...continuação
Os vendedores de postais e artesanato eram os reis do
grude. Agiam como moscas, não largavam do pé, nos seguindo por quadras e
quadras. Não desistiam. As mulheres eram as presas preferidas, pois se
descontrolavam, ameaçavam gritar, nos pediam socorro. Pelas ruas, o desfile de
indianos dos mais variados, ousando nas roupas, sapatos, cabelos, adornos.
Inusitados, indescritíveis. Não era à toa que ocidentais, do tipo bicho-grilo,
admiravam, se deliciavam, mergulhavam na cultura indiana. Muitas vezes sem
volta. Pelas ruas ou bares da Índia, notei aqueles turistas e aventureiros dos
anos 1960 e 1970. Vieram e ficaram. Depois se converteram, perderam as raízes
originais, os passaportes, os endereços de casa. Viviam de pequenos expedientes
e favores, mendigavam, pálidos, magérrimos. Piraram. E nunca mais voltaram.
O veículo percorreu estradas em terreno plano, menos
árido, com árvores nas margens. Nas proximidades de Jodhpur, em pedreiras de
arenito bastante depredadas, as mulheres executavam o trabalho pesado, mas
vestidas impecavelmente de saris coloridos.
Explorei a parte velha de Jodhpur por entre inúmeros
becos, fundições, cravações de bijuterias, pulseiras de laca. Dezenas de casas
pintadas de azul indicavam moradias da casta dos brâmanes. Os moradores
paravam, assediavam, cumprimentavam. E perguntavam repetidamente o país de
origem, nomes, empregos, estados civis, filhos.
Dezembro significava a temporada de casamentos na Índia.
Não faltavam enfeites, cavalos mascarados, bandas musicais, roupas coloridas.
Pequenos ou grandes cortejos seguiam pelas ruas, acompanhados de música e
danças. Levavam o noivo, enfeitado com chapéu e roupas coloridas, em direção à
cerimônia. Assim que avistavam estrangeiros, em plena rua, imediatamente
convidavam a entrar e participar das danças. Bastava alguém se distrair e eles
o carregavam para o meio da festa itinerante.
Hospedagem em antiga residência de marajá, espécie de
palacete, belíssimo. Na área social, em meio ao imenso e variado jardim, os
bangalôs para os hóspedes, com interiores suntuosos e finamente decorados. Os
banheiros, no entanto, sobretudo os chuveiros, deixavam a desejar. Fazia frio
suave à noite e a água quente para o banho, como de praxe, continuava apenas
promessa.
Seguimos ao forte Mehrangarh nos altos da colina. O acesso
era difícil, intencionalmente para defesa, através de rampas sinuosas ligadas
por portões pontiagudos que preveniam abordagens de elefantes. Percorri os
interiores, as dependências usadas pelos marajás, sala de armas, roupas,
pinturas, berços. A arquitetura, interna e externa, impressionava pela
imponência e solidez.
Novamente estrada estreita, cruzando rios completamente
secos, até o vilarejo de Daspan. Banho, somente com baldes. À noite o jantar
típico do Rajastão, bastante apimentado e saboroso, foi servido no chão, sobre
as toalhas. Tudo ao ar livre, iluminado com luz de velas e com a presença do
proprietário. Fascinante.
Alvorada ao rufar de tambores em sinal do novo amanhecer.
Se as instalações deixaram a desejar, a comida e os momentos passados em Daspan
valeram e muito a estadia.
Na beira da estrada, o templo de Ranakpur, o maior da
religião jain em toda a Índia. Como sempre, sem os sapatos. Recepção profissional
pelo religioso responsável, que contou a história do templo, explicou os
fundamentos do jainismo e, por fim, pediu contribuições financeiras. Mas o
templo era belíssimo, sobretudo os interiores. Construído em mármore, guardava
torres, colunas, imagens ricamente trabalhadas. Eram milhares de colunas
esculpidas diferentemente entre si. A iluminação natural e os efeitos sobre as
formas produziam desenhos e encantos especiais.
