas, sobretudo de arroz. Não faltavam bicicletas e mulheres com chapéus cônicos. Pertencente ao caodaismo, mescla de quatro outras religiões, o templo abusava das cores vivas. As mulheres se postavam separadas dos homens nos infindáveis e sonolentos rituais. Sob uma atmosfera de autoritarismo ostensivo e usando braçadeiras, os membros da seita nos policiavam, nos advertindo sobre o que podíamos ou não fazer. Mas felizmente o número de seguidores estava em queda. Não era para menos. Os dirigentes e principais membros da religião tiveram boas relações com os invasores franceses. E, enquanto a região era devastada pelas armas químicas, a população e a natureza sofriam com as bombas napalm e agente laranja, os invasores estadunidenses não atingiram os templos do caodaismo. A indústria da religião sempre soube escolher os aliados de plantão.
Mulheres vestiam ao dai, roupa formal vietnamita, composta de calça branca e larga de algodão, mais túnica comprida de mesmas características. Complementavam com luvas finas e compridas, sapatos de salto alto, chapéus estilizados com fitas. Pareciam bonequinhas, pedalando bicicletas com elegância e delicadeza nas ruas e estradas.
Seguimos a Cu Chi a fim de visitar os famosos túneis que humilharam o exército dos Estados Unidos. Simpáticos e bem informados, os guias nos deram as necessárias explicações, acompanhadas de mapas, perfis esquemáticos, maquetes e vídeos. Conhecemos as estradas, tanques de guerra, crateras das bombas estadunidenses, trincheiras. Engatinhamos em túneis estreitos e escuros, que se interligavam com a superfície, refeitório, sala de cirurgia, sala de reuniões, depósitos. O complexo de túneis se dividia em três níveis, com até dez metros de profundidade. A extensão atingia 250 quilômetros, de Saigon ao Camboja, com inúmeras ramificações.

As imediações do hotel de Saigon se transformavam em reduto típico de turistas, caminhando a passos largos na imitação de Khao San em Bancoc. Os gringos insistem em construir guetos semelhantes aos países de origem, se distanciando das culturas locais. Perdiam oportunidades únicas e valiosas de aprender e amenizar a intolerância. Mas a vida noturna em Saigon e Cholon se agitava. Os moradores saíam bastante, lotando bares e cafés. Motos, lambretas e bicicletas com casais e amigos enchiam as ruas. Garotos vietnamitas batiam pauzinhos na rua, avisando que havia sopa, e aceitavam pedidos de encomenda.
Descemos ao delta do rio Mekong, área plana, alagadiça, com manguezais, vegetação tropical, canais, população rural, plantações de arroz, frutas. Ainda na estrada, lavradores nos receberam alegremente, nos servindo o saboroso e refrescante café com leite gelado, típico do sudeste asiático. Tomamos barco no mercado local de Mytho que conduziu pelos canais até Vhin Lon. A dificuldade de comunicação não impediu que os ribeirinhos recebessem sempre bem. Tentei me comunicar com sinais com garota vietnamita, também passageira do barco, e ganhei uma toranja de presente. Os ribeirinhos e passageiros de outros barcos acenavam e sorriam.
O guia local afirmou que as terras no Vietnã foram devolvidas aos proprietários anteriores à libertação do país em 1975, isto é, aos latifundiários aliados dos invasores estadunidenses. As escolas e a assistência médica para a maioria da população não eram gratuitas. Os gastos com educação correspondiam à cerca de um terço dos salários. O setor privado estava liberado para quem contasse com capital. Sob a propriedade privada e economia de mercado, o Estado vietnamita ainda controlava muita coisa, mas o socialismo e o comunismo nunca existiram no país. Os resultados disso se evidenciavam nas classes sociais antagônicas, concentração de renda, elitização da educação e da saúde, favelas, mendicância ao lado de carrões e gente bem vestida.
Saída matinal com destino à cidade serrana de Dalat. Antes da serra, extensa ponte fluvial sobre casebres espalhados de vilarejo flutuante e, mais adiante, imensos seringais. Era a região mais cristã do país, com enxame de igrejas horrorosas. A indústria da religião lucrava e se expandia no Vietnã capitalista. A topografia se acidentou, surgiram plantações de chá, café, fumo, verduras diversas, criações de bicho da seda.
Após Bao Loc, parada para visitar cachoeira paga e próxima à rodovia. A entrada e a frequência eram deprimentes. Dois indivíduos vestidos de bonecos cobravam entrada cara, um deles fantasiado de mickey mouse com as cores da bandeira estadunidense. Jovens vietnamitas com roupas sociais desfilavam pelo local. A tentativa de parecerem ocidentais tornava-os ridículos.
Distante dali a costumeira hospitalidade dos agricultores que nos explicaram as fases do processamento de fumo e bicho da seda. A paisagem ao redor era montanhosa e verde. Clareiras quebravam o verde nas encostas e nas cristas das montanhas, escancarando os efeitos dos bombardeios dos Estados Unidos com armas químicas. Além de milhões de mortos e feridos, os pesados e contínuos bombardeios de napalm e agente laranja envenenaram imensas áreas do sul do Vietnã, esterilizando o solo e impedindo o plantio por muitas décadas.

Antiga estância dos invasores franceses, a cidade de Dalat, a mais de 1.600 metros de altitude, revelava temperaturas amenas e casais em lua-de-mel. A temporada de casamentos enfeitava e alegrava a cidade, com festas, carros decorados por todos os lados. O mercado noturno transbordava de gente comendo e bebendo. Quase tudo era ao ar livre, animando a noite da cidade.
Descida da serra com visual privilegiado das montanhas e vales. No caminho, pequeno templo hindu, construído pela etnia Chan entre os séculos XI e XII. Crianças saídas das escolas se aproximaram em grupos. Queriam nos abraçar, conversar, serem fotografadas ao nosso lado. Na parte baixa da serra, à medida que se aproximava a beira do mar, arrozais e salinas. As trabalhadoras rurais vestiam calças pretas e largas, camisetas claras e chapéus cônicos.
Chegada em Nha Trang em hotel cujas mesas de sinuca, tênis de mesa, quadra de tênis e até a piscina eram cobradas à parte. A longa praia era bonita, em concha, coberta de coqueiros. Não havia habitações invadindo as areias, apenas bares simples.
Alugamos bicicletas de manhã e nos dirigimos às torres do século XI. Descemos aos vilarejos de pescadores na beira do mar. Barcos feitos de palha, arredondados, flutuavam nas ondas próximas à praia. Os moradores interrompiam os afazeres a fim de melhor nos observarem, analisarem, tentarem se comunicar por mímicas e sorrisos.  As crianças nos cercavam, pediam fotos, nos cumprimentavam, nos abraçavam. Avançamos à pequena enseada deserta, com águas calmas e azuis, poucas pedras. Não resisti e caí no mar. Retorno pela estrada principal sofrendo com o tráfego intenso e perigoso até o centro da cidade. Almoçamos com o visual relaxante da beira do mar.
Nha Trang marcava pela presença constante de pedintes de comida e esmolas em geral, deficientes físicos, sem partes dos membros. Eram vítimas da guerra promovida pelos Estados Unidos. E o intenso turismo na cidade atraía os miseráveis e abandonados pelo Estado. Cenas chocantes se repetiram no restaurante afastado da praia. Pedintes se aglomeravam nas imediações e imploravam por comida.
Casais iam de lambreta ou bicicleta aos coqueirais na beira da praia e se liberavam. Putas ainda jovens, exageradamente pintadas, acenavam, chamavam.  A maioria das vietnamitas, porém, não correspondia a olhares e paqueras, seja por timidez, necessidade de se diferenciar das prostitutas, preferirem diferentes estilos de abordagem.
Dia longo por estradas estreitas, acidentadas, sinuosas, com tráfego intenso. Mais imagens chocantes de zonas desmatadas pelas armas químicas lançadas pelos Estados Unidos. Extensos arrozais, salinas e cultivo de algas predominavam nas partes baixas, ao lado de pitorescas baías, ilhas, vilarejos de pescadores. Paradas para o café da manhã, almoço e inúmeros cafezinhos gelados na beira do mar. Acrescentavam leite condensado ao café coado e serviam em copos longos e cheios de pedras de gelo. Eu ia de dois copos dessa delícia refrescante. Os arrozais não se cansavam de deslumbrar.
Chegada à noite em Hoi An, cidade aconchegante com sequência de bares na beira do rio.
O dia começou com explorações em construções chinesas nas ruas e ruelas da cidade. Também pela ponte japonesa, bairro europeu, entre outros. Hoi An era calma, pequena, especial. Conheci vendedora na barraca de verduras do mercado que arranhava o inglês. Andei pelos becos estreitos, arborizados e sombreados, cumprimentando as pessoas das casas. Fui convidado a entrar pelo senhor sentado na varanda de uma delas. Os demais moradores se aproximaram. Vizinhos também entraram. Fiquei rodeado de gente sorridente a me observar com curiosidade e carinho. A ausência de palavras ressaltava a magia dos gestos e expressões. Tomei chá, comi laranjas, ouvi melodias em violão. A despedida entristeceu após experiência mágica que faz a diferença nas viagens soltas, com tempo, sem roteiros fixos. Mais tarde passeei de bicicleta pelas bandas da praia afastada.

