sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

do Nepal ao Vietnã (parte 4/7)

...continuação
Os vendedores de postais e artesanato eram os reis do grude. Agiam como moscas, não largavam do pé, nos seguindo por quadras e quadras. Não desistiam. As mulheres eram as presas preferidas, pois se descontrolavam, ameaçavam gritar, nos pediam socorro. Pelas ruas, o desfile de indianos dos mais variados, ousando nas roupas, sapatos, cabelos, adornos. Inusitados, indescritíveis. Não era à toa que ocidentais, do tipo bicho-grilo, admiravam, se deliciavam, mergulhavam na cultura indiana. Muitas vezes sem volta. Pelas ruas ou bares da Índia, notei aqueles turistas e aventureiros dos anos 1960 e 1970. Vieram e ficaram. Depois se converteram, perderam as raízes originais, os passaportes, os endereços de casa. Viviam de pequenos expedientes e favores, mendigavam, pálidos, magérrimos. Piraram. E nunca mais voltaram.
O veículo percorreu estradas em terreno plano, menos árido, com árvores nas margens. Nas proximidades de Jodhpur, em pedreiras de arenito bastante depredadas, as mulheres executavam o trabalho pesado, mas vestidas impecavelmente de saris coloridos.
Explorei a parte velha de Jodhpur por entre inúmeros becos, fundições, cravações de bijuterias, pulseiras de laca. Dezenas de casas pintadas de azul indicavam moradias da casta dos brâmanes. Os moradores paravam, assediavam, cumprimentavam. E perguntavam repetidamente o país de origem, nomes, empregos, estados civis, filhos.
Dezembro significava a temporada de casamentos na Índia. Não faltavam enfeites, cavalos mascarados, bandas musicais, roupas coloridas. Pequenos ou grandes cortejos seguiam pelas ruas, acompanhados de música e danças. Levavam o noivo, enfeitado com chapéu e roupas coloridas, em direção à cerimônia. Assim que avistavam estrangeiros, em plena rua, imediatamente convidavam a entrar e participar das danças. Bastava alguém se distrair e eles o carregavam para o meio da festa itinerante.

Hospedagem em antiga residência de marajá, espécie de palacete, belíssimo. Na área social, em meio ao imenso e variado jardim, os bangalôs para os hóspedes, com interiores suntuosos e finamente decorados. Os banheiros, no entanto, sobretudo os chuveiros, deixavam a desejar. Fazia frio suave à noite e a água quente para o banho, como de praxe, continuava apenas promessa.
Seguimos ao forte Mehrangarh nos altos da colina. O acesso era difícil, intencionalmente para defesa, através de rampas sinuosas ligadas por portões pontiagudos que preveniam abordagens de elefantes. Percorri os interiores, as dependências usadas pelos marajás, sala de armas, roupas, pinturas, berços. A arquitetura, interna e externa, impressionava pela imponência e solidez.
Novamente estrada estreita, cruzando rios completamente secos, até o vilarejo de Daspan. Banho, somente com baldes. À noite o jantar típico do Rajastão, bastante apimentado e saboroso, foi servido no chão, sobre as toalhas. Tudo ao ar livre, iluminado com luz de velas e com a presença do proprietário. Fascinante.
Alvorada ao rufar de tambores em sinal do novo amanhecer. Se as instalações deixaram a desejar, a comida e os momentos passados em Daspan valeram e muito a estadia.
Na beira da estrada, o templo de Ranakpur, o maior da religião jain em toda a Índia. Como sempre, sem os sapatos. Recepção profissional pelo religioso responsável, que contou a história do templo, explicou os fundamentos do jainismo e, por fim, pediu contribuições financeiras. Mas o templo era belíssimo, sobretudo os interiores. Construído em mármore, guardava torres, colunas, imagens ricamente trabalhadas. Eram milhares de colunas esculpidas diferentemente entre si. A iluminação natural e os efeitos sobre as formas produziam desenhos e encantos especiais. 
O uso da buzina era como doença na Índia. Nada a ver com agressividade, apenas um fenômeno cultural. Mas beirava à histeria e irritava até não poder mais. Buzinavam sempre e bastante. O motorista de ônibus buzinava até para os pássaros. Na traseira dos caminhões estava escrito a frase “Buzine por favor”.
Em Udaipur, visita ao palácio que, como parece regra na região, era mais valioso por fora. Os diversos cômodos internos ostentavam decoração exagerada. Espelhos, pinturas e vidros exageradamente coloridos. Das janelas, o visual privilegiado da cidade e do lago. Pelos becos da cidade velha, artesãos, cores, cheiros, flagrantes, contatos humanos. Os lagos davam toque especial ao conjunto arquitetônico e humano. Reflexos na água, ilhas com palácios, mulheres lavando roupas ou se banhando em degraus exclusivos. Na volta, mais casamentos com bandas e danças no meio da rua. O noivo, fantasiado e brilhante, ia a cavalo.