O uso da buzina era como doença na Índia. Nada a ver com
agressividade, apenas um fenômeno cultural. Mas beirava à histeria e irritava
até não poder mais. Buzinavam sempre e bastante. O motorista de ônibus buzinava
até para os pássaros. Na traseira dos caminhões estava escrito a frase “Buzine
por favor”.
Em Udaipur, visita ao palácio que, como parece regra na
região, era mais valioso por fora. Os diversos cômodos internos ostentavam decoração
exagerada. Espelhos, pinturas e vidros exageradamente coloridos. Das janelas, o
visual privilegiado da cidade e do lago. Pelos becos da cidade velha, artesãos,
cores, cheiros, flagrantes, contatos humanos. Os lagos davam toque especial ao
conjunto arquitetônico e humano. Reflexos na água, ilhas com palácios, mulheres
lavando roupas ou se banhando em degraus exclusivos. Na volta, mais casamentos
com bandas e danças no meio da rua. O noivo, fantasiado e brilhante, ia a
cavalo.
De nada adiantava pedir pratos sem
pimenta aos garçons. Assentiam e a coisa vinha queimando. Se reclamasse, eles
se desculpavam e ficava por isso mesmo. Não era golpe ou desonestidade. Era
como pedir comida sem sal. Inconcebível na cultura indiana. O jeito era relaxar
e se deliciar. E a pimenta realçava sem encobrir o sabor. Os indianos usam
apenas a mão direita para comer. E a mão esquerda para a higiene, como nas
linhas férreas após a evacuação.
Foi o dia inteiro no trajeto até Jaipur, pelas estradas
acidentadas e sinuosas das montanhas Aravalli, seguidas de trechos mais planos.
Na segunda metade da viagem o tráfego se tornou bastante perigoso. Os
motoristas abusavam da sorte, infringiam leis, tentavam ultrapassagens
arriscadas. Em três oportunidades escapamos por pouco de bater de frente com os
caminhões.
Jaipur era grande, confusa, populosa. Cidade indiana
legítima. Os moradores, ainda mais que nas outras cidades, grudavam e
perguntavam de tudo. Vinham aos montes e não desistiam fácil. A confusão e o
fascínio reinavam nas ruas. Trânsito de carros, caminhões, ônibus, bicicletas,
riquixás, gente, muita gente, vacas, ovelhas, camelos. Índia de verdade. Visita
ao Palácio dos Ventos, Palácio da Cidade, observatório astronômico, museu, a
cooperativa de fabricação tapetes e tecidos. Trabalhos bem feitos e de bom
gosto. Em Amber, a antiga capital, subi de elefante as íngremes rampas para
atingir os portões do palácio. Bem mais confortáveis que os camelos.
Cruzamento da fronteira e entrada no
estado de Uthar Pradesh, parando para visitar a cidade inexplicavelmente
abandonada de Fatehpur Sikri. Belíssima e com atmosfera calma, a cidade
guardava construções em arenito e mesquita imponente em mármore. Fora dos muros
da cidade os pentelhos atacaram novamente.
Chegada em Agra no final da tarde. Mais
e mais casamentos ocorriam na cidade. Caminhões alegóricos, bandas, cavalos
decorados, festas por toda parte. Mas os noivos sobre os cavalos e as noivas
nos carros alegóricos raramente sorriam.
Levantei ainda no escuro para o nascer
do sol no Taj Mahal. Os ingressos eram mais caros no início da manhã, mas valia
e muito a pena assistir aquela maravilha se clareando e mudando o tom das
cores. O horror ficava por conta dos turistas dos paises considerados de
primeiro mundo. Abusavam da prepotência, desrespeitavam as leis de civilidade,
pisavam na grama, instalavam tripés fotográficos em locais proibidos e lá
permaneciam impunemente. Outros deles, sem se importar, empurravam e se
postavam na frente, tapando a visão. Esgoto imperialista, nada mais.