A dublagem de filmes na televisão era efetuada por apenas uma mulher, para todos os atores, sem qualquer entonação ou emoção.
Percorri longos trechos de bicicleta nos arredores ao norte de Hoi An. Cruzei vilarejos rurais, extensos arrozais, escolas, estaleiros. Centenas de estudantes de ensino fundamental viram das janelas das salas de aula e saíram em disparada, cercando aos gritos, pedindo fotos. Os de trás passavam na frente dos da frente e assim por diante. Foi o acontecimento do dia para eles. As professoras os convenceram a entrar somente quando parti na bicicleta. Mas, de longe, ainda nos acenavam aos gritos.
No dia seguinte, serras esverdeadas por horas, das quais se viam praias ao fundo e mais montanhas. As Montanhas de Mármore, com templos e grutas cobertas de imagens de Buda. Passamos ao lado de Da Nang, antigo ponto de desembarque das tropas invasoras dos Estados Unidos. As plantações sem fim de arroz compunham tapete esverdeado até a linha do mar.
Entrada na cidade de Hue à tarde, por ruas amplas e arborizadas, onde não faltavam as bonequinhas em bicicletas, motos e lambretas. Extensa faixa com embarcações de madeira e cobertas de palha trançada abrigavam população flutuante, a mais numerosa vista até então. O povo adorava conversar nas calçadas, em frente às casas, convidando a entrar. Jantar em restaurante de comida típica vietnamita, cujos donos eram surdos-mudos. O ambiente mais parecia casa de loucos. Diversos garçons atendiam as mesas, abraçavam, se sentavam nas pernas dos fregueses. Adoravam brincar, fazer gozações. Tudo era festa. Nada era sério, exceto a saborosa comida. Caminhada de volta através de ruas cheias de jovens assistindo aos fogos de artifício.
Passeio pelas ruínas da cidadela fortificada e cidade proibida. Em 1968, durante a ofensiva do Tet, os vietcongs expulsaram os invasores estadunidenses, ocupando a cidade por 24 dias. Os Estados Unidos bombardearam tudo, inclusive a cidadela, na tentativa de reaver o controle militar, massacrando os moradores. O barco levou à longa viagem pelo rio, visitando as tumbas de antigo imperador do século XIX, e o pagode ao lado de mais túmulos. Os pedintes e vendedores de bugigangas não se cansavam de assediar.
Embarque rumo a Hanói, a capital vietnamita.
Sob o céu cinzento, caminhada pelas ruas charmosas, cheias de motos e bicicletas. Eu me deliciava com as sopas e ensopados, com tudo dentro, servidas em restaurantes minúsculos. À noite, teatro para assistir ao espetáculo das marionetes aquáticas, tradição vietnamita que surgiu e se popularizou nas épocas das grandes enchentes. Era teatro amplo, confortável e moderno, com apenas turistas na plateia. A apresentação agradou pelo colorido e alegria dos bonecos.
Os vietnamitas de Hanói revelavam semblantes mais sérios, carrancudos, e se vestiam mais sobriamente que os do sul do país. As mulheres, mesmo mais retraídas, primavam pela elegância e, nas motos, transbordavam sensualidade e charme, com os cabelos negros e lisos ao vento. Parte delas, na tentativa desajeitada de se ocidentalizar, tornava-se ridícula e mal vestida. A maioria, no entanto, ainda não caíra na armadilha e se orgulhava dos costumes vietnamitas. O povo raramente abordava nas ruas, valorizando a privacidade e individualidade.
Na estrada no sentido norte, cruzamos a cidade portuária de Haiphong. Com exceção das vistosas plantações de arroz, a paisagem era feia demais. O tempo cinzento e chuvoso contribuía para avaliações negativas. Muita lama e casas velhas em Haiphong, mas os moradores sorriam mais que em Hanói. Almoço bom e farto.
Chegamos em Ha Long, à beira mar. Prédios novos exibiam gosto duvidoso nas decorações e fachadas. Hotéis e restaurantes escandalizavam com acabamentos em rosa e cores vivas. Cortinas verdes de cetim brilhante pendiam das janelas. Doía só de olhar. A incompetência da moderna indústria turística mais depredava que construía. Os diversos karaokês espalhados pela cidade e ao redor do hotel estavam a mil.
Em embarcação confortável avançamos pela baía de Ha Long, percorrendo o labirinto de ilhas calcárias, em diversos tamanhos e formatos, algumas com grutas e cavernas. As raras praias eram pequenas e pedregosas. O mar, mesmo com o tempo cinzento, se destacava pelo verde intenso. As temperaturas não convidavam a mergulhos, mas valia a emoção de circular pelo cenário ímpar. Ancorávamos para explorar as ilhas com cavernas e formações rochosas inusitadas. Valia circular por paisagens tão ímpares e belas.
A comida do barco era saborosa e farta, com predomínio de camarão, lula, peixe, arroz, tudo bem temperado. À noite, as almofadas pelo convés coberto do barco, lado a lado, formando uma grande cama.

Café da manhã cedo. A tripulação deu a partida e, em poucas horas, retornou ao cais da cidade. A névoa espessa não deixava ver quase nada. Novamente o vilarejo cafona e sujo de Ha Long. Subida em direção a Hanói. As rodovias, estreitas e cheias, continuavam a assustar. As trabalhadoras rurais se cobriam, além dos chapéus cônicos, com panos sobre o rosto a fim de não se queimarem, mesmo em dias nublados. O sol fraco ameaçou aparecer no final da tarde ao entrar nas ruas da capital.
Passeio pelas redondezas do museu e mausoléu Ho Chi Min. Pagodes e lagos valorizavam o local. Nas imediações, casas elegantes em ruas arborizadas e sombreadas, praças e parques, mais lagos. As informações históricas no museu estavam organizadas e intercaladas com obras de arte moderna. Os ambientes de luz e sombra davam encanto especial ao conjunto.
Entrei no templo da Literatura, local da primeira universidade do país, datada do século XI. A atmosfera da construção térrea com toques em madeira avermelhada cobria-se de calma e silêncio.
Na parte antiga de Hanói, as ruas se distinguiam pelos produtos vendidos. Rua dos sapatos, rua das roupas, rua da prata, rua do peixe, rua do bambu, rua das lápides. Verdadeiro mar de gente em vaivém de compras e vendas. Cheiros diversos passavam em região que exalava muita vida. Assisti ao intenso pôr-do-sol enquanto conversava à vontade com um vendedor de guias e com um estudante de direito. O fato de nenhum dominar a língua inglesa, não impediu de debatermos assuntos dos mais variados.
Conversei bastante com a recepcionista do hotel sobre perspectivas profissionais e pessoais. Ela guardava ideias difusas e vagas sobre o ocidente. Repeti as andanças e descansos na beira do lago a fim de apreciar a paisagem e os moradores ao redor. Os vendedores insistiam em vender o que eu não queria comprar. As irritantes crianças pediam dinheiro e até tentavam enfiar as mãos em meus bolsos.
Visitei os interiores do mausoléu Ho Chi Min. A longa fila acompanhava e homenageava o corpo iluminado com luz amarelada do presidente, libertador e herói nacional Ho Chi Min. Os diversos seguranças não demonstravam truculência e a atmosfera passava calma e respeito. Próximo, a cabana suspensa e ventilada, a antiga casa e local de trabalho dele. À tarde relaxei em café no meio do jardim do lago.
O tamanho das mesas, cadeiras, bancos dos cafés e restaurantes nas calçadas lembrava brinquedos de crianças. Os bancos não passavam dos dez centímetros de altura. Ao me sentar tinha que flexionar as pernas, ficando os joelhos na altura do rosto. E eu virava a grande atração. Os vietnamitas me observavam e riam. Riam muito. E riam também quando eu tentava pronunciar os pratos durante meus pedidos à cozinheira. Por mais que tentasse não acertava a pronúncia das sílabas com os traiçoeiros sinais em cima e embaixo. A cozinheira, nos restaurantes de rua, ou as garçonetes, nos outros locais, não entendiam e olhavam para os lados. De nada adiantava eu repetir. Começavam a rir às gargalhadas, junto com os clientes que ouviam a cena. Os risos voltavam a todo vapor quando eu pedia outro. Os miúdos vietnamitas jamais repetiam e se espantavam de eu aguentar comer duas enormes tigelas da sopa engrossada com carne de boi, frango ou porco, diversos legumes, verduras e temperos. Um minúsculo local no centro da cidade preparava o melhor Bun Bo de Hanói. Desisti de procurar alternativas e virei freguês dali.
Os funcionários do hotel me convidaram a comer deliciosa sopa matinal. E ainda repeti a dose. O pai da recepcionista apareceu e, sem falar uma palavra de inglês, me convidou a visitar o estúdio de pinturas na casa vizinha. Vi fotos, consultei livro sobre arte vietnamita, tomei chá.
E me dirigi de micro-ônibus da empresa aérea ao aeroporto de Hanói. A turista alemã com cara de nazista não queria que eu me sentasse ao lado dela, alegando que estava reservado para o namorado. Ignorei e permaneci sentado. As ruas estreitas e congestionadas sob o tempo chuvoso tornaram o percurso demorado e desconfortável. As dependências do aeroporto de Hanói gelavam e os passageiros se encolhiam nos bancos. Nem parecia país tropical. Chovia, ventava e fazia menos de 15 graus.
O avião pousou em Bancoc antes do meio-dia, sob o sol escaldante e temperatura na marca de 40 graus. O desembarque demorou horas e enfrentei fila quilométrica.
De volta ao pesadelo de pós-adolescentes que se consideravam alternativos e experientes. E o festival de artilharia pesada assustava com as loiras que me tiravam o apetite. Talvez sofreram graves acidentes na infância e ficaram com sequelas nas estruturas.
O calor me fazia transpirar por todos os poros. Ainda mais depois do frio vietnamita. Retirei o restante da bagagem deixada em hotel da região. Esvaziei ambas as mochilas no tapete da área de estar. Tirei o suor na pia do banheiro e vesti camisa limpa. Arrumei tudo e subi em lotação rumo ao aeroporto.
Durante o voo noturno me emocionei quando o comandante comunicou a passagem sobre a cidade de Yangon em Mianmar. O avião pousou em Londres ainda no escuro. A inglesa da imigração insistia que eu viera procurar trabalho ilegal na Inglaterra. Não adiantou eu mostrar o bilhete e o cartão de embarque para aquela mesma noite com destino a São Paulo. E repetia as mesmas perguntas como papagaio. Eu as respondia como papagaio. Ela me olhava friamente. Eu a olhava friamente. Venci a burocrata loira pelo cansaço e fui liberado.
Amanheceu tarde em Londres, com muito frio, vento, chuva. Era o segundo choque térmico e uma noite sem dormir desde Hanói. Esperei o dia clarear. Caminhar nas ruas nem pensar. Os museus eram a única alternativa. Visitei o Museu Britânico que guardava milhares de peças saqueadas pelo império britânico. Havia de tudo e de todos os lugares após séculos de pilhagens e roubos pelo mundo afora. Os invasores chegaram ao cúmulo de arrancar parte por parte de templos hindus na Índia e montá-los inteirinho novamente na Inglaterra. Assalto puro e simples. A Galeria Nacional oferecia acervo permanente de artes plásticas. Aproveitei para descansar e cochilar nos enormes sofás. O museu de cera de Madame Tussaud abusou do mau gosto. Figuras pouco fiéis tentavam homenagear personalidades nem sempre homenageáveis. Turistas vibravam e fotografavam, sobretudo no espaço reservado aos quatro rapazes de Liverpool.
Caía de sono e cansaço. As opções para passar o tempo chuvoso se acabavam. Retornei ao aeroporto no início da noite. O atendimento nos balcões da empresa aérea inglesa primava pela desorganização e má vontade. Os despreparados funcionários ingleses chegaram atrasados, interrompiam o embarque sem motivo aparente, tagarelavam bobagens entre si. Atrasaram o voo em mais de uma hora. Legítima pontualidade britânica!
Na manhã do fim de janeiro do ano seguinte cheguei a São Paulo, sob o sol e calor. Terceiro choque térmico. Duas noites sem dormir e nove horas e meia de diferença de fuso horário desde Hanói.
Entrei em casa, abri as janelas, tomei banho, saí para matar a fome. Retornei, deitei e adormeci. Acordei somente 23 horas depois.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