De nada adiantava pedir pratos sem pimenta aos garçons. Assentiam e a coisa vinha queimando. Se reclamasse, eles se desculpavam e ficava por isso mesmo. Não era golpe ou desonestidade. Era como pedir comida sem sal. Inconcebível na cultura indiana. O jeito era relaxar e se deliciar. E a pimenta realçava sem encobrir o sabor. Os indianos usam apenas a mão direita para comer. E a mão esquerda para a higiene, como nas linhas férreas após a evacuação.
Foi o dia inteiro no trajeto até Jaipur, pelas estradas acidentadas e sinuosas das montanhas Aravalli, seguidas de trechos mais planos. Na segunda metade da viagem o tráfego se tornou bastante perigoso. Os motoristas abusavam da sorte, infringiam leis, tentavam ultrapassagens arriscadas. Em três oportunidades escapamos por pouco de bater de frente com os caminhões.
Jaipur era grande, confusa, populosa. Cidade indiana legítima. Os moradores, ainda mais que nas outras cidades, grudavam e perguntavam de tudo. Vinham aos montes e não desistiam fácil. A confusão e o fascínio reinavam nas ruas. Trânsito de carros, caminhões, ônibus, bicicletas, riquixás, gente, muita gente, vacas, ovelhas, camelos. Índia de verdade. Visita ao Palácio dos Ventos, Palácio da Cidade, observatório astronômico, museu, a cooperativa de fabricação tapetes e tecidos. Trabalhos bem feitos e de bom gosto. Em Amber, a antiga capital, subi de elefante as íngremes rampas para atingir os portões do palácio. Bem mais confortáveis que os camelos.
Cruzamento da fronteira e entrada no estado de Uthar Pradesh, parando para visitar a cidade inexplicavelmente abandonada de Fatehpur Sikri. Belíssima e com atmosfera calma, a cidade guardava construções em arenito e mesquita imponente em mármore. Fora dos muros da cidade os pentelhos atacaram novamente.
Chegada em Agra no final da tarde. Mais e mais casamentos ocorriam na cidade. Caminhões alegóricos, bandas, cavalos decorados, festas por toda parte. Mas os noivos sobre os cavalos e as noivas nos carros alegóricos raramente sorriam.
Levantei ainda no escuro para o nascer do sol no Taj Mahal. Os ingressos eram mais caros no início da manhã, mas valia e muito a pena assistir aquela maravilha se clareando e mudando o tom das cores. O horror ficava por conta dos turistas dos paises considerados de primeiro mundo. Abusavam da prepotência, desrespeitavam as leis de civilidade, pisavam na grama, instalavam tripés fotográficos em locais proibidos e lá permaneciam impunemente. Outros deles, sem se importar, empurravam e se postavam na frente, tapando a visão. Esgoto imperialista, nada mais.
O Taj Mahal deslumbrava e impunha respeito. Construído em mármore branco, possuía as paredes cravadas com flores de madrepérolas. O vazio interior era compensado pela grandeza e simetria arquitetônica. Permaneci horas por ali, apenas apreciando, contemplando, divagando. Em seguida, o Forte de Agra, que, apesar de semelhante aos anteriores, se apresentava mais completo e mais bem conservado. Das janelas, a visão do Taj Mahal.