O Taj Mahal deslumbrava e impunha
respeito. Construído em mármore branco, possuía as paredes cravadas com flores
de madrepérolas. O vazio interior era compensado pela grandeza e simetria
arquitetônica. Permaneci horas por ali, apenas apreciando, contemplando,
divagando. Em seguida, o Forte de Agra, que, apesar de semelhante aos
anteriores, se apresentava mais completo e mais bem conservado. Das janelas, a
visão do Taj Mahal.
À tarde, o cinema, a fim de prestigiar a
maior indústria cinematográfica do mundo. O filme misturou comédia de erros,
chanchada amorosa e musical. Tudo exagerado. Roupas, expressões, cores
representaram tentativas frustradas de ocidentalização. Naturalmente bonitas e sensuais, as atrizes
indianas transformaram-se, no filme, em peruas ridículas, vestidas com roupas
de cabaré. O moralismo não dava margens a beijos ou carinhos além dos limites.
A plateia ria a batia palmas nas cenas cômicas. A maioria escolhia lugares
perto de estrangeiros e prestavam atenção em tudo, menos no filme.
Longo trajeto de trem, em conforto e
segurança, sobretudo se comparada com as rodovias estreitas e os motoristas
imprudentes. Desembarcamos na distante estação ferroviária de Varanasi. Depois ônibus
e percorrer parte da terrível rodovia que liga o Paquistão a Bangladesh, o
famigerado Grande Tronco. O trânsito pesado e enfurecido virou pesadelo até
chegarmos à cidade.
Andanças pelos degraus (ghats) na
margem do rio Ganges. Pessoas se banhavam, se benziam nas águas, lavavam
roupas. Havia serviços de barbeiro, massagistas, meditação, bênçãos. As
cremações em série nos degraus reservados levantavam fumaça e deixavam cheiro
de carne tostada. Cobertos com pano colorido, os corpos dos mortos vinham
acompanhados de madeira, manteiga inflamável e dos demais acessórios pagos pela
família. Apenas os homens participavam da cerimônia da cremação. A qualidade da
madeira e acessórios variava conforme o poder aquisitivo da família. O sândalo
era a madeira preferida dos ricos.
Local sagrado para os hindus, Varanasi
atraía gente de todo a Índia, sobretudo os doentes, idosos ou os que se sentiam
próximos da morte. Os tipos mais variados e chamativos perambulavam, com roupas
e comportamentos ímpares. Permanecer por horas nos degraus da margem do rio era
oportunidade única de apreciar essa constelação de seres humanos. Em seguida, os
becos estreitos, casas, bazares da cidade velha. Os vendedores das lojas eram
persistentes. Se alguém olhasse ou demonstrasse interesse por uma mercadoria,
mesmo que apenas de esguelha, eles atacavam. Ofereciam peças e mais peças. Não
desistiam, chegando a acompanhar o potencial cliente por vários quarteirões.
Eram duros na queda. Suspensas um metro acima da calçada, as lojas não possuíam
cadeiras ou mesas. Os donos, vendedores e clientes se estendiam no chão
acolchoado e ali negociavam. Não havia pressa. O importante era negociar,
pechinchar, conversar. Vez ou outra, a loja servia chá e petiscos para dourar o
momento.
As vacas de Varanasi eram maiores que as
de outras cidades. Em local tão sagrado eram ainda mais sagradas. Tigelas
enormes ferviam o leite que, depois de esfriado e descansado, tornava-se
coalhada saborosa. Eu comprava diretamente nas calçadas, oferecida em cuias de
barro. Depois de usadas, as espatifava na sarjeta, para serem levadas pela água
e transformadas em barro novamente. Higiene total. Ecologicamente perfeito.
Simples e fácil. Homens de mãos dadas compunham cenas comuns nas ruas e praças,
não gerando motivos para eventuais malícias ou preconceitos.
Madruguei para pegar o barco e assistir
ao nascer do sol no rio Ganges. Das águas vi os hindus se banharem, orarem, se
abençoarem nas águas frias e sagradas. A manhã de dezembro gelava e pedia
agasalhos. Uma vaca morta boiava rio abaixo. Havia degraus específicos para
cagar. De cócoras, eles faziam a maior força para tirar o peso da consciência, com
o inseparável balde com a água sagrada na mão esquerda. Muitos escovavam os
dentes com os dedos ou com pequenos pedaços de madeira.
Embarquei à tarde no trem para Delhi. O
vagão tinha bancos fixos em vez de camas. As horas correram confortáveis e
silenciosas.
A Índia fascinou tremendamente naquelas
poucas semanas e mereceria explorações mais demoradas e detalhadas por todo o
país, percorrendo estado por estado, sem pressa, degustando, na base do se está
bom fica, se está ruim vai. E essa experiência viria a acontecer anos depois.
Embora chegasse ao aeroporto de Delhi
mais de duas horas antes, não consegui embarcar. O indiano do balcão comunicou
aos berros que o avião lotara. De nada adiantou mostrar minhas confirmações do
voo. Formou-se tumulto, todos alegavam prioridade, mas não houve jeito. Estava
diante de ação muito comum das companhias aéreas. A empresa tailandesa vendera
mais assentos que a capacidade do avião. Passava das 3 horas da madrugada
quando entrei no quarto luxuoso do hotel a que tinha direito nessas situações.
Somente assim para eu me hospedar em hotel cinco estrelas. Pelo menos dormi bem
na imensa cama de casal.
A recepção me acordou no meio do dia
seguinte. Entreguei o bilhete e aguardei a devolução e confirmação do novo
horário. Comi muito e bem. O bufê 24 horas no hotel garantiu comida saborosa e
farta.
E entrei no avião rumo à Tailândia.
Desembarquei na tórrida Bancoc pela manhã, mas somente consegui sair do
aeroporto duas horas depois. Dentro do táxi enfrentei o famigerado e engarrafado
trânsito até a pousada. Encarei quarto básico e pequeno, com cama de solteiro,
ventilador, banheiro coletivo no fundo do corredor. A fechadura da porta do
quarto saía na minha mão quando tentava abri-la.
Khao San, a região das pousadas em Bancoc, era reduto
de turistas previsíveis e convencionais posando de alternativos. Além de
pousadas baratas, dezenas de restaurantes, bares, livrarias, lojas, agências de
viagens. Ambulantes vendiam relógios, artigos de seda, óculos, equipamentos de
som, fitas, carteiras de estudante, roupas, entre outros itens, todos falsos.
Legitimamente falsos. O ambiente das redondezas era desagradável,
ocidentalizado, nada tailandês. As músicas de sempre embalavam australianos,
europeus e estadunidenses, comumente chapados. Exibiam expressões arrogantes
como se fossem muito vividos e experientes na vida. Bares esfumaçados, rock no
último volume, vídeos com filmes estadunidenses, muito álcool. Nada de
Tailândia ou Ásia. Turistas saíam das vidinhas nos respectivos países, deixavam
a rotina, viajavam milhares de quilômetros, gastavam dinheiro, mas construíam
um mundo igual ao de origem.
continua...
impressionante sua narrativa: descritiva, detalhada e envolvente. Viajei junto, parabéns. Marcela.
ResponderExcluirOi Marcela, obrigado pelo comentários.
ResponderExcluirFique à vontade para ler e comentar os outros relatos de minhas viagens pelos interiores do Brasil e por outros países da América, Europa, Ásia.
Sua visita será sempre bem-vinda.
Abraços!
Impressionada pela beleza da arquitetura, você consegue colocar de modo simples e claro, sem anular a grandiosidade da obra, como, o Taj Mahal deslumbrava e impunha respeito.Fico imaginando, deve ser deslumbrante.
ResponderExcluirGostei das mulheres com seus saris coloridos e impecáveis, nós mulheres arrasamos em qualquer raça. Risos.
Viajando.
E que amanhecer naquele dia, Ivete, alterando as cores do Taj!
ResponderExcluirAs mulheres indianas, realmente, arrasam dentro dos saris. Se não fosse o abismo cultural, eu teria me perdido por lá rssss.
Continue...