do Nepal ao Vietnã (parte 6/7)

...continuação
No vilarejo de Myinkaba, presenciei intrigante cerimônia de iniciação de dezenas de crianças, prestes a se recolherem por anos dentro dos mosteiros budistas. Desfilavam pintadas, montadas em cavalos, vestindo coroas, usando guarda-chuvas dourados. As expressões não eram de felicidade e várias choravam. Mais tarde raspariam os cabelos, se reuniriam para comer e dançar músicas típicas ao som de xilofones, gongos, tambores e harpas. E não faltavam as cores vivas, muitas cores vivas, em tudo.
O guia mais calado e atrapalhado somente abria a boca para dizer inutilidades e chavões. E não sabia responder às minhas perguntas. O guia principal, budista dogmático, não se livrava dos fedidos charutos. Alegava que no budismo nada é permanente e que, por isso, não se importava com danos aos pulmões. Ambos se esquivavam de qualquer pergunta que saísse do dogmatismo. Abusavam de frases decoradas do budismo até ao discutir horários da programação. Escarravam e assoavam o nariz sem lenço ou papel, com direito a muito barulho, inclusive durante as refeições. A maioria da população se comportava assim, até as atraentes birmanesas, para meu desgosto.
Mesmo fechado, o país vomitava lixo ocidental dos alto-falantes. E importava também refrigerantes, uísques, cigarros. Placas com marcas das famigeradas transnacionais se espalhavam nas cidades. As imagens de Buda eram onipresentes, em estátuas, grandes ou pequenas, pedra ou ouro, pinturas nas paredes e tetos. Apelavam até para as imagens nos televisores nos templos mais modernos.

Ainda nos arredores de Bagan, o centro de treinamento de fabricação de produtos em laca. Usavam tiras de bambu ou crina de cavalo como matérias primas. Em seguida, vários banhos de laca, pinturas, desenhos com estilete e polimento. Trabalho cuidadoso, bem feito, primitivo.
O guia mais jovem e atrapalhado seria meu único guia pelos demais interiores do país. E sem saber quase nada de inglês ou dos locais a serem visitados. Partimos pela manhã, percorrendo estradas tão estreitas que precisava parar quando vinham veículos em sentido contrário. Vários trechos nem eram pavimentados. Iniciamos a subida da serra e logo atingimos os 1.300 metros de altitude. Pequenos ajuntamentos de barracos de bambu nas margens da estrada, invariavelmente suspensos e precários, muitos nem sequer com móveis, abrigavam famílias sobrevivendo aos trancos e barrancos. Os pedágios de religiosos budistas abundavam nas estradas, interrompendo o tráfego, coagindo os passantes a doarem dinheiro para a construção de mais templos. Diversas caminhonetes lotações e ônibus velhos cruzavam pelo caminho. Chamá-los de lotados seria eufemismo. Além dos esmagados da parte interna, havia gente até nos tetos dos veículos. Muita gente misturada com muita bagagem.
Entramos no ramal para Pindaya. Nas margens da estrada, pertencentes ao estado de Shan, circulavam habitantes com trajes típicos da região, predominando os tons avermelhados, com panos nas cabeças. Seguimos direto para as grutas, na verdade templo budista, aproveitando as reentrâncias calcárias para instalar milhares de estátuas de Buda nas paredes, tetos, pisos. Cada ponto servia para determinados temas. Havia estátuas que atendiam até os interessados em ganhar na loteria. Outras eram para pedir sorte. Mas apenas na próxima vida, claro. A despeito da beleza natural, o local se reservava a romaria de budistas fanáticos e alienados. Estávamos no alto da montanha e a vista dali era estupenda. A cidade e o lago se estendiam abaixo.
Pernoite em Pindaya onde jantamos sopa e lamem reforçado com galinha. Comi muito e bem. Os moradores da região dormiam cedo, pois tinham medo de serem recrutados pelas patrulhas do exército como voluntários para obras civis em estradas e demais trabalhos pesados. Esfriou durante a noite e os cobertores não foram suficientes.
Despertar ainda no escuro e descida por estradas estreitas e fascinantes até a margem do lago Inle. O nascer do sol veio em meio à intensa neblina. Na margem do lago fretamos barco para quase todo o dia.

Pescadores e barqueiros remavam com apenas uma perna, se sustentando na outra, as mãos livres para pescar. A cerração na parte mais larga do lago e as montanhas ao redor davam encanto especial à paisagem. Atingimos o trecho onde ocorria o mercado flutuante, nas proximidades de vilarejo lacustre, ao longo do canal e entre fileiras de palafitas. Os barcos, transportando produtos agrícolas, entre outros, negociavam quando se tocavam, vendiam, compravam, trocavam em vaivéns agitados. Apesar da pobreza, as palafitas desenhavam conjuntos harmônicos e vistosos sobre as águas. As construções se adaptavam perfeitamente às condições climáticas. Adiante pelo lago, pelos canais que formavam o vilarejo, cruzados por caprichosas pontes de madeira. Os moradores fabricavam e vendiam artesanato dentro e foras das cabanas. Na extremidade do vilarejo, o pagode com torre parcialmente dourada. Mais adiante, o mosteiro budista em madeira sobre as águas, construído há mais de dois mil anos, guardava diversas estátuas e imagens douradas de Buda. No centro se destacava a cadeira de madeira finamente trabalhada e reservada às pregações. Mesmo depois de visitar dezenas de templos e pagodes, aquele chamou bastante atenção.
Almoço na simpática pousada em Nyaung Shwe, sob o sol agradável, com vista relaxante das águas do lago Inle, bem ao lado.
Subida do relevo em direção a Taunggyi, em cujo alto da serra, outro pagode com vista panorâmica do vale e da cidade. A 1.450 metros de altitude, Taunggyi era moderna e sem atrativos especiais. Os moradores não vestiam sarongues. Dentro de casacos de couro com símbolos ocidentais, os rapazes imitavam atores do cinema estadunidense.
O guia bobão e atrapalhado nada articulava além de estúpidas frases decoradas, tais como:
“este é o hospital da cidade”,
“ali é o exército”,
“os soldados se vestem de verde em Mianmar”,
“esta cidade se chama Taunggyi”,
“Taunggyi é o nome desta cidade”.
E ao entardecer, me levou a lugar vazio e abandonado, com mato alto, lixo, onde o pôr-do-sol foi emoldurado por fios de eletricidade, construções em obras, estradas asfaltadas. Ainda bem que o país era fascinante e me fazia ignorar o sujeito.
Pela manhã, voltas pelo mercado ao ar livre de Taunggyi. Tipos diferentes e coloridos vendiam de tudo, nas barracas, calçadas, ruas.