À tarde, o cinema, a fim de prestigiar a maior indústria cinematográfica do mundo. O filme misturou comédia de erros, chanchada amorosa e musical. Tudo exagerado. Roupas, expressões, cores representaram tentativas frustradas de ocidentalização.  Naturalmente bonitas e sensuais, as atrizes indianas transformaram-se, no filme, em peruas ridículas, vestidas com roupas de cabaré. O moralismo não dava margens a beijos ou carinhos além dos limites. A plateia ria a batia palmas nas cenas cômicas. A maioria escolhia lugares perto de estrangeiros e prestavam atenção em tudo, menos no filme.
Longo trajeto de trem, em conforto e segurança, sobretudo se comparada com as rodovias estreitas e os motoristas imprudentes. Desembarcamos na distante estação ferroviária de Varanasi. Depois ônibus e percorrer parte da terrível rodovia que liga o Paquistão a Bangladesh, o famigerado Grande Tronco. O trânsito pesado e enfurecido virou pesadelo até chegarmos à cidade.
Andanças pelos degraus (ghats) na margem do rio Ganges. Pessoas se banhavam, se benziam nas águas, lavavam roupas. Havia serviços de barbeiro, massagistas, meditação, bênçãos. As cremações em série nos degraus reservados levantavam fumaça e deixavam cheiro de carne tostada. Cobertos com pano colorido, os corpos dos mortos vinham acompanhados de madeira, manteiga inflamável e dos demais acessórios pagos pela família. Apenas os homens participavam da cerimônia da cremação. A qualidade da madeira e acessórios variava conforme o poder aquisitivo da família. O sândalo era a madeira preferida dos ricos.
Local sagrado para os hindus, Varanasi atraía gente de todo a Índia, sobretudo os doentes, idosos ou os que se sentiam próximos da morte. Os tipos mais variados e chamativos perambulavam, com roupas e comportamentos ímpares. Permanecer por horas nos degraus da margem do rio era oportunidade única de apreciar essa constelação de seres humanos. Em seguida, os becos estreitos, casas, bazares da cidade velha. Os vendedores das lojas eram persistentes. Se alguém olhasse ou demonstrasse interesse por uma mercadoria, mesmo que apenas de esguelha, eles atacavam. Ofereciam peças e mais peças. Não desistiam, chegando a acompanhar o potencial cliente por vários quarteirões. Eram duros na queda. Suspensas um metro acima da calçada, as lojas não possuíam cadeiras ou mesas. Os donos, vendedores e clientes se estendiam no chão acolchoado e ali negociavam. Não havia pressa. O importante era negociar, pechinchar, conversar. Vez ou outra, a loja servia chá e petiscos para dourar o momento.
As vacas de Varanasi eram maiores que as de outras cidades. Em local tão sagrado eram ainda mais sagradas. Tigelas enormes ferviam o leite que, depois de esfriado e descansado, tornava-se coalhada saborosa. Eu comprava diretamente nas calçadas, oferecida em cuias de barro. Depois de usadas, as espatifava na sarjeta, para serem levadas pela água e transformadas em barro novamente. Higiene total. Ecologicamente perfeito. Simples e fácil. Homens de mãos dadas compunham cenas comuns nas ruas e praças, não gerando motivos para eventuais malícias ou preconceitos.
Madruguei para pegar o barco e assistir ao nascer do sol no rio Ganges. Das águas vi os hindus se banharem, orarem, se abençoarem nas águas frias e sagradas. A manhã de dezembro gelava e pedia agasalhos. Uma vaca morta boiava rio abaixo. Havia degraus específicos para cagar. De cócoras, eles faziam a maior força para tirar o peso da consciência, com o inseparável balde com a água sagrada na mão esquerda. Muitos escovavam os dentes com os dedos ou com pequenos pedaços de madeira.