Descida da serra por estrada sinuosa e estreita. Os motoristas, porém, não dirigiam perigosamente, havendo sempre respeito e solidariedade. A mão de direção em Mianmar fora recentemente transferida para a direita. Mas os volantes dos carros continuavam também do lado direito. Nas ultrapassagens, o motorista precisava avançar bastante na pista contrária para conseguir ver os veículos no outro sentido. Tentava não prestar atenção, mas sentia calafrios nessas tentativas. No toca-fitas do carro rolava a tal de Miss Sweet que, segundo o bobalhão, cantava músicas birmanesas. Apenas a língua era local. As melodias, arranjos, estilos de voz eram cópias ruins do lixo estadunidense.
Durante a espera do trem em Thazi, me instalei em pousada precária. As instalações davam pena. Não havia banheiro nos quartos. Os chuveiros não contavam com vasos sanitários ou latrinas. Senti dor de barriga durante o banho. Descarreguei ali mesmo com o chuveiro aberto. Tentei empurrar o barro até o ralo. Não era ralo e toda a massa marrom escura tomou o caminho de volta. Encontrei finalmente o ralo, arrastei tudo novamente e a coisa se foi. Mas antes disso o banheiro alagou. Fechei o chuveiro até a água suja baixar. Reabri então o registro e voltei ao banho normalmente.
E lá fui eu e o bobão do guia em direção a Yangon. O trem era bem melhor que o da ida. Corredor central, dois bancos largos e espaçados. Apenas um banco do outro lado do corredor. Reclinavam o suficiente e envolviam pelo conforto. Os garçons serviram arroz frito com galinha e ovo. O vagão oferecia música ambiente de mau gosto, do tipo da tal Miss Sweet. Depois ligaram o vídeo, com filme local dramático e triste. A programação seguiu com musicais horrorosos e ocidentalizados. O mais interessante veio com as apresentações folclóricas birmanesas. Comediantes e improvisadores se revezavam. Duplas interpretavam canções típicas. Curiosíssimo.
Despedi-me do guia atrapalhado na chegada em Yangon. Ainda o adverti sobre os incontáveis erros cometidos, aconselhando-o a estudar mais para se tornar guia de verdade. Fez cara de paisagem e não sei se entendeu o recado. Reencontrei o primeiro guia e passeamos mais pela capital. Fomos ao parque, extenso e refrescante, ao mercado local, ao centro da cidade. Depois almoçamos em restaurante típico birmanês na beira do lago. Entre infinidades de assuntos, ele citou que nas universidades estavam proibidas as conversas sobre política e assuntos afins.
Comecei a sentir saudades de Mianmar antes mesmo de partir. As birmanesas substanciosas, bonitas, sorridentes, charmosas, insinuantes. A hospitalidade, o jeito antigo e calmo do povo. As belezas naturais, arquitetônicas, históricas. A comida picante e saborosa.
O avião decolou rumo à Tailândia. Mas eu queria ficar.
Na feia Bancoc tomei táxi até a pousada através de trânsito infernal.
Na manhã seguinte, peguei o trem com destino a Ayutaya, a antiga capital da Tailândia. Localizado no centro da cidade, o sítio histórico cobrava ingresso caro para ver restos de antigos templos e palácios, ruínas abandonadas em meio a favelas e oficinas mecânicas. Não havia qualquer preocupação arqueológica, apenas comercial.
Virada de ano em país chato como a Tailândia, em meio a turistas desinteressantes. Bebi muito do uísque tailandês e o efeito tenebroso veio a seguir. Após acordar tarde e com bruta ressaca, andei aos templos nas margens do rio Chao Phraya, lotados de turistas, exibindo gigantescas imagens de Buda. Bancoc não animava. Cidade feia, sem charme, sem opções sedutoras de passeios. Depois da Índia e Mianmar, tudo parecia sem graça.
Perambulei com novos colegas pelos becos e palafitas até o local onde atracavam os barcos reais, usados apenas em datas comemorativas. Nesses dias o rei e a rainha, dezenas de remadores, mais os barcos da comitiva, desfilavam pelo rio diante dos moradores. À tarde, nova visita ao Grand Palace, o conjunto de templos, palácios, museus, jardins, com muita foliação a ouro, brilho e imponência nas construções diversificadas. Havia mais turistas que formigas. Nas dependências internas, aonde não podia entrar de roupa esporte, bermuda ou sandálias, havia uma estátua de Buda em jade. Circulamos de barco pelos canais do rio Chao Phraya, onde as construções possuíam somente acesso fluvial. Barcos lotações buscavam e entregavam os moradores em horários pré-determinados. Casas simples, favelas, habitações de classe média, de madeira ou alvenaria, templos, lojas, se misturavam nas margens dos canais.

À noite fui arrastado à deprimente região de Patpong, a zona de prostituição da cidade. Tailândia figurava entre os paraísos do turismo sexual, da produção e comercialização de tóxicos, dos crimes organizados. As putas serviam como escravas brancas aos turistas do assim chamado primeiro mundo. Patpong compunha-se de dois quarteirões entupidos de ambulantes que vendiam mercadorias falsificadas. Os puteiros e salas de striptease, geralmente com as portas abertas, exibiam cenas previsíveis de seminuas se balançando ao lado de roliças barras de ferro. Nada diferente dos congêneres pelo mundo afora. De pé, nas portas dos estabelecimentos, os funcionários chamavam trouxas afirmando que aquela casa era a melhor e que não aplicava golpes. Nenhum cliente tailandês. Apenas os espertos cidadãos de evoluídos países tais como Estados Unidos, Canadá, Europa, Japão, Austrália, Nova Zelândia.
Apressei o passo e dormi cedo.
Em espera dos trâmites burocráticos para entrar no Vietnã, mais espetáculos da Bancoc voltada ao turismo estúpido. A fazenda de orquídeas e borboletas não passava de imenso ponto comercial com raras orquídeas e borboletas. Mas o pior ainda estava por vir, o mercado flutuante, mais conhecido por floating market. A expressão em inglês combinava com o lugar. Milhares de lojas, milhares de turistas. Barcos vendiam produtos industrializados para os gringos, como falso artesanato, ou apenas em exibição para fotos. Era a Tailândia ocidentalizada voltada para os turistas ocidentais. Retornamos de tuc-tuc, as motos com carroceria para quatro pessoas. O piloto efetuava manobras arriscadas em alta velocidade. Ziguezagueava por entre os demais veículos e motos. Tirava finas incríveis, cantava pneus. Mas chegamos vivos e inteiros.
Embarcamos com destino ao Vietnã. Ficaria livre, pelo menos até a volta, da deprimente Tailândia.
A exploração do Vietnã começou pela plana cidade de Saigon. Poucos prédios, casas mal conservadas, poucos carros, muitas motos, bicicletas e ciclos, os táxis em bicicletas onde o passageiro sentava na frente do condutor. A primeira impressão agradou. O povo sorria e não assediava. Passeio pelo mercado, rio, centro da cidade. Poucos mendigos e sem teto. Placas de marcas das grandes transnacionais e propaganda de importações se espalhavam pelas ruas. Refeições eram servidas nas calçadas. A fim de atravessar as ruas movimentadas e sem semáforos, bastava caminhar em velocidade normal e constante, pois os veículos, motorizados ou não, desviavam e nunca ameaçavam. Os vietnamitas, mesmo rumo às festas e enfeitados, não quebravam os costumes, se locomovendo de motos, lambretas, bicicletas.
Com cinco mil anos de existência, a língua vietnamita fora convertida para o alfabeto latino no século XVIII. Mas apenas a escrita. A língua se manteve monossilábica e multitônica, onde as sílabas podem apresentar até seis tons. Foi criado complexo sistema de acentuações na intenção de diferenciar esses tons. Há palavras com mais de um sinal na mesma letra, acima ou abaixo dela. Ao tentar dizer uma coisa, o som emitido poderia significar outra completamente diferente, de sentido oposto ou mesmo ofensivo.
Jantar em restaurante de comida regional, com mesas na calçada. Envolvia a maioria dos itens em papel de arroz e depois os mergulhava em molhos temperados. Provei lulas, sapos, diversas qualidades de verduras.
Valeu a pena circular pelos mercados e ruas, tomar contato com os moradores e comerciantes do bairro chinês de Cholon, sempre simpáticos e alegres. Visita ao impressionante Museu de Crimes de Guerra, que expunha os horrores cometidos pela França, Japão e Estados Unidos durante as invasões ao Vietnã. Bem montado e explicado nas diferentes fases, o espaço incluía fotos das atrocidades estadunidenses contra os vietnamitas, em torturas, chacinas, destruições, assassinatos, arrogância imperial. A guilhotina francesa foi utilizada contra o povo vietnamita até fins da década de 1950, quando a França ainda ocupava militarmente o país. Quase 200 anos após a revolução francesa! O museu localizava-se em bairro com ruas arborizadas e parques muito verdes. Famílias de mendigos pediam esmolas, enquanto carros importados circulavam pelas ruas. À saída do museu as ruas lotaram de bicicletas e motos vindas das saídas das escolas.
continua...

domingo, 12 de dezembro de 2010

do Nepal ao Vietnã (parte 5/7)

...continuação
As tailandesas estavam proibidas de frequentar os quartos das pousadas durante a noite. Prevenção hipócrita contra o turismo sexual que se tornou praga na Tailândia. A maioria dos sinais e placas nas ruas estava apenas em tailandês. A fluência na língua inglesa não era comum entre a população. Os tailandeses não se aproximavam para conversar ou mesmo para vender. Eram mais sérios e retraídos que os indianos ou nepaleses.
Passeei pelo mercado de fim de semana na zona norte da cidade. Tailandeses e turistas circulavam pelas barracas. Caminhei sob o sol quente, percorri grandes avenidas, minhocões, vielas, becos estreitos. O aspecto de tudo era moderno e ocidental. Favelas apareciam na margem dos canais fluviais e das ferrovias. Mangas, jacas, melancias eram vendidas nas ruas, cortadas em pedacinhos dentro de sacos plásticos.
A fome bateu. Valia a pena experimentar as comidas tailandesas nas barracas de rua. Quanto mais afastadas de Khao San, mais autênticas. Não havia problemas se os cardápios estavam somente em tailandês. Logo eu decorava os nomes locais. Calculadas para os miúdos tailandeses, as porções pequenas não enchiam a barriga e eu pedia duas para matar a fome. Os principais pratos tinham como base o arroz frito, acompanhado de carnes diversas e legumes, os ensopados de frutos do mar, as frituras de macarrão com legumes e carne. Tudo apimentado na medida certa.
Subi em barco pelo rio Chao Phraia em direção ao centro nervoso da cidade. A região lembrava a avenida Paulista, com vias congestionadas, edifícios altos, executivos apressados, restaurantes com comida rápida ocidental, carrões, lojas chiques.

Não conseguia definir o tipo físico predominante entre os tailandeses. Variavam bastante. Tinha até mulatos e sem olhos amendoados. Os turistas de mais idade, sobretudo oriundos de pacotes, representavam o lado do turismo assumidamente convencional, muitas vezes também sexual.
Passeio sem rumos ao redor de templos budistas e do Grand Palace. Bem distinto dos nepaleses e tibetanos, o complexo expunha torres cobertas de ouro que brilhavam sob a luz do sol. Nos arredores da universidade, próxima das principais atrações da cidade, havia infinidade de ônibus de turismo. Vendedores, nem tão insistentes como na Índia, se aproximavam com conversas sobre vendas, compras, negócios, sociedades, entre outros golpes. Não eram nada simpáticos ou naturais.
Tailandeses e turistas frequentavam os barcos de linha pelo rio. Quando as tailandesas eram bonitas, charmosas, de pele morena, deixavam as turistas loiras ainda mais feias. Não por acaso, estrangeiros acompanhavam putas tailandesas, invariavelmente estereotipadas, vestindo roupas pretas de couro, justas e curtas. Ela morena e com tamanho de bolso, ele loiro e com quase dois metros de altura. A cena patética chamava a atenção de todos. 
O avião decolou de Bancoc rumo ao aeroporto de Yangon, Mianmar. O atendimento na chegada foi simpático e eficiente, apesar da precariedade e simplicidade das instalações. A maioria dos jovens birmaneses vestia sarongues, inclusive o guia que me aguardava no saguão.
Fomos a restaurante dançante e com comidas típicas. Houve apresentação de danças folclóricas birmanesas. Belas mulheres cantavam músicas horríveis, acompanhadas por músicos desafinados. As mulheres, realmente estonteantes, pareciam notar o próprio amadorismo e não escondiam o embaraço no palco. As exibições de mágica beiravam o ridículo e recebiam aplausos frios. Mas a vista dos templos budistas era o brinde especial. Enormes e imponentes cones dourados dos pagodes brilhavam sob a noite estrelada.
Depois do café da manhã, visitei o pagode Shwedagon, o extraordinário templo budista visível de quase toda a cidade. Imenso, cônico, todo dourado, cercado por inúmeros templos menores, dourados, prateados, de madeira, de pedra. A religiosidade era grande e os fiéis lotavam os interiores, rezando, pedindo, agradecendo, trazendo dinheiro, presentes, oferendas.
No lago de Yangon havia festival e corrida de barcos antigos. Circulamos pelas imediações do centro da cidade e ao redor de outro templo de cone dourado. Poucos e velhos veículos ocupavam as ruas largas e arborizadas do centro. Não havia poluição. Nem parecia que a cidade abrigava quatro milhões de habitantes. Nas ruas estreitas abundavam cortiços em prédios de cinco andares com sacada nos apartamentos. O estado de conservação deixava a desejar. Os moradores penduravam roupas e objetos nas sacadas e janelas. Pedintes, sobretudo crianças, imploravam esmolas. Quase não se viam turistas. Então eu virava a atração nas ruas, mercados, praças. Os mais ousados arriscavam saudações curtas.

Os homens usavam camisa social de mangas curtas, sarongue de estampas escuras, chinelos de dedo. Ficavam de cócoras para urinar. Eram mais simpáticos e prestativos que os tailandeses. As mulheres vestiam blusa e sarongues coloridos, normalmente sem estampas. Lembravam as indianas na beleza do rosto e gestos insinuantes. Não deixavam de sorrir quando notadas. Passavam cremes esbranquiçados nas faces, que as protegiam do sol e as deixavam perfumadas.
Andamos pelos mercados e atravessamos o rio Yangon de balsa. Na outra margem apenas barracas de comida, pontos de ônibus, caminhões, trixás para transportar os moradores para vilas mais distantes. Os trixás eram ciclo-riquixás ou riquixás de bicicleta. Levavam dois passageiros, um de costas para outro, ao lado do condutor.
Mianmar era governada com mãos de ferro pelo mesmo militar desde o golpe de Estado em 1989. Mudou o nome do país de Birmânia para Mianmar, em respeito às outras etnias diferentes da birmanesa. Isolou o país do resto do mundo e fechou todas as fronteiras terrestres. A única porta de entrada oficial era a capital, Yangon, somente por avião. O turismo se restringia a menos de um terço da área do país. Entre tantas lendas a respeito do ditador, dizia-se que era muito supersticioso e tinha obsessão pelos números 5 e 9. Daí o kiat, a moeda nacional, possuir notas nos inusitados valores de 9, 15, 45, 90. Excelente ideia para colecionadores. As escolas e a assistência médica eram gratuitas no país. A população pagava apenas os livros e remédios.
Partimos com as bagagens para a estação ferroviária. Sem vagão restaurante no trem noturno, tivemos que comprar bolachas para enganar o estômago. Passava da meia noite quando embarcamos rumo a Mandalay. Confortável e mais lento que os indianos, o trem balançava nas linhas mal conservadas. Não estava lotado e a viagem seguiu tranquila. Ambulantes vendiam comida, frutas, bebidas e doces pelos corredores.
Amanheceu com o trem percorrendo áreas planas. Montanhas se elevavam ao fundo do horizonte. Havia plantações de arroz, girassol, milho. Templos ou pagodes brancos se acumulavam por toda parte. Os vilarejos agrícolas eram pequenos e pobres. As moradias muito simples, com paredes e teto de palha, suspendiam-nas do chão para se protegerem das cobras e enchentes.

Em Mandalay, almoço típico e saboroso que encheu o bucho e levantou o moral.
O parque do Forte e Palácio abundavam de verde, espaço livre, tranquilidade, onde mostraram réplicas do local antes da destruição pelos bombardeios japoneses durante a segunda guerra mundial. Seguimos até o centro da cidade através de avenidas longas, amplas e arborizadas, tudo plano, com centenas de bicicletas pelas ruas. A gostosa confusão se compunha de mercados, feiras, ônibus velhos, trixás.
Vestindo bermudas, em contraste com os sarongues masculinos dos birmaneses, eu me tornei sensação das ruas. Riam de mim, esculachavam, ou apenas se espantavam pela novidade. De traços mais orientais e olhos amendoados, as mulheres sorriam mais que em Yangon, correspondendo abertamente aos olhares, mas somente à distância.
Seguimos de riquixá motorizado, com a carroceria coberta, aos pés da colina de Mandalay. Foram centenas de degraus até o topo da colina, em meio a diversas imagens de Buda. Infinidade de templos na parte alta e baixa. Do alto a visão privilegiada da cidade e arredores. Tempo para contemplar a imensidão e o pôr-do-sol de tonalidades variadas.
Jantar em restaurante de comida simples e saborosa. A maioria das ruas do centro estava sem iluminação pública. Dezenas de barracas espalhadas pelas calçadas, de mesas, bancos, cozinhas singelas, serviam chá e davam toque especial às cenas.
Ao redor de Mandalay, cidadezinhas, antigas capitais que se transformaram em vilarejos pitorescos. Após cruzar a ponte sobre o rio Ayeyarwady, a vila de Sagaing, com a colina ao lado e centenas de templos em cima e nos arredores da montanha. Do alto, vista maravilhosa do rio e vilarejos. Não faltavam as caixas para doações aos templos budistas. Homens, mulheres e pequenos monges pediam dinheiro por toda parte. Parecia que os habitantes trabalhavam e entregavam o dinheiro suado para o comércio da religião. Famílias produziam manualmente potes de barro ou bronze, copos esculpidos de prata, tecidos coloridos para sarongues. Nos atendiam sorridentes, nos ofereciam casa e comida. As moças atacavam com sorrisos insinuantes. Almoçamos comida chinesa, picante e saborosa.
O vilarejo de Amarapura se situava na beira do lago, acolhedor, com casas de bambu e muito verde. Atravessamos o lago pela antiga ponte de madeira até o pitoresco vilarejo de Taungthaman. Não havia eletricidade, apenas cabanas suspensas de bambu cercadas de palmeiras, coqueiros, sombras refrescantes. Os sorridentes e simpáticos moradores teciam artesanato primitivo. Os pagodes brancos não poderiam faltar, inúmeros deles espalhados pela mata. Era delicioso caminhar sob as palmeiras e sorrir para os moradores, que sempre retribuíam. As mulheres, mesmo com o ridículo creme nas bochechas, exibiam muito charme. O guia não passava creme na pele, mas cobria a cabeça e os braços para se proteger do sol. A tez clara era bem-vinda no país, ao contrário da mais escura, provavelmente discriminada.
O local de artesanato em madeira e mármore produzia imagens de Buda. Templos e casas não faltariam para colocá-las. Centenas de imagens de Buda se espalhavam pelo interior dos templos. Desde as minúsculas, com menos de cinco centímetros, até as maiores com mais de trinta metros de altura, geralmente cobertas de outro. Os fiéis se postavam na frente delas, rezando por horas e horas.
As comidas típicas de Mianmar eram galinha, carne de boi, porco ou peixe, mas com o curry separado, para não vir tudo apimentado demais. Também saborosos, a sopa de verduras, espécie de couve ou agrião, os legumes com curry e muito, mas muito mesmo, arroz para acompanhar. Na verdade, o arroz era o principal e os demais itens os acompanhamentos. As sobremesas vinham de doce de tamarindo ou amendoim, frutas da estação.

Exceto a pobre decoração na portaria do hotel, não havia sinais do dia de natal na cidade. Ainda bem.
Fui sozinho à cidade de Bagan, onde dois novos guias me acompanhariam. O caminho até o hotel cruzou extenso sitio arqueológico, com templos e ruínas. A dupla me levou para almoçar em ótimo restaurante.
Bagan era um museu a céu aberto quase a perder de vista. Centenas de pagodes impressionavam pela idade, beleza, imponência, a maioria construída entre os anos 900 e 1200 depois de cristo. Exploramos a área entre inúmeras antiguidades, templos dourados, outros pequenos de madeira ao redor, o com diversas imagens de Buda em arenito, o Ananda, talvez o mais interessante deles, e muitos outros pagodes, mosteiros, ruínas, quase sem pinturas nas paredes e tetos. O terremoto de 1975 e a falta de restaurações comprometiam o estado de conservação da maioria deles. As raras pinturas visíveis mostravam invasores mongóis durante a destruição quase completa da cidade.
Duro de aguentar eram os guias, sobretudo o chefe tagarela. E como falava! Até pedi que fosse mais sucinto. Não teve jeito. Vomitou infinitas estórias de Buda. Discursou um por um os dogmatismos religiosos. Em cada imagem de Buda era meia hora no mínimo de preleções. Repetia, à exaustão, que, segundo o budismo, a vida é um sofrimento, que estamos nessa vida para sofrer. O outro guia era jovem, atrapalhado e inexperiente. Quase não falava.
Mianmar não contava com grande infraestrutura turística e se fechava para o exterior, preservando a pureza cultural, impedindo relações estritamente comerciais com os visitantes. Como em Mandalay, os táxis em Bagan utilizavam charretes puxadas a cavalo.
O pôr-do-sol na margem do rio Ayeyarwady nos presenteou com cores divinamente carregadas. Jantar no mesmo e ótimo restaurante do almoço, com os donos sentados à mesa.
E o sítio arqueológico de Bagan continuava a maravilhar. Diversos e suspeitos buracos no chão apareciam nas redondezas dos templos. O país era tristemente famoso pelas cobras venenosas, figurando entre os primeiros do mundo em acidentes fatais. Os guias batiam os pés antes de entrarmos nos templos para espantá-las. Não vi nenhuma viva, apenas peles ressecadas e rastros recentes. O uso de sandálias, facilitando a retirada para entrar nos templos, aumentava o risco de eventuais acidentes.
continua...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

do Nepal ao Vietnã (parte 4/7)

...continuação
Os vendedores de postais e artesanato eram os reis do grude. Agiam como moscas, não largavam do pé, nos seguindo por quadras e quadras. Não desistiam. As mulheres eram as presas preferidas, pois se descontrolavam, ameaçavam gritar, nos pediam socorro. Pelas ruas, o desfile de indianos dos mais variados, ousando nas roupas, sapatos, cabelos, adornos. Inusitados, indescritíveis. Não era à toa que ocidentais, do tipo bicho-grilo, admiravam, se deliciavam, mergulhavam na cultura indiana. Muitas vezes sem volta. Pelas ruas ou bares da Índia, notei aqueles turistas e aventureiros dos anos 1960 e 1970. Vieram e ficaram. Depois se converteram, perderam as raízes originais, os passaportes, os endereços de casa. Viviam de pequenos expedientes e favores, mendigavam, pálidos, magérrimos. Piraram. E nunca mais voltaram.
O veículo percorreu estradas em terreno plano, menos árido, com árvores nas margens. Nas proximidades de Jodhpur, em pedreiras de arenito bastante depredadas, as mulheres executavam o trabalho pesado, mas vestidas impecavelmente de saris coloridos.
Explorei a parte velha de Jodhpur por entre inúmeros becos, fundições, cravações de bijuterias, pulseiras de laca. Dezenas de casas pintadas de azul indicavam moradias da casta dos brâmanes. Os moradores paravam, assediavam, cumprimentavam. E perguntavam repetidamente o país de origem, nomes, empregos, estados civis, filhos.
Dezembro significava a temporada de casamentos na Índia. Não faltavam enfeites, cavalos mascarados, bandas musicais, roupas coloridas. Pequenos ou grandes cortejos seguiam pelas ruas, acompanhados de música e danças. Levavam o noivo, enfeitado com chapéu e roupas coloridas, em direção à cerimônia. Assim que avistavam estrangeiros, em plena rua, imediatamente convidavam a entrar e participar das danças. Bastava alguém se distrair e eles o carregavam para o meio da festa itinerante.

Hospedagem em antiga residência de marajá, espécie de palacete, belíssimo. Na área social, em meio ao imenso e variado jardim, os bangalôs para os hóspedes, com interiores suntuosos e finamente decorados. Os banheiros, no entanto, sobretudo os chuveiros, deixavam a desejar. Fazia frio suave à noite e a água quente para o banho, como de praxe, continuava apenas promessa.
Seguimos ao forte Mehrangarh nos altos da colina. O acesso era difícil, intencionalmente para defesa, através de rampas sinuosas ligadas por portões pontiagudos que preveniam abordagens de elefantes. Percorri os interiores, as dependências usadas pelos marajás, sala de armas, roupas, pinturas, berços. A arquitetura, interna e externa, impressionava pela imponência e solidez.
Novamente estrada estreita, cruzando rios completamente secos, até o vilarejo de Daspan. Banho, somente com baldes. À noite o jantar típico do Rajastão, bastante apimentado e saboroso, foi servido no chão, sobre as toalhas. Tudo ao ar livre, iluminado com luz de velas e com a presença do proprietário. Fascinante.
Alvorada ao rufar de tambores em sinal do novo amanhecer. Se as instalações deixaram a desejar, a comida e os momentos passados em Daspan valeram e muito a estadia.
Na beira da estrada, o templo de Ranakpur, o maior da religião jain em toda a Índia. Como sempre, sem os sapatos. Recepção profissional pelo religioso responsável, que contou a história do templo, explicou os fundamentos do jainismo e, por fim, pediu contribuições financeiras. Mas o templo era belíssimo, sobretudo os interiores. Construído em mármore, guardava torres, colunas, imagens ricamente trabalhadas. Eram milhares de colunas esculpidas diferentemente entre si. A iluminação natural e os efeitos sobre as formas produziam desenhos e encantos especiais. 
O uso da buzina era como doença na Índia. Nada a ver com agressividade, apenas um fenômeno cultural. Mas beirava à histeria e irritava até não poder mais. Buzinavam sempre e bastante. O motorista de ônibus buzinava até para os pássaros. Na traseira dos caminhões estava escrito a frase “Buzine por favor”.
Em Udaipur, visita ao palácio que, como parece regra na região, era mais valioso por fora. Os diversos cômodos internos ostentavam decoração exagerada. Espelhos, pinturas e vidros exageradamente coloridos. Das janelas, o visual privilegiado da cidade e do lago. Pelos becos da cidade velha, artesãos, cores, cheiros, flagrantes, contatos humanos. Os lagos davam toque especial ao conjunto arquitetônico e humano. Reflexos na água, ilhas com palácios, mulheres lavando roupas ou se banhando em degraus exclusivos. Na volta, mais casamentos com bandas e danças no meio da rua. O noivo, fantasiado e brilhante, ia a cavalo.

De nada adiantava pedir pratos sem pimenta aos garçons. Assentiam e a coisa vinha queimando. Se reclamasse, eles se desculpavam e ficava por isso mesmo. Não era golpe ou desonestidade. Era como pedir comida sem sal. Inconcebível na cultura indiana. O jeito era relaxar e se deliciar. E a pimenta realçava sem encobrir o sabor. Os indianos usam apenas a mão direita para comer. E a mão esquerda para a higiene, como nas linhas férreas após a evacuação.
Foi o dia inteiro no trajeto até Jaipur, pelas estradas acidentadas e sinuosas das montanhas Aravalli, seguidas de trechos mais planos. Na segunda metade da viagem o tráfego se tornou bastante perigoso. Os motoristas abusavam da sorte, infringiam leis, tentavam ultrapassagens arriscadas. Em três oportunidades escapamos por pouco de bater de frente com os caminhões.
Jaipur era grande, confusa, populosa. Cidade indiana legítima. Os moradores, ainda mais que nas outras cidades, grudavam e perguntavam de tudo. Vinham aos montes e não desistiam fácil. A confusão e o fascínio reinavam nas ruas. Trânsito de carros, caminhões, ônibus, bicicletas, riquixás, gente, muita gente, vacas, ovelhas, camelos. Índia de verdade. Visita ao Palácio dos Ventos, Palácio da Cidade, observatório astronômico, museu, a cooperativa de fabricação tapetes e tecidos. Trabalhos bem feitos e de bom gosto. Em Amber, a antiga capital, subi de elefante as íngremes rampas para atingir os portões do palácio. Bem mais confortáveis que os camelos.
Cruzamento da fronteira e entrada no estado de Uthar Pradesh, parando para visitar a cidade inexplicavelmente abandonada de Fatehpur Sikri. Belíssima e com atmosfera calma, a cidade guardava construções em arenito e mesquita imponente em mármore. Fora dos muros da cidade os pentelhos atacaram novamente.
Chegada em Agra no final da tarde. Mais e mais casamentos ocorriam na cidade. Caminhões alegóricos, bandas, cavalos decorados, festas por toda parte. Mas os noivos sobre os cavalos e as noivas nos carros alegóricos raramente sorriam.
Levantei ainda no escuro para o nascer do sol no Taj Mahal. Os ingressos eram mais caros no início da manhã, mas valia e muito a pena assistir aquela maravilha se clareando e mudando o tom das cores. O horror ficava por conta dos turistas dos paises considerados de primeiro mundo. Abusavam da prepotência, desrespeitavam as leis de civilidade, pisavam na grama, instalavam tripés fotográficos em locais proibidos e lá permaneciam impunemente. Outros deles, sem se importar, empurravam e se postavam na frente, tapando a visão. Esgoto imperialista, nada mais.
O Taj Mahal deslumbrava e impunha respeito. Construído em mármore branco, possuía as paredes cravadas com flores de madrepérolas. O vazio interior era compensado pela grandeza e simetria arquitetônica. Permaneci horas por ali, apenas apreciando, contemplando, divagando. Em seguida, o Forte de Agra, que, apesar de semelhante aos anteriores, se apresentava mais completo e mais bem conservado. Das janelas, a visão do Taj Mahal.

À tarde, o cinema, a fim de prestigiar a maior indústria cinematográfica do mundo. O filme misturou comédia de erros, chanchada amorosa e musical. Tudo exagerado. Roupas, expressões, cores representaram tentativas frustradas de ocidentalização.  Naturalmente bonitas e sensuais, as atrizes indianas transformaram-se, no filme, em peruas ridículas, vestidas com roupas de cabaré. O moralismo não dava margens a beijos ou carinhos além dos limites. A plateia ria a batia palmas nas cenas cômicas. A maioria escolhia lugares perto de estrangeiros e prestavam atenção em tudo, menos no filme.
Longo trajeto de trem, em conforto e segurança, sobretudo se comparada com as rodovias estreitas e os motoristas imprudentes. Desembarcamos na distante estação ferroviária de Varanasi. Depois ônibus e percorrer parte da terrível rodovia que liga o Paquistão a Bangladesh, o famigerado Grande Tronco. O trânsito pesado e enfurecido virou pesadelo até chegarmos à cidade.
Andanças pelos degraus (ghats) na margem do rio Ganges. Pessoas se banhavam, se benziam nas águas, lavavam roupas. Havia serviços de barbeiro, massagistas, meditação, bênçãos. As cremações em série nos degraus reservados levantavam fumaça e deixavam cheiro de carne tostada. Cobertos com pano colorido, os corpos dos mortos vinham acompanhados de madeira, manteiga inflamável e dos demais acessórios pagos pela família. Apenas os homens participavam da cerimônia da cremação. A qualidade da madeira e acessórios variava conforme o poder aquisitivo da família. O sândalo era a madeira preferida dos ricos.
Local sagrado para os hindus, Varanasi atraía gente de todo a Índia, sobretudo os doentes, idosos ou os que se sentiam próximos da morte. Os tipos mais variados e chamativos perambulavam, com roupas e comportamentos ímpares. Permanecer por horas nos degraus da margem do rio era oportunidade única de apreciar essa constelação de seres humanos. Em seguida, os becos estreitos, casas, bazares da cidade velha. Os vendedores das lojas eram persistentes. Se alguém olhasse ou demonstrasse interesse por uma mercadoria, mesmo que apenas de esguelha, eles atacavam. Ofereciam peças e mais peças. Não desistiam, chegando a acompanhar o potencial cliente por vários quarteirões. Eram duros na queda. Suspensas um metro acima da calçada, as lojas não possuíam cadeiras ou mesas. Os donos, vendedores e clientes se estendiam no chão acolchoado e ali negociavam. Não havia pressa. O importante era negociar, pechinchar, conversar. Vez ou outra, a loja servia chá e petiscos para dourar o momento.
As vacas de Varanasi eram maiores que as de outras cidades. Em local tão sagrado eram ainda mais sagradas. Tigelas enormes ferviam o leite que, depois de esfriado e descansado, tornava-se coalhada saborosa. Eu comprava diretamente nas calçadas, oferecida em cuias de barro. Depois de usadas, as espatifava na sarjeta, para serem levadas pela água e transformadas em barro novamente. Higiene total. Ecologicamente perfeito. Simples e fácil. Homens de mãos dadas compunham cenas comuns nas ruas e praças, não gerando motivos para eventuais malícias ou preconceitos.
Madruguei para pegar o barco e assistir ao nascer do sol no rio Ganges. Das águas vi os hindus se banharem, orarem, se abençoarem nas águas frias e sagradas. A manhã de dezembro gelava e pedia agasalhos. Uma vaca morta boiava rio abaixo. Havia degraus específicos para cagar. De cócoras, eles faziam a maior força para tirar o peso da consciência, com o inseparável balde com a água sagrada na mão esquerda. Muitos escovavam os dentes com os dedos ou com pequenos pedaços de madeira.

Embarquei à tarde no trem para Delhi. O vagão tinha bancos fixos em vez de camas. As horas correram confortáveis e silenciosas.
A Índia fascinou tremendamente naquelas poucas semanas e mereceria explorações mais demoradas e detalhadas por todo o país, percorrendo estado por estado, sem pressa, degustando, na base do se está bom fica, se está ruim vai. E essa experiência viria a acontecer anos depois.
Embora chegasse ao aeroporto de Delhi mais de duas horas antes, não consegui embarcar. O indiano do balcão comunicou aos berros que o avião lotara. De nada adiantou mostrar minhas confirmações do voo. Formou-se tumulto, todos alegavam prioridade, mas não houve jeito. Estava diante de ação muito comum das companhias aéreas. A empresa tailandesa vendera mais assentos que a capacidade do avião. Passava das 3 horas da madrugada quando entrei no quarto luxuoso do hotel a que tinha direito nessas situações. Somente assim para eu me hospedar em hotel cinco estrelas. Pelo menos dormi bem na imensa cama de casal.
A recepção me acordou no meio do dia seguinte. Entreguei o bilhete e aguardei a devolução e confirmação do novo horário. Comi muito e bem. O bufê 24 horas no hotel garantiu comida saborosa e farta.
E entrei no avião rumo à Tailândia. Desembarquei na tórrida Bancoc pela manhã, mas somente consegui sair do aeroporto duas horas depois. Dentro do táxi enfrentei o famigerado e engarrafado trânsito até a pousada. Encarei quarto básico e pequeno, com cama de solteiro, ventilador, banheiro coletivo no fundo do corredor. A fechadura da porta do quarto saía na minha mão quando tentava abri-la.
Khao San, a região das pousadas em Bancoc, era reduto de turistas previsíveis e convencionais posando de alternativos. Além de pousadas baratas, dezenas de restaurantes, bares, livrarias, lojas, agências de viagens. Ambulantes vendiam relógios, artigos de seda, óculos, equipamentos de som, fitas, carteiras de estudante, roupas, entre outros itens, todos falsos. Legitimamente falsos. O ambiente das redondezas era desagradável, ocidentalizado, nada tailandês. As músicas de sempre embalavam australianos, europeus e estadunidenses, comumente chapados. Exibiam expressões arrogantes como se fossem muito vividos e experientes na vida. Bares esfumaçados, rock no último volume, vídeos com filmes estadunidenses, muito álcool. Nada de Tailândia ou Ásia. Turistas saíam das vidinhas nos respectivos países, deixavam a rotina, viajavam milhares de quilômetros, gastavam dinheiro, mas construíam um mundo igual ao de origem.
continua...

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

do Nepal ao Vietnã (parte 3/7)

...continuação
Embarquei em riquixá rumo a Pashupatinah, um complexo de templos hindus em meio a caminhos por entre as árvores. Ao lado, o afluente do rio Ganges e, por isso, sagrado. Os fiéis se banhavam nas águas sujas. Corpos eram cremados nas margens. A cena impressionava e impunha respeito. Fotografias não eram bem vistas. A arrogância dos gringos loiros pressionava os obturadores mesmo assim. Assisti os rituais da outra margem do rio. Saris, flores, essências em pó ou liquido, criavam marcante contraste de cores nas escadarias. Sadus perambulavam pelos templos, pintados, sujos e seminus, pedindo contribuições ou comida. Dezenas de macacos circulavam entre as árvores e nas escadarias da margem do rio.
Outro riquixá para Bodnath, templo budista dotado de estupa grande, circular, com detalhes em ouro. Inúmeras lojas de artigos religiosos e lembranças turísticas se aglomeravam ao redor.
Momento de ir à barbearia. Só havia uma cadeira disponível e cada um assistia o corte do outro. Após dar cabo da barba de vinte dias, o barbeiro iniciava sessão de massagem da barriga para cima. Eram pancadas com a frente e as costas das mãos, puxadas musculares, torções do pescoço, esticadas para lá e para cá. Divertido demais para quem recebia ou assistia.
As nepalesas do tipo indiano humilhavam as turistas pela beleza de rosto e corpo, pele morena, cabelos longos e negros, charme e sensualidade.

A cidade de Baktapur, perto da capital, restringia a circulação de veículos motorizados nas ruas. Sorte dela e dos visitantes. Andar pelos becos e ruas estreitas da cidade era verdadeira viagem no tempo. Calmaria, templos hindus, construções antigas com portas e janelas finamente trabalhadas em madeira. Secagem de arroz ao sol, teares manuais produziam belas peças. Mães banhavam os filhos na rua. Grupos de amigos e familiares se reuniam sob as sombras para conversar e esperar o tempo passar, sem pressa. Parecia que nada mudara em séculos. Nem precisaria.
E veio o dia de deixar o Nepal.
O atrasado embarque para a Índia só aconteceu à tarde. Achei melhor reservar táxi e hotel logo no saguão do aeroporto de Delhi. O taxista ainda alegou isso e aquilo para me fazer mudar de ideia. E, ao me conduzir a hotel diferente do escolhido, suplicava, com ares de ator canastrão, para que eu aceitasse a generosa sugestão. Permanecemos ali durante meia hora, enquanto ele se fingia de vítima. Após concluir que eu não arredaria pé, baixou a cabeça, exagerou no gesto dramático e, muito sentido, me conduziu finalmente ao hotel que eu reservara. Tentou ainda me enrolar ali no desembarque e, com expressão entristecida, fechou a porta do carro e nem se despediu. Péssimo ator.
Saí à procura de comida. Caminhei pelas regiões do Bazar central, estação ferroviária, arredores da parte velha da cidade.
Bastava encontrar um ponto na calçada e simplesmente observar a fascinante bagunça da velha Delhi. Havia de tudo. Homens tomando banho na sarjeta, barbearias ao ar livre, mictórios na calçada, veículos, vacas, outros animais, cargas, bicicletas, motos, lojas, ambulantes, barracas de comida. Gente, muita gente. O chão parecia tremer de tanta gente. Eventualmente um elefante passava com alguém no lombo. A síntese da Índia se revelava da esquina. Louca, confusa, barulhenta, suja, velha, mas extremamente interessante. Difícil descrever. Consertos de dentadura, comidas das mais variadas oferecidas nas calçadas, oficinas, passadores de roupas, mais animais, mais gente. Não sabia para onde olhar. Tudo fascinava.
Segui ao Forte Vermelho, enorme complexo de fortificações, construções de mármore, jardins, mesquitas. Passei pela enorme mesquita Jami Masjial. Tentei seguir adiante, variar o caminho de volta, mas me perdi nos becos. Demorei horas para saber onde estava e como sair dali. Os tipos físicos nas ruas eram dos mais diferenciados. Ninguém se parecia com ninguém. Raramente havia semelhança de rostos, cabelos, roupas, cor da pele, corpos, estaturas. Mas me olhavam intensamente. Suspendiam o que faziam, interrompiam as conversas, deixavam de engolir a comida, paravam as bicicletas, deixavam a carga no chão, se viravam.

Caminhei pela parte nova de Delhi. Pontos de artesanato, parques, lojas variadas, livrarias, prédios públicos, bancos, restaurantes, hotéis. Do imenso círculo central saiam avenidas radiais que cortavam as circulares. No meio do círculo, jardins, gramados e bancos para tentar relaxar. Impossível. Os indianos apareciam aos montes e assediavam sem dó nem piedade. Consertavam ou lustravam calçados, limpavam ouvidos, massageavam, analisavam a sorte, vendiam, pediam. Muito insistentes, eles perguntavam a minha vida inteira. À minha resposta sobre de onde eu era, repetiam automaticamente que eu vinha de lugar muito bom. Queriam saber a idade, quanto tempo na Índia, por quanto tempo ficaria, se eu estava gostando, perguntavam sobre casamento, filhos, nome do pai, profissão, salário. E insistiam, insistiam, insistiam. O limpador de ouvidos me forçou a ler uma caderneta, onde havia recomendações positivas dos serviços, escritas por pessoas das mais variadas nacionalidades, em diversas línguas. Nelas, os “clientes” teciam elogios ao método infalível contra cera no ouvido. Tratava-se de longa haste de metal com o tufo de algodão da ponta retirado de maçaroca do bolso da calça. Enquanto o indivíduo me mostrava os elogios escritos, se posicionava ao meu lado e apontava a haste em direção a minha orelha. Insistia muito. Não havia como relaxar. Descansar, somente no quarto do hotel.
As vassouras não tinham cabo na Índia e Nepal. Quem as usava era obrigado a se abaixar e permanecer assim durante a limpeza. A impressão era que tudo na Índia era antigo e velho.
O restante do grupo aterrissara na cidade na noite anterior. Despertar antes do amanhecer para tomar o trem a Ajmer. As margens das ferrovias, pelas manhãs, se enchiam de indianos que cagavam de costas para os trens. Com eles, a lata de água para a higiene das partes, sempre executada com a mão esquerda. Não era um ou dois, mas dezenas deles, enfileirados próximos às dormentes, de cócoras, na espera da saída diária dos produtos orgânicos. Não se importavam com a passagem dos trens. Nada faziam de anormal. Ao contrário. Como eles próprios afirmavam:
“a vergonha está em quem olha e não em quem faz”.
A paisagem vista pela janela do trem era plana e cultivada, com raros e pequenos serrotes. Camelos substituíam os bois ou cavalos. O ônibus velho nos pegou na estação ferroviária de Ajmer levando à cidade de Pushkar.
Local sagrado do hinduismo, Pushkar se estendia à beira de grande lago e aos pés de pequenas serras. Contava com seqüência de templos e escadarias, cujos degraus (ghats) desciam às águas do lago. A cor branca predominava em tudo. As escadas eram usadas para as cerimônias religiosas e cremações.
Antes de clarear, e sem os sapatos, eu estava nos degraus para assistir os hindus se benzerem nas águas do lago sagrado. Os brâmanes, religiosos pertencentes à casta mais alta no hinduísmo, cobravam aos turistas pelo ritual de purificação, o pujat. Nem pensar! O nascer do sol, refletido nas águas do lago, valorizava o momento reflexivo. Caminhei pelas ruas e becos atrás dos templos. Por ali circulavam pessoas coloridas, esquisitas, vacas, camelos. À tarde subida ao topo do morro nas proximidades da cidade, onde havia o templo em homenagem à mulher do Brahma. Do alto, impressionava a vista de Puskar, de outras pequenas serras, do deserto enevoado a oeste.
A maioria dos moradores de Pushkar era simpática e sorridente. A exceção ficava por conta da insistência das crianças, que pediam dinheiro e caneta, e dos vendedores de instrumentos de corda, que demonstravam lentamente os sons. Nunca desistiam. Além da arquitetura, o que mais se destacava eram as cores fortes das roupas das mulheres e dos turbantes dos homens, estes invariavelmente exibindo enormes e cuidados bigodes.

Durante a noite, soaram percussões e cantos, vindos da região dos templos, ecoando por toda a cidade.
Muitas horas de ônibus por estradas asfaltadas e estreitas, cortando regiões cada vez mais desérticas, com arbustos esparsos, veados com dois longos chifres, aves semelhantes às codornas. Almoço na cidade de Nagaur, em hotel sujo, mas com comida típica e comível.
Acampamento em Jambha, dentro da velha fortificação. Antes do jantar, o dono do pedaço providenciou espetáculo musical e dançante, com tambores e algo similar à sanfona. As dançarinas, em trajes típicos do Rajastão, se requebravam em movimentos sensuais dos quadris e das mãos. Pareciam trejeitos de cobras. A noite estava limpa e estrelada. Morcegos e grilos, que mais lembravam baratas, voavam baixo.
Pela manhã, montados em camelos, adentramos o deserto de Thar por quase sete horas. No caminho visita à pequena aldeia muçulmana, cujas cabanas cobertas de palha, construídas em areia e barro de cor ocre, eram decoradas com pinturas nas paredes. Os poços para obtenção de água subterrânea se restringiam às propriedades ricas. Nas demais as cacimbas faziam o papel de reservatórios de água. Almoço sem pressa em oásis, ao lado de centenas de camelos descansando e se hidratando. E adoravam se deitar ou se esfregar na areia. Vez ou outra namoravam e mantinham relações sexuais.
Os camelos nunca corriam, raramente trotavam, andavam lentamente. Eu os montava apenas quando agachados. Levantavam as pernas traseiras, inclinando-se totalmente para frente e, somente então, levantavam as pernas dianteiras. Entre essas duas etapas, eu tinha a impressão que despencaria de cima deles. No momento do desmonte, a situação era invertida, mas a sensação de queda iminente permanecia.
As mulheres optaram por serem acompanhadas do condutor, montado atrás delas. Um deles molestou uma delas e foi logo substituído. E o dito cujo estava prometido para casamento, cuja noiva ele vira apenas uma vez, por meia hora. Estava com 16 anos e a veria novamente só daí a cinco anos, na cerimônia de casamento.
Nas paradas, os indianos formavam roda e não se cansavam de nos observar, perguntar o país de origem, os nomes e muito mais. Os olhares eram fixos e cheios de curiosidade. Enfileirada e sobre os camelos ao entardecer, a expedição formava sombras na areia que lembravam as antigas caravanas pelos desertos.
O deserto de Thar não era somente areia. Contava com musgos, arbustos e árvores isoladas de médio porte. Espinhos pontiagudos não faltavam. O calor era suportável, ao contrário do sol, implacável. O pavão, símbolo do Rajastão, perambulava pelas areias, nas quais os buracos constantes indicavam a presença de grandes roedores.

Acampamento no final da tarde no meio das dunas. E os camelos ao lado. O pôr-do-sol foi de cair o queixo e a noite estrelada parecia tocar os rostos. Inesquecível. Jantar farto e saboroso em meio às fogueiras acesas. Depois apresentações musicais e de dança executada pelos guias e os ajudantes de camelos.
Antes de dormir, o guia alertou sobre a possível presença de escorpiões. Verifiquei com cuidado e não vi nenhum perto da barraca ou dentro das botas.
O nascer do sol no acampamento foi espetacular. A bola de fogo se ergueu atrás das dunas no fundo do horizonte.
Retorno cedo por caminho diferente e mais curto que o anterior. O sol pegou forte. No meio do percurso, passagem por escola rural. Os alunos, crianças e adolescentes, rezavam em público sob a disciplina férrea. O responsável pelo bom andamento da cerimônia circulava com pedaço de pau e o usava nas costas dos indisciplinados. Antes de meio-dia eu desmontava do camelo em Jambha, com as pernas abertas e doloridas, a bunda achatada. Mas feliz pela expedição inusitada.
Ônibus rumo à cidade de Jaisalmer, ainda no deserto de Thar.
O hotel ficava na parte interna da cidade murada, um forte construído no século XII. Apesar de bonito e bem decorado, com arquitetura fiel à época e com vista privilegiada da cidade fora da fortificação, o hotel era mal administrado e com serviços de espelunca. As instalações estavam apodrecidas, o banheiro caindo aos pedaços, com vazamentos, sem água quente. Em minha segunda viagem à Índia, eu aprenderia que, quanto mais aparência e suntuosidade, maior a decepção com os hotéis indianos. Viajando por conta própria era melhor se hospedar em hotéis simples, com banheiro no quarto, mas sem frescuras ilusórias. Muito mais baratos, a qualidade interna deles correspondia ao aspecto externo. Sem falsas expectativas, se conseguia bons lugares a preços justos.
Pela manhã passeio pelas ruelas e construções internas do forte. Visita ao complexo de templos da religião jain. Belíssimos, limpos, ricamente trabalhados. Mas os religiosos cobravam para fotografar os interiores. Praticamente todas as construções dali e a maioria das casas antigas, chamadas havellis, e datadas do século XVII, na parte externa eram em arenito finamente trabalhadas, com figuras, treliças, imagens, portas, janelas, sacadas. Tudo em rocha. Os desenhos impressionavam pelos detalhes e mais pareciam feitos em madeira. Ao redor do forte, Jaisalmer comportava o principal dos estabelecimentos comerciais, o grosso do movimento.
continua...