Embarquei à tarde no trem para Delhi. O vagão tinha bancos fixos em vez de camas. As horas correram confortáveis e silenciosas.
A Índia fascinou tremendamente naquelas poucas semanas e mereceria explorações mais demoradas e detalhadas por todo o país, percorrendo estado por estado, sem pressa, degustando, na base do se está bom fica, se está ruim vai. E essa experiência viria a acontecer anos depois.
Embora chegasse ao aeroporto de Delhi mais de duas horas antes, não consegui embarcar. O indiano do balcão comunicou aos berros que o avião lotara. De nada adiantou mostrar minhas confirmações do voo. Formou-se tumulto, todos alegavam prioridade, mas não houve jeito. Estava diante de ação muito comum das companhias aéreas. A empresa tailandesa vendera mais assentos que a capacidade do avião. Passava das 3 horas da madrugada quando entrei no quarto luxuoso do hotel a que tinha direito nessas situações. Somente assim para eu me hospedar em hotel cinco estrelas. Pelo menos dormi bem na imensa cama de casal.
A recepção me acordou no meio do dia seguinte. Entreguei o bilhete e aguardei a devolução e confirmação do novo horário. Comi muito e bem. O bufê 24 horas no hotel garantiu comida saborosa e farta.
E entrei no avião rumo à Tailândia. Desembarquei na tórrida Bancoc pela manhã, mas somente consegui sair do aeroporto duas horas depois. Dentro do táxi enfrentei o famigerado e engarrafado trânsito até a pousada. Encarei quarto básico e pequeno, com cama de solteiro, ventilador, banheiro coletivo no fundo do corredor. A fechadura da porta do quarto saía na minha mão quando tentava abri-la.
Khao San, a região das pousadas em Bancoc, era reduto de turistas previsíveis e convencionais posando de alternativos. Além de pousadas baratas, dezenas de restaurantes, bares, livrarias, lojas, agências de viagens. Ambulantes vendiam relógios, artigos de seda, óculos, equipamentos de som, fitas, carteiras de estudante, roupas, entre outros itens, todos falsos. Legitimamente falsos. O ambiente das redondezas era desagradável, ocidentalizado, nada tailandês. As músicas de sempre embalavam australianos, europeus e estadunidenses, comumente chapados. Exibiam expressões arrogantes como se fossem muito vividos e experientes na vida. Bares esfumaçados, rock no último volume, vídeos com filmes estadunidenses, muito álcool. Nada de Tailândia ou Ásia. Turistas saíam das vidinhas nos respectivos países, deixavam a rotina, viajavam milhares de quilômetros, gastavam dinheiro, mas construíam um mundo igual ao de origem.
continua...

4 comentários:

  1. impressionante sua narrativa: descritiva, detalhada e envolvente. Viajei junto, parabéns. Marcela.

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  2. Oi Marcela, obrigado pelo comentários.
    Fique à vontade para ler e comentar os outros relatos de minhas viagens pelos interiores do Brasil e por outros países da América, Europa, Ásia.
    Sua visita será sempre bem-vinda.
    Abraços!

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  3. Impressionada pela beleza da arquitetura, você consegue colocar de modo simples e claro, sem anular a grandiosidade da obra, como, o Taj Mahal deslumbrava e impunha respeito.Fico imaginando, deve ser deslumbrante.
    Gostei das mulheres com seus saris coloridos e impecáveis, nós mulheres arrasamos em qualquer raça. Risos.
    Viajando.

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  4. E que amanhecer naquele dia, Ivete, alterando as cores do Taj!
    As mulheres indianas, realmente, arrasam dentro dos saris. Se não fosse o abismo cultural, eu teria me perdido por lá rssss.
    Continue...